quinta-feira, março 31

Imagem de alegria

 


Aprendendo a viver

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.

Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore o momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos agora!’ E comentava com desgosto: “Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.” A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.

Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.

Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.

Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam – ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos – ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.

Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber.”

E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: “Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?” Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.

Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: “A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos.” É verdade: mesmos as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois “o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.

E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. “Creio”, escreveu, “que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força.” E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas – e quem de nós não faz isso? –, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!

E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.

Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do “mundo livre”. Além disso, procurava a salvação pelo risco – sem o qual a vida para ele não valia a pena – “e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas” (o grifo é meu).

Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a Terra era a avareza, sob todas as formas. “A avareza e o tédio danam o mundo.” “Dois ramos, enfim, do egoísmo”, acrescenta o autor do artigo.

Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!

Clarice Lispector

Muito o que ler

 


Tão belos pensamentos! Tão pouca aprendizagem!

Tudo o que o homem aprendeu com a História
é que não aprendeu nada
Albert Einstein

Que pena as nossas escolas ensinarem tudo menos um pouco de sabedoria de viver! Que pena os estudantes abandonarem as escolas, com um punhado de certezas duvidosas e uma quase incapacidade de pensar. Que pena a filosofia ser uma filha bastarda do nosso ensino e os nossos jovens não terem o prazer e o proveito de fruir tanto pensamento cintilante e tão elegantemente formulado, que os incitasse a uma saudável rebeldia, quando os que decidem o fazem tão mal! Se os estudantes fossem expostos, neste mundo de conflitos insensatos e suicidas, às nobres palavras de Platão (“Só os mortos conhecem o fim da guerra”), ou de Sólon (“A igualdade não gera guerras”), ou de Cícero (“Prefiro a paz mais injusta à mais justa das guerras”), ou do grande Spinoza, que nós perdemos, dando-o à Holanda (“Paz não é a ausência de guerra; é uma virtude, um estado mental, uma disposição para a benevolência, confiança e justiça”). Reparem: “disposição para a benevolência, confiança e justiça”. Não serão melhores instrumentos para se resolverem discórdias, do que o infame poder destrutivo de tanques de guerra, canhões potentes, mísseis estupidamente sofisticados, países destruídos, crianças mortas e mutiladas ou mulheres enviuvadas e velhos desamparados no meio de ruínas? Haverá, num homem como Putine, demagogo, insensível, iletrado, boçal, alguma migalha mínima de sabedoria que o possa redimir? Será ele mentalmente adulto? Como reagiria ele a esta verificação devastadora do grande Melville, o autor de Moby Dick: “Todas as guerras são infantis e desencadeadas por crianças”? Crianças, sim, em termos de crescimento mental, mas de corpo de adulto, insuficientemente oxigenado, no topo. Não faria alguma impressão benfazeja, não criaria algum saudável desassossego visitar a sabedoria de tantos grandes homens que tanto enriqueceram o nosso património intelectual e emocional? Homens como Thomas Mann (“A guerra é a saída cobarde para os problemas da paz”) ou como o autor dessa pérola imortal – O Pequeno Príncipe – (“A guerra é uma doença, como o tifo”), ou como George Orwell (“… o objectivo de travar uma guerra é sempre estar em melhor posição para travar outra guerra”), ou como Gandhi (“Olho por olho e o mundo acabará cego”), ou como Karl Marx, que Putine, pelos vistos, não frequentou (“O povo que subjuga outro povo forja as suas próprias cadeias”), ou o eloquentíssimo e bem humorado John Lennon (“Lutar pela paz é como fazer amor pela virgindade”) ou, já agora, como Jean-Paul Sartre, que não estimo particularmente, mas que disse esta coisa muito verdadeira: “Quando se conhecem os pormenores da vitória, é difícil distingui-la da derrota”. Mas a pérola das pérolas veio-nos, paradoxalmente de Audie Murphy, o soldado americano mais condecorado da segunda guerra mundial: “Nenhum soldado sobrevive realmente a uma guerra”. E terminarei este acervo de sabedoria, com o muito corajoso e subversivo conselho do cientista, explorador polar, aventureiro e político norueguês, que recebeu, em 1922, o Prémio Nobel da Paz: “A guerra acabará quando os homens se recusarem a lutar.” Já os tem havido, como o grande Gandhi e seus seguidores ou o escritor francês Jean Giono, que pagou com a prisão o seu pacifismo irredutível ou o hoje famoso soldado americano, Slovick que, na segunda guerra mundial, preferiu morrer à frente de um pelotão de execução a disparar um tiro. Foi, aliás, o único soldado americano executado por “deserção em frente do inimigo”, embora muitos milhares de outros tenham sido julgados pelo mesmo “crime”.

O problema é que não estou muito certo de que haja muitos governos, democráticos ou não, que achem muito aconselhável os alunos visitarem empenhadamente as mais acutilantes pérolas de sabedoria que, contra a guerra, se escreveram. Talvez um dia lá cheguemos, quando a guerra puder ser considerada um crime, punido por uma lei internacional e for internacionalmente intervencionado o país que se atrever a dar início a uma. Utópico? Eu sei: os seres humanos sempre acharam difícil fazer as coisas mais lógicas e mais simples. O enviesado ganha sempre. E a estupidez sempre teve mais crédito do que a inteligência.
Eugénio Lisboa

quarta-feira, março 30

Enquanto o aspirador descansa...

 


A viagem para Kars

O silêncio da neve, pensou o homem que estava sentado logo atrás do motorista do ônibus. Se aquilo fosse o começo de um poema, poderia chamar o que sentia em seu íntimo de o silêncio da neve. 

