sexta-feira, janeiro 31

Leiturra noturna

 


Uso do livro


Usamos os livros como espelhos, olhando dentro deles apenas para descobrirmos a nós mesmos.

Joseph Epstein

Insônia

Foi no tempo do terror, a ditadura. Eu não conseguia dormir. O medo era grande. Amigos já tinham sido mortos. Levantei-me, fui até a janela do prédio e olhei. A cidade dormia. O silêncio era quebrado apenas pelos apitos dos guardas noturnos, informando os ladrões da sua aproximação. Olhei para o céu estrelado. Pensei que ele tinha estado lá por bilhões de anos e continuaria a estar lá daqui a bilhões de anos. Lembrei-me do que um prisioneiro deixou escrito na cela de um campo de concentração nazista: “Daqui a cem anos tudo isso terá passado”. Com essas palavras na cabeça, voltei a dormir.

Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"

A beleza total

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.

A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.

O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito.

Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.

Carlos Drummond de Andrade, "Contos Plausíveis"

Viver sem culpa

Eu vagava sobre o compasso do pecado. Tudo por escutar as frestas das janelas. Menino pecador e sem remorso, eu suplicava perdão, sem fé, caminhando entre dúvidas. Não, não amava a Deus sobre todas as coisas. Amava meu amor mais que a mim mesmo. Outra vez embaraçava-me nos abraços. A felicidade destrancava um paladar ácido de culpa que só a alma degusta.


Meu pai destemia o tempo. Seus olhos nos confirmavam isso. Ele derramava um olhar bêbado sobre nossa alegria. Tudo vencia como os ponteiros do relógio assaltam o tempo, continuamente. Media tudo, minuto a minuto e segundo a si mesmo. Cheguei a desejar meu pai um relojoeiro, interrompendo as horas de todos os relógios. Quem sabe, um dia, cheio de medo do sempre, ele nos outorgaria viver sem culpa por sermos felizes? Meu pensamento desdobrava a lona cinza do caminhão — sempre encostada num canto da sala — e cobria meu pai por inteiro.

Se a chuva chovia mansa o dia inteiro, o amor da mãe se revelava com mais delicadeza. O tempo definia as receitas. Na beira do fogão ela refogava o arroz. O cheiro do alho frito acordava o ar e impacientava o apetite. A couve, ela cortava mais fina que a ponta da agulha que borda mares em ponto cheio. Depois, mexia o angu para casar com a carne moída, salpicada de salsinha, conversando com o caldo do feijão. Tudo denunciava o seu amor. Nós, meninos, comíamos devagar, tomando sentido para cada gosto. Ela desconfiava que matar nossa fome era como nos pedir para viver. A comida descia leve como o andar do gato da minha irmã.

Exige-se longo tempo e paciência para enterrar uma ausência. Aquele que se foi ocupa todos os vazios. Como água, também a ausência não permite o vácuo. Ela se instala mesmo entre as pausas das palavras. Na morte, a ausência ganha mais presença. É substantivo e concreto tudo aquilo que permanece. Daí, os mortos passearem entre nós. Jamais imaginei seu espírito transfigurado em fruto.

O pai viajava por distantes estradas. Partia nas madrugadas — secas ou frias — deixando um barulho de poeira seca por onde rodava. A lembrança de seu olhar nos ameaçava pelos gestos da esposa. A certeza de que fôramos lembrados por ele — mesmo por remorso — exalava das fatias de mortadela que incensavam os cômodos da casa, em seu retorno. Seu carinho, eu suspeitava, aparecia pontuado de pimenta de um reino quase só imaginado.
Bartolomeu Campos de Queirós, "Vermelho Amargo"

quinta-feira, janeiro 30

Faça esportes


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Solilóquio


Vão tirar o terminal do meu ônibus do centro da cidade, vão tirar do centro da cidade o meu ônibus, vão me tirar do centro da cidade?

Vão tirar da cidade o centro da cidade, vão tirar da cidade toda a cidade, vão fazer o que da cidade?

Vão plantar uma cidade nova no lugar da cidade carcomida, vão desistir de manter as ruínas da cidade, vão decretar que cidade não é mais de a gente viver?

Vão fazer ruas de cima para baixo, em forma de cisterna, para o que já se abrem os competentes buracos e se desaconselha andar na superfície para não prejudicar as obras?

Vão me dar passagem entre o tapume e a pista de corridas, entre o poço e a poça de lama, ou não vão deixar mais que use as pernas e os pés por estarem definitivamente fora de moda?

Vão permitir que eu siga o meu itinerário de trabalho sobre a capota dos automóveis, saltando de uma para outra depois de treinado em academia de técnica pedestre, ou vão estatuir que eu e mais nove concidadãos de bom físico carreguemos nas costas o automóvel, a fim de que automóveis e nós possamos chegar a destino, passando no que outrora se chamava de rua?

Vão dizer quantas pessoas podem sair de casa, a quantas horas, por quanto tempo, e por onde será permitido caminhar, durante quantos minutos, para que as turmas seguintes não sejam prejudicadas na regalia de ir e vir na cidade entupida?

Vão acabar com a cidade, todas as cidades, vão acabar com homem e a mulher também, vão fazer o quê, depois que eles mesmos acabarem?

Carlos Drummond de Andrade, "De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica"

Eu não vou perturbar a paz

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.

Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.
Mas, ah! eu não vou perturbar a paz
[que ele depôs na praça, quieto].

Manoel de Barros, "Poesia completa"

Aprendizado prazeroso

Eu leio por prazer e esse é o momento em que mais aprendo
.
Margaret Atwood

Dor

Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu. 

Mylia morava no primeiro andar do número 77 da Rua Moltke. Sentada numa cadeira desconfortável pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial. 

Havia sido operada uma vez, depois outra, quatro vezes operada. E agora aquilo. Aquele ruído no centro do corpo, no miolo. Estar doente era uma forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer. Mylia murmurou: a igreja está fechada de noite.

Quatro da manhã do dia 29 de Maio, e Mylia não consegue dormir. A dor constante vinda do estômago, ou talvez mais de baixo, de onde vem exactamente a dor larga, que não pertence a um ponto? Talvez da parte de baixo do estômago, do ventre. O certo é que eram quatro da manhã e ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem medo de morrer?

 Levantou-se. Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava os dedos para ninharias. (Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias.) Concentrava-se; sabia que tinha poucos anos de vida; a doença veio: ficamos juntas uns anos, depois ela permanece e eu parto. Pois bem, havia que concentrar a energia que existe nos dias ou que existe num corpo e se dirige aos dias, concentrá-la - à energia - como a um rolo de carne, estar pronta para agir. Dispensando ninharias. Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que altera de alto a baixo. 

Mas nesse dia, às quatro da manhã, decidira sair de casa. De noite a dor desce sobre o corpo de modo distinto. Como um concentrado químico, uma substância que lentamente desliza por um declive mínimo que os olhos mal conseguem perceber. Entre o dia e a noite a superfície não é plana. Um ligeiro declive. 

