segunda-feira, setembro 30

Embarque na dica


De onde vem a poesia?

E para onde vai?

Considerações sobre a arte que consagrou Fernando Pessoa, seus cem heterônimos e outros tantos – menos eu.


ORIGENS

O poema não vem
da vontade só
nem só do pensamento
vem da vontade
vem do pensamento
e algum tanto
tantos por cento
(por que tanto
constrangimento?)
da emoção e do sentimento.

FERNANDOS

campos reis soares caeiro –
para ser grande
pessoa fragmentou-se inteiro.

PERFIL

Não sou propriamente louco
mas tenho
algumas ideias promissoras.

REGRINHA

Não assuma ares de Ovídio
Nem de Horácio. Seja você
E tudo será mais fácil.

HOJE

Estou livre enfim.
Meus vivos
não me chamam mais
não me reivindicam
meus mortos
esqueceram-se de mim.

COMUNICADO

Digo de peito aberto:
a poesia e eu
não demos certo.

RECICLAGEM

Se modernize.
Jamais use competência
se puder usar expertise.

PROCURAÇÃO

Com as próprias mãos
não te destruas. Há mãos
mais eficazes que as tuas.

COERÊNCIA

Ando tão alienado
que até a encontros comigo
tenho faltado.

FAMA

Tudo de Clarice
virou mantra – até
o que ela não disse.

VINICIANA

Jamais duvides de mim.
Te amarei eternamente,
Infinda, infinitamente,
Pelo menos até o fim.

LÓGICA LITERÁRIA

Melhor um jabuti
na mão
que dois nobéis voando.

ESTILO

Procrastinar
é o modo mais esnobe
de adiar.

DEFINIÇÃO

Tentar definir uma rosa
É um erro.
Insistir no erro é poesia.

SE FOR

Se for para perder-se
que seja numa rima toante
nuns olhos verdes.

DOIS BICUDOS

De todos os inimigos do amor
o mais comum
é o amor-próprio.

SALDO

O problema dos fracassos poéticos
é o que fazer com o encalhe
dos bem-te-vis e das rosas.

CLT

No bolso o atestado médico
é prova e pretexto
do poeta bissexto.

ESPECIALISTA

Um gramático é quem entende o afeto
que une um verbo transitivo
ao seu objeto dileto.

CRUZEIRO

Cheguei a flutuar
como um passarinho
até alguém gritar
homem ao mar.

Raul Drewnick

Papo cabeça


Reescrevendo Lobato & Cia

— A obra do Monteiro Lobato caiu em domínio público. Vamos republicar tudo!

— Que ótimo! As novas gerações merecem.

— Pois é, mas temos que atualizar algumas coisas.

— A ortografia, com certeza.

— Também, mas não só.

— Não vamos mexer no enredo e nos personagens, certo?


— Claro que não! Isso descaracterizaria a obra. Mas Emília não pode ser uma boneca.

— Por quê?

— Brincar de boneca contribui para a construção de um entorno social que mantém as mulheres longe das profissões ligadas à ciência e à tecnologia. Além disso, “boneca” é pejorativo para transgêneros e travestis. Emília poderia ser um... patinete, para estimular o uso de meios de transporte não poluentes.

— Narizinho vai conversar com um patinete, então?

— Mais ou menos. Ela não poderá mais se chamar Narizinho, que é uma clara referência aos padrões estéticos impostos pelo patriarcado. Já imaginou o sofrimento de uma menina nariguda diante dessa discriminação?

— Mas “As reinações de Narizinho” é um clássico da literatura infantil...

— Melhor evitar a palavra “reinações”, que tem evidente conotação antirrepublicana.

— “Caçadas de Pedrinho”, então, nem pensar?

— Nem pensar. Incita ao extermínio da fauna. Será “A horta orgânica de Cauã”.

— Quem é Cauã?

— Tiramos Pedrinho da história. Por uma questão de representatividade, entrará Cauã, um tupinambá. Suas aventuras serão plantando chia, quinoa e linhaça.

— Ajudado pelo Visconde?

— Nada de títulos nobiliárquicos. Esse sistema elitista de castas não pode ser perpetuado. Sabugosa será uma espiga de milho não híbrido nem tratado com agrotóxicos, que compartilha com Cauã seus saberes nos cultivares da horta comunitária.

— Pelo menos Dona Benta...

— Esse nome está ligado a uma religião majoritária, monoteísta e com um histórico de intolerância (cruzadas, inquisição, catequese dos povos indígenas). Vovó Conga fica melhor.

— Ela e Tia Nastácia...

— ... são sócias. Ou melhor, têm uma cooperativa ecossustentável, dedicada à produção de kombutcha. E devem ser evitadas todas as referências a idade, peso, cor de pele ou subordinação.

— O saci...?

— Fará campanha antitabagista, terá uma prótese e será atleta paralímpico.

— “Emília no país da gramática”?

— Será “Emília na comunidade das variantes linguísticas”. E não se esqueça que Emília agora é patinete, agênero.

— Mas vamos pelo menos manter o “Sítio do pica-pau amarelo”?

— Temos que repensar esse lance do sítio. Sitiar é assediar, coagir. Há uma violência implícita. Vamos mudar para “chácara”, que é uma propriedade menor, menos vinculada ao latifúndio. E, além disso, a palavra é de origem quíchua, de um povo oprimido.

— Tá, “A chácara do pica-pau amarelo” fica bacana.

— Pica-pau, sem chance. Lembra os madeireiros que devastam a Amazônia. E enseja trocadilhos falocêntricos. Para amortizar a dívida histórica com o gênero feminino, podemos substituir por “periquita”.

— Hmmm ... “A chácara da periquita amarela” não parece título de pornochanchada?

— Não será amarela, porque o termo soa depreciativo aos asiáticos.

— Uma cor neutra, então? Cinza? Bege? Off-white?

— Temos que ser inclusivos, não neutros. Será “A chácara da periquita de todas as cores do arco-íris”. Agora, mãos à obra porque daqui a pouco é a vez de reescrever o Ziraldo — “O menino maluquinho” estigmatiza portadores de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. E a Maria Clara Machado (“Pluft, o fantasminha” é uma afronta aos ateus e não reencarnacionistas), o Vinicius de Moraes (“A arca de Noé” antropomorfiza os animais, reforçando o especismo) e a Ruth Rocha (como é que alguém com dislalia e dislexia vai ler “Marcelo marmelo martelo”?).

[Tudo isso é só uma argumentação "ab absurdo". Obras em domínio público podem ser livremente adaptadas. Monteiro Lobato fez o mesmo com contos de fadas, mitologia grega. Era um visionário, mas — como qualquer um de nós — não completamente livre da mentalidade da sua época. Que haja também novas edições com o texto original e notas explicativas, para que não seja lido só de segunda mão. Os termos racistas não farão falta — mas onde passa um boi passa uma boiada. E, como no Brasil o absurdo volta e meia acontece, para esse diálogo deixar de ser ficção não precisa muito.]
Eduardo Affonso

sábado, setembro 28

Vê-se o que se lê


A luxúria oculta guardada na Biblioteca Nacional

São folhetos de papel de baixa qualidade, que quase se desfazem nas mãos. Na capa, imagens libidinosas — mulheres nuas, cupidos em pleno voo, moças comportadas a um passo de perder a compostura — e promessas de contos ilustrados com “estimulantes gravuras do mundo natural”. À primeira vista, é difícil entender como esse material, datado do final do século XIX e início do XX, veio parar na seção de obras raras da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Mas é mesmo lá que se encontram, abertos para consulta, títulos sugestivos como Consolo de viúva , Um marido em apuros , Chifres para todos e Prazeres de colegiais , para citar só alguns.