Pegara o ônibus de Erzurum para Kars, com apenas alguns segundos de folga. Mal chegara à estação rodoviária num ônibus vindo de Istambul — depois de dois dias de viagem, sob tempestade e neve — e começara a andar para cima e para baixo nos corredores úmidos e sujos arrastando a mala e procurando a sua conexão, quando alguém lhe disse que o ônibus para Kars partiria imediatamente. 

Ele conseguiu encontrar o ônibus, um velho Magirus, mas o motorista acabara de fechar o bagageiro e, como estava “com pressa”, recusou-se a abri-lo novamente. Assim, nosso viajante foi obrigado a entrar no ônibus com a bagagem. A grande mala vermelho-escura Bally estava agora enfiada entre suas pernas. Ele estava sentado perto da janela e trajava um grosso casaco cor de carvão que comprara na Kaufhof, em Frankfurt, cinco anos antes. É bom deixar claro, desde já, que aquele casaco macio e delicado seria motivo de vergonha e inquietação para ele nos dias que passaria em Kars, ao mesmo tempo que lhe proporcionaria uma sensação de segurança.

Assim que o ônibus partiu, nosso viajante grudou os olhos na janela; esperando talvez ver alguma coisa nova, esquadrinhava as lojinhas, as padarias ordinárias e os cafés arruinados que se alinhavam nas ruas dos subúrbios de Erzurum. E, enquanto isso, começou a nevar. Era uma neve mais densa e pesada que a que vira cair entre Istambul e Erzurum. Se não estivesse tão cansado e tivesse prestado atenção aos flocos de neve que revoluteavam no céu como plumas, teria percebido que avançava diretamente para uma nevasca; teria visto desde o começo que estava embarcando numa viagem que iria mudar sua vida para sempre e teria voltado atrás. 

Mas esse pensamento nem sequer lhe passou pela cabeça. Quando caiu a noite, ele se abandonou à luz que tardava no alto do céu; nos flocos de neve que redemoinhavam ao vento ainda com mais fúria, ele não via o anúncio de uma nevasca iminente mas antes uma promessa, um sinal indicando o caminho de volta à felicidade e à pureza que conhecera em criança. Nosso viajante passara os anos de felicidade e infância em Istambul; voltara uma semana antes, pela primeira vez em doze anos, para os funerais de sua mãe e, tendo lá permanecido durante quatro dias, resolvera fazer essa viagem a Kars. Anos mais tarde ele ainda haveria de rememorar a extraordinária beleza da neve naquela noite; a felicidade que ela lhe proporcionou fora, de longe, muito maior que qualquer outra que experimentara em Istambul. Era um poeta e, como ele próprio escrevera — num de seus primeiros poemas, ainda desconhecido dos turcos —, neva apenas uma vez em nossos sonhos. 

Enquanto olhava a neve cair do lado de fora da janela, lenta e silenciosamente como num sonho, o viajante mergulhou num devaneio havia muito esperado e desejado; purificado pelas lembranças inocentes da infância, ele se rendeu ao otimismo e ousou acreditar estar à vontade neste mundo. Logo depois ele sentiu mais uma coisa que não sentia fazia muito tempo e adormeceu em seu banco. 
Orhan Pamuk, "Neve" 

Descanso com leitura

 


O amor acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos,Manchete, 16/05/1964

terça-feira, março 29

Biblioteca animal

 


Três tesouros perdidos

Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada diz-lhe:

— Senhor, eu sou F..., marido da senhora dona E...

— Estimo muito conhecê-lo responde o sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora dona E...

— Não a conhece! Não a conhece!... quer juntar a zombaria à infâmia?

— Senhor!...

E o sr. X... deu um passo para ele.

— Alto lá!

O sr. F..., tirando do bolso uma pistola, continuou:

— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

— Mas, senhor disse o sr. X..., a quem a eloquência do sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?...

— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

— A corte à sua mulher! não compreendo!

— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.

— Creio que se engana...

— Enganar-me! É boa!... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...

— Sua casa!

— No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou...

— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...

— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo, que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!

Era um dilema. O sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.

Surgiu, porém, uma objeção.

— Mas, senhor — disse ele —, os meus recursos...

— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:

— Aqui tem dous contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai?

— Para Minas.

— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdoo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!

Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dous contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranquilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:

“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...”
Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.

— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dous contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X..., subiu; apareceu o moleque.

— Teu senhor?

— Partiu para Minas.

O sr. F... desmaiou.

Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

Machado de Assis

segunda-feira, março 28

Pesca do dia

 


Lance-se como semente

 Alessandra Moscatelli
Sacuda para longe essa tristeza e renove o seu espírito;

Com moleza você nunca verá a roda do destino
Que limpa o seu calcanhar à medida que você caminha.
O homem que deseja viver é o homem em que a vida é abundante.
Do jeito como você está, você está apenas alimentando aquela dor final
Que vagarosamente vai enrolando você nas redes da morte.
Mas viver é trabalhar.
A única coisa que permanece é a obra.
Comece então. Volte-se para o trabalho.
Lance-se como semente no seu próprio campo à medida que você anda.
Não desvie o seu rosto porque isso seria fazê-lo olhar para a morte.
E não permita que o passado esmoreça o seu andar.
Ponha sementes vivas nos sulcos que o arado faz na terra
E guarde as coisas mortas em você mesmo.
Pois a vida não se movimenta como um bando de nuvens.
Pelo seu trabalho você será capaz, um dia, de reunir os seus pedaços...
Miguel de Unamuno

Leitura confortável

 


Ideais podem ser alcançados?

Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas ideias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcançá-lo. Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.

— Sim — disse em seguida — você tem razão. Naturalmente haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber disto. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.

— Talvez seja verdade — exclamei enérgico — mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.