Concentrada a dor nesse sítio largo que não era um ponto - entre o baixo estômago e o ventre - Mylia estava na rua à procura de uma igreja. 

Surpreendido, um vagabundo diz que não sabe. Uma igreja?, pergunta.
É de noite, diz o homem, podem roubá-la. Não deve procurar uma igreja, mas sim a polícia para a proteger. Onde quer ir a estas horas? Eu podia roubá-la, senhora. 

Mylia sorriu, afastou-se. 

A dor não a deixava concentrar--se num diálogo. 

Não quero a polícia, quero uma igreja. Sabe se estão fechadas a esta hora? 
Gonçalo M. Tavares, "Jerusalém"

domingo, janeiro 26

Desobrigada e feliz


 

Agramática


Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.
Manoel de Barros, "O Livro das Ignorãças"

Manifesto pela paixão

Anda o mundo triste, falta-lhe o brilho das horas completas. Andam caladas as vozes do coração, os rios já não transbordam, há um mau feitio que não nos deixa ser felizes. Há um cheiro nauseabundo entranhado na pele que sufoca as emoções, vestígios de medo em busca do sorriso certo para semear manhãs nos olhos dos amantes.

É tudo a metade, tudo incompleto, feito para não existir. É esta vida que não se chega a viver até ao fim que faz sofrer a humanidade, que tem um corpo mas apenas metade do coração.

António Vilhena, "A eterna paixão de nunca estar contente"

Prosseguir...

Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado e disse à minha alma:- Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?

E minha alma disse:

- Não, uma vez alcançados esses mundos, prosseguiremos no caminho.

Walt Whitman

A Costa dos Murmúrios

Gente que nunca vi antes enche o patamar e o hall, e dentro, a porta do salão está aberta, como se tivesse sido franqueada para se ver, da luz do hall, uma cópia da Invencível Armada em luta contra a sagaz flotilha de Drake. O fumo que envolve a armada invencível enche o quadro até à talha. As cadeiras estão pastas coma ouvintes. As paredes têm as janelas cobertas por veludos verdes, agarrados por bolas de passamanaria, pesadas como sinos. lr a primeira vez que as mulheres de alferes espreitam para dentro do salão das festas. O Gerente curva-se — a calva luzidia dele brilha com as lâmpadas e ele diz imensamente Mesdames, por favor... «Lindo, lindo anoitecer!» diz uma mulher de major, sem costas. «Não sou africanista, mas ouso dizer que em África, nunca vi um pôr de Sol assim, tão rubro!» «Sim, major!»

Há coronéis, tenentes-coronéis, majores, vestidos a rigor e com medalhas. Várias senhoras com vestidos sem costas entram pela porta aberta em quatro dobras, e vão parar na direcção do óleo da Invencível Armada que fumega entre as talas cor de oiro. Têm colares de pérolas que apertam nos pescoços como mãos. Cabelos penteados contra a natureza como ramos. A mesa onde estão flores do Cabo tem as pernas retorcidas como tornos, como roscas. A sala sua e ondeia. Não se poderá ligar o climatizados porque o ruído poderá aniquilar a voz de quem vai orar. Quem ora? Ainda não chegou. Chegará dentro de instantes, acompanhado da mulher, de dois óculos escuros e dum bordão.

Silêncio — É um cego triunfal quem vai orar. As últimas cadeiras, junto das portas, só agora são ocupadas pelas mulheres dos alferes, porque sobejaram. Se não tivessem sobejado, as mulheres deles teriam de ficar em pé, junto das portas. Mas sobejam e felizmente, porque passaram a tarde na lavandaria passando a ferro os cabelos, á espera que sobejassem. Quando o cego chega junto da mesa onde não tacteia porque é amparado pelos passos da sua vestal, pode-se ver que em todas as paredes da sala estão espalhados quadros sobre a memorável noite ibérica que foi a de 28 de Junho de 1588. Não importa que seja a imagem dum desastre — a estética consome o desastre e redime-o em grandeza.

O tenente, agora capitão, provém de formação térrea, pertenceu à arma de Cavalaria. Dois anos atrás, ao longo duma picada, quando desempenhava funções que nada tinham a ver com a sua lembrança equestre, o coice duma granada. Nos olhos. Podia ter sido noutra parte do corpo, e logo nos olhos. Mas um homem com cérebro inteiro, formado sob a arma proeminente da Cavalaria, reage como reagiu o pulmão de Forza Leal — lembra-se? E muitos outros. Talvez seja necessária a guerra para se compreenderem certos fenómenos de defesa e ataque do corpo e da alma. Foi assim, estou a ver — disse Eva Lopo. Desde que ficou sem visão, entregou-se à História, o tenente-capitão.

A demonstração que traz, naquela noite, já ele apresentou diante de várias mesas, pelas várias províncias ultramarinas. O seu titulo é abrangente como um círculo — Portugal dAquém e dAlém Mar. Eterno. Em todas as cidades tem sido oportuno, mas onde mais do que ali, quando a incompreensão dos ultras levou à organização de gincanas contra a soberania, apenas por causa da morte dum velho pianista? Só que ainda não se disse tudo — disse Eva Lopo. Para além dos olhos, o cego também foi atingido a nível da cabeça, embora guarde grandes tufos de cabelo jovem e brilhante. Falar da eternidade dum império sem ver, e com cabelo em peladas, cria na sala o temor de quando se faz aproximar a temporalidade do absoluto. Mas tudo bem — as rosas do Cabo ondeiam. A mulher arrasta a jarra para um canto não só porque ondeiam, como pelo facto de o braço do tenente ter o impulso dum cavaleiro que monta. Ele diz no primeiro impulso — desde sempre os homens fizeram a guerra. Enumera as armas — paus, ossos, pedras, dentes de animais. Descreve a horda humana nua, cheia de paus, ossos, dentes. Não demora muito a dizer que desde sempre os povos da Ibéria se manifestaram aguerridos e belicosos, tendo começado com cajados, fundas e pedras. Pouco demorou a chegar a D. Afonso Henriques, já com a terrível espada. E logo o Infante com barco, e logo Dona Filipa de Vithena com os filhos, e logo o Mapa-Cor-de-Rosa com o hino. E logo diz colónias, e logo províncias, e entre elas o cavaleiro cego rapidamente destaca Moçambique, e quem fala de Moçambique tem de falar de Gungunhana, e Bonga, e Mussa Quanta. E logo depois uma lista por ordem alfabética de diferentes tribos, uma outra lista de diferentes intrusos. Uma outra ainda sobre a luta entre as tribos, os cativos e a venda dos cativos. E assim, as flores, mesmo postas no canto mais afastado da mesa, ondulam sob o sopro do tenente-capitão de Cavalaria que prevê o esmigalhamento dum mapa que só está unido dentro duma linha quebrada, porque ele, o recém-historiador, está ali. Estão as damas, os cavalheiros, os oficiais, os soldados que não estão ali, estão necessariamente espalhados dentro do limite da enorme linha quebrada, para que seja possível a união, impensável sem a presença de todos os que estão ali, os que não estão mas era como se estivessem. Já tinham estado e haveriam de estar. «Há quem não entenda...» — disse ele. Era uma óbvia alusão aos acontecimentos da gincana tão recente e aos seus vários tiros de intimidação. As mãos da primeira fila, quando se ouviu sair ao lado das rosas a palavra de desentendimento, começaram a aplaudir. De facto era ingrato e inoportuno um protesto desses quando se fazia um esforço triunfante e definitivo em Cabo Delgado, para se esmagar a rebelião sangrenta. Eram palmas sem exuberância que batiam continuamente, como se os donos das mãos falassem com as palmas e dissessem de forma articulada — sim, sim, sim, estamos entre duas incompreensões, mas resistimos. Talvez porque as palmas fossem firmes, mas não exuberantes, embora contínuas, dava para rodar a cabeça e reparar que lá fora, a luz dos candeeiros da rua estava a passar de amarelo a esverdeado por acção duma chuva de ortópteros que chegava — disse Eva Lopo. Foi aí.