O conjunto de mais de 50 publicações antigas, produzidas no Brasil e originalmente comercializadas na redação do finado jornal satírico carioca Rio nu , faz parte do chamado “inferno” da Biblioteca Nacional, que reúne obras vistas como incômodas à época em que chegaram à instituição. Com medo de que fossem destruídas ou confiscadas, funcionários dificultaram sua catalogação e as esconderam em lugares onde não deveriam estar. Foi o caso desses folhetos pornográficos, que, embora hoje estejam a salvo, continuam ignorados por público, editoras e pesquisadores. Seu conteúdo, no entanto, não para de surpreender a chefe da divisão de obras raras da Biblioteca Nacional, Ana Virginia Pinheiro, que desde 2014 vem executando a recuperação dessas publicações. Na contramão de um Brasil onde casos de tentativa de censura se multiplicam, como a tentativa de recolher uma história em quadrinhos com beijo homossexual na última Bienal do Livro do Rio, no início de setembro, a pesquisadora luta para um maior reconhecimento dessa pouco analisada e editada produção erótica nacional.

“Esses folhetos chegaram aqui pelo próprio jornal, via lei do depósito legal na época, já que coleções particulares não guardavam isso”, disse Pinheiro. “Tenho certeza de que acabaram nas obras raras porque os funcionários queriam escondê-los. Talvez alguém procurasse por isso em obras gerais, jamais aqui nesta divisão. Mas, se elas foram escondidas para serem preservadas, agora merecem ser divulgadas, estudadas e compreendidas. Lembro-me de certa vez em que minha avó, ao ver uma publicação pornográfica numa banca de jornais, disse que isso não existia no tempo dela. Hoje sei que estava mentindo.”

A coleção do “inferno” é mais ampla e não se limita a esses folhetos de papel barato do século XIX. Na verdade, ela contém livros de todos os tipos, gêneros e épocas — alguns mais antigos, trazidos pela Família Real em 1808, e outros mais novos, perseguidos pela ditadura militar. Mas, se algumas das obras foram escondidas pelos motivos mais diversos — desde políticos, como o diário de viagens pela União Soviética de Jorge Amado, até religiosos, como uma edição do século XVII de A cidade de Deus , de Santo Agostinho, cujas notas foram censuradas pela Igreja —, esse subgrupo composto dos contos “naturais” incomoda por uma razão óbvia: sua franca obscenidade.

“Não existe limite moral nessas histórias. Às vezes o pesquisador tem até vergonha de dizer que está procurando”, afirmou Pinheiro. O primeiro paralelo que vem à mente são as publicações de Carlos Zéfiro, que introduziram muitos jovens à pornografia entre os anos 1950 e 1970. Basta ler as primeiras linhas, no entanto, para perceber que as narrativas fazem o velho Zéfiro soar quase como um carola.

Práticas como sexo grupal ( Em plena orgia ), homossexualidade ( Laurinha e Bibi , O menino do Gouveia ), incesto ( Família ) e até zoofilia ( Variações do amor ) são tratadas com a maior naturalidade, com descrições gráficas e uma certa dose de cinismo, alheio ao moralismo da época. Visualmente, as publicações também são ousadas. Trazem, em seu interior, fotos de sexo explícito, importadas da Europa. O conceito era simples: criar uma história original — e brasileiríssima — a partir de imagens produzidas para “estimular o sexo solitário”, como bem explica, de maneira técnica, uma descrição feita para uma exposição de 2017 da Biblioteca Nacional dedicada a esses livros.

Um dos volumes mais emblemáticos, segundo Pinheiro, é A pulga , escrito por um certo Lucio D’Amour. Nele, um militar aposentado contrata um homem negro para fazer a segurança da casa. Este, descrito com todos os estereótipos possíveis, logo atiça o desejo da jovem esposa do militar. Como o segurança não consegue entender suas segundas intenções, ela faz de conta que uma pulga entrou em seu ânus e o obriga a procurá-la.

“É um conto que mostra a mulher em um papel mais ativo”, observou Pinheiro. “E, de forma geral, a mulher nessa literatura não é só objeto sexual. Ela é a pessoa que demanda por sexo, ela é a pessoa que comanda toda a cena, escolhe o homem ou a mulher. Elas têm uma sexualidade exacerbada, assumida, e isso é muito surpreendente para a época.”

Outra surpresa, afirmou Pinheiro, é a qualidade do texto desses folhetos, inversamente proporcional ao material em que foi publicado. É sabido que escritores prestigiados trabalhavam como “ghostwriters” para publicações pornográficas, e provavelmente estão por trás também de alguns dos pseudônimos que assinam os folhetos, como Zé Teso, Manuel Brochado, Pepe Galhardo, Capadócio Maluco e Pat de Patagonia.

Os respeitáveis Olavo Bilac e Coelho Neto, por exemplo, teriam escrito anonimamente um nunca encontrado — e talvez nunca publicado — livreto obsceno. O fato só se tornou público nas memórias de Humberto de Campos, para quem os poetas supostamente confessaram a autoria de uma encomenda intitulada Almanaque do ânus . Autor de A escrava Isaura , Bernardo Guimarães é hoje reconhecido como o autor do famoso poema erótico “O elixir do pajé”, atribuído à época de seu lançamento a um sacristão e cuja edição fac-similar — fartamente ilustrada — também repousa no “inferno” da Biblioteca Nacional.

Apesar de sua qualidade literária e de sua importância histórica, esses textos quase não ganharam dissertações e teses da academia, segundo Pinheiro. As reedições são, até agora, raríssimas. A mais conhecida é O menino do Gouveia , lançada em 2017 pela editora O Sexo da Palavra. Considerado uma das primeiras representações homoeróticas da literatura nacional, o conto de 1914 traz a relação entre um prostituto menor de idade e um homem mais velho.

Pinheiro lembrou que já foi consultada algumas vezes sobre publicações mais ambiciosas, mas até agora nada foi adiante. A editora e bibliófila Aninha Franco, fundadora da República AF, contou que recentemente cogitou publicar um box com várias histórias da coleção, mas que desistiu por causa do “clima político” do Brasil atual.

“Há 500 anos que o Brasil é erótico, ele nunca deixou de ser”, disse Franco. “Mas, hoje, seria impossível conseguir um patrocínio para esse tipo de publicação. É uma pena, porque esse material é erotismo da melhor qualidade, e o Brasil precisa conhecer melhor o Brasil.”

Justamente por ver uma “tendência à censura” na atualidade, Pinheiro acredita que este é o momento de promover os folhetos. Por via das dúvidas, ela mantém as obras da mesma forma que seus antecessores do “inferno” deixaram: dispersas e mal catalogadas. Até hoje, por medo de que acabe sendo acusada de apologia à pornografia, a pesquisadora não conseguiu elaborar uma forma de publicar esses textos nos anais da Biblioteca Nacional.

“Eles estão aqui na biblioteca e podem ser vistos. Não são nenhum segredo”, disse ela. “Mas a humanidade repete a história, e não se pode facilitar.”

sexta-feira, setembro 27

Manhã


Sonho de uma noite de Natal

Eu havia terminado um conto sombrio como os breves e tristes dias de inverno, que então pesava sobre meu país. Deixei cair a pena e comecei a passear pela casa.

Era noite. Lá fora prenunciava-se uma tormenta. A neve caía em flocos espessos. A rua estava deserta, e, encostando-me à vidraça, eu via apenas uma lanterna pendurada a uma porta, do outro lado da rua, e agitada pelo vento. Aquele espetáculo era tão profundamente desolador que, afastando-me da janela, apaguei a lâmpada e fui deitar-me.