Estranho foi o olhar que Hermínia me dirigiu; um olhar de regozijo, cheio de ironia e malícia, de compreensão e camaradagem, mas também cheio de arrogância, de consciência e de profunda seriedade.

— Isto não se aplica a você — disse em tom maternal. — Sua vida não será monótona nem estúpida, embora saiba que sua luta é inútil. É muito mais lisonjeiro, Harry, lutar-se por alguma coisa bela e ideal e saber ao mesmo tempo que não se conseguirá alcançá-la. Os ideais serão algo que se possa alcançar?

Viveremos para acabar com a morte? Não, vivemos para temê-la e também para amá-la, e precisamente por causa da morte é que nossa vida vez por outra resplandece tão radiosa num breve instante.
Hermann Hesse, "O lobo da estepe"

domingo, março 27

Leitura noturna

 


Diários

É certamente uma sorte extraordinária, e muito pouco aproveitada, que existam diários de viagem vindos de culturas desconhecidas, escritos por representantes dessas e não por europeus. Cito apenas dois dos mais minuciosos, que nunca me canso de ler: o livro do peregrino chinês Huan Tsang, que visitou a Índia no século VII, e o do árabe Ibn Batuta, de Tânger, que durante 25 anos viajou por todo o mundo islâmico do século XIV, pela Índia e, provavelmente, também pela China. Com isso, porém, não se esgota toda a riqueza dos diários exóticos. No Japão encontram-se diários literários que, em sutileza e precisão, podem ser comparados a Proust: o Livro de cabeceira da dama de honra Shei Shonagon (o livro de “apontamentos” mais perfeito que conheço) e o diário da autora do romance Genji, Murasaki Shikibu — ambas, aliás, viveram na mesma corte por volta do ano 1000, conheciam-se bem, mas não se davam.

A imagem exatamente oposta a esses relatos de terras distantes é fornecida pelos diários de terras próximas. Trata-se aqui de pessoas muito próximas nas quais nos reconhecemos. O mais belo exemplo desse gênero na literatura alemã são os diários de Hebbel. Estes são amados porque neles não há quase nenhuma página em que não se encontre algo que nos toque pessoalmente. Podemos ter a impressão de já termos, nós mesmos, escrito isto ou aquilo em algum lugar. Talvez já o tenhamos feito realmente, e, se não o fizemos, é certo que poderíamos tê-lo feito. Esse processo do encontro íntimo é emocionante porque, bem ao lado daquilo que nos é “comum”, há também algo que jamais poderíamos ter pensado ou escrito da mesma forma. Trata-se, pois, do espetáculo teatral de dois espíritos que se interpenetram: em determinados pontos, eles se tocam; em outros, formam-se entre eles espaços vazios que não poderiam ser preenchidos de maneira alguma. O homogêneo e o heterogêneo encontram-se tão próximos que isso nos força a pensar; nada é mais profícuo que tais diários da proximidade, como poderiam ser chamados. É próprio deles, ainda, serem “completos” ou seja, profusos, e não escritos sob o jugo de um objetivo determinado.

Elias Canetti, "A consciência das palavras"

Verdade no surrealismo

 


Os sons da fome

Rolos de arame farpado encerravam os parques , as colinas de mimosas, as praias. Muros de blocos de cimento aramado impediam o acesso ao mar. Nos promontórios onde , outrora, Ethel gostava de observar a sucessão das vagas, antes de ir mergulhar entre os rochedos, avistou, um dia, soldados que cimentavam uma espécie de plataforma para um canhão que girava sobre carris. As janelas do grande seminário tinham sido entaipadas, os padres de sotaina substituídos por soldados e convalescentes. Um pouco por toda a parte tinham crescido muros, redes de camuflagem cobriam os telhados. Os olivais tinham sido minados. Um painel escrito em duas línguas ameaçava os transeuntes exibindo uma caveira. A partir das dezoito horas, começava o recolher obrigatório. numa tarde em que Ethel se atrasou, subia a pé as escadas do prédio quando um tiro cavou um orifício no olho-de-boi do quinto andar e a bala foi espetar-se na parede. A partir daí, sempre que descia as escadas, Ethel não conseguia deixar de introduzir o dedo no orifício para tocar na ponta metálica que não a matara por um triz.

Quando as sirenes ressoavam sobre todos os telhados da cidade, era preciso descer à cave com uma vela acesa, até ao fim do sinal de alerta. Nos primeiros tempos, Justine conseguira arrastar o marido, mas este, depois começou a afundar-se na poltrona, agarrando-se aos braços. « Vão, se quiserem, por mim, prefiro morrer ao ar livre a ser enterrado como um rato»


Não se morria debaixo das bombas dos Ingleses e dos Americanos. Mas morria-se aos poucos, sem comer, sem respirar, sem liberdade, sem poder sonhar. O mar resumia-se a um traço azul, ao longe, entre as palmeiras , por cima dos telhados vermelhos. Ethel passava horas a contemplá-lo da janela do quarto dos pais, como se esperasse alguma coisa. O calabre inclinado de uma grua emergia dos telhados dos hangares, imóvel, inútil. Os barcos haviam naufragado à entrada do porto, já nada podia entrar nem sair. O farol já não se acendia à noite. Nas bancas do mercado, não havia nada, quase nada. As mesmas sombras continuavam a circular em redor dos vencedores , mas agora as cascas e as raízes também se vendiam. Nos jardins, os gatos vadios devoravam-se uns aos outros. Os pombos haviam desaparecido, e as armadilhas que Justine dispunha nas goteiras só serviam para apanhar ratos.