Eva Lopo ficou suspensa — Que bem descreveu os gafanhotos! Lindos, brilhantes, fosforescentemente verdes, rondavam perto das lâmpadas que iluminavam as portas. Chegava-se-lhes a divisar a renda das asas, mesmo dali, enquanto se estava sentado, e o discurso do cavaleiro historiador avançava na direcção dos últimos parágrafos mentais. Apetecia apagar as luzes das flâmulas brancas das paredes — para que estavam acesas as flâmulas se o orador não precisava ler, nem poderia jamais servir-se da luz? — e ouvir o resto na penumbra, ou às escuras, vendo a luminosidade verde dos candeeiros entornar-se pela avenida da beira-mar, e chegar até ali, como a aba dum vestido longo. Infelizmente ninguém ousava ceder ao impulso. Mas toda a gente procurava fechar os olhos e desviava a cabeça para fora, ainda que ouvisse o que se dizia ali dentro com a maior pertinácia. Aliás, o que acontecia fora, e dentro, não era uma e a mesma coisa? O orador, que não sabia que uma chuva de gafanhotos se desprendia sobre a costa, tinha atingido o auge da perenidade nas palavras do seu discurso. «O Planeta é eterno, Portugal faz parte do Planeta, o Além-Mar é tão Portugal quanto o solo pátrio do Aquém, estamos pisando solo de Além-Mar, estamos pisando Portugal eterno!» Havia obviamente uma parcela que se tinha perdido, entre as palmas e os gafanhotos, e que tinha a ver com a demonstração da eternidade da Terra. Mas não fazia mal, as palmas estrugiam de novo, eram definitivas, e não importava a parcela perdida do pensamento do cavaleiro cego sobre a eternidade do Planeta onde Portugal era eterno, e as províncias eternas também.

De repente, tudo parecia imóvel e de cristal, sem princípio nem fim, comandado pela vontade do tenente-capitão. Aliás — disse Eva Lopo — tudo estava traçado desde o início, através daquele título. Só tinha ocupado hora e meia a demonstrar, e como toda a demonstração é um esforço que se faz contra o caos, a conferência acabava de ser a demonstração da ordem. Assim que terminou, porém, alguém disse que voavam gafanhotos, que se ia apagar a luz, que viesse ele ver. — Obviamente que houve imensos abraços e apoios, e incentivos a continuar a investigação que ele haveria de prosseguir, auxiliado pelos atentos olhos da sua mulher. Mas logo depois disso, foi levado até ao pátio térreo. Esse pátio era a varanda natural para onde davam as portas do salão de festas do Stella. A partir das portas via-se a luz quase azul das lâmpadas.

O cego, sinistrado de guerra, disse — «Lindo, lindo, como é verde!» Todos aqueles vestidos, todos aqueles colares, todas aquelas cabeleiras estavam postas no pátio, movendo-se e falando-se. Era preciso ter sorte na vida para acontecer tanta coisa boa em simultâneo. O que pensariam agora as pessoas da gincana? Eles tinham ficado mudos, quietos, cheios de paciência institucional, e haviam demonstrado a superioridade da instituição. Ali estavam, dias depois, com os ferrolhos das portas reparados, a vidraria refeita, as mossas repintadas, mostrando a superioridade das suas vidas, por vezes mártires. Por vezes festivas. Que abrissem bem as portas! Contra os candeeiros, estalavam os gafanhotos. O Índico era um mar de asas de gafanhotos e a atmosfera da costa era uma paisagem aquática montando. «Lindo, lindo, como é verde!» — dizia o rapaz, cavaleiro, completamente cego, e que se deslocava agora com o auxílio dum pingalim. Batia com a ponta no chão repetindo — «Como é lindo!»
Lídia Jorge

sexta-feira, janeiro 24

Faça a luz

 


Das palavras

Não mordas assim as palavras para que não te surpreendas, não as decepes. Não deixes a espada vil da mentira roubar-lhes a alegria. Quando as disseres aperta-as contra o peito. Faz um esforço por senti-las. Nas palavras cabem sempre o que para isso for preciso. Entra dentro delas como um milagre, como se uma pedra, de repente, se tornasse numa cigarra, como se o mar inteiro não te afogasse. Não as fites para as afastar. Não as rejeites. Pensa-as muitas vezes. As palavras não podem acordar com essa intenção de magoar. Distingue-as, toca nelas lentamente. Deixa que sejam limpas, que tenham chão, que façam vento. Dá-lhes a frescura de um limão, o êxtase que nelas se pode demorar. Não as digas, beija-as. As palavras povoam o que tu não podes povoar.


Ama as palavras, a possibilidade que são de poderes sonhar. Diz: Lua, grave, animal, gravura, diz verbo, teia, largura, diz pedra, luz água, jardim, planeta, unha, diz as palavras límpidas e transparentes, como amarelo, tremor, invenção, como clarão, erva, ou pão e verás como as palavras são fábulas, enredos, e as forças da língua em que vives e do chão de onde as dizes.
Eduardo White

Vários tons de fracasso

Tudo que não seja escrever me irrita exasperadamente. Tudo que não seja esta busca, esta esperança renovada, este constante flerte com o fracasso é uma violência contra mim.

***

É doce confessar o fracasso, quando se fez tudo e tudo que se fez foi inútil. É doce admitir a derrota, permanecer no chão e nem levantar os olhos, para que não nos exijam mais nada. É doce esperar que cessem todos os ruídos e se apaguem todas as luzes, para devagar, bem devagar, nos erguermos, quando já ninguém pode exultar com o sangue de nossos ferimentos nem achar prazeroso o lancinante gosto de nossas lágrimas.

***

O suicida é um exibicionista que nunca chega a ouvir aplausos pelo seu desempenho nem se curva diante da plateia, para agradecer.

***

Nunca precisei vender um poema para matar minha fome. Essa é possivelmente a principal causa do meu fracasso.

***

Sou um fracasso em prosa e verso. Se fizesse uma delação premiada, não ganharia nada além de uma menção honrosa.