Então, na escuridão que invadia todo o meu quarto, os sons da noite se fizeram mais nítidos. O relógio contava os segundos, mas por vezes o zumbir da neve, lá fora, afogava seu rumor. Em vão. O tiquetaque apressado, incansável, voltava a dominar os murmúrios do inverno; e aquele tique-taque seco, monótono e teimoso, em sua marcha para a eternidade, impunha-se ao meu cérebro, ressoava dentro dele.

Hans van der Leeuw
Não podendo dormir, pensava nas páginas que acabara de escrever. Era uma narração muito simples: a história de dois velhos tímidos e meigos, dois abandonados pelo destino. Ele, cego; ela, sua esposa, humilde e fiel.

Uma madrugada, na véspera de Natal, saíram de seu sórdido abrigo e foram mendigar pelo casario da vizinhança, para ver se obtinham algo com que comprar um pouco de alegria e conforto para o dia mais santo de todos.

Movidos por essa esperança, percorreram os arredores, crentes de que poderiam voltar, à hora da missa do galo, com os bolsos cheios de dádivas feitas em nome do Senhor. Mas foram tão escassas as esmolas que nem sequer compensaram a caminhada, e já era muito tarde quando o triste casal compreendeu que tinha de voltar ao seu casebre sem fogo para se aquecer e apenas com o indispensável para não passar fome.

Retomaram, pois, o caminho de seu abrigo, ela adiante, ele com a mão apoiada à sua cintura. Vinham lentamente, na escuridão da noite.

As nuvens encapotavam o céu; o vento dançava com a neve, e o caminho parecia cada vez mais longo. É que a velha se deixava iludir pela alvura sempre igual do solo e, em vez de tomar o atalho correto, seguira ao longo do vale.

O velho irritava-se.

― Ainda não chegamos? Estou vendo que não chegaremos antes da meia-noite.

Ela respondia que estavam perto. Sabia que tinham se perdido e queria ocultar-lhe o fato. Mas tanto andou em vão que teve de confessar com um tom melancólico na voz:

― Em nome de Cristo, perdoe-me. Eu me enganei, tomei outro caminho... E o pior é que agora não sei onde estamos. Vamos parar um pouco para repousar.

― Mas vamos ficar gelados...

― Que importa!... Nossa vida não é tão doce que dê pena de perdê-la. Preciso descansar um pouco.

O velho cedeu, suspirando.

Sentaram-se na neve, encostados um contra o outro, e ficaram imóveis, como duas trouxas de farrapos. A neve, que caía incansável, começou a cobri-los, e a mulher, menos agasalhada que o marido, não tardou a se sentir tomada por um sono irresistível.

Sentindo que ela se apoiava mais fortemente sobre seus ombros, o homem assustou-se:

― Minha velha, não durma: olhe que vai ficar gelada.

Porém, ela já adormecera, e balbuciava coisas incompreensíveis, sem despertar.

O velho voltou-se e tentou erguê-la, repetindo seus alarmados conselhos. Como não o conseguisse, ergueu os braços e bradou por socorro. Ninguém o ouviu, mas os sinos, ao longe, começaram a repicar.

― Minha velha ― insistiu o cego, sacudindo os ombros de sua pobre companheira -, os sinos já estão tocando para a missa. Levante-se...

Olhe que vamos chegar tarde...

Mas a mulher mantinha-se imóvel.

Então, resignado, sentindo-se também invadido pela sonolência mortal, o cego sentou-se de novo ao lado de "sua velha", e uma última súplica passou por seus lábios:

― Senhor! Acolhe a alma de teus servos. Ambos somos pecadores, mas confiamos em tua misericórdia.

Recordando essa história, sorri, contente comigo mesmo, certo de que ela enterneceria meus leitores. E, embalado pelo tique-taque do relógio, comecei a cochilar.

E então, sem saber ao certo se estava dormindo ou acordado, vi a claridade vaga da janela aumentar, tomar um tom azul e fosforescente, ampliar-se, formando um quadro imenso, e aí surgirem pouco a pouco alguns vultos, a princípio confusos, inconsistentes. Mas logo seus contornos foram se acentuando e desenhando formas familiares aos meus olhos.

Eram crianças, mulheres, velhos... todos miseráveis e tristes.

― De onde vêm essas sombras e que representam? ― perguntei a mim mesmo, tentando em vão emergir dos abismos do sono.

Uma voz perguntou por sua vez:

― Não nos reconhece?

Procurei distinguir no meio daquela multidão lamentável. Vi então um grupo que, com passo vacilante, tomava a dianteira de todas as sombras. Era um velho cego, apoiado à cintura de uma mulher também já idosa, que me fitava com ar de censura.

― Não nos reconhece? ― repetiu ela com voz severa. ― Nós somos os heróis dos contos que você passa a vida escrevendo; somos os tristes e desgraçados filhos da sua imaginação... Ali estão os dois meninos que você fez morrer de frio, diante das janelas de uma casa onde fulgia, magnífica e opulenta, uma árvore de Natal. Aquela mulher ali é a desgraçada que você fez morrer sob as rodas de um trem, quando corria pela rua, ansiosa por levar aos filhos um presente de Natal. Aquele ancião...

Eu ouvia, contemplando, pálido de horror, as sombras lúgubres e silenciosas que desfilavam sem cessar ante meus olhos.

Por que vinham todas elas me alucinar nessa noite? Que queriam de mim? Que pretendiam?

― Responda você mesmo a essas perguntas ― bradou a velha, lendo o meu pensamento. ― Por que escreveu essas coisas? Para que vive inventando essas desgraças, essas tristezas? Que pretende com isso? Desfazer o que resta de fé e esperança no coração dos homens? Tirar-lhes a confiança na redenção, mostrando-lhes somente o mal? Aniquilar o desejo de viver, apresentando a existência como um suplício sem fim e sem remédio?

Eu estava consternado... Seria mesmo assim tão culpado? O que faço não é o que fazem todos os escritores? Especialmente nos contos de Natal, procuramos todos imaginar cenas bem tristes, bem tocantes, para despertar em nossos leitores sentimentos compassivos, abrir os corações à piedade...

― É mentira! ― bradou a velha. ― Mentira ingénua e ridícula. Então pretende, com dores e misérias, despertar bons sentimentos nos corações acostumados a desgraças reais? Idiota! Pensa enternecer, com suas pobres fantasias, os homens que não se comovem ante a realidade miserável de todos os dias?...

O resto do sonho foi uma confusão que não consigo recompor; mas pela manhã, quando despertei, meu primeiro movimento foi correr à mesa onde deixara as tiras de papel escritas na véspera.

Rasguei-as sem tornar a lê-las; atirei os pedaços pela janela, e eles esvoaçaram no ar claro como mariposas.
Máximo Gorki

quinta-feira, setembro 26

Leitora em descanso


Fuja da multidão

Se apenas leres os livros que toda a gente lê, apenas podes pensar o mesmo que os outros estão a pensar
Haruki Murakami

Livros também desesperam

Hans van der Leeuw

Assim começa o livro...

Os dedos da mulher tremeram quando ela passou o ferrolho na porta, trancando‑se no banheiro. Não acendeu a luz. Não precisava. Os celulares — esses pequenos instrumentos do demônio — são como as estrelas: têm luz própria.

Apertou com força o aparelhinho na mão, sentindo a superfície lisa e fria. Era ali que estava a resposta. Sim ou não? Seria verdade? Não é possível, não posso acreditar.

Sentou‑se no banco junto ao boxe, encostando‑se ao toalheiro elétrico. Seus gestos eram lentos, medidos, fazia tudo como se estivesse debaixo d’água, ou na lua, ou em outra dimensão. O corpo se movimentava quase à sua revelia, mãos trêmulas agarradas ao celular, sem querer largar. Não podia fazer nenhum ruído. E se Benjamim acordasse? O banheiro era no fim do corredor, longe do quarto, é verdade. Mas ainda assim havia o risco.

