domingo, setembro 8

O mundo sem os Beatles

Um misterioso evento acontece no mundo — um súbito apagão global. Na sequência desse fenômeno inexplicável, Jack, um jovem músico sem grande talento, sofre um acidente de bicicleta, desmaia e quando desperta descobre que os Beatles nunca existiram. Não obstante, Jack lembra-se dos quatro músicos de Liverpool e das canções que os mesmos produziram, e começa a cantá-las como se fossem suas. Esta é a premissa de “Yesterday”, o mais recente filme do diretor inglês Danny Boyle, que chegou há poucos dias aos cinemas brasileiros. 

Suponho que a ideia para o filme tenha surgido a partir da história de “Yesterday” — a canção. Assegura a lenda que, numa certa manhã de 1965, Paul McCartney acordou com uma estranha melodia na cabeça. Sentou-se ao piano e tocou-a. Julgou que a tivesse escutado em algum lugar. Nas semanas seguintes, cantarolou-a para amigos, mas ninguém a conhecia. Convenceu-se então que a sonhara e apropriou-se dela.

O filme, uma comédia romântica, começa muito bem. Infelizmente, perde-se algures pelo caminho, tentando agradar a um público mais vasto. Ainda assim, recomendo-o. Acho a ideia muito boa. A conclusão do filme é que, na ausência dos Beatles, a vida prosseguiria sem grandes alterações. Até John Lennon poderia viver sem os Beatles. Aliás, sem os Beatles, Lennon teria provavelmente chegado à velhice (o filme mostra-o velho e feliz numa praia qualquer).

Sem Hitler, o mundo seria outro. Sem Nelson Mandela também. Mas sem Shakespeare, Borges, Leonard Cohen ou Cartola, não seria muito diferente. A melancólica conclusão de “Yesterday”, o filme, é que a beleza não muda o mundo. Nem tão pouco os cigarros ou a Coca-Cola, que, no filme, também desapareceram sem que ninguém sentisse tal ausência. Parece haver alguma verdade nisto, mas será assim? Não estou tão certo. Agrada-me pensar que a beleza é transformadora. Contudo, a revolução da beleza não será nunca uma festa pública ou um grande sobressalto cívico. A beleza trabalha em silêncio, ao longo dos anos, no mais íntimo de cada um de nós.

Talvez as multidões que possibilitaram a ascensão de Hitler, inclusive votando nele, tivessem agido de forma diferente se expostas a outros ambientes musicais — menos Wagner e mais jazz, por exemplo.

Se eu nunca tivesse lido Eça de Queiroz, Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Tomás Eloy Martínez ou Leopold Sedar Senghor, continuaria a responder pelo mesmo nome, teria o mesmo rosto, mas certamente não seria a mesma pessoa.

“Yesterday”, a canção, terminou de ser composta no sul de Portugal, em Albufeira, numa pequena casa, na praia, que Paul alugara para passar alguns dias de férias com a mulher, a atriz Jane Ascher. Nessa época, Albufeira era ainda uma pequena cidade de pescadores, com forte marca da secular presença árabe, como todas as povoações do sul de Portugal. Imagino o que pensariam os pescadores ouvindo aquele inglês meio hippie, cantarolando “Yesterday”, enquanto tomava um café na taberna local. Algum deles terá intuído que estava nascendo ali uma das grandes canções do nosso tempo? Certamente que não.

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