***

Reconhecer o fracasso é o primeiro, honesto e decisivo passo para você se tornar um fracassado.
Raul Drewnick

Sonhos


Muitas vezes, embebido
em cismas tenho sonhado
que a vida é um sonho comprido
que a gente sonha acordado!
Ferreira Gullar

Retrato de Mónica

Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria. Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.


Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol. De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.

A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.

Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.

Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.

Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.

O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.

É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.

E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.

Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.

Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.

Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.

E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Contos Exemplares"

quinta-feira, janeiro 23

Leitura no parque

 


Uma vida de aventuras

O meu nome é Manuel António Pina. Nasci numa terra com um grande castelo, nas margens de um rio onde, no Verão, passeávamos de barco e nadávamos nus. Chama-se Sabugal e fica na Beira Alta, perto da fronteira com Espanha. Quando era pequeno, olhava para o mapa e pensava que, por um centímetro, tinha nascido em Espanha.

Mais tarde descobri que as fronteiras são linhas inventadas que só existem nos mapas. E que o Mundo é só um e não tem linhas a separar uns países dos outros a não ser dentro da cabeça das pessoas.

A verdade é que, por causa da profissão de meu pai, vivi (depois de ter nascido, antes não me lembro…) em muitas diferentes terras e, por isso, não tenho só uma terra, tenho muitas. Uma delas é o Porto, onde vivi mais tempo do que em qualquer outra, onde nasceram as minhas filhas e onde provavelmente morrerei um dia.

Como fui durante muitos anos jornalista, mais de trinta, viajei um pouco por todo o Mundo, da América ao Japão, da China ao Brasil, da África ao Alaska. E como sou escritor tenho viajado também por dentro de mim mesmo. E por dentro das palavras. Assim, apesar de ter nascido numa terra com um grande castelo, nas margens de um pequeno rio, não pertenço a lugar nenhum, ou pertenço a muitos lugares ao mesmo tempo. Alguns desses lugares só existem na minha imaginação. Porque a imaginação, descobri-o também, é o modo mais fantástico que há de viajar.

De facto, os lugares mais distantes e mais belos onde eu alguma vez estive não vêm nos mapas. Quando tinha a tua idade, viajei pelo fundo dos mares, e desci ao centro da Terra, e fui à Lua, e aos pólos, e ao passado, e ao futuro, dentro dos livros de Júlio Verne, de Jack London, de Emílio Salgari. À noite, quando todos se iam deitar e a casa silenciosamente adormecia, partia eu para as mais emocionantes aventuras, às vezes só regressando já de madrugada. Combati nos mares do Sul contra piratas e flibusteiros ao lado de Sandokan; persegui Moby Dick, a baleia branca, no tempestuoso barco do Capitão Acab; desci o Mississipi na jangada de Huckleberry Finn; cacei búfalos nas imensas pradarias do Oeste; e, com Tintin fui preso e condenado à morte em Chicago, na China, nos Andes, e salvei-me sempre no último momento, e com ele e com o Capitão Haddock, e com a cadela Milou, perdi-me nas neves do Tibet e nos desertos da Arábia, e fui à Lua e voltei…

Como vês, tenho tido uma vida emocionante e aventurosa. Hoje lembro-me das grandes viagens e das aventuras que todas as noites começavam no meu quarto e tenho medo de não ser já capaz de vencer tantos perigos e tantas emoções. De qualquer maneira, continuo a ter livros na mesa de cabeceira, e quando saio de casa gosto sempre de levar um comigo. Porque me pode apetecer voltar a partir…

Manuel António Pina

Paisagem

Há ali, nas margens da lagoa da Quinta, um salgueiro melancólico que molha continuamente os seus cabelos verdes na água que reflecte o céu e os ramos, como se tivesse no fundo um país encantado.

Pássaros e amantes vêm aos pares até o velho salgueiro. Foi aí que ouvi uma tarde, quando mal restava um tom violeta do sol no céu que desaparecia em ondas e sobre os grandes Andes nevados, uma cor rosa decrescente, que era como uma tímida carícia da luz apaixonada, um boato de beijos perto do tronco sobrecarregado e uma vibração no topo.

Estavam ambos, o amado e a amada, num banco rústico, debaixo do toldo de salgueiro. Em frente estendia-se a lagoa tranquila, com a sua ponte em arco e as árvores trémulas da margem; e além erguia-se entre o verde das folhas a fachada do Palácio de Exposições, com seus condores de bronze em voo.

A senhora era linda, ele era um menino gentil, que acariciava com os dedos e os lábios seus cabelos loiros e suas mãos graciosas de ninfa.

E sobre as duas almas ígneas e sobre os dois corpos juntos, os dois pássaros sussurravam numa linguagem rítmica e alada. E acima do céu com a sua imensidão e com o seu grupo de nuvens, penas douradas, asas de fogo, velos roxos, fundos azuis flordelizados com opalas, derramava-se a magnificência da sua pompa, a arrogância da sua augusta grandeza.

Sob as águas, os peixes rápidos com barbatanas douradas agitavam-se, como se estivessem num redemoinho de sangue vivo.

No brilho do crepúsculo, toda a paisagem parecia envolta numa nuvem de sol peneirado, e aqueles dois amantes eram a alma da pintura, ele era moreno, bonito, vigoroso, com uma barba fina e sedosa, do tipo que as mulheres gostam de tocar; ela loira - um verso de Goethe! - vestida com um terno cinza brilhante, e no peito uma rosa fresca, como sua boca vermelha que pedia um beijo.
Ruben Dario

Pequenas aprendizagens

Bastou relatar, na última crônica, minha experiência com a descoberta de um câncer, para que meu telefone triplicasse o volume de chamadas recebidas. Eram os amigos, os parentes e, em número menor porém muito significativo, os colegas de fado e de sina. Descobri, de repente, que o mundo ao redor não é tão são como parece. E que muitas pessoas, com as quais cruzamos na rua, no shopping ou na fila do cinema, guardam dentro de si, mais ou menos inviolado, um idêntico segredo.

Têm elas, como eu, um alien alojado em alguma parte de seus corpos (ou fluídico e difuso em seu todo), com o qual mantêm relações estranhas e contraditórias. Em algumas, a relação é de beligerância declarada – e estas geralmente exibem a fisionomia contrita do guerreiro. Querem vencer e tudo farão para expulsar o invasor e destruí-lo. Outras, ao contrário, procuram ouvir o que o invasor tem a lhes dizer e o tratam antes como mensageiro do que como inimigo. Não cedem a ele, mas também não o afrontam com iras desmedidas. E um ser que está ali, com sua sintaxe desordenada, querendo expressar algo. Curiosamente, essa atividade as ilumina.

Ainda sou neófito nas artes de convivência com meu alien, mas tendo a imitar essa última postura. Procuro decodificar as mensagens que ele me envia, sempre tomando o cuidado de interpretar o conteúdo delas. Nesses poucos dias, aprendi mais sobre mim do que em muitos anos de saudável pastio pelas rotinas da vida. Descobri afetos insuspeitados, docilidades, relevâncias onde antes nada havia. E, simetricamente, a absoluta irrelevância de certas coisas que julgávamos muito importantes.

