Depois, vieram muitos outros encontros felinos que marcaram a minha vida: a Vadia, o Pipoca. Lembro-me também de um gato nas ruínas de Cartago — um magnífico felino de pêlo dourado e olhos verdes como o mar mediterrânico que beija aquelas pedras antigas. Aproximou-se com a graça de um verso esquecido, esfregou o queixo nas minhas pernas como quem assina um pacto silencioso e, por instantes, o tempo parou entre colunas romanas e o eco de civilizações desfeitas. Naquele encontro breve, senti que Cartago me acolhia não através dos homens, mas através de um gato que parecia guardião dos segredos do lugar. Chamei-lhe Aníbal.
E recordo, com ternura que ainda me aquece o peito, a gata persa de Sidi Bou Said. Todas as tardes, ao regressar a casa, depois das aulas aos meus alunos do Instituto de Línguas de Tunes, ela lá esperava empoleirada no muro azul-celeste que ladeava o caminho — imóvel, elegante, como uma estátua viva bordada a seda branca e cinza. O seu olhar, âmbar e sereno, parecia saber mais de mim do que eu próprio sabia. Nunca me seguiu, nunca pediu nada; apenas me recebia com a quietude de quem compreende que existem chegadas que são rituais. Nos dias em que o cansaço solitário me pesava nos ombros, bastava vê-la ali — recortada contra o céu do Mediterrâneo, entre jasmim e azulejos — para que o mundo voltasse a fazer sentido.
Lembro-me também de todos e tantos gatos da Tunísia, que exalavam perfume de jasmim, como se a brisa do Mediterrâneo lhes tivesse emprestado a fragrância. E lembro-me, com emoção contida, de que fui acariciado por Gli, em 2019, antes que morresse — sim, por ela, a célebre gata da Hagia Sophia, em Istambul.
Gli não era apenas um felino: era uma instituição viva. Nascida por volta de 2004, fez da basílica-mesquita a sua casa e do mundo inteiro o seu público. Dormia sobre tapetes otomanos, repousava junto aos vitrais bizantinos e recebia turistas com a dignidade de quem habita a história. Quando, em 2020, a Hagia Sophia deixou de ser museu para voltar a ser mesquita, houve temores de que os gatos fossem expulsos. Mas Recep Tayyip Erdoğan, então presidente da Turquia, tranquilizou o mundo: “Os gatos da Hagia Sophia ficam. Sem eles, o lugar não seria o mesmo.” Gli, a gata-imperatriz acariciada por Barack Obama, morreu poucos meses depois, com cerca de dezasseis anos, e foi enterrada nos jardins do monumento, com honras de guardiã eterna. Hoje, os seus descendentes — e os outros felinos da Hagia — continuam a circular entre os fiéis e os visitantes, como se o espírito de Gli ainda ali ronronasse, entre o sagrado e o profano.
Istambul, afinal, é conhecida como a “cidade dos gatos”: ali, os felinos reinam livres, alimentados e acarinhados pelos habitantes, numa cultura muçulmana que os venera pela sua limpeza e lhes abre as portas das mesquitas.
Desde então, os gatos são para mim mais do que animais: são companheiros de sombra, cúmplices de solidão, mestres da pausa. E não estou sozinho nesta devoção. A literatura está cheia de gatos que se aninham nas páginas, que ronronam nos versos, que saltam para os ombros dos poetas como quem reivindica um lugar na eternidade.
O meu querido amigo Eugénio de Andrade sabia disso. No seu texto “Acerca dos gatos”, recorda o “pequeno tigre” da infância, a gata livre de Coimbra, o persa azul que reinava na casa e a rafeira negra que lhe fazia companhia aos domingos. Muitas vezes fui acariciado pela belíssima gata negra. No poema “Gatos”, evoca-os vindos “da Índia, da Pérsia, de Nínive, Alexandria”, como se fossem ecos de civilizações antigas, elegantes e eternos.
Ary dos Santos, irreverente e apaixonado, também lhes dedicou versos: chamou-lhes “animais irracionais de fino gosto”, celebrando a independência felina como quem celebra a liberdade humana. Porque um gato é isso: um manifesto silencioso contra todas as prisões.