Certa manhã, no mês de Maio, ouviu um barulho desconhecido. A terra tremia, os vidros das janelas , os copos em cima das mesas. Sem perder tempo a vestir-se , correu para a janela. Afastou a cortina. Pela estrada, ao longo do rio, avançava uma coluna , faróis acesos. Camiões, viaturas blindadas, motas, seguidas de tanques. Cobertos de poeira, ar de insectos em marcha para um novo território. Avançavam lentamente, apertados uns contra os outros. Passaram em frente da casa, subiam para norte, em direcção às montanhas. Ethel permanecia imóvel, quase sem respirar. Atrás dos camiões, os tanques abalavam a terra com o barulho das lagartas. As torres blindadas dos canhões apontavam para a frente. Pareciam brinquedos inúteis.

O barulho acordou Justine. Aproximou-se da janela em camisa de noite, braços ligeiramente afastados do corpo, pés descalços encolhidos nas lajes frias. Ethel proferiu, num sopro: "Eles vão-se embora." Não estava muito certa de quem seriam «eles», mesmo depois de, atrás dos tanques , terem aparecido os camiões de caixa destapada onde se encontravam os soldados, e o barulho dos motores se ter tornado ainda mais preocupante. Justine puxava pelo braço de Ethel. "Vem!" Sussurrava como se os soldados nos camiões pudessem ouvi-la. Mas Ethel resistia. Queria vê-los todos, até ao último. Homens envergando sobretudos pesados, apertados uns contra outros, na sua maioria sem capacete, ar extenuado de fadiga. Nem um ergueu a cabeça para observar as janelas. Talvez tivessem medo. Aquela imagem de vazio penetrou no espírito de Ethel , expulsou todas as recordações anteriores. Mais tarde , virá a saber que os homens que avistou da janela da cozinha, em Roquebillière, eram os restos do exército de África do marechal Rommel, a caminho do Norte, na esperança de alcançar a Alemanha pelos Alpes. Ficará a saber que o chefe não ia na coluna, já regressara a Berlim de avião, deixando as tropas abandonadas num território hostil. Tentará imaginar que teriam sentido aqueles homens , na plataforma dos camiões, quando se dirigiam para a barreira crescente das montanhas, com a vibração das lagartas dos tanques que os ensurdecia, no maior dos silêncios, sem chefe, sem ordens, para transpor a pé as montanhas de neve do Boréon, perseguidos pelos lobos.
J.M.G. Le Clézio, "A Música da Fome"

sábado, março 26

O carona

 


Solidão e falsa solidão

Eu, que pouco li Thomas Merton, copiei no entanto de algum artigo seu as seguintes palavras: “Quando a sociedade humana cumpre o dever na sua verdadeira função as pessoas que a formam intensificam cada vez mais a própria liberdade individual e a integridade pessoal. E quanto mais cada indivíduo desenvolve e descobre as fontes secretas de sua própria personalidade incomunicável, mais ele pode contribuir para a vida do todo. A solidão é necessária para a sociedade como o silêncio para a linguagem, e o ar para os pulmões e a comida para o corpo. A comunidade, que procura invadir ou destruir a solidão espiritual dos indivíduos que a compõem, está condenando a si mesma à morte por asfixia espiritual.”

E mais adiante: “A solidão é tão necessária, tanto para a sociedade como para o indivíduo que, quando a sociedade falha em prover a solidão suficiente para desenvolver a vida interior das pessoas que a compõem, elas se rebelam e procuram a falsa solidão. A falsa solidão é quando um indivíduo, ao qual foi negado o direito de se tornar uma pessoa, vinga-se da sociedade transformando sua individualidade numa arma destruidora. A verdadeira solidão é encontrada na humildade, que é infinitamente rica. A falsa solidão é o refúgio do orgulho, e infinitamente pobre. A pobreza da falsa solidão vem de uma ilusão que pretende, ao enfeitar-se com coisas que nunca podem ser possuídas, distinguir o eu do indivíduo da massa de outros homens. A verdadeira solidão é sem um eu.

Por isso é rica em silêncio e em caridade e em paz. Encontra em si infindáveis fontes do bem para os outros. A falsa solidão é egocêntrica. E porque nada encontra em seu centro, procura arrastar todas as coisas para ela. Mas cada coisa que ela toca infecciona-se com o seu próprio nada, e se destrói. A verdadeira solidão limpa a alma, abre-se completamente para os quatro ventos da generosidade. A falsa solidão fecha a porta a todos os homens.

Ambas as solidões procuram distinguir o indivíduo da multidão. A verdadeira consegue, a falsa falha. A verdadeira solidão separa um homem de outros para que ele possa desenvolver o bem que está nele, e então cumprir seu verdadeiro destino a pôr-se a serviço de uma pessoa.”
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Habilidades animais

 


Viagem no cargueiro

Deixe-me descrever o que será meu alojamento até que eu possa conseguir uma acomodação mais digna. A baia contém um beliche que parece um cocho, junto ao costado do barco, com duas gavetas construídas embaixo. Em uma extremidade da baia há uma peça de madeira dobrável que pode ser arriada e usada como escrivaninha, e na outra uma bacia de lona, com um balde embaixo. Suponho que haja no navio algum local mais confortável para a prática de nossas funções naturais! Há espaço para um espelho sobre a bacia e duas prateleiras destinadas a livros ao pé do beliche. Uma cadeira de lona é o único móvel neste nobre compartimento. Existe uma abertura razoável na porta, à altura da vista, que filtra alguma luz do dia, e as paredes de cada lado estão dotadas de ganchos. O piso, ou coberta, como devo chamá-lo, tem sulcos profundos o bastante para torcer um tornozelo. Creio que esses sulcos foram provocados pelas rodas de ferro das carretas dos canhões, na época em que o barco ainda era bastante novo e ágil para navegar com seu armamento completo! A baia é novidade, mas o teto — tombadilho superior? — e o costado, por trás de meu beliche, estão velhos, gastos, lascados e muito remendados. Imagine-me obrigado a morar em uma baia, em uma pocilga assim! Entretanto, hei de tolerar a situação com bom humor até que possa ver o capitão. O ato de respirar já diminuiu minha consciência do mau cheiro, e o generoso copo de conhaque que Wheeler trouxe quase me reconciliou com a fedentina.