Os males imaginários, por exemplo, nos infundem muito mais terror que um bando de células malucas embutido em nosso peito. Pois são apenas células malucas – e não passam disso. Tememos todas as mortes possíveis, sofremos a iminência trágica e retumbante de cada uma delas – mas somente uma única mortezinha, singular e vulgar, nos arrebatará deste mundo.

Como quem descobre uma nova ruga ou um novo fio de cabelo branco, você descobre que o espírito também envelhece e fica mais sábio. E ficar mais sábio, neste caso, não significa mergulhar em transcendência, mas, ao contrário, buscar a imanência das coisas mais simples. Onde estão elas, você perguntará. Não há resposta verbal, nem construção conceituai, que indique onde estão e o que são as coisas simples. Podemos fazer algumas aproximações, através da sensibilidade, na direção delas. Por exemplo: desligar o televisor, ao primeiro sinal de tédio, e olhar com um interesse completamente novo, inaugural, para o rosto da pessoa que há anos vive a nosso lado.
Jamil Snege, Gazeta do Povo

terça-feira, janeiro 21

Exercício matinal

 


Como se faz um homem

Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até que mais profundamente tarde também a lua desapareceu.
Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro.

Algumas árvores haviam ali crescido com enraizado vagar até atingir o alto das próprias copas e o limite de seu destino. Outras já haviam saído da terra em bruscos tufos. Os canteiros tinham uma ordem que procurava concentradamente servir a uma simetria. Se esta era discernível do alto da sacada do grande hotel, uma pessoa estando ao nível dos canteiros não descobria essa ordem; entre os canteiros o caminho se pormenorizava em pequenas pedras talhadas.

Sobretudo numa das alamedas o Ford estava parado há tanto tempo que já fazia parte do grande jardim entrelaçado e de seu silêncio.

No entanto, de dia a paisagem era outra, e os grilos vibrando ocos e duros deixavam a extensão inteiramente aberta, sem uma sombra. Enquanto o cheiro era o seco cheiro de pedra exasperada que o dia tem no campo. Ainda nesse mesmo dia Martim ficara de pé na sacada procurando, com inútil obediência, não perder nada do que se passava. Mas o que se passava não era muito: antes de começar a estrada que se perdia em suspensa poeira de sol, apenas o jardim nada mais que contemplável; compreensível e simétrico do alto da sacada; emaranhado quando se fazia parte dele – e esta lembrança o homem há duas semanas guardava nos pés com aplicação cuidadosa, conservando-a para um uso eventual. Por mais atenção, no entanto, o dia era inescalável; e como um ponto desenhado sobre o mesmo ponto, a voz do grilo era o próprio corpo do grilo, e nada informava. A única vantagem do dia é que na extrema luz o carro se tornava um pequeno besouro que facilmente alcançaria a estrada.

Mas enquanto o homem dormia o carro se tornava enorme como é gigantesca uma máquina parada. E de noite o jardim era ocupado pela secreta urdidura com que o escuro se mantém, num trabalho cuja existência os vaga-lumes inesperadamente traem; certa umidade também denunciava o labor. E a noite era um elemento em que a vida, por se tornar estranha, era reconhecível.

Foi nessa noite que, atingindo o hotel vazio e adormecido, o motor do carro se sacudiu. Lentamente o escuro se pusera em movimento.

Em vez de acordar e diretamente ouvir, foi através de um sono ainda mais profundo que Martim passou para o outro lado da escuridão e ouviu o ruído que as rodas fizeram cuspindo areia seca. Depois seu nome foi pronunciado, destacado e limpo, de algum modo agradável de se ouvir. Era o alemão quem falara. No sono Martim fruiu o som do próprio nome. Em seguida o arrebatado grito de uma ave, cujas asas haviam sido espantadas na sua imobilidade, esse modo como o espanto parece com a grande alegria.

Quando o silêncio se refez dentro do silêncio, Martim adormeceu ainda mais longe. Embora no fundo do sono alguma coisa ecoasse difícil, tentando se organizar. Até que, sem nenhum sentido e livre do incômodo de precisar ser compreendido, o ruído do carro se refez na sua memória com as minúcias mais finamente discriminadas. A ideia do carro despertou um aviso suave que ele não entendeu de pronto. Mas que já espalhara pelo mundo um vago alarme, cujo centro irradiador era o próprio homem: “assim, pois, eu”, pensou seu corpo se comovendo. Continuou deitado, remotamente gozando.

Há duas semanas aquele homem viera para o hotel, encontrado no meio da noite quase sem surpresa, de tal modo a exaustão tornava tudo possível. Era um hotel vazio, só com o alemão e o criado, se criado era. E durante duas semanas, enquanto Martim recuperava as forças num sono quase ininterrupto, o carro continuara parado numa das alamedas, com as rodas enterradas na areia. E tão imóvel, tão resistente ao hábito de incredulidade do homem e ao seu cuidado em não se deixar ludibriar, que Martim terminara finalmente por considerá-lo à sua disposição.

Mas a verdade é que já naquela noite de pés cambaleantes – quando ele enfim se deixara cair meio morto numa cama verdadeira com verdadeiros lençóis – já naquele instante o carro representara a garantia de nova fuga, caso os dois homens se mostrassem mais curiosos pela identidade do hóspede. E este tombara confiante no sono como se ninguém jamais conseguisse tirar de sua firme garra, que prendia apenas o lençol, a roda imaginária de um volante.

O alemão, no entanto, nada lhe havia perguntado e o criado, se o era, mal o olhara. A relutância com que o tinham aceito não vinha da desconfiança, mas do fato do hotel não ser mais hotel havia muito tempo – há tanto tempo quanto estava inutilmente à venda, explicara-lhe o alemão, e, para não ter um ar suspeito, Martim balançara a cabeça sorrindo. Enquanto não tinham construído a estrada nova, era por ali que passavam os carros, e o casarão isolado não poderia estar melhor situado como pouso forçado para pernoites. Quando a nova estrada fora traçada e asfaltada a cinquenta quilômetros dali, desviando para longe o curso de passagem, o lugar todo morrera e não havia mais motivo de alguém vir a precisar de hotel na zona agora entregue ao vento. Mas apesar da indiferença aparente dos dois homens, a obstinada procura de segurança de Martim se ancorara naquele carro sobre o qual também as aranhas, tranquilizadas pela imobilidade envernizada, haviam executado o aéreo trabalho ideal.

Era esse carro que em plena noite se desenraizara com rouquidão.

Dentro do silêncio de novo intato, o homem agora olhou estupidamente o teto invisível que no escuro era tão alto quanto o céu. Largado de costas na cama, tentou num esforço de prazer gratuito reconstituir o ruído das rodas, pois enquanto não sentia dor era de um modo geral prazer que ele sentia. Da cama não via o jardim. Um pouco de bruma entrava pelas venezianas abertas, o que se denunciou ao homem pelo cheiro de algodão úmido e por uma certa ânsia física de felicidade que a cerração dá. Fora apenas um sonho, então. Cético, embora, ele se ergueu.

