sábado, agosto 29

Leitura coletiva

 

Jacques e Lise

Esse tempo de mim

O Rio

A cidade toda sabia que o rio era uma dádiva. Tão ser, tão pedra, tão água. À margem o efêmero ante o eterno que passava. Pelas mãos do areeiro a argamassa das casas era feita de fibra específica: calo, suor e areia.

Boi São Bernardo

Foi vendido velho para cumprir seu destino de boi: pasta em conserva de lata. Mas nunca ficou longe de mim. Com seu mugido ausente ecoando no verde.

King

Acompanhou-me nas incríveis aventuras. Tinha o melhor salto, o melhor olfato, o melhor agrado. Tempos depois se tornou uivo em hino. Até hoje patas no meu peito me festejam.

O Aguadeiro

Quando chegava o aguadeiro, o pessoal lá de casa não sabia o que era melhor. Se a água fresca e boa que o jumento trazia nos pequenos barris ou a limpidez de sua voz, amiga, anunciando a manhã cristalina.

Ricardo Cejudo Nogales
O Trem

Não ficou fogo morto, nem sucata quando o trem deu o último apito. Permaneceu aquele percurso de vagões em trilhos festivos. Bandeirolas nas janelas interligando estações coloridas. Vales e morros, matas e roças, criaturas simples nos vilarejos e cidades pequenas repletas de surpresas generosas.

A Idade Pequena

Embora eu brincasse por todos os cantos da cidade, de maneira afoita e intensa, sujas não passavam minhas roupas pelas mãos da lavadeira. No sol das manhãs claras certamente havia um fragor de espumas. Certamente as horas com música sem a impressão das impurezas.

O Leiteiro

Ensinava o preto velho a leitura do leite. Do seu amor, sua paz; sua generosidade, sua alegria; de sua justiça, sua sabedoria; de seus sabores brancos e líquidos nunca me esqueço. De seu canto geral para matar todas as sedes no bebedouro da vida. Das manhãs sem mácula na cidade fresca.

O Areeiro

Quando homem passava com os jumentos carregados de latas de areia, cochichavam as casas que a areia sem a pá não seria dádiva e a pá sem a areia não seria inventiva. E tomavam contritas a sua bênção ao velho rio, ajoelhando suas fachadas.

Doceira

Velhas doceiras de minha cidade, cativando com açúcar. Minha mãe era uma delas. Em suas mãos de mel, até certo ponto divinas, lambuzando-me com sorrisos, as amargas nunca.

O Sábio

Um dia, o homem mais velho da cidade, beirando cem anos, disse-me: “Sábio é o que descobre a importância da vida nos seres e coisas comuns”. No rosto enrugado pelo tempo, com a voz serena, disse mais: “A inveja, o ódio, a mentira e a intriga são as bebidas preferidas dos que bebem os dias como cães. Roubam a beleza da vida. Buscam matar Deus”.

O Campeador

De verde gibão, cruz no chapéu, nas manhãs acesas pelo sol do verão, montado no meu burrico sempre vencia a solidão.

A Mãe

Sempre dizia, primeiro a obrigação, depois a diversão. Em tua partida, não regresso, não ouvi mais aquela voz suave, que me abrigava da chuva cortada por relâmpagos e trovoadas. Até hoje continuei apalpando-me nessa viagem pelo chão de forasteiro.

A Chuva

A chuva agora, em meu tempo adulto, quando escorre nas telhas já não conta uma boa história, não me traz o sono com o sonho temperado de verdes e azuis, tomado emprestado à aventura da vida pelos campos de vento e flor.

Viver

É estar no que eu fui, no que sou e no que serei. É perder o presente em cada instante. Enquanto o tempo repete-se, não muda. Mudo eu, muda você, para isso fomos feitos, passamos, como esse vento que aqui apareceu e sumiu num instante. É isso mesmo, vê nascer, vê morrer, nada se pode fazer. Ai de mim. E Deus? Deus é.