Mas como é barulhento este mundo de madeira! O vento sudoeste, que nos obriga a ficar ancorados, ribomba e assobia no cordame e troveja sobre as suas — nossas (porque estou resolvido a aproveitar esta longa viagem para dominar inteiramente as coisas do mar) velas ferradas. Rajadas de chuva tamborilam em cada centímetro do barco, como se fossem tambores a dar um toque cavo de retirada. Como se não bastasse, chegam-nos da proa, alcançando até este convés, os balidos de carneiros, os mugidos de gado, gritos de homens e, sim,
gritos agudos de mulheres! Faz também bastante barulho aqui. Minha baia, ou pocilga, é apenas uma entre outra dúzia de semelhantes deste lado da coberta, dando para outras tantas do lado oposto do convés.

Um vestíbulo vazio separa as duas fileiras e é interrompido apenas pelo enorme cilindro ascendente de nosso mastro de mezena. Wheeler garante que a sala de jantar dos passageiros fica no fim desse vestíbulo, tendo de cada lado os cubículos destinados às suas necessidades. Figuras indistintas passam ou permanecem em grupos no vestíbulo. São — somos — os passageiros, devo crer; e o motivo de um antigo vaso de guerra como este ser destarte transformado em cargueiro, navio de passageiros e de transporte de animais de criação só pode
ser explicado pelos apuros em que se encontram nossas senhorias do almirantado, com mais de seiscentos vasos de guerra em serviço.
William Golding, "Ritos de passagem"

sexta-feira, março 25

Para ler em paz

 


A visão da árvore

Eu, Nabucodonosor, estava tranquilo em minha casa e feliz no meu palácio. Tive um sonho que me atemorizou; e, estando na minha cama, os meus pensamentos e as visões da minha imaginação perturbaram-me.

Por esta causa publiquei um decreto para que viessem a minha presença os adivinhos, os magos, os caldeus e os agoureiros, aos quais contei o meu sonho na sua presença; mas eles não me deram a sua interpretação; até que se apresentou diante de mim o seu colega Daniel, que tem por nome Baltasar, segundo ò nome do meu deus, o qual tem em si mesmo o espírito dos deuses santos; expus diante dele assim o meu sonho: Baltasar, príncipe dos adivinhos, como eu sei que tens em ti o espírito dos deuses santos e que nenhum segredo te é impenetrável, expõe-me as visões dos sonhos que tive e dá-me a sua interpretação.

A visão da minha imaginação, estando eu na minha cama, foi esta: Parecia-me ver no meio da terra uma árvore e a sua altura era desmarcada. Era uma árvore grande e forte, e a sua altura chegava até ó céu; via-se das extremidades de toda a terra. As suas folhas eram formosíssimas e os seus frutos copiosíssimos; dela todos se podiam sustentar.

Os animais domésticos e selvagens habitavam debaixo dela, as aves do céu pousavam sobre os seus ramos, e dela se sustentava toda a carne.
Eu estava vendo isto na visão da minha imaginação sobre o meu leito, e eis que um dos que velam e que são santos, desceu do céu.

Chamou com voz forte, e disse: Deitai abaixo esta árvore, cortai-lhe os ramos, fazei-lhe cair as folhas e dispersar seus frutos; fujam os animais que estão debaixo dela e as aves que estão sobre os seus ramos. Deixai todavia na terra o tronco com as suas raízes; seja ele atado com cadeias de ferro e de bronze entre as ervas dos campos, seja molhado com o orvalho do céu e a sua sorte seja com as feras entre a erva da terra.

Mude-se-lhe o seu coração de homem, dê-se-lhe um coração de fera e passem sete tempos por cima dele. Por sentença dos que velam, assim foi decretado, e esta é a palavra e a petição dos santos, até que conheçam os viventes que o Altíssimo é quem tem o domínio sobre os reinos dos homens, dá-los-á a quem quiser, e porá nele o mais humilde dos homens. Eis o sonho que eu, rei Nabucodonosor, tive. Tu, pois, Baltasar, apressa-te a interpretar-mo, porque nenhum dos sábios do meu reino me pode dizer o que significa; tu, porém, podes, porque o espírito dos deuses santos está em ti.

Então, Daniel, por outro nome Baltasar, começou a pensar consigo mesmo em silêncio durante quase uma hora, e os seus pensamentos perturbavam-no. Mas o rei, tomando a palavra, disse-lhe: Baltasar, não te turbe o sonho, nem a sua interpretação. Baltasar respondeu-lhe e disse: Meu senhor, (oxalá que) o sonho seja contra os que têm ódio e. a sua interpretação seja contra os teus inimigos. A árvore que tu viste alta e robusta, cuja altura chega até o céu, e que se via de toda a terra, (essa árvore) cujos ramos eram formosíssimos e cujos frutos muito abundantes, na qual todos achavam com que se sustentar, sob a qual os animais do campo habitavam, e em cujos ramos as aves do céu pousavam, és tu, ó rei, que tens sido engrandecido e que te fizeste poderoso; cresceu a tua grandeza e chegou até o céu, o teu poder estendeu-se até as extremidades de toda a terra. E quanto ao ter o rei visto o que vela e que é santo baixar do céu e dizer: Deitai abaixo esta árvore e cortai-lhe os ramos, deixai todavia na terra o tronco com as suas raízes, seja ele atado com cadeias de ferro e de bronze entre as ervas dos campos, seja molhado com o orvalho do céu e o seu pasto seja com as feras, até se terem passado sete tempos por cima dele; eis a interpretação da sentença do Altíssimo, que foi pronunciada contra o rei, meu senhor: Lançar-te-ão fora da companhia dos homens, a tua habitação será com os animais e feras, comerás feno como boi e serás molhado com o orvalho do céu; passar-se-ão assim sete tempos por cima de ti, até que reconheças que o Altíssimo domina sobre o reino dos homens c o dá a quem lhe apraz. Quanto à ordem de deixar o germe das raízes da árvore, (isso significa que) o teu coração se ficará conservando para se tornar a dar, depois que tiveres reconhecido que o teu poder vem do céu. Portanto segue, ó rei, o conselho que te dou, e resgata os teus pecados com esmolas e as tuas iniquidades com obras de misericórdia para com os pobres; talvez que o Senhor te perdoe os teus delitos.