Nas trevas nada viu da sacada, e nem sequer adivinhou a simetria dos canteiros. Algumas manchas mais negras que o próprio negrume indicaram o provável lugar das árvores. O jardim não passava ainda de um esforço de sua memória, e o homem olhou quieto, adormecido. Um ou outro vaga-lume tornava mais vasta a escuridão.

Esquecido do sonho que o guiara até a sacada, o corpo do homem achou bom se sentir saudavelmente de pé: é que o ar suspenso mal alterava a escura posição das folhas. Ali, pois, deixou-se ficar, dócil, atordoado, com a sucessão de quartos desocupados atrás de si. Sem emoção aqueles quartos vazios repetiam-no e repetiam-no até se apagarem aonde o homem já não se alcançava mais. Martim suspirou dentro de seu largo sono acordado. Sem insistir demais, tentou atingir a noção dos últimos quartos como se ele próprio se tivesse tornado grande demais e espalhado, e, por algum motivo que já esquecera, precisasse obscuramente se recolher para talvez pensar ou sentir. Mas não conseguiu, e estava muito aprazível. Assim ele ficou, com o ar cortês de um homem que levou uma pancada na cabeça. Até que – como quando um relógio para de bater e só então nos adverte que antes batia – Martim percebeu o silêncio e dentro do silêncio a sua própria presença. Agora, através de uma incompreensão muito familiar, o homem começou enfim a ser indistintamente ele mesmo.

Então as coisas passaram a se reorganizar a partir dele próprio: trevas foram sendo entendidas, ramos começaram lentamente a se formar sob o balcão, sombras se dividiram em flores ainda irresolutas – com os limites ocultos pelo viço imóvel das plantas, os canteiros se delinearam cheios, macios. O homem grunhiu aprovando: com certa dificuldade acabara de reconhecer o jardim que nessas duas semanas de sono constituíra em intervalos a sua irredutível visão.
Foi nesse momento que uma lua desfalecida perpassou uma nuvem em grande silêncio, em silêncio derramou-se sobre pedras calmas, desaparecendo em silêncio na escuridão. A cara enluarada do homem se dirigiu então para a alameda onde o Ford estaria imóvel.

Mas o carro desaparecera.

O corpo inteiro do homem subitamente despertou. Num relance astuto seus olhos percorreram a escuridão toda do jardim – e, sem um gesto de aviso, ele se virou para o quarto em leve pulo de macaco.

Nada porém se mexia no oco do aposento que de escuro se tornara enorme. O homem ficou resfolegando atento e inutilmente feroz, com as mãos avançadas para o ataque. Mas o silêncio do hotel era o mesmo da noite. E sem limites visíveis, o quarto prolongava no mesmo exalar-se a escuridão do jardim. Para se despertar o homem esfregou várias vezes os olhos com o dorso de uma das mãos enquanto deixava a outra livre para a defesa. Foi inútil sua nova sensibilidade: nas trevas os olhos totalmente abertos não viram sequer as paredes.

Era como se o tivessem depositado solto num campo. E enfim ele acordasse de um longo sonho do qual haviam feito parte um hotel agora desmanchado num chão vazio, um carro apenas imaginado pelo desejo, e sobretudo tivessem desaparecido os motivos de um homem estar todo expectante num lugar que também este era expectativa.

De real só lhe restou a sagacidade que o fizera dar um pulo para indistintamente se defender. A mesma que o levava agora a raciocinar com inesperada lucidez que se o alemão tivesse ido denunciá-lo levaria algum tempo para ir e voltar com a Polícia.

O que ainda o deixava temporariamente livre – a menos que o criado tivesse sido encarregado de vigiá-lo. E nesse caso o criado, se o era, estaria neste mesmo instante à porta daquele mesmo quarto com o ouvido atento ao menor movimento do hóspede.

Assim pensou ele. E findo o raciocínio, ao qual chegara com a maleabilidade com que um invertebrado se torna menor para deslizar, Martim mergulhou de novo na mesma ausência anterior de razões e na mesma obtusa imparcialidade, como se nada tivesse a ver consigo mesmo, e a espécie se encarregasse dele. Sem um olhar para trás, guiado por uma escorregadia destreza de movimentos, começou a descer pela sacada apoiando pés inesperadamente flexíveis na saliência dos tijolos. Na sua atenta remotidão o homem sentia perto da cara o cheiro malévolo das heras quebradas como se nunca o fosse esquecer. Sua alma agora apenas alerta não distinguia o que era ou não importante, e a toda operação ele deu a mesma consideração escrupulosa.

Num pulo macio, que fez o jardim asfixiar-se em suspiro retido, ele se achou em pleno centro de um canteiro – que se arrepiou todo e depois se fechou. Com o corpo advertido o homem esperou que a mensagem de seu pulo fosse transmitida de secreto em secreto eco até se transformar em longínquo silêncio; seu baque terminou se espraiando nas encostas de alguma montanha. Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe.

Ele esperou um pouco mais. Até que nada aconteceu. Só então tateou com minúcia os óculos no bolso: estavam inteiros. Suspirou com cuidado e finalmente olhou em torno. A noite era de uma grande e escura delicadeza.
Clarice Lispector, "A maça no escuro"

O chamado Brasil brasileiro

Comecemos por opiniões antigas, como esta de uma carta de Capistrano de Abreu a João d'Azevedo: O jaburu... a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas, e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste...

Paulo Prado abre seu livro Retrato do Brasil com esta afirmação: Numa terra radiosa vive um povo triste.

Tão triste que em 1925, em Petrópolis, Manuel Bandeira, que tinha “todos os motivos menos um de ser triste”, resolveu “tomar alegria”.

Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda. Ninguém se lembra de política... Nem dos oito mil quilômetros de costa... O algodão do Seridó é o melhor do mundo?...

Que me importa?

Não há malária nem moléstia-de-chagas nem ancilóstomos.

A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca. Eu tomo alegria!

E Sérgio Buarque de Holanda, na primeira página de suas Raízes do Brasil: ... Somos ainda hoje desterrados em nossa terra.

O consolo é lembrar aquela coisa de Euclides da Cunha em Os Sertões: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Enchemos o peito de orgulho. Mas Euclides prossegue dizendo: Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

Viram? Para falar bem do homem do sertão ele desmerece o homem da praia.

Mas o próprio sertanejo, embora possa se transformar em "um titã acobreado e potente", não é figura muito boa: ... É desgracioso, desengonçado, torto... reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos...

E mais adiante Euclides proclama: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma...

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.

Este dilema me faz lembrar um outro que me assustava quando eu era menino. Não sei se era frase de homem célebre ou propaganda de algum formicida: Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil.

Isto me dava aflição; eu me perguntava por que é que nós todos não íamos urgentemente matar saúvas.

Não matamos. Não morremos. Convivemos. Oswald de Andrade exclama, no seu “Manifesto Antropofágico”, de 1928: Tupi or not tupi that is the question.

E é outro paulista Andrade, Mário, que faz uma comovente confissão brasileira.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu...