O Velho Rio

E dizer que este rio, antes de ser um esgoto a céu aberto, ofereceu água de beber das suas fontes límpidas à cidade quando não tinha um sistema de abastecimento como hoje. Havia peixe em abundância. Gente simples que coloria o visual com cantigas de amor no esforço dos dias. A lavadeira, o tirador de areia, o pescador, o aguadeiro. Os meninos faziam dos barrancos trampolins improvisados. Por que desceram todos eles na canoa rumo ao mar de Ilhéus e nunca mais retornaram? Cachoeira o teu nome, do rio morto de sede, que chora água.

Amada

Bastou encontrar-te para tornar-me campeador no campo dos dilemas. Sem temer os que não querem aceitar um homem desse feito, inventor de ingenuidades. Que nada ambiciona, um pobre homem, do mundo só deseja o belo.
Cyro de Mattos

sexta-feira, agosto 28

Leitura em velocidade

 


Boccaccio e seu 'Decameron'

Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade de Florença, nobre, entre as mais famosas da Itália foi vítima da mortal epidemia. Fosse a peste obra de influências astrais ou a consequência das nossas iniquidades e que Deus , na sua cólera, a tivesse precipitado sobre os homens, como punição dos seus crimes , a verdade é que ela se havia declarado alguns anos antes nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vidas humanas. Depois prosseguindo a sua marcha sem se deter , propagou-se , para nosso mal, na direção do Ocidente. Todas as medidas sanitárias foram sem efeito. Por mais que os guardas especialmente encarregados disso limpassem a cidade dos montes de imundície, por mais que se proibisse a entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por mais que se recorresse às súplicas e às orações que se usam nas procissões e àquelas, de outro gênero de que os fiéis se desobrigam para com deus, nada deu resultado . Logo nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.

(...)A intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem , no seu contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o desastre foi não só o facto de a prática com os doentes comunicar o mal e dar a morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas ou o que quer que fosse que os pestíferos tivessem tocado ou manejado , pois através de tais objetos logo a peste se transmitia a quem deles se servisse.

Edward Hopper

(...) Esses acidentes e muitos outros do mesmo gênero, senão piores, fizeram nascer, naqueles que continuavam vivos , pânicos e obsessões de diferentes espécies, que em geral conduziam à mesma atitude cruel: fugia-se ao doente e a tudo o que o cercava. No pensamento íntimo de cada um, era este o meio de se conseguir a própria salvação. Alguns pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas, onde não havia doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas delicadas e vinhos requintados, fugindo a todo e qualquer deboche , não deixando ninguém falar-lhes, recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou doenças , passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres castos. Gente havia, porém, que se conduzia de modo bem diverso. Achavam esses que entregarem-se por completo às bebidas e à licenciosidade , andarem galhofando pela cidade, de canções nos lábios , satisfazerem as paixões na medida do possível , rindo e troçando dos mais tristes acontecimentos , era o mais seguro remédio contra um mar tão atroz.

(...)Ao lado dos indivíduos que praticavam os dois tipos de vida a que me referi, muitos havia que adotavam um meio termo. Menos preocupados do que os primeiros em se restringirem a comer pouco , nem por isso se abandonavam aos excessos de bebida e ao deboche dos segundos. Utilizavam tudo com conta , peso e medida e segundo as suas necessidades. Em vez de se fecharem dentro de casa, circulavam pelos arredores , tendo nas mãos umas vezes flores , outras ervas aromáticas, outras várias especiarias. Levavam-nas por vezes às narinas e consideravam excelente preservar o cérebro aspirando perfumes , porque a atmosfera parecia corrompida e envenenada pelo cheiro horrível dos cadáveres , dos doentes e dos medicamentos. 

(...) Quaisquer que fossem os princípios seguidos , muitos eram atingidos , e em qualquer parte. Eles próprios , antes de caírem doentes , tinham dado o exemplo aos que continuavam sãos. Estavam pois abandonados e definhavam por todo o lado . Devo acrescentar que os cidadãos fugiam uns dos outros e que ninguém se preocupava com os vizinhos? As visitas entre parentes, quando aconteciam , eram raras e feitas de longe. O desastre pusera tanto terror no coração dos homens e das mulheres que o irmão abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã o irmão, muitas vezes mesmo a mulher e o marido. E até - o que é ainda mais forte e quase inacreditável - os pais e as mães evitavam ir ver e auxiliar os filhos , como se já não lhes pertencessem.

(...) Era uso - uso este que ainda persiste em nossos dias - que as senhoras , primas ou vizinhas de um morto, se reunissem em casa dele , a fim de juntar as suas lágrimas às dos parentes mais próximos. 

(...)Os padres apareciam também, conforme a categoria social que o defunto tivera. Depois , as pessoas da mesma condição , carregavam o homem aos ombros e transportavam-no para a igreja que ele escolhera antes de morrer. Mas quando a epidemia começou a manifestar a sua violência, tais práticas cessaram totalmente ou em grande parte. Em seu lugar, estabeleceram-se outras. Muitas pessoas morriam sem ter à sua volta numerosa assistência feminina. Muitas morriam mesmo sem testemunha. 

(...) Pegavam no caixão e transportavam -no rapidamente, não à igreja, que o defunto designara antes da morte, mas geralmente à que ficava mais perto. Quatro ou seis padres seguiam à frente , brandindo um magro luminar , que às vezes faltava por completo. Com o auxílio dos gatos-pingados , e sem dar ao trabalho de um ofício demasiado longo ou solene, punham o mais depressa possível o caixão na primeira sepultura vazia que encontravam.

(...)A crueldade do céu e talvez a dos homens , foi tão rigorosa, a epidemia grassou de Março a Julho com tanta violência , uma multidão de doentes foi tão mal socorrida , ou mesmo, em consequência do medo que inspirava às pessoas saudáveis , abandonada numa indigência tal , que se calcula com segurança em mais de cem mil o número de homens que perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença. 
Giovanni Boccaccio, " Decameron"

quinta-feira, agosto 27

Leitor em viagem

 


Quem era o homem feio dos sonhos

Ela já estava chegando aos 31 anos e, desde o início da adolescência, quase todas as noites sonhava com um homem feio. Nunca era o mesmo homem, mas era sempre um homem feio, muito feio, alguém que ela havia visto naquele dia em algum lugar. Nos sonhos, o homem nunca falava. Olhava para ela, aproximava-se, cada passo durando uma eternidade, e quando chegava perto, muito perto, parava e ficava mais uma eternidade olhando para ela, só olhando. Quando esses sonhos se desfaziam, ela permanecia de olhos abertos, fitando o escuro, mas sem medo. Era sempre uma decepção o desfecho. Preferiria que o homem a atacasse, a xingasse, a aterrorizasse. O que não aguentava era aquele silêncio, aquela omissão, aquela indiferença pior do que um insulto. O que ele queria, afinal, com ela? Por que aparecia assim nas suas noites, nas suas madrugadas e até, às vezes, quando o sol e os primeiros ruídos da manhã já se elevavam?

Jacques Chapiro


O sonho era sempre aquele: um homem muito feio, que andava na sua direção e parava de repente, como se descobrisse que tinha se enganado. Os amigos, ao interpretar o sonho, resvalavam para a comédia e até para a galhofa. Um viu no homem o Diabo, outro adivinhou nele um príncipe que se revelaria em toda sua formosura se fosse beijado ou tocado com carinho. Mas, quando ela estava com 15 anos, uma amiga sugeriu que o visitante noturno poderia ser a Morte. Por muito tempo, talvez pelo nome de vidente da amiga (Zora), ela achou lógica essa hipótese, mas agora, com quase 31 anos, não acreditava numa Morte que tivesse a pachorra de se anunciar com tanta antecedência e empenho.

Aos 21 anos, tinha ido morar com um homem tão belo que, quando saía com ele, ela sentia dores no pescoço, enjoo, comichões: era a inveja feroz das outras mulheres. Viveu com esse homem um ano e meio e não sonhou com ele uma noite sequer. Continuava a sonhar com desconhecidos: alguém que tivesse visto no escritório dele, no elevador, no restaurante onde jantavam. Sempre alguém feio – não horrendo, não assustador, mas muito feio. Não podia dizer que eram pesadelos, porque o homem dos sonhos se mantinha calado e a uma distância mais que respeitosa. Mas isso ainda a perturbava: o que, afinal, ele queria com ela?

Com 28 anos, havia morado com um homem de 21, inacreditavelmente mais belo que o anterior, e nem nos seis meses em que viveu com ele, nem depois, quando se separaram, sonhou com ele. Assim que completou 30 anos, começou a sonhar com um homem que era tão feio quanto os outros, mas tinha algo que ela, se fosse definir, diria que era charme. Isso a inquietou profundamente, e também o fato de que nunca, antes, havia sonhado mais de uma vez com o mesmo rosto. E, agora, sonhava com esse até três vezes por noite. E ele, ao contrário dos outros, falava, embora só uma palavra: o nome dela.

Num fim de tarde, voltando para casa, ao descer do metrô, ela viu o homem. Ele se aproximou, chamou-a pelo nome e a conduziu suavemente por uma dezena de ruas que ela conhecia mas que pareciam diferentes, como se ela estivesse num sonho. “Fazia muito tempo que eu queria falar com você. Vamos, minha casa é logo ali”, disse o homem. Ela foi. A casa parecia simples, mas ao entrar ela se viu numa sala descomunal. Na parede, havia uma tela muito grande, na qual o homem aparecia sorrindo ao lado de gente que ela não conhecia, e também de pessoas célebres, algumas de fama recente, outras de meio século antes, de um século, de um milênio atrás. Ela quis perguntar como aquilo era possível, mas ele já a tinha levado para a cozinha. Quando viu a faca na mão dele, soube que a amiga Zora tinha razão.
Raul Drewnick

Contra opressores...

 


A senhora do retrato

Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.

Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.



Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

E depois de um silêncio:

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.
Manuel Alegre, "O Homem do País Azul"

quarta-feira, agosto 26

À espera do dia

 


‘Viagem ao redor do meu quarto' mostra como burlar o tédio da quarentena

Desde o início da quarentena, muitos aproveitaram a reclusão forçada para experimentar novidades. Há quem tenha começado a fazer ioga, quem leu as 1.200 páginas de “Guerra e Paz”, quem aprendeu a fazer o próprio pão, quem recuperou projetos pessoais abandonados. A ideia de driblar a paralisia do confinamento não é nova, claro. E tem, em um livro curto de 1794, uma de suas referências mais famosas. Clássico incontornável do isolamento, o relato de “Viagem ao redor do meu quarto”, do conde e militar francês Xavier de Maistre, atravessou mais de dois séculos e inúmeras epidemias, e acaba de ganhar por aqui, em momento oportuno, uma nova tradução, pela Editora 34.


A obra nasceu quando seu autor foi condenado a 42 dias de detenção por ter duelado com outro oficial. No quarto em Turim, onde ficou preso, Maistre encontrou a maneira de driblar o tédio. Criou uma bem-humorada viagem pelo “encantador país da imaginação”, transformando o seu aposento em um espaço de reflexão sobre si mesmo — e sobre o mundo que o espera lá fora.

Best-seller já em seu tempo, o livro voltou com força total na pandemia. Entre março e abril, a versão digital da primeira edição francesa, disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, foi acessada 6700 vezes. Chegou a ser um dos 200 documentos (entre 6 milhões) mais procurados do site.

— O livro é um sucesso porque pega uma situação que deveria ser ruim e a transforma em algo positivo — diz o editor Samuel Titan Jr, da 34. — Influenciado pela experiência da pandemia, o leitor de 2020 espera um relato soturno, mas o que acaba vindo é leve e para cima. O que autor diz é: nada pode me prender, porque o espírito é livre. Funciona como um convite ao leitor.

“O prazer que há em viajar dentro do próprio quarto está a salvo do ciúme inquieto dos homens; ele tampouco não está ao sabor da fortuna”

“Viagem ao redor do meu quarto” desmonta com graça os clichês dos livros do gênero: em vez de sermos apresentados a cidades imponentes ou bela paisagens, nos deparamos com descrições dos móveis que cercam o autor. Maistre dá uma dimensão filosófica aos objetos mais triviais. Celebra sua poltrona (“da mais alta utilidade para todo homem meditativo”), o espelho (“proporciona ao viajante sedentário mil reflexões interessantes”) e discorre sobre os benefícios de uma boa cama (“nesse móvel delicioso que olvidamos, durante metade da vida, os dissabores da outra”). Descreve a história por trás das gravuras nas paredes e, como um bom booktuber, comenta os títulos da sua biblioteca.

E vai além. Nos 42 capítulos (um para cada dia de detenção), o narrador se entrega a reminiscências, imagina diálogos entre pensadores clássicos, lembra amizades perdidas, aprende “lições de filosofia e de humanidade” com o criado e com o seu cão, e disserta sobre pintura e música.

Maistre percorre seu quarto experimentando todas as linhas possíveis da geometria (ziguezague, diagonal, comprimento), sem seguir regra nem método. E assim avança na narração extravagante, que vai e volta no tempo, faz pausas inesperadas e provoca o leitor a sair da sua zona de conforto (“seguir no encalço das ideias, como o caçador persegue a caça, sem pensar em manter qualquer rota”, escreve).

Até pela estrutura em capítulos curtos, lembra muito “Memórias póstumas de Brás Cubas”. O que não é um acaso: Machado de Assis assumiu sua dívida com o autor francês em mais de uma ocasião.

— Há saltos com ironia fina de um assunto a outro, e acho que tudo isso, narrado com elegância e concisão, fascinou o Bruxo — observa o escritor Milton Hatoum sobre o “livrinho precioso”, que começou a reler na nova tradução. — É uma narrativa sobre uma viagem interior, que ecoa com força nesse tempo de reclusão e impasse. É também uma busca metafísica: “ensinar a alma a viajar sozinha”. Mas nesse mundo imaginário a vida enclausurada chama à realidade (do cárcere, dos “pobres da cidade, de seus gritos dignos de compaixão e da indiferença de certas pessoas à sua condição”). 

A obra pode servir quase como um manual para o momento difícil que atravessamos. O esforço para reeditá-la ainda este ano, aliás, ajudou os envolvidos a ocupar a cabeça durante a quarentena. Uma triangulação por três países se formou via trabalho remoto, com a tradutora Veresa Moraes em Rennes (França), a preparadora Rafaela Biff Cera em Montreal (Canadá) e a equipe da 34 em São Paulo. O posfácio é do autor espanhol Enrique Vila-Matas.

— O Maistre burlou o confinamento dele com o livro, nós burlamos o nosso fazendo essa nova edição — resume Titan Jr.
Bolívar Torres

terça-feira, agosto 25

O bom balanço

 

Janelas para abrir


Vi um livro no lixo e arrepiei-me pensando que há livros que nascem mortos. Pode-se viver sem ler? Quem não lê não entra no rio da história e quem lê é como o mar onde desaguam muitos rios. Comprar um livro é sempre como a primeira vez, como quem marca um encontro para receber uma confidência. Uma casa sem livros está desabitada, é uma pensão... Os livros são janelas. Hoje vou abrir uma delas

Vasco Pinto de Magalhães

Salva-vidas em novos tempos

 

Elogio da Natureza

Austen Pinkerton (Inglaterra, contemporâneo) Acrílica sobre tela, 30 x 40 cm
Austen Pinkerton

Muito aprecio passarinhos nidificando pelos beirais. Mais pelo beirais do que pelos ninhos em si. As aves parecem apreciar, como eu, o conforto de vigas sólidas de metal. Gosto das cegonhas nos postes de eletricidade. Por entre as delicadas, esguias e sábias patas do animal, a densa e rebelde cabeleira do seu seguro ninho, assente nos fios por onde escorre a nossa bendita luz. Gosto muito de aldeias velhas, antigas e pitorescas vistas da janela de um avião. Como é agradável ir a França numa hora e meia. Gosto dos pêssegos da árvore do meu jardim e da comida dos aviões. Muitos dos nossos antepassados atravessaram os Pirenéus a pé, em vastos grupos de pessoas que o nosso país ia (e ainda vai) cuspindo das suas fronteiras para fora. Quando lá chegavam, eram outro grupo, uns morriam e outros nasciam pelo caminho. Como é linda a turbopropulsão. Gosto de ver as margaridas e os trevos perfurando o alcatrão, teimando contra o fumo e contra os passos com pressa. Tal qual a flor de Drummond, teimando por entre o cimento e a náusea. Gosto de ver as sebes aparadas que dividem os lotes, sossegando, como eu, ao som das sirenes que vão zelando dia e noite, com olfato de dobermann, pelo bem-estar da nossa civilização. Muito aprecio a Lua cheia por entre os ramos do jacarandá, mais a mais sabendo que já por lá alguém andou, quase que se vê a bandeirinha da América e as pegadas das botas do nosso companheiro de espécie. Muito me aprazem pombas e pombos em cópula nas cúpulas das catedrais, alimentados a milho proveniente das mãos generosas de cidadãos seniores. Regozijo por sob as camisas, cuecas e fardas bailando nos estendais ao som do coro das buzinas e dos pregões, felinos dobrando a esquina com ar de desprezo, ratos aos restos nas lixeiras, pactos e fatos nas cimeiras, apertos de mão, baratas nas traseiras, gravatas e bravatas nas gargantas, cada qual executando com firmeza e humildade a sua missão, neste emaranhado novelo que chamamos “civilização”, onde das duas uma: ou nada é milagre, ou tudo, absolutamente tudo, é um inequívoco, insofismável, inexorável, insondável e perfeito milagre da criação.

segunda-feira, agosto 24

Deixando-se levar

 

Educação a distância

"O filho do livreiro", Chad Gowey

Nenhum outro menino em seu círculo de conhecidos tinha lido o que ele tinha lido e, como tia Mildred escolhia os livros cuidadosamente para ele, assim como havia escolhido para a irmã, em seu período de confinamento, treze anos antes, Ferguson lia os livros que ela mandava com uma avidez que parecia fome física, pois sua tia compreendia quais livros iam dos seis para os oito anos de idade, dos oito para os dez, dos dez para os doze — e daí até o fim do ensino médio. Contos de fadas, para começar os Irmãos Grimm e os livros muito coloridos compilados pelo escocês Lang, depois os fantásticos e assombrosos romances de Lewis Carroll, George MacDonald e Edithh Nesbit, seguidos pelas versões de mitos gregos e romanos escritas por Bulfinch, uma adaptação infantil de Odisseia, A teia de Charlotte, uma adaptação de As mil e uma noites, remontadas com o título de As sete viagens de Simbad, o Marujo, e mais adiante, uma seleção de seiscentas páginas de As mil e uma noites originais, e no ano seguinte O médico e o monstro, contos de horror e mistério de Poe, O príncipe e o mendigo, Raptado, Um conto de Natal, Tom Sawyer e Um estudo em vermelho, e a reação de Ferguson foi tão forte ao livro de Conan Doyle que o presente que ele ganhou da tia Mildred em seu décimo primeiro aniversário foi uma edição imensamente gorda, abundantemente ilustrada, de Histórias Completas de Sherlock Holmes.
Paul Auster, "4321"

O dono da chave

 

Nem um livro a menos

Nunca me esqueci daquele dia. Era novembro de 2013, e em Vigário Geral acontecia a semana de encerramento da Flup (Festa Literária das Periferias). De quarta a domingo, a favela esteve cheia de atividades literárias. Com distribuição de livros, peças de teatro, saraus, além das discussões teóricas na tenda principal.

Eu devia estar voltando de alguma atividade, pois cheguei com a palestra já iniciada. Uma pesquisadora traçava um panorama do mercado editorial brasileiro. Os números no telão abrangiam cerca de três décadas e eram implacáveis: entre os romances publicados, menos de 3% foram escritos por negros ou negras. Lembro de olhar em volta, me perceber cercado de pessoas negras de várias idades que, assim como eu, almejavam a carreira literária. Na hora tive certeza, só havia duas opções: ou estávamos todos nos iludindo naquele processo de formação ou o mercado editorial seria obrigado a mudar para nos receber.



Nos últimos sete anos, apesar de ainda estarmos bem distantes da justiça, muita coisa mudou. Surgiram muitas novas editoras, como a Malê, que é especializada em literatura produzida por pessoas negras e que a cada dia ganha mais espaço e público. Além disso, tivemos o fortalecimento de editoras como a Pallas e a Kapulana que já se dedicavam à literatura africana e toda a diáspora. E a mudança não parou por aí. Um número muito maior de pessoas negras passou a publicar em grandes editoras. Conceição Evaristo recebeu enfim seu merecido reconhecimento em nível nacional. A Flip teve por três anos consecutivos sua lista de mais vendidos encabeçada por pessoas negras.

Esse salto monumental está diretamente ligado a uma outra mudança: de público. Depois de décadas de luta dos movimentos negros, uma série de políticas públicas como a lei de cotas, o ensino da história afro-brasileira nas escolas, os pontos de cultura, entre outras, foram implantadas e possibilitaram essa mudança no público consumidor. A Flup é também um grande exemplo nesse sentido, mais do que “apenas” formar autores nas favelas, o projeto também sempre se preocupou em formar novos leitores.

Lembro de uma resenha que escrevi na “Folha de S. Paulo” sobre o “Efetivo variável”, segundo romance de Jessé Andarilho. Enquanto escrevia o texto, encarava como um trabalho normal. Só quando vi nossos nomes naquelas páginas de jornal, tive a dimensão do significado daquele momento. Pensei em nossos pais, crias de favelas como nós. Quais eram as chances do meu pai escrever uma resenha num jornal importante sobre um livro publicado pelo pai do Jessé na maior editora do país? Percebem o tamanho da mudança numa única geração?

Me faltam dedos nas mãos para contar os amigos próximos que tiveram suas vidas transformadas pela literatura, e que hoje são os próprios agentes da transformação. Seja por suas publicações, seja pelos projetos de leitura, bibliotecas comunitárias, sempre num exercício contínuo de abertura das perspectivas.

A proposta de uma taxa de 12% em cima dos livros com a desculpa de que se trata de um “produto da elite”, nada mais é que a resposta racista de quem sabe muito bem o impacto social provocado pelo empoderamento através da leitura, de quem morre de medo de ver o Brasil mudar.
Geovani Martins

domingo, agosto 23

Fantasma leitor

 

 Tom Gauld

O homem que não queria ser Gabriel García Márquez

Quando, aos nove anos, o professor perguntou a Eligio Gabriel García Márquez (Colômbia, 1947-2001) se gostaria de se tornar escritor como seu irmão Gabo, o menino respondeu: “Não, porque eu não gosto de contar mentiras”. Eligio foi batizado como Gabriel porque o pai dos García Márquez queria essa duplicidade em sua família, mas ao longo dos anos, até 2001, quando Eligio morreu em Bogotá, na Colômbia, esse descendente que levava também o nome do Nobel fez o possível para que o segundo nome ―e principalmente o parentesco imediato― nunca fosse revelado em público.

Eligio, que terminou contando mentiras, pois é autor de alguns romances ficcionais e foi um importante jornalista em seu país, assinava Eligio García. Assim se apresentava aos entrevistados (fez grandes entrevista literárias, como as contidas em Son Así ―Reportaje a Nueve Escritores Latinoamericanos