quinta-feira, setembro 26

Assim começa o livro...

Os dedos da mulher tremeram quando ela passou o ferrolho na porta, trancando‑se no banheiro. Não acendeu a luz. Não precisava. Os celulares — esses pequenos instrumentos do demônio — são como as estrelas: têm luz própria.

Apertou com força o aparelhinho na mão, sentindo a superfície lisa e fria. Era ali que estava a resposta. Sim ou não? Seria verdade? Não é possível, não posso acreditar.

Sentou‑se no banco junto ao boxe, encostando‑se ao toalheiro elétrico. Seus gestos eram lentos, medidos, fazia tudo como se estivesse debaixo d’água, ou na lua, ou em outra dimensão. O corpo se movimentava quase à sua revelia, mãos trêmulas agarradas ao celular, sem querer largar. Não podia fazer nenhum ruído. E se Benjamim acordasse? O banheiro era no fim do corredor, longe do quarto, é verdade. Mas ainda assim havia o risco.

Respirou fundo. Tentou se acalmar pensando em alguma coisa boa, um lugar distante, calmo, limpo. Sempre fazia isso nos momentos de agitação, costumava funcionar. Tentou. Uma praia. O sol batendo nos olhos fechados, cheiro de capim. Um silêncio enorme à sua volta. Estava sozinha, quieta. Podia sentir nas costas as ripas da madeira de alguma espreguiçadeira. Um hotel, talvez. Uma ilha, quem sabe? O mar, dele podia sentir o cheiro. Era um mar manso, de baía. Mar de águas paradas. Droga! O barulho da descarga quase a fez saltar. As águas pútridas de um vaso sanitário, sendo esgotadas por um vizinho insone, acabavam de cortar a madrugada, tsunâmi de real invadindo seu devaneio.

Endireitou‑se no banco, esticou as costas. Postura. As narinas expandidas sentindo o ar entrando e saindo, entrando e saindo. Pensou em recomeçar. Mas, antes, pressionou o pequeno botão vermelho do toalheiro elétrico. Queria sentir nas costas o calor, esperar que as ondas mornas que circulavam por aquele encanamento prateado transmitissem a seu corpo a antítese da frialdade, do fio de gelo que lhe subia e descia pelo estômago, pela glote.

Tinha recebido o bilhete de manhã. Alguém botara embaixo da porta. O bilhete que denunciava tudo, dava detalhes. Muitos detalhes. E dizia que, se ela tivesse dúvida, que procurasse as mensagens no celular dele.

A mulher olhou para o aparelho em suas mãos. O celular do marido. Seus olhos, já acostumados à penumbra, percebiam o brilho do vidro, a moldura de metal. Benjamim nunca me escondeu nada, ele sabe que eu tenho a senha. Essa é a maior prova de que é tudo mentira, uma intriga de alguém que tem inveja de nossa felicidade. Somos um casal tão querido, tão admirado e… Mas e se fosse verdade?

Precisava saber. Tomar coragem, pressionar o pequeno botão, ver a tela se iluminar, procurar as mensagens. Ler. E pronto. Tudo estaria esclarecido. Era simples, não precisaria nem comentar com ele, nada, nada. Amanhã seria outro dia, tudo estaria esquecido. Os detalhes. Muitos detalhes. Mas era intriga, tinha certeza, só podia ser. Tinha de ser.

Ligou o aparelho, o dedo pressionando a mínima saliência na borda. Digitou a senha, observou os ícones. Um deles, verde, o ícone das mensagens, olhava para ela como um olho de gato. Mas Benjamim nunca. Um homem tão digno, tão ético. Sempre tão correto em tudo. Os maridos das amigas eram diferentes. Deles, ela esperaria qualquer coisa. Mas não de Benjamim. Seu marido era um homem verdadeiro.

Desde jovens, quando se conheceram, ela o admirava. O encontro acontecera em uma festa da Faculdade de Medicina, onde Benjamim estudava. Por que ela fora àquela festa? Já não sabia bem, mas talvez tivesse sido por causa de seu trabalho de voluntária na organização de apoio a pessoas com aids. Na época, a doença era uma sentença de morte e ela se sentira compelida a ajudar. Nos quartos dos hospitais públicos, esqueletos ainda recobertos de pele olhavam para ela do fundo dos lençóis encardidos. Às vezes, havia um sorriso, um aperto de mão. Mãos amarelas, manchadas, peles que pareciam pertencer a outra categoria de seres, não a humanos. Medo. Dor. Mas um impulso a levava a continuar com as visitas. As reuniões do grupo se davam às quartas‑feiras, em uma pequena sala da praça Saens Peña, na Tijuca. E os voluntários às vezes assistiam a palestras de médicos, na universidade. Viera talvez daí o contato, o convite para a festa de fim de ano na Faculdade de Medicina. 

Benjamim. A recordação era fragmentada, mas ela revia mentalmente os recortes, o bambuzal derramado sobre o jardim, voltava a ouvir as conversas à beira de uma piscina de água verde, o murmúrio da mata. Fora tudo muito repentino, muito natural. Poucos anos depois, quando Benjamim se formou, já estavam casados.

Juntos, tinham sonhado com um mundo melhor. Benjamim era um homem especial. Transparente. De uma franqueza às vezes desconcertante.

“Não vamos ter filhos”, disse um dia.

Assim, sem meias palavras. Ela ficou olhando para ele, em silêncio. Benjamim explicou que o mundo precisava deles por inteiro, seriam servidores dedicados. Se tivessem crianças para cuidar, isso os desviaria do caminho. Ela aquiesceu. Tudo o que ele dizia fazia sentido.

Com o tempo, a dedicação dele se aprofundou. Horas e horas, todos os dias da semana, às vezes também aos sábados, domingos, feriados, Benjamim estava no hospital. A mulher compreendia. Mas com ela própria acontecera uma transformação. Passados alguns anos, se afastara de seu trabalho de voluntária. De repente, já não suportava o convívio com os doentes, aqueles rostos encovados, a pele escura que crestava o sorriso, os lábios ressequidos que a faziam pensar em lagartos. Tomou horror. Ainda continuou indo às reuniões, mas as visitas às clínicas não conseguiu mais fazer. Sua garganta se trancava, sentia subir pelas costas um arrepio de horror. De nojo. De medo. Mentiu.
Disse aos companheiros do grupo voluntário que estava grávida, que a convivência insalubre lhe seria impossível. Meses depois, desapareceu das reuniões na Saens Peña sem se despedir.

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