Essa fundamental solidariedade me impressionou quando uma lavadeira que eu tinha aqui no Rio, Sebastiana, me disse que não tinha podido dormir aquela noite: uma chuva com vento invadira o seu barraco no morro do Cantagalo. Seu menino amanhecera doente, e ela também sentia uma dor no peito.

“Mas enfim”, disse, “isso é bom para a lavoura.”

A velha Sebastiana viera de Carangola e não tinha mais lavoura nenhuma; e até a casinha que ela fizera lá em Minas, “perto do comércio”, fora registrada em nome do seu marido, que não era seu marido porque era casado com outra. E ela descia os caminhos perigosos, escorregadios, do morro, com a trouxa de roupa na cabeça, e me dizia: “É bom para a lavoura.”

É uma maneira de dizer na roça. Pode ser maneira de pensar. O Brasil é, principalmente, uma certa maneira de sentir.
Rubem Braga, "Recado de primavera"

Tempo, tempo, tempo...

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nessa mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso ninguém em nossa casa a de dar o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa.

Raduan Nassar, "Lavoura arcaica"

Com um grão de sal

Para quem gosta de sal, a noção de receber as coisas cum grano salis só as torna mais deliciosas. Um grão de sal – de preferência da flor do sal – faz muitas vezes a diferença entre um petisco apagado e outro dotado do sabor maravilhoso que só precisa de um grão de sal para se demonstrar, como um pavão precisa apenas da indiferença de uma pavoa para se abrir e lhe chamar a atenção.

Nunca fui a uma consoada. Não é um lamento nem um orgulho. Mas é – como sempre foi – um alívio. Tanto a minha mãe como o meu pai ensinaram-me (ou desviaram-me a pensar) que as famílias são perversões sanguíneas. Nem ele nem ela gostou dos pais que tiveram. Os amores e as fidelidades sanguíneas e genéticas, segundo os meus pais, eram estupidezes eugénicas que eram, para todos os efeitos práticos, nazis.

As consoadas também juntam membros familiares que, se não fosse o Natal, talvez não se juntassem. São unidos pelo mais verdadeiro (e pensado) dos amores. Mas não deixa de ser um frete para cada um.

Cada um vai à consoada pensando que faz o frete para bem daqueles que precisam daquela comparência. A verdade – democrática e humanitária – é que todos os que lá vão se sacrificam em nome de todos os outros que lá vão movidos pelos mesmos sacrifícios.

O grão de sal de cada movimento e de cada comparência é que as torna apetecíveis. Pensamos que as festas, por serem combinadas e previsíveis, vão ser sensaboronas. Mas não: temperam-nos, juntam-nos e dão-nos sal.
Miguel Esteves Cardoso

domingo, janeiro 19

Ausência


 

O primeiro dia

O primeiro dia da escola. A saca às costas, caminhei ao lado da minha mãe, cheia de curiosidade e de receios. O sr. Brand, o professor, distribuía sorrisos animadores aos meninos, que o fitavam com desconfiança. A barba grisalha e o colarinho engomado davam-lhe um ar de austeridade, mas os olhos alegres protestavam contra tal impressão. Começou por nos falar, e doseava serenidade com humor para afugentar os nossos medos. De todas as escolas por que passei, a de que verdadeiramente gostei foi a escola primária. Quando o sr. Brand tomou nota do meu nome ninguém se virou para mim com sorrizinhos por soar a judaico, ninguém achou estranho eu responder "Israelita" à pergunta do sr. Brand à minha religião. Fora a mãe que me recomendara: "Quando o sr. Brand te perguntar pela religião, diz-lhe que és israelita. Soa melhor do que judia". Eu não concordava, porque achava "israelita" uma palavra estranha que não parecia pertencer à minha língua e, por isso, corei de embaraço ao pronunciá-la. E quando o sr. Brand quis saber a profissão do meu pai respondi "negociante de cavalos". Coisa natural. Muitos alunos eram filhos de lavradores e conheciam o meu pai. Não me sentia envergonhada daquilo que eu e o meu pai éramos, como aconteceria mais tarde, no liceu, quando a minha mãe me recomendou que às perguntas respondesse, além de "sou israelita", que o meu pai era "comerciante".

O liceu ficava em L..., a cidade onde havia o teatro e a sinagoga. Tomávamos, manhã cedo, o comboio e, com gesto arrogante, estendíamos o passe anual ao revisor.

No primeiro dia de aulas tivemos de dizer o nosso nome e profissão do pai e a religião. Conforme recomendação da minha mãe eu disse:

- O meu pai é comerciante. Sou israelita.

Na escola primaria tudo fora natural. No liceu colegas viraram-se e olharam-me. Mais duas judias faziam parte da turma e uma delas, Hanna Berg, respondeu à pergunta com voz firme: «Sou judia». Os gestos de Hanna eram extraordinariamente vivos e comunicativos, enquanto nos seus olhos havia a expressão dessa melancolia penetrante das seculares lendas de sabedorias e flagelos.

Hanna propôs-me que a acompanhasse a uma reunião dos sionistas. E nessa tarde. em que conheci o grupo juvenil a que ela pertencia, compreendi por que razão dissera com tanta firmeza: "Sou judia".

Numa sala espaçosa vi rapazes e raparigas de blusa branca e gravata azul e, encostada a um canto, a bandeira azul e branca. Hanna saudou o grupo com "Shalom", "paz", e todos lhe responderam do mesmo modo.

Desprendeu-se do grupo um rapaz. Bateu palmas. Fez-se silêncio, e ele disse:

- Vamos começar.

Hanna indicou-me uma cadeira e segredou-me:

- É o Bertold. Repara bem nele.

Bertold: alto, de calções de camurça, expressão franca e decidida. Levantou a mão para dar sinal de começar e vi que era uma mão larga e forte. No momento em que Bertold dobrou os ombros para trás, endireitou o tronco e moveu a mão, os rapazes e as raparigas começaram a falar em coro: primeiro um murmúrio crescente, depois vozes altas, vigorosas, que pareciam vir duma grande massa de gente. Diziam de injustiças, de orgulho, de expectativa duma vida livre em Israel. Como um chefe de orquestra, Bertold regia-os. Juntava as mãos em concha para em seguida as erguer num movimento rápido: as vozes elevavam-se; abria os braços como quem pedia para recuarem: as vozes baixavam; rasgava o ar com as mãos: as vozes emudeciam. As frases esperançosas, a convicção com que eram ditas, isso impressionava-me fortemente. Concluí que aniquilaram todas as dúvidas e resignação dos velhos, que encontraram rumos novos. "Devemos ter orgulho por sermos judeus", diziam os velhos, mas na verdade procuravam apenas consolo. Esses jovens, porém, esses sim orgulhavam-se deveras.

Depois das declamações começaram a dançar a "horra". Deitando os braços pelos ombros uns dos outros formavam um círculo, rodavam para a esquerda sempre para a esquerda, alegres e entusiásticos. Cantaram a comunicativa melodia da "hatikwah", a canção da "esperança".