Respirou fundo. Tentou se acalmar pensando em alguma coisa boa, um lugar distante, calmo, limpo. Sempre fazia isso nos momentos de agitação, costumava funcionar. Tentou. Uma praia. O sol batendo nos olhos fechados, cheiro de capim. Um silêncio enorme à sua volta. Estava sozinha, quieta. Podia sentir nas costas as ripas da madeira de alguma espreguiçadeira. Um hotel, talvez. Uma ilha, quem sabe? O mar, dele podia sentir o cheiro. Era um mar manso, de baía. Mar de águas paradas. Droga! O barulho da descarga quase a fez saltar. As águas pútridas de um vaso sanitário, sendo esgotadas por um vizinho insone, acabavam de cortar a madrugada, tsunâmi de real invadindo seu devaneio.

Endireitou‑se no banco, esticou as costas. Postura. As narinas expandidas sentindo o ar entrando e saindo, entrando e saindo. Pensou em recomeçar. Mas, antes, pressionou o pequeno botão vermelho do toalheiro elétrico. Queria sentir nas costas o calor, esperar que as ondas mornas que circulavam por aquele encanamento prateado transmitissem a seu corpo a antítese da frialdade, do fio de gelo que lhe subia e descia pelo estômago, pela glote.

Tinha recebido o bilhete de manhã. Alguém botara embaixo da porta. O bilhete que denunciava tudo, dava detalhes. Muitos detalhes. E dizia que, se ela tivesse dúvida, que procurasse as mensagens no celular dele.

A mulher olhou para o aparelho em suas mãos. O celular do marido. Seus olhos, já acostumados à penumbra, percebiam o brilho do vidro, a moldura de metal. Benjamim nunca me escondeu nada, ele sabe que eu tenho a senha. Essa é a maior prova de que é tudo mentira, uma intriga de alguém que tem inveja de nossa felicidade. Somos um casal tão querido, tão admirado e… Mas e se fosse verdade?

Precisava saber. Tomar coragem, pressionar o pequeno botão, ver a tela se iluminar, procurar as mensagens. Ler. E pronto. Tudo estaria esclarecido. Era simples, não precisaria nem comentar com ele, nada, nada. Amanhã seria outro dia, tudo estaria esquecido. Os detalhes. Muitos detalhes. Mas era intriga, tinha certeza, só podia ser. Tinha de ser.

Ligou o aparelho, o dedo pressionando a mínima saliência na borda. Digitou a senha, observou os ícones. Um deles, verde, o ícone das mensagens, olhava para ela como um olho de gato. Mas Benjamim nunca. Um homem tão digno, tão ético. Sempre tão correto em tudo. Os maridos das amigas eram diferentes. Deles, ela esperaria qualquer coisa. Mas não de Benjamim. Seu marido era um homem verdadeiro.

Desde jovens, quando se conheceram, ela o admirava. O encontro acontecera em uma festa da Faculdade de Medicina, onde Benjamim estudava. Por que ela fora àquela festa? Já não sabia bem, mas talvez tivesse sido por causa de seu trabalho de voluntária na organização de apoio a pessoas com aids. Na época, a doença era uma sentença de morte e ela se sentira compelida a ajudar. Nos quartos dos hospitais públicos, esqueletos ainda recobertos de pele olhavam para ela do fundo dos lençóis encardidos. Às vezes, havia um sorriso, um aperto de mão. Mãos amarelas, manchadas, peles que pareciam pertencer a outra categoria de seres, não a humanos. Medo. Dor. Mas um impulso a levava a continuar com as visitas. As reuniões do grupo se davam às quartas‑feiras, em uma pequena sala da praça Saens Peña, na Tijuca. E os voluntários às vezes assistiam a palestras de médicos, na universidade. Viera talvez daí o contato, o convite para a festa de fim de ano na Faculdade de Medicina. 

Benjamim. A recordação era fragmentada, mas ela revia mentalmente os recortes, o bambuzal derramado sobre o jardim, voltava a ouvir as conversas à beira de uma piscina de água verde, o murmúrio da mata. Fora tudo muito repentino, muito natural. Poucos anos depois, quando Benjamim se formou, já estavam casados.

Juntos, tinham sonhado com um mundo melhor. Benjamim era um homem especial. Transparente. De uma franqueza às vezes desconcertante.

“Não vamos ter filhos”, disse um dia.

Assim, sem meias palavras. Ela ficou olhando para ele, em silêncio. Benjamim explicou que o mundo precisava deles por inteiro, seriam servidores dedicados. Se tivessem crianças para cuidar, isso os desviaria do caminho. Ela aquiesceu. Tudo o que ele dizia fazia sentido.

Com o tempo, a dedicação dele se aprofundou. Horas e horas, todos os dias da semana, às vezes também aos sábados, domingos, feriados, Benjamim estava no hospital. A mulher compreendia. Mas com ela própria acontecera uma transformação. Passados alguns anos, se afastara de seu trabalho de voluntária. De repente, já não suportava o convívio com os doentes, aqueles rostos encovados, a pele escura que crestava o sorriso, os lábios ressequidos que a faziam pensar em lagartos. Tomou horror. Ainda continuou indo às reuniões, mas as visitas às clínicas não conseguiu mais fazer. Sua garganta se trancava, sentia subir pelas costas um arrepio de horror. De nojo. De medo. Mentiu.
Disse aos companheiros do grupo voluntário que estava grávida, que a convivência insalubre lhe seria impossível. Meses depois, desapareceu das reuniões na Saens Peña sem se despedir.

quarta-feira, setembro 25

Recanto de leitura


A vantagem da fama

Os livros têm a vantagem de ser encadernados e não raro vir com as folhas ainda por separar. Daí por que permanecem famosos por mais tempos; conservam-se em bom estado e, para que sua fama tenha início, basta sabermos do que trata, mesmo sem o conhecimento
Robert Musil, "O melro e outros escritos"

Bom dia!


A vontade e o mundo

Um dia, vou cansar-me de querer conhecer o mundo. Nessa altura, talvez me pareça estranho que alguém saia de casa, deixe o morninho, para discutir preços com taxistas ou olhar para ementas de restaurantes onde não percebe uma única palavra.

Às vezes, parece-me que conheço demasiados caminhos. Para ir a certos lugares, não tenho de pensar. Entro no carro e a minha cabeça ocupa-se de qualquer assunto que, naquele momento me pareça importante. Conheço tão bem esses caminhos que quase me surpreendo quando chego ao destino. Às vezes, quero ir a lugares ligeiramente diferentes, distraio-me por um momento e, quando reparo, já estou a fazer esses caminhos de novo. O hábito enganou-me. Então, preciso de voltar atrás, raramente necessito de GPS para encontrar a direcção certa.

Charles Edward Perugini
Viajar seja para onde for, querer conhecer o mundo, é acreditar que todas as ruas fazem parte de um labirinto mas que não é possível perdermo-nos nele. Está-se sempre em algum lugar. A rosa dos ventos pode ser colocada em qualquer sentido, continuará sempre a ser uma rosa dos ventos.

Na Tailândia, nenhuma comida tem o sabor das sopas da minha mãe. Na Amazónia, nenhuma paisagem se parece com os campos à volta da terra onde nasci. Nas ruas de Helsínquia, ninguém entende a língua em que penso e eu, estrangeiro, tenho dificuldade até de distinguir palavras na amálgama de sons que essas pessoas dizem quando vão, por exemplo, a conversar nos transportes públicos.