Todas estas coisas aconteceram ao rei Nabucodonosor.

Daniel, 4, 1-25
Jorge Luis Borges, "Livro de sonhos"

Aproveite o dia

 


A mulher que virou beija-flor

Albert Reuss 
A mulher andava zangada. Queixava-se da vida, não casara, não tinha um filho sequer para lhe fazer companhia. Vivendo a sós na casa acanhada, sem energia elétrica, tinha medo quando a velhice chegasse, sem alguém para lhe ajudar quando estivesse doente, prostrada na cama.


Os dias com zanga, as noites mal dormidas. Ela merecia isso? O tempo com as amargas, a vida solitária pelos desvãos do cotidiano?

Resolveu sair andando até achar a direção certa para se livrar do rancor, que havia se alojado no peito, fazendo dele morada permanente.

Estava na encruzilhada. Dobrar à esquerda, à direita ou seguir em frente. Qual a direção certa que devia tomar para se livrar do rancor estúpido?

Encontrou o velho no meio da estrada.

Ele veio andando apoiado no cajado.

Usava roupas pobres, a barba branca crescida.

Tinha nos olhos um brilho de estrela.

Esperava que ele mostrasse o que ela devia fazer, depois que lhe fizesse a pergunta: “Como posso me livrar desse rancor, da vida nesse horrível azedume?”

Ele já sabia que nada para ela prestava. Adiantou-se, fez-lhe primeiro uma pergunta.

– Se você tiver de escolher para ser entre uma águia e uma pantera qual das duas preferiria?

Ela percebeu que ele tinha a voz serena, a maneira de fluir fez bem ao ouvido.

Fora surpreendida com aquele tipo de pergunta, estranha.

– Não sei dizer, mas faça-se em mim a sua vontade, mestre.

Em razão da idade avançada dele, resolveu chamá-lo assim.

Não havia dúvida que com aqueles vincos no rosto, os cabelos sedosos ao vento, a pele enrugada, ele era o guardião da memória na aldeia. Sabia dos caminhos, conhecia o segredo das coisas. Se alguém pudesse existir neste mundo com a sabedoria dele, saberia dizer o que melhor devia fazer cada um para viver na vida sem qualquer espécie de rancor.

O mapa que apontava para a direção que ela devia seguir sem percalços somente ele sabia.

Notou que de repente um halo de luz apareceu acima de sua cabeça.

Ela estava ansiosa para saber o que ele responderia à própria pergunta que fizera a respeito dela.

O velho então disse com a voz calma.

– Quando eu dobrar aquela curva, você ficará sabendo.

Foi só desaparecer na curva, ela virou um beija-flor.

No corrupio, no frufru, fez-se ternura de Deus.

Plumagem alegre, de flor em flor.
Cyro de Mattos

quinta-feira, março 24

Aparador

 


O livro e a vida

Charles-Clos Olsommer
Você não pode embarcar de novo na vida, esta viagem de carro única, quando ela termina; mas, se tem um livro na mão, por mais complexo ou difícil que seja compreendê-lo, ao terminá-lo você pode, se quiser, voltar ao começo, ler de novo, e assim compreender aquilo que é difícil, assim compreendendo também a vida
Orhan Pamuk

Leitura à janela

 


