quinta-feira, setembro 5

Avariada

Michelle Ranta
A máquina de lavar roupa avariou-se. Começou aos solavancos no ciclo da centrifugação como se quisesse aprender a dar pequenos passos, até que se desligou abruptamente, deixando as luzes dos programas num pisca-pisca de Natal.

Enchi-me de contrariedade. Tratar da avaria roubar-me-ia tempo a outros afazeres tão desinteressantes como aquele, mas já devidamente agendados. Estendi a roupa encharcada nas cordas que dão para as traseiras, um cerco retangular de prédios desacertados. No silêncio do início da manhã, o chiar da roldana do estendal era um animal aprisionado. Assim que terminei de reforçar as molas por causa da água que pesava as roupas, telefonei ao representante da marca para lhe expor o meu contratempo. Chegada à parte em que a máquina parecia ter começado a andar, a diligente funcionária interrompeu-me, aconselhando a visita de um técnico.

Para analisar o problema da trepidação inusual, corrigiu-me. Segunda-feira, às oito da manhã, o técnico já tem a agenda cheia, se quiser aproveitar este buraquinho... Aproveitei o buraquinho, e às oito da manhã de segunda-feira o técnico estava à minha porta. A sua pontualidade pareceu-me mais estrangeirada do que o cabelo louro desgrenhado e os olhos azuis.

A destreza com que me estendeu a mão perdeu-se nos meus gestos ainda sonolentos. Ucrânia, disse, para se desculpar do sotaque. Pedi-lhe desculpa pela exiguidade da marquise quando vi o malabarismo que ele teve de fazer para afastar a máquina da parede. Eu é que ser grande, riu-se. Tinha acabado de passar o café quando o técnico me chamou, Arranjo caro, melhor deitar máquina fora, comprar nova. Ainda só tem dez anos, lamentei-me. Senhora ter sorte, muitas vezes durar menos.

Dispus-me a ir a uma grande superfície para conhecer ao vivo as opções que tinha. Iniciar uma relação, ainda que fosse com uma máquina de lavar roupa, ainda que não tivesse esperança de que durasse sequer uma década, pressupunha, no entanto, que não me desleixasse na escolha. Até chegar aos corredores dos grandes eletrodomésticos, máquinas de lavar, frigoríficos, fogões, termoacumuladores, bombas de calor, desumidificadores, percorri muitos outros, os dos pequenos eletrodomésticos, micro-ondas, torradeiras, ferros de engomar, slow juicers, os dos cuidados de beleza masculina e feminina, balanças, secadores, máquinas de barbear, os dos computadores, portáteis, híbridos, all in one pcs, os das televisões, os dos telemóveis, os dos sistemas de som, quilómetros de máquinas aduladas pelos consumidores. Cruzei-me com um casal que se desentendia acerca das vantagens do encastramento, com a mulher que gabava a uma amiga o frigorífico americano que lhe daria tanto jeito na casa grande que não tinha, com o executivo que testava as funcionalidades de um smartphone de última geração, com o rapaz que se esquecia de crescer entretido com uma consola, com a velha que, perdida, perguntava pelas chaleiras elétricas.

Eis-me, finalmente, no sítio certo, filas de máquinas de lavar roupa, empoleiradas umas nas outras, a vigiarem-me, cada uma com o seu enorme, feio e sisudo olho cinzento. Tive esperança de que, imersa nas luzes brancas, viesse até mim uma das patinadoras que há alguns anos deslizavam dentro daquela música ambiente. Em vez disso apareceu um funcionário que ainda carregava o enfado da conversa com os clientes anteriores. Em que posso ajudá-la?, perguntou. Incapaz de reter o fluxo da informação técnica que debitou a uma velocidade espantosa, distraí-me e comecei a vê-lo em câmara lenta, a sua voz ecoando pelos corredores, Smart Check, Smart Check, como um disco riscado que tivesse entrado em baixas rotações, ditando cifradas instruções de comando de uma nave espacial que me levava dali. Mantive-me a dizer, sim, sim, pois, hum, hum, não conseguindo ir além da comunicação mínima que garantia que o funcionário não se calasse. Percebi que a nave espacial era, afinal, o tanque de lavar roupa da minha mãe e que eu viajava sentada na esfregadeira, pernas ao pendurão, to boldly go where no man has gone before. Não se pode ir longe se não se tiver um meio de transporte confiável. E duradouro. Para onde me levava o tanque de cimento cinzento que sempre me parecera tão preso ao chão, desde sempre e para sempre, logo à direita de quem sai para o quintal, pela porta da cozinha? Apesar das máquinas de lavar roupa que a minha mãe foi tendo – estragava-se uma, vinha outra –, o tanque esteve sempre presente, sempre o mesmo, e a minha mãe nunca deixou de encontrar-lhe utilidade. Um tanque para toda a vida.

Mas eu não quero um tanque de lavar roupa. Este pensamento despejou-me, de repente, no chão.

O funcionário estava calado, à minha frente, contrariado com o meu alheamento. Pisquei os olhos várias vezes, tentando sintonizar-me. Qual é que me aconselha?, engrenei a custo, sorrindo. Depende do que quer, a senhora é que tem de saber o que quer, respondeu ríspido. O que é que eu quero? Não posso querer um tanque em cimento como o da minha mãe, mas também...

Dantes, queríamos que as coisas durassem para sempre, agora, queremos que só o nosso corpo dure para sempre, não importa que tudo o mais se estrague depressa, eletrodomésticos ou afetos, tanto faz, convicções ou roupas, tanto faz, queremos o novo, a vertigem de experimentar o novo, o resto tanto faz, tanto faz, do novo depressa fazemos velho, para podermos experimentar o novo que depressa fazemos velho, para podermos experimentar o novo que... Quanto cansaço! Vivemos cada vez mais, um dia seremos eternos, mas o tempo que se vai ganhando à morte não compensa aquele que gasto com a aflição de sentir tudo frágil à minha volta, com o que se estraga e não se conserta, com o que faz lixo mas não aduba, com a roleta das possibilidades infinitas, com o que tanto me demora a escolher e de tão pouco me serve...

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