Um dia vou cansar-me dessa surpresa. Conheço bem o conforto do meu sofá, com mantas em fevereiro, onde poderia passar tardes inteiras a ver programas da televisão portuguesa, com anúncios portugueses, com as notícias portuguesas a começarem à hora certa: pip, pip, piiii. Sei bem o que é atender o telefonema de um amigo que me diz: vem cá. Sei bem o que é poder ir ter com ele naquele momento, estar ao lado dele depois de minutos. Também sei o que é sentir que os amigos deixaram de ligar. A pouco e pouco, convencem-se de que nunca estou, nunca posso, não vale a pena ligar, não vale a pena insistir.

Sim, um dia vou cansar-me de querer conhecer o mundo, mas hoje ainda não é esse dia. Sinto uma espécie de tontura só de começar a conceber todos os lugares onde posso ir. Tenho os sentidos ávidos por tudo aquilo que me espera. Não tenho qualquer receio de estar sozinho, sem mapa, no centro de Singapura, numa avenida de Caracas, diante de uma paisagem do Alasca. Anseio por esse momento.

Quero aterrar em todos os aeroportos do mundo, quero conversar por gestos com gente de todos os países, quero provar o sal de todos os oceanos, senti-lo a cristalizar-se na pele. É muito fácil que chegue um dia em que deixe de acreditar em tudo o que acredito agora. A vida é composta por materiais bastante mais transitórios do que estamos dispostos a admitir. Mas, até lá, sempre que esteja diante de uma ementa onde não perceba uma palavra, continuarei a fechar os olhos e a pedir a primeira coisa onde deixe cair o meu indicador.
José Luís Peixoto, Revista Volta ao Mundo (Abril 2014)

terça-feira, setembro 24

Estímulo para passear


Quem sabe Deus está ouvindo

Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia.

Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:

– Você vai criar um cajueiro aí?

Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.

– Mas é melhor arrancar logo, não é?

Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso – mas confesso que havia nele um certo remorso. Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isto a empregada não sabe: ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela, o da Morte.

Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa – "seu Rubem, o cajueiro..." –, mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou para ele a mudinha.

Veio me mostrar:

– Eu comprei um vaso...

– Ahn...

Depois de um silêncio, eu disse:

– Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...

Ela olhou a plantinha e disse com convicção:

– Esse aqui não vai morrer, não senhor.

Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do vaso e ficara aliviada com minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:

– Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!

Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com certa gravidade:

– É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...

Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores.

segunda-feira, setembro 23

Eis o perigo


Minha avó e François Mauriac

François Mauriac
Não era vistosa a biblioteca de minha avó. Ficava na sala, à esquerda de quem entrava, e não atraía propriamente visitantes. Ficava assimilada à casa, assentada ali, camuflada na sombra, de frente para o velho piano. Uma discreta biblioteca de livros lidos, cheirando às mãos de quem os folheou. Entre os autores de maior incidência, um dia percebi, estava François Mauriac em muitos diferentes títulos, que depois vieram para minha biblioteca e que eu agora leio como quem investiga, como quem sonda onde alguém uma vez esteve, por onde passou seu pensamento, onde se guardaram as coisas não ditas que eram somente suas. Terá minha avó concordado mentalmente quando leu, lá pela página sessenta de um dos livros, que “as mulheres não se lembram do que não sentem”? Ou que “a morte é o sal do amor”? Os “humores acerbos”, que vêm de pressentimentos, também ela os tinha, sem dúvida. Mas será que alguma vez, como uma das personagens de frieza ou cólera inconfessável, também ela em pensamento “se desfez da sua ninhada”? Qual era a ferida secreta da avó? Quais os demônios dela? Se cada personagem de François Mauriac tem os seus… Haveria nela um silêncio capaz de transbordar para a sala, e da sala para a casa, da casa para o mundo? Será que aprendeu com Mauriac a gerir torvelinhos de alma e decisões tomadas na surdina ou apenas viu espelhadas nos livros essas coisas já muito sabidas das famílias? Ilhas de segredos, olhos de lobo, olhos das fechaduras, tecidos de intrigas. Passo por essas páginas herdadas de uma muito discreta biblioteca (agora assimilada por outra) como se penetrasse o tempo mais velado da vida da avó e espreitasse seu prazer pelas perdições mentais, corrupções e redenções invisíveis. Não há nada que se revele a partir dessa leitura e, no entanto, sim: está tudo ali.
Mariana Ianelli

domingo, setembro 22

Todos leem

Vincent Mahé

Os sábios

Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.

Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.
Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.

Gonçalo M. Tavares, "O senhor Brecht"

Por isso é lido


Palavras más

Conheci o escritor nigeriano Uzodinma Iweala em outubro de 2012, no festival literário de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Gosto tanto do primeiro romance dele, “Feras de lugar nenhum”, que escrevi o prefácio para a edição brasileira. Mais tarde, escrevi um outro para a edição portuguesa. Passeamos e conversamos muito durante aqueles dias felizes em Cachoeira . Uma tarde, depois que se criou entre nós certa cumplicidade, Uzodinma quis saber se me incomodava ser tratado por mulato. Nunca me reconheci em classificações raciais. Na verdade, nem sequer me reconheço no meu nome, que me soa tão alheio agora quanto me soava quando era criança. Acho tão estranho ser apresentado como branco, quanto como mulato ou indiano — o que também acontece. Nenhuma raça me define. Não sou uma raça.

Respondi que aquela palavra tanto pode magoar quanto celebrar ou acarinhar. O que magoa é o sentimento que nela coloca quem a utiliza. Os etimologistas divergem quanto à origem do termo mulato. Uma corrente acredita que a mesma vem de “mula”, com forte carga pejorativa. Outros defendem uma tese infinitamente mais interessante: mulato viria de uma antiga palavra árabe, mowallad , usada durante os oito séculos de domínio africano da península ibérica, para nomear os filhos de muçulmanos com cristãos. Não havendo consenso entre os especialistas, cada um é livre de escolher a tese que lhe parecer mais sensata, ou mais bonita. Eu prefiro a última.

Em qualquer caso, é certo que a palavra está profundamente entranhada na cultura popular do mundo lusófono, do Brasil a Angola, passando por Cabo Verde. Poucas pessoas pensam na sua origem quando a utilizam, da mesma forma que a ninguém ocorre que a palavra “moreno” já foi um insulto para designar todos aqueles que se parecessem com mouros. Felizmente, entre nós, nem mouro é mais insulto. Na Espanha, porém, continua a ser, talvez devido ao grande número de imigrantes vindos do norte da África.

Na última vez que visitei Marrocos, o funcionário da Alfândega começou a rir quando lhe mostrei o passaporte.

— Onde você arranjou este nome e este passaporte? — perguntou-me em francês, meio a sério, meio a brincar, depois de ter tentado falar comigo em árabe. — Você é igual a nós. Você é daqui!

Quase retorqui: “Descendo de mowallads ” — mas tive receio que ele não entendesse a minha pronúncia, ou de que a palavra já nem exista mais.