Maria Teresa Horta, musa da poesia erótica, escreveu um poema chamado “Os Gatos”, musicado nos anos 60, onde o felino surge como metáfora de sedução e segredo. Também o amigo Joaquim Pessoa, por sua vez, confessou: “Não sei falar com os gatos, mas adoraria trocar por miados o carinho que em mim despertam.” Palavras que soam como um ronronar poético.
Manuel António Pina não se limitou a escrever sobre gatos: acolhia-os. Chamava-lhes Hugo, Chico, Adelaide, Ronaldo, transformando cada gato num poema vivo, uma história que se aninhava no seu colo. Eugénio Lisboa foi mais longe: dedicou um livro inteiro aos gatos, com 31 poemas, — “Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso” com fotografias recolhidas, explicadas e legendadas pela minha ex-Professora da Universidade de Lisboa, a Otília Pires Martins—, onde cada verso é uma carícia, cada palavra um miado cúmplice. “Começar a gostar de gatos é como entrar para a máfia: uma vez dentro, não há como sair?” E dela não quero sair…
Mas esta paixão não é só nossa, lusitana. Do outro lado do Atlântico, Mark Twain vivia rodeado de gatos com nomes extravagantes. Hemingway colecionava gatos polidáctilos, que viviam na sua antiga casa em Key West, Flórida, descendentes do mítico Snowball. Borges escreveu sobre Beppo, o gato branco que lhe ensinou a filosofia do silêncio. Bukowski, sempre cru, confessou que os gatos lhe davam coragem para enfrentar a vida.
No Egito Antigo, os gatos eram divinos. Bastet, a deusa com cabeça de felino, simbolizava proteção, fertilidade e a graça da casa. Matar um gato era crime punido com a morte. Os faraós dormiam sob o olhar vigilante destes guardiões, e quando um gato morria, a família raspava as sobrancelhas em sinal de luto. Talvez seja por isso que ainda hoje os gatos carregam uma aura sagrada, como se cada passo fosse um rito.
Em Roma, os gatos eram símbolo de liberdade. A palavra “libertas” era associada ao felino, vigilante da Roma Antiga, que caminhava entre templos e praças como quem reivindica o direito de existir sem correntes. Essa herança atravessou séculos e chegou à literatura: um gato é sempre metáfora de independência, um poema que se escreve com patas leves.
Na Idade Média, porém, a sombra caiu sobre os gatos. Acusados de bruxaria, agentes de Satanás, perseguidos e queimados, tornaram-se símbolos de medo. Mas sobreviveram, como sobrevivem os poetas, escondendo-se nos cantos, aguardando o regresso da luz. E regressaram com força, para se tornarem companheiros de reis, artistas e sonhadores, ao longo dos tempos.
Com a modernidade, os gatos conquistaram as cidades. Paris, Madrid, Londres, Lisboa: nos cafés parisienses, inspiravam Baudelaire, que lhes chamou “tigres domésticos”. Em Lisboa, vagueiam pelos miradouros, como sentinelas da saudade, guardando segredos entre azulejos e colinas.
Hoje, os gatos são símbolos literários universais. De Edgar Allan Poe a T. S. Eliot, de Sophia de Mello Breyner Andresen a Pablo Neruda, atravessam páginas e séculos com a mesma elegância. Cada olhar felino é uma metáfora, cada salto é um verso. Talvez porque, como escreveu Robertson Davies, “os escritores gostam de gatos porque são criaturas quietas, adoráveis e sábias, e os gatos gostam deles pelas mesmas razões.”
E quando a noite desce sobre as páginas, vejo-os: gatos que caminham entre livros como sombras líquidas, olhos acesos como faróis de um porto secreto. São eles que guardam as palavras quando nós dormimos, são eles que sopram metáforas para dentro dos sonhos. Talvez a literatura seja, afinal, um imenso jardim onde os gatos passeiam livres, deixando pegadas invisíveis na neve das ideias. E nós, pobres aprendizes, seguimos-lhes o rasto, tentando escrever com a mesma leveza com que eles caminham sobre o silêncio.
E esta crónica é, acima de tudo, um tributo — não só aos gatos que cruzaram a minha vida, mas àquilo que eles representam: a graça do acaso, o luxo da presença, a sabedoria da espera. Em cada patinha silenciosa, um verso que a humanidade ainda não soube escrever — mas que, todos os dias, os gatos nos ensinam a sentir.
José Paulo Santos

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