Excitada, falei em casa da reunião. Tencionava voltar lá para aprender a falar em coro, dançar a "horra" e cantar a "hatikwah". Mas tanto o meu pai como a minha mãe acharam que não, que isso não me servia. Só me meteria na cabeça a emigração para a Palestina e eu, como boa alemã, não devia abandonar a pátria a que pertencia.

Quando falei ao sr. Heim, sorriu um tanto triste:

- Repara, Rose, o meu rapaz também anda com os sionistas e por isso há discórdia em casa. Ele e a mãe quase que não se falam.

Ilse Losa, "O mundo em que vivi"

A terceira margem do rio

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.


Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

João Guimarães Rosa, "Primeiras estórias"

Mudam-se os tempos...

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

Vista do espetáculo

Da estação via-se a praia e o mar. A água vinha de longe, muito azul e muito lisa, e aproximava-se, cada vez menos azul e menos lisa, até espadanar em pequenos cachões de espuma que morriam na areia. A praia estava deserta. Uma ou outra pessoa descia os degraus de cimento da esplanada para matar o tempo, dava uns passos na areia, voltava a subir os degraus, sentava-se a uma mesa como toda a gente.

A aprendiza entregara os chapéus o mais depressa possível. Ficara com vinte minutos livres. E com um olho no relógio, o outro na esplanada, gozava aquele espectáculo dos guarda-sóis de tantas cores e das mesinhas brancas cheias de rapazes de pele queimada, raparigas bonitas de cabelos soltos e sem meias, estiraçados, fumando.

Nunca estivera tão perto do mar. Pelo menos desse mar assim azul, dessa língua de areia que só conhecia dos cartazes de turismo, dessas pessoas despreocupadas, saudáveis, felizes, vestindo roupas caras com o à-vontade com que ela usava a bata de trabalho e eram tal qual as pessoas dos filmes que passavam no pequeno cinema do seu bairro. Mas aquilo não era um filme, era verdade. Os cartazes não mentiam. Em Janeiro estava uma temperatura de princípios de Outono. Andava-se em cabelo. As raparigas não usavam meias. Janeiro e podia-se andar como no Verão. Que diferente do seu bairro de Lisboa, das ruas que sempre conhecera, do prédio onde trabalhava em casa da Madame Ivone, dos jardins da cidade! Agradecia a Deus a sua sorte. A Madame escolhera-a para trazer os chapéus àquela freguesa que pagava o bastante para se permitir o luxo de receber as encomendas em casa, a trinta quilómetros de Lisboa. Podia ter escolhido outra. Acaso. Sorte. Primeiro, nem queria crer. Perguntara de olhos espantados: Eu? E a Madame Ivone, sem dar por nada: "Sim, tu, despacha-te." Dava as suas ordens, explicava: "Tiras um bilhete de terceira só para lá." E ela só pensava: eu?, é possível que seja eu? "À volta, tiras de segunda, porque o comboio com terceira é muito tarde. Despacha-te. Quero-te cá antes da noite."
Mário Dionísio, "O dia cinzento"

sábado, janeiro 18

Leitura na paisagem

 


Existe uma idade melhor?

A vida é um rio que corre. Nós somos os peixes, galhos e folhas caídas das árvores que essa torrente leva. Se pensarmos assim, imaginando que vamos desaguar no estranho silencioso nebuloso mar chamado morte, que pode não ser o fim de tudo, teremos uma visão realista das etapas da nossa existência. Sou pouco simpática à invenção de rótulos que distorcem realidades revelando apenas um preconceito: envelhecer é feio, é degradante, vamos ser eternamente jovens, seguindo aos pulinhos até o fim, fantasiados de Peter Pan. Disfarçamos realidades naturais porque as vemos como algo feio, inadmissível, pobres de nós, ignorantes do que é normal e digno e bom.


Assim, inventam-se termos para a velhice: um pior do que o outro. “Terceira idade” não significa grande coisa, pois, se podemos viver até 80 ou 90 ainda ativos – (o número de pessoas nessas condições tende a aumentar -, vamos criar uma quarta idade e uma quinta: isso tudo me parece bastante tolo. Pior ainda é chamar a velhice, que alguns consideram se iniciar aos 60, outros aos 70 ou aos 80, de “melhor idade”. Quem disse que é melhor? Melhor do que qual outra fase? Melhor é algo muito subjetivo, em geral nos referimos à infância, mas a infância é sempre feliz? A Juventude não sofre? A maturidade não exige trabalhos e sacrifício?

Por que consideramos a passagem do tempo decadência, e não transformação? Tudo é um processo que se inicia quando somos concebidos, depois somos lançados nesse rio de tantas águas chamado vida. Uma cadeia de mudanças que após um bom tempo traz limitações físicas, menos elasticidade, menos beleza no conceito geral, talvez menos lucidez. Alguma dependência de outros, quem sabe, e, se não cultivamos bons afetos, isso pode ser doloroso. Mas não necessariamente decrepitude e vergonha a esconder! Todas essas naturais transformações deveriam vir acompanhadas de qualidades que na juventude não tínhamos. Capacidade de amar melhor, por exemplo: filhos criados, amizades consolidadas, velhos casamentos sendo uma parceria tranquila, e tempo disponível, são grandes privilégios. Podemos amar com mais alegria, pois não precisamos educar netos, apenas curtir, querer bem, deixar que gostem de nossa companhia, não sendo os chatos cobradores, exigentes a reclamar que as visitas são poucas, que merecíamos mais atenção. Temos tempo para curtir coisas que passavam despercebidas na correria anterior, como uma bela paisagem, um bom filme, um bom livro, uma boa conversa, doces memórias, não pensando no que perdemos, mas no que tivemos e ficou em nós, se fomos atentos e não fúteis demais.

“O que a senhora faz para se manter jovem?”, me perguntou um jornalista recentemente. Achei graça: eu não quero me manter jovem, quero ser uma pessoa interessada, e quem sabe interessante, na fase em que estou. Querer ter 40 anos aos 70 é tão patético quanto querer ter 20 aos 40, como se nos tivessem embalsamado na idade que achamos ideal. Que idade será essa? A infância é para alguns a fase mais feliz; para outros foi a juventude, e assim vai. Não acho que a chamada “terceira idade” seja a melhor, e detesto a expressão “melhor idade”, que apenas revela um preconceito atroz. Mas nela podemos ter e passar adiante coisas boas, belas e alegres, e contemplar do alto desses anos todos com mais lucidez e calma, por exemplo, a mediocridade reinante neste momento no país, se é que isso nos interessa. Deveria interessar.

Mas uma cruel fixação na juventude nos impede de curtir naturalmente a passagem do tempo, que, se aliada a certo bom humor, nos torna amados e amorosos, ligados ao mundo mesmo quando a velha senhora morte começa a rondar a nossa casa. E, se acreditarmos que esse rio da vida que corre não termina num nada absurdo, mas em nova fase, quem sabe não precisaremos tapar a cabeça feito crianças diante do que nos espera nesse mar onde tudo deságua – inclusive nossos preconceitos, nossas fragilidades e nossas ilusões.

Lya Luft