Pensei nisto há poucos dias, em Berlim, enquanto escutava a psicóloga e artista portuguesa Grada Kilomba, com quem partilhei uma mesa num festival literário. Grada esteve na Flip este ano. O seu livro, “Memórias da plantação”, foi o mais vendido em Paraty durante o evento. Grada está em guerra contra a língua portuguesa, que considera moldada por um pensamento racista, colonial e machista. A palavra mulato seria apenas um exemplo deste pensamento. Gostei de a ouvir. O discurso de Grada inquieta, perturba, desarruma convicções. Uma língua é tanto o resultado de um pensamento dominante, com a soma de todos os seus preconceitos, quanto ajuda a firmá-los. Entendo isso, Grada. Concordo. Só que mulato talvez não seja o melhor exemplo.

sábado, setembro 21

Estoque


Felicidade

Outro dia, falando na vida do caboclo nordestino, eu disse aqui que ele não era infeliz. Ou não se sente infeliz, o que dá no mesmo. Mas é preciso compreender quanto varia o conceito de "felicidade" entre o homem urbano e essa variedade de brasileiro rural. Para o homem da cidade, ser feliz se traduz em "ter coisas": ter apartamento, rádio, geladeira, televisão, bicicleta, automóvel. Quanto mais engenhocas mecânicas possuir, mais feliz se presume. Para isso se escraviza, trabalha dia e noite, e se gaba de feliz. O homem daqui, seu conceito de felicidade é muito mais subjetivo: ser feliz não é ter coisas; ser feliz é ser livre, não precisar de trabalhar. E, mormente, não trabalhar obrigado. Trabalhar à vontade do corpo, quando há necessidade inadiável. Tipicamente, os três dias de jornal por semana que o morador deve à fazenda, segundo o costume, são chamados "a sujeição". E o melhor patrão do mundo não é o que paga mais, é o que não exige sujeição. E a situação de "meeiro" é ideal, não porque permita um maior desafogo econômico – o que nem sempre acontece, mas sim porque "meeiro" não é "sujeito".


A gente entra na casa de um deles: é de taipa, sem reboco, o chão de terra batida (sempre muito bem varrida, tanto a casa quanto os terreiros). Uma sala, onde dormem os homens, a camarinha do casal ou das moças, o minúsculo puxado da cozinha, o fogão de barro, armado num jirau de varas. Móveis, às vezes, uma mesa pequena, dois tamboretes. Alguns possuem um baú; porém a maioria guarda os panos do uso num caixote de querosene. No fogão, as panelas de barro, duas no máximo, a lata de coar café, a chocolateira de ferver água. Noutro caixote trepado à parede, algumas colheres, uma faca, raramente um garfo; dois pratos de folha ou de ágata, duas tigelinhas de louça. Numa forquilha, o pote de água com o caneco de folha, areado como prata. Nos esteios das paredes, uma rede para cada pessoa. E pronto, está aí toda mobília. Pode haver afluência de dinheiro; há anos em que o legume se colhe em quantidade, em que o algodão dá muito. Mas nunca ocorreria, a eles, usar da abundância para a compra de objetos domésticos – mesas, cadeiras, camas, relógio de parede. Uma dona de casa mais ambiciosa pode aspirar a uma máquina de costura. Raramente a consegue. E hoje está se generalizando o uso da máquina de moer – mas porque dispensa o trabalho do pilão, muito mais penoso.

De uma espantosa frugalidade, comem, almoço e jantar, de janeiro a dezembro, o feijão na água e sal, raramente temperado com um pedaço de jabá ou de toucinho. Farinha de mandioca, café – nada mais. E poderiam passar muito melhor; mas às mulheres não ocorre usar o milho-verde para canjica ou pamonha, nem pisar o milho seco para o cuscuz. Isso são iguarias trabalhosas, só para dia de festa, ou mesa de rico. Comem o milho assado na brasa – ainda se deem por felizes. Cabras (que eles chamam de "criação") vivem aqui à solta, sem necessidade de pastoreio nem de trato. Na seca engordam roendo casca de pau e comendo sementes do chão. Galinhas também se criam à lei da natureza. Pois raras são as famílias que melhoram a dieta com um frango, um pedaço de carne de bode. Bicho é para vender, ou como eles dizem, "negociar".

E não se culpe, por isso, apenas a pobreza. Mais a natureza do índio, que herdaram. Pobre, tão pobre quanto o caboclo é o camponês europeu, mas o hábito da poupança, geração após geração, fá-lo acumular objetos e móveis em grande quantidade, e não há dona de casa europeia, por mais pobre, que não tenha o seu pequeno tesouro de talheres, pratos, panelas de cobre, cobertores e lençóis, herdados de avós e bisavós. Elas, aqui, não guardam nada. Trastes se chamam "catrevage". O que se compra é para usar, gastar, jogar fora. Algum mais poupão que tenha o seu baú de guardados, cria logo fama de "rezina", que é o nosso sinônimo para avarento. A falta que mais envergonha um daqui é passar por "interesseiro".

Dispensam tudo que para o homem urbano é o indispensável e nem ao menos conhecem o que, para este, é o supérfluo. Têm, entretanto, o seu supérfluo, que estimam e disputam, como expressão de abastança e luxo: o vidro de perfume, a boa sanfona ou "harmônica", o dente de ouro, a dentadura postiça. Também gostam de joias, os brincos para as mulheres, os anelões para os homens, raramente um relógio de pulso. Vaqueiros, o seu luxo é no cavalo de campo, nos arreios e na roupa de couro. Nisso gastam, quando pegam em dinheiro. Também gastam em gulodices – doces de lata, guaraná, cerveja, quinado. Nunca em trastes de casa, como já disse, e jamais, oh! jamais, na casa propriamente dita. Nunca vi, em vida minha, um caboclo que se preocupasse em atijolar o chão da casa, nem que esteja na maior prosperidade. A luz é a lamparina de "gás", feita de um vidro vazio, de uma lata de conserva ou de uma velha lâmpada elétrica a que os flandeiros engenhosamente adaptam um gargalo de folha. A torcida é feita em casa, com algodão em rama.

Nessa nudez, nesse despojamento de tudo, dê-lhes Deus um inverno razoável, que sustente o legume, um pouco de água no açude e não pedem mais nada. De que é que eles gostam? Gostam de dançar, de ouvir música – pagam qualquer dinheiro por um tocador bom e obrigam o homem a tocar ininterruptamente dois, três dias seguidos. Gostam de festas de igreja, e ainda gostam mais de jogo, baralho ou dados (conhecem pouco o jogo de bicho). Namoram sobriamente e, se apreciam mulher, como é natural, pouco falam nisso. Gostam de doces de qualquer espécie, e de aluá, que é uma bebida feita com milho ou arroz fermentado e adoçada com rapadura. Adoram cachaça. Mas, acima de tudo, gostam desta terra velha, ingrata, seca, doida, pobre; e nisso estou com eles, e só por cima dela temos gosto em tirar os anos de vida, e só debaixo dela nos saberá bem o descanso, depois da morte.

sexta-feira, setembro 20

Haja sexta pra vadiar


O pastel e a crise

Quando a crise convida ao pessimismo ou ameaça descambar na depressão, está na hora de ler. Poesia ou prosa, tanto faz.

Verdadeiro sábio era o Rubem Braga. Tinha com a vida uma relação direta, sem intermediação intelectual. Houvesse o que houvesse, trazia no coração uma medida de equilíbrio que era um dom de nascença, mas era também fruto do aprendizado que só a experiência dá. No pequeno mundo do cotidiano, sabia como ninguém identificar as boas coisas da vida. E assim viveu até o último instante.

Certa vez, no auge de uma crise, crivada de discursos e de diagnósticos, o Rubem estava de olho nas frutas da estação. Madrugador, cedinho já sabia das coisas. Quando o largo horizonte nacional andava borrascoso, ele se punha a par das nuvens negras, mas não mantinha o olhar fixo no pé-direito alto da crise. Baixava o olhar ao rodapé, pois o sabor do Brasil está também no rés do chão. Num dia de greve geral, inquietações no ar, tudo fechado, o Rubem me telefonou: "Vamos ao Bar Luiz, na rua da Carioca? Vamos ver a crise de perto".

E lá fomos. O bar estava aberto e o chope, esplêndido. Começamos por um preto duplo, que a sede era forte. Depois mais um, agora louro. E outro. Claro que não faltou o salsichão com bastante mostarda. Calados, mas vorazes, cumpríamos um rito. Alguém por perto disse que a Vila Militar tinha descido com os tanques. Saímos dali e fomos a um sebo. O Rubem comprou "Xanã", do Carlos Lacerda, com dedicatória. Depois pegamos o carro e voltamos pelo aterro, onde se pode exercer o direito da livre eructação. Tinha sido um perfeito programa cultural. E sem nenhum incentivo do governo.