Universos paralelos

Há uma teoria científica que alega que há bilhões de outros universos, paralelos a este em que vivemos, e que cada um deles é um pouco diferente. Há alguns em que você nunca teria nascido e outros em que não desejaria nascer. Há universos paralelos em que estou transando com um cavalo, há aqueles em que ganhei o grande prêmio da loteria. Há universos onde estou deitado no chão do quarto sangrando lentamente até morrer, e aqueles em que sou eleito, por maioria de votos, para o cargo de presidente do país. Mas este conjunto de universos paralelos não me interessa agora. Interessam-me só aqueles em que ela não está feliz casada e tem um menininho doce. Em que está totalmente só. Há muitos universos assim, tenho certeza. Tento pensar neles agora. Dentre todos esses universos, há aqueles em que jamais nos encontramos. Eles também não me interessam no momento. Dentre os que restaram, há aqueles em que ela não me quer. Ela me diz não. Em alguns deles, de forma delicada, em outros, de modo ofensivo. Nenhum deles me interessa. Restaram somente aqueles em que ela me diz sim, e eu seleciono um deles, mais ou menos como se escolhe uma fruta na quitanda. Escolho o mais bonito, mais maduro, mais doce. É um universo em que o clima é perfeito. Nunca é quente demais ou frio demais, e vivemos ali em uma pequena cabana na floresta. Ela trabalha na biblioteca municipal, quarenta minutos de viagem de nossa casa, e eu trabalho no setor de educação do conselho regional, no prédio em frente àquele em que ela trabalha. Da janela do meu escritório posso às vezes vê-la recolocando livros nas prateleiras. Sempre almoçamos juntos. E eu a amo e ela a mim. E eu a amo e ela a mim. E eu a amo e ela a mim. Eu daria tudo para me transferir para esse universo, mas, por enquanto, até que eu encontre o caminho, só me resta pensar nele, o que não é pouco. Posso me imaginar vivendo lá no meio da floresta. Com ela, em total felicidade. Há um sem-número de universos paralelos no mundo. Em um deles estou transando com um cavalo, no outro ganhei o grande prêmio da loteria. Não quero pensar neles agora, somente naquele, naquele universo com a casa na floresta. Há um universo em que estou deitado com as veias cortadas, sangrando no chão do quarto. É o universo onde foi-me decretado viver até que isso acabe. Não quero pensar nele agora. Somente naquele universo. Uma casa na floresta, sol se pondo, dorme-se cedo. Na cama, meu braço direito está solto, estanque, ela dorme sobre ele, e estamos abraçados. Ela está deitada sobre ele há tanto tempo que começo a parar de senti-lo. Mas não me mexo, está bom para mim assim, com o braço debaixo do seu corpo quente, e continua sendo bom mesmo quando paro de sentir o braço totalmente. Sinto a respiração dela no meu rosto, ritmada, regular, não acaba. Meus olhos começam a se fechar agora. Não só naquele universo, na cama, na floresta, também em outros universos sobre os quais não quero pensar agora. É bom para mim saber que há outro lugar, no coração da floresta, em que adormeço agora feliz.

Etgar Keret, "De repente, uma batida na porta"

quarta-feira, março 23

Em viagem

 

Joseph Solman

À espera dos bárbaros

Nunca vi nada assim: dois disquinhos de vidro presos na frente dos olhos dele com aros de arame. Ele é cego? Dava para entender se quisesse esconder olhos cegos. Mas ele não é cego. Os discos são escuros, parecem opacos do lado de fora, mas dá para enxergar através deles. Ele me conta que são uma invenção nova. "Protegem os olhos contra o brilho do sol", diz. "O senhor ia achar bom aqui no deserto. Evitam que fiquemos apertando os olhos o tempo todo. Dá menos dor de cabeça. Olhe." Toca de leve os cantos dos olhos. "Sem rugas." Recoloca os óculos. É verdade. Ele tem a pele de um jovem. "Na minha terra todo mundo usa isto."

Estamos sentados na melhor sala da hospedaria com uma garrafa entre nós e uma tigela de nozes. Não comentamos a razão para ele estar aqui. Ele serve aos poderes de emergência, isso basta. Em vez disso, falamos de caçadas. Ele me conta do último grande giro que deu, quando foram mortos milhares de veados, porcos, ursos, tantos que uma montanha de carcaças teve de ser abandonada a apodrecer ("O que foi uma pena"). Conto dos grandes bandos de gansos e patos que pousam no lago todo ano em suas migrações e dos métodos nativos de capturá-los. Sugiro levá-lo pescar uma noite num barco nativo. "É uma experiência que ninguém pode perder", digo; "o pescador leva tochas acesas e toca tambores em cima da água para atrair os peixes para as redes que colocou." Ele concorda balançando a cabeça. Conta da visita que fez a outro ponto da fronteira, onde as pessoas comem certas cobras como especialidades, e de um imenso antílope que matou.

Desloca-se tateando em meio à mobília estranha, mas não remove os óculos escuros. Retira-se cedo. Está aquartelado aqui na hospedaria porque é a melhor acomodação que a cidade oferece. Fiz os funcionários entenderem que se trata de uma visita importante. "O coronel Joll é da Terceira Divisão", disse-lhes. "A Terceira Divisão é a mais importante da Guarda Civil hoje em dia." Pelo menos é isso que ouvimos nos rumores que nos chegam atrasados da capital. O proprietário faz um gesto de concordância, as camareiras baixam a cabeça. "Ele tem de ficar bem impressionado conosco."

Levo meu colchonete para a plataforma, onde a brisa da noite alivia um pouco o calor. Nos tetos planos da cidade, dá para perceber ao luar outros vultos adormecidos. Debaixo das nogueiras da praça ainda escuto o murmúrio de conversas. No escuro, um cachimbo brilha como um vagalume, esmorece, brilha de novo. O verão está rodando devagar para o fim. Os pomares gemem sob sua carga. Não vou à capital desde que era moço.

Acordo antes do amanhecer, passo na ponta dos pés pelos soldados adormecidos, que estão se mexendo e suspirando, sonhando com mães e namoradas, desço a escada. No céu, milhares de estrelas olham para nós. Na verdade aqui estamos no teto do mundo. Acordar à noite, ao ar livre, é deslumbrante.

O sentinela no portão está sentado de pernas cruzadas e dorme profundamente, aninhando o mosquete. O quartinho do porteiro está fechado, sua carroça parada fora. Eu passo.
J. M. Coetzee, "À espera dos bárbaros"

Livros antigos

Conheço cada vez mais pessoas que gostam de frequentar alfarrabistas e comprar livros velhos e antigos: umas porque se dedicam a géneros específicos (como um dos meus colegas editores, Zeferino Coelho, que se interessa por tudo o que são textos biográficos); outros porque simplesmente procuram livros há muito esgotados e esperam encontrá-los ali a baixo preço; outros ainda porque adoram mergulhar no papel cansado e descobrir coisas de que nunca tinham ouvido falar (o Manel comprou-me recentemente um livro com textos de um meu antepassado que não conhecia.) Além da livraria de Miguel de Carvalho recentemente aberta na Figueira da Foz (conheci-a ainda em Coimbra, num espaço bem bonito, e estou ansiosa por visitar este), há mais dois espaços de venda de livros antigos mais ou menos recentes. Um em Lisboa, no piso inferior da Livraria Barata, da responsabilidade de Carlos Bobone (filho de peixe sabe nadar, o seu pai é igualmente alfarrabista); e, no Porto, um novo espaço na Livraria Lello que será inaugurado no final do mês, sala dedicada a livros raros, primeiras edições e obras de coleccionador. Será que as pessoas estão a ficar fartas dos livros do presente e procuram os que atravessaram o tempo ainda vivos e em bom estado? Ou haverá nisto também um lado de investimento num produto com valor real? Não sei, mas que é curioso é.