Vi agora na televisão que o maracujá está em baixa e me lembrei do velho Braga. Nem tudo está perdido. Fui à feira e comprei também dois suculentos abacaxis. Caem bem nesta hora de atribulação nacional. Só falta agora descobrir um bom pastel de palmito na zona norte. Se o Rubem estivesse aí, lá iríamos nós atrás da deleitosa descoberta. Depois, de cabeça erguida, enfrentaríamos a crise e até o caos.

quinta-feira, setembro 19

Filosofando


Assim começa o livro...

Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxilá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.

O velho pescador era magro e seco, e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. As manchas escuras que os raios do sol produzem sempre, nos mares tropicais, enchiam-lhe o rosto, estendendo-se ao longo dos braços, e suas mãos estavam cobertas de cicatrizes fundas, causadas pela fricção das linhas ásperas enganchadas em pesados e enormes peixes. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente.

Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.

- Santiago - disse-lhe o garoto quando desciam do banco de areia para onde o barco fora puxado -, eu gostaria de tornar a sair com você. Tenho ganho algum dinheiro.

O velho ensinara o garoto a pescar e por isso ele o adorava.

- Não - respondeu-lhe o velho. - Você está num barco de sorte. Fique com eles.

- Mas lembre-se daquela vez em que passamos mais de oitenta dias sem apanhar coisa alguma e depois pescamos dos grandes, todos os dias, durante três semanas.

- Lembro-me muito bem - tornou o velho. - E sei que no período de má sorte você não me abandonou nem duvidou de mim.

- Foi papai quem me fez mudar de barco. Ainda sou um garoto e tenho de obedecer a ele.

- Eu sei - concordou o velho. - É natural.

- Papai não tem muita fé.

- Não - tornou a concordar o velho. - Mas não temos, não é verdade?

- Sim - afirmou o garoto. - Deixe-me oferecer a você uma cerveja na Esplanada, depois levamos estas coisas para casa. Aceita?

- Por que não? - respondeu o velho. - Entre pescadores...

Sentaram-se na Esplanada e alguns pescadores começaram a fazer troça do velho, mas ele não se zangou. Outros, os de mais idade, olharam para ele e sentiram-se tristes. Mas não o demonstraram e continuaram conversando, sem lhe dar importância, sobre as correntes e as profundidades a que tinham descido as suas linhas, sobre o bom tempo e as coisas que tinham visto ou feito durante o dia. Os pescadores que nesse dia haviam sido bem-sucedidos tinham chegado e limpado os espadartes, levando-os estendidos ao comprido sobre duas tábuas - dois homens sustentavam a ponta de cada tábua - para o armazém de peixes, onde ficavam à espera de que o transporte frigorífico os levasse para o mercado em Havana.

Aqueles que tinham apanhado tubarões carregavam-nos para a fábrica do outro lado da baía, onde eram içados e limpos, os fígados extraí, as barbatanas cortadas, as peles raspadas e a carne cortada em tiras para salgar.

Quando o vento soprava do nascente, a baía era invadida pelo cheiro que vinha da fábrica; hoje, porém, mal se notava o cheiro, pois o vento soprara para o norte e depois amainara rapidamente. Por esse motivo, a Esplanada estava muito agradável e batida de sol.

quarta-feira, setembro 18

Dê colorido à vida

 Anna Florsdefum - Anna Valpuesta

O caso do mendigo

Os jornais anunciaram, entre indignados e jocosos, que um mendigo, preso pela polícia, possuía em seu poder valores que montavam à respeitável quantia de seis contos e pouco.

Ouvi mesmo comentários cheios de raiva a tal respeito. O meu amigo X, que é o homem mais esmoler desta terra, declarou-me mesmo que não dará mais esmolas. E não foi só ele a indignar-se. Em casa de família de minhas relações, a dona da casa, senhora compassiva e boa, levou a tal ponto a sua indignação, que propunha se confiscasse o dinheiro ao cego que o ajuntou.

Não sei bem o que fez a polícia com o cego. Creio que fez o que o Código e as leis mandam; e, como sei pouco das leis e dos códigos, não, estou certo se ela praticou o alvitre lembrado pela dona da casa de que já falei.

O negócio fez-me pensar e, por pensar, é que cheguei a conclusões diametralmente opostas à opinião geral.

O mendigo não merece censuras, não deve ser perseguido, porque tem todas as justificativas a seu favor. Não há razão para indignação, nem tampouco para perseguição legal ao pobre homem.

Tem ele, em face dos costumes, direito ou não a esmolar? Vejam bem que eu não falo de leis; falo dos costumes. Não há quem não diga: sim. Embora a esmola tenha inimigos, e dos mais conspícuos, entre os quais, creio, está M. Bergeret, ela ainda continua a ser o único meio de manifestação da nossa bondade em face da miséria dos outros. Os séculos a consagraram; e, penso, dada a nossa defeituosa organização social, ela tem grandes justificativas. Mas não é bem disso que eu quero falar. A minha questão é que, em face dos costumes, o homem tinha direito de esmolar. Isto está fora de dúvida.

Naturalmente ele já o fazia há muito tempo, e aquela respeitável quantia de seis contos talvez represente economias de dez ou vinte anos.

Há, pois, ainda esta condição a entender: o tempo em que aquele dinheiro foi junto. Se foi assim num prazo longo, suponhamos dez anos, a coisa é assim de assustar? Não é. Vamos adiante.
Quem seria esse cego antes de ser mendigo? Certamente um operário, um homem humilde, vivendo de pequenos vencimentos, tendo às vezes falta de trabalho; portanto, pelos seus hábitos anteriores de vida e mesmo pelos meios de que se servia para ganhá-la, estava habituado a economizar. É fácil de ver por quê. Os operários nem sempre têm serviço constante. A não ser os de grandes fábricas do Estado ou de particulares, os outros contam que, mais dias, menos dias, estarão sem trabalhar, portanto sem dinheiro; daí lhes vem a necessidade de economizar, para atender a essas épocas de crise.

Devia ser assim o tal cego, antes de o ser. Cegando, foi esmolar. No primeiro dia, com a falta de prática, o rendimento não foi grande; mas foi o suficiente para pagar um caldo no primeiro frege que encontrou, e uma esteira na mais sórdida das hospedarias da rua da Misericórdia. Esse primeiro dia teve outros iguais e seguidos; e o homem se habituou a comer com duzentos réis e a dormir com quatrocentos; temos, pois, o orçamento do mendigo feito: seiscentos réis (casa e comida) e, talvez, cem réis de café; são, portanto, setecentos réis por dia.

Roupa, certamente, não comprava: davam-lha. É bem de crer que assim fosse, porque bem sabemos de que maneira pródiga nós nos desfazemos dos velhos ternos.

Está, portanto, o mendigo fixado na despesa de setecentos réis por dia. Nem mais, nem menos; é o que ele gastava. Certamente não fumava e muito menos bebia, porque as exigências do ofício haviam de afastá-lo da "caninha". Quem dá esmola a um pobre cheirando a cachaça? Ninguém.

Habituado a esse orçamento, o homenzinho foi se aperfeiçoando no ofício. Aprendeu a pedir mais dramaticamente, a aflautar melhor a voz; arranjou um cachorrinho, e o seu sucesso na profissão veio.

Já de há muito que ganhava mais do que precisava. Os níqueis caíam, e o que ele havia de fazer deles? Dar aos outros? Se ele era pobre, como podia fazer? Pôr fora? Não; dinheiro não se põe fora. Não pedir mais? Aí interveio uma outra consideração.