Fisgado pelo livro

 

Nishant Choksi 

A loira com a faca

Alguns escritores precisam se esforçar para atingir o fracasso. Outros, a maioria, já nascem prontos.

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Há sonetos tão astuciosos que só revelam suas intenções e sua identidade um verso antes da chave de ouro.

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Se eu fosse agora, no fim da vida, fazer um resumo do que foi ela, só diria que consumi tempo demais com a literatura. Infelizmente, não o bastante.

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Pegou hoje na biblioteca uma biografia de Shakespeare. Não quer saber de Romeu e Julieta, de sucessos e consagrações. Espera, nas quatrocentas e tantas páginas, encontrar detalhes escabrosos sobre o pacto do Bardo com Deus, ou com o Diabo, ou, mais provavelmente, com os dois.

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Não há por que duvidar. Se com a morte nada se ganha, também nada se perde por esperar.

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No bar, ele viu a Morte de perto. Ela empunhava uma faca, não era loira e chamava-se Zé Roberto.

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Há muito tempo não me dizem nada certas palavras que me diziam tudo. Tantas, até amor, a mais sagrada, são forma, agora, mais que conteúdo.

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Wislawa e a poesia nunca precisaram marcar encontro. Topavam-se, esbarravam-se, caíam e, quando se levantavam, às vezes não sabiam mais quem era uma e quem era a outra.

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Lembra-se da poesia como um homem de oitenta anos se lembra da sua namorada da infância. Ora ela se chama Vera, ora Priscila, ora Lucrécia. Se hoje ela lhe aparecesse com a idade que tinha na época, ele talvez a reconhecesse e abrisse para ela um sorriso que vem murchando há tantas décadas.

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Deus talvez não seja parnasiano, apesar de todos os indícios. Mas aos poetas, sejam de que escola forem, recomenda-se que, quando chegar a hora de prestar-Lhe contas, não se esqueçam de levar uma chave de ouro e as melhores rimas para cisne.

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Jamais conseguirá, embora queira. Ama demais a poesia, mas a recíproca não é verdadeira.

***

Felizes são os gatos, apátridas e sem ideologia. Não discursam, ronronam, e de território basta-lhes um sofá.
Raul Drewnick

terça-feira, março 22

Contador de histórias

 


Um livro e sua lição

Poucos livros são como este livro. Aparentemente, igual a muitos. Mas se o abrires em qualquer página, encontrarás de cada vez um texto diferente.
Ouvi que na Ásia há um livro com a mesma propriedade, e que nos Estados Unidos existiu outro, comprado a um dervixe, mas que, pelo manuseio constante, não apresenta a singularidade: ficou um livro como os demais, unívoco.

O exemplar que possuo, não deixo que ninguém o consulte. Zelo por sua integridade, e só de longe em longe me animo a folheá-lo. E é sempre um assombro.

Não o comprei. Achei-o no porão de uma casa onde só havia trastes abandonados e teias de aranha. Ao descobrir sua inacreditável raridade, fiquei trêmulo e guardei o segredo até dos mais íntimos.

Este livro extraordinário me explicou o sentido do mundo, que varia sempre e não se subordina a qualquer filosofia. Explicação que não explica, pois sendo infinitas as variações, qualquer delas só dura o tempo de leitura de uma página, ou meia.

Não posso continuar guardando o volume, e não sei o que fazer dele. Tenho medo de abri-lo; medo de rasgá-lo; medo de que o furtem; medo de ler nele uma sentença aniquiladora, a última sentença, depois da qual o mundo deixaria de ser vário e, portanto, de existir.

Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"

Tomografia do leitor

 


A casa do homem sem qualidades

A rua em que acontecera o pequeno acidente era um daqueles longos e sinuosos rios de trânsito que brotam como raios do coração da cidade, varam os bairros afastados e acabam nos subúrbios. Se o elegante casal seguisse por ela mais um pouco, teria visto algo que certamente lhe agradaria. Era um jardim do século XVIII, ou até XVII, ainda parcialmente conservado; passando diante de suas grades de ferro batido, via-se entre as árvores, sobre relvados cuidadosamente aparados, algo que parecia um castelinho de alas curtas, um castelinho de caça ou de amor, de tempos passados. Para ser exato, as abóbadas de sustentação eram do século XVII, o parque e o andar superior pareciam do século XVIII, as fachadas tinham sido renovadas e um pouco prejudicadas no século XIX; portanto o todo estava um tanto confuso, como em retratos fotografados uns por cima dos outros; mas acabava-se parando ali, infalivelmente, e dizendo: “Ah!” E quando aquela coisa alva, graciosa e bela estava de janelas abertas, avistavam-se as paredes de livros, nobres e silenciosas, da casa de um homem de cultura.

A moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.

Ele estava postado atrás de uma janela, e através do filtro verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que estivera fazendo uma tolice.

Se se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.

Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém que faz?

“Podem-se deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.

A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.

Deve-se acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar, ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.

“A gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de resignação ou estados de fraqueza.

Robert Musil, "O homem sem qualidades"