Estando habituado à previdência e à economia, o mendigo pensou lá consigo: há dias que vem muito; há dias que vem pouco, sendo assim, vou pedindo sempre, porque, pelos dias de muito, tiro os dias de nada. Guardou. Mas a quantia aumentava. No começo eram só vinte mil-réis; mas, em seguida foram quarenta, cinqüenta, cem. E isso em notas, frágeis papéis, capazes de se deteriorarem, de perderem o valor ao sabor de uma ordem administrativa, de que talvez não tivesse notícia, pois, era cego e não lia, portanto. Que fazer, em tal emergência, daquelas notas? Trocar em ouro? Pesava, e o tilintar especial dos soberanos, talvez atraísse malfeitores, ladrões. Só havia um caminho: trancafiar o dinheiro no banco. Foi, o que ele fez. Estão aí um cego de juízo e um mendigo rico.

Feito o primeiro depósito, seguiram-se a este outros; e, aos poucos, como hábito é segunda natureza, ele foi encarando a mendicidade não mais como um humilhante imposto voluntário, taxado pelos miseráveis aos ricos e remediados; mas como uma profissão lucrativa, lícita e nada vergonhosa.

Continuou com o seu cãozinho, com a sua voz aflautada, com o seu ar dorido a pedir pelas avenidas, pelas ruas comerciais, pelas casas de famílias, um níquel para um pobre cego. Já não era mais pobre; o hábito e os preceitos da profissão não lhe permitiam que pedisse uma esmola para um cego rico.

O processo por que ele chegou a ajuntar a modesta fortuna de que falam os jornais, é tão natural, é tão simples, que, julgo eu, não há razão alguma para essa indignação das almas generosas.

Se ainda continuasse a ser operário, nós ficaríamos indignados se ele tivesse juntado o mesmo pecúlio? Não. Por que então ficamos agora?

É porque ele é mendigo, dirão. Mas é um engano. Ninguém mais que um mendigo tem necessidade de previdência. A esmola não é certa; está na dependência da generosidade dos homens, do seu estado moral psicológico. Há uns que só dão esmolas quando estão tristes, há outros que só dão quando estão alegres e assim por diante. Ora, quem tem de obter meios de renda de fonte tão incerta, deve ou não ser previdente e econômico?

Não julguem que faço apologia da mendicidade. Não só não faço como não a detrato.

Há ocasiões na vida que a gente pouco tem a escolher; às vezes mesmo nada tem a escolher, pois há um único caminho. É o caso do cego. Que é que ele havia de fazer? Guardar. Mendigar. E, desde que da sua mendicidade veio-lhe mais do que ele precisava, que devia o homem fazer? Positivamente, ele procedeu bem, perfeitamente de acordo com os preceitos sociais, com as regras da moralidade mais comezinha e atendeu às sentenças do Bom homem Ricardo, do falecido Benjamin Franklin.

As pessoas que se indignaram com o estado próspero da fortuna do cego, penso que não refletiram bem, mas, se o fizerem, hão de ver que o homem merecia figurar no Poder da vontade, do conhecidíssimo Smiles.

De resto, ele era espanhol, estrangeiro, e tinha por dever voltar rico. Um acidente qualquer tirou-lhe a vista, mas lhe ficou a obrigação de enriquecer. Era o que estava fazendo, quando a polícia foi perturbá-lo. Sinto muito; e são meus desejos que ele seja absolvido do delito que cometeu, volte à sua gloriosa Espanha, compre uma casa de campo, que tenha um pomar com oliveiras e a vinha generosa; e, se algum dia, no esmaecer do dia, a saudade lhe vier deste Rio de Janeiro, deste Brasil imenso e feio, agarre em uma moeda de cobre nacional e leia o ensinamento que o governo da República dá... aos outros, através dos seus vinténs: “A economia é a base da prosperidade".
Lima Barreto

terça-feira, setembro 17

O leitor

\Pablo Gallo

Assim começa o livro ...

Áustria, janeiro de 1945

Fritz Kleinmann chacoalhava com o trem, tremendo convulsivamente ao vento em temperatura abaixo de zero, que rugia entre as paredes do vagão de carga sem cobertura. Seu pai cochilava, exausto, encolhido a seu lado. Em torno viam-se silhuetas indistintas, o luar destacando as listras claras do uniforme e a ossatura do rosto deles. Para Fritz, chegara o momento de tentar fugir; em
breve, seria tarde demais.

Oito dias tinham se passado desde a partida de Auschwitz. Haviam caminhado os primeiros sessenta quilômetros, a ss conduzindo milhares de prisioneiros para o oeste pela neve, fugindo do avanço do Exército Vermelho. Tiros esporádicos eram ouvidos na rabeira da coluna, quando os que não conseguiam acompanhar a marcha eram executados. Ninguém olhava para trás.

Embarcaram nos trens com destino a outros campos no interior do Reich. Fritz e seu pai permaneciam juntos, como sempre haviam feito. Seu destino era Mauthausen, na Áustria, onde a ss se incumbia de extrair até a última gota de suor dos prisioneiros antes de exterminá-los. Cento e quarenta homens espremidos em cada vagão. No começo, precisaram ficar de pé, mas com o
passar dos dias o frio matou alguns e pouco a pouco conseguiram sentar. Os cadáveres ficavam empilhados em um canto e suas roupas eram tiradas para aquecer os vivos.

Podiam muito bem estar às portas da morte, mas aqueles prisioneiros eram os sortudos, os trabalhadores úteis — a maioria de seus irmãos, cônjuges, pais e filhos haviam sido assassinados ou realizavam marchas forçadas, morrendo como moscas.

Quando o pesadelo começou, sete anos antes, Fritz era só um menino. Sua passagem à vida adulta se deu nos campos nazistas — aprendendo, amadurecendo, resistindo às pressões para renunciar à esperança. Antevendo a chegada daquele dia, havia se preparado. Sob o uniforme do campo, ele e seu pai vestiam roupas civis, que Fritz conseguira com amigos na resistência de Auschwitz.

O trem fizera uma parada em Viena, cidade que outrora fora seu lar, depois rumara para o oeste e agora se via a apenas quinze quilômetros de seu destino.
Estavam de volta à terra natal, e quando conseguissem escapar poderiam se passar por trabalhadores locais.

Fritz viera postergando o momento, preocupado com o pai. Aos 53 anos, Gustav estava exausto — era um milagre ter sobrevivido até então. Na hora que mais necessitava, faltavam-lhe forças para tentar a fuga. Estava exaurido. Mas não podia negar ao filho a chance de sobreviver. Após tantos anos com um ajudando ao outro, a dor da separação seria lancinante, mas Gustav insistiu que o filho deveria escapar. Fritz implorou que fosse junto, mas de nada adiantou. “Deus proteja você”, disse o pai. “Não posso ir, estou muito fraco.”

Se Fritz não tentasse logo, seria tarde demais. Ele ficou de pé e tirou o odiado uniforme. Então abraçou o pai, deu-lhe um beijo e, com sua ajuda, escalou a parede escorregadia do vagão.

O vento cortante de trinta graus negativos o golpeou com força. Fritz perscrutou ansiosamente na direção dos vagões de frenagem adjacentes, com os guardas armados da ss em suas cabines. A lua minguante, que apenas dois dias antes estava cheia, brilhava com força no céu, lançando um clarão espectral por toda a paisagem nevada, contra a qual qualquer forma em movimento seria nitidamente visível. O trem ia na velocidade máxima. Reunindo coragem e torcendo pelo melhor, Fritz mergulhou na noite, sob o rugido do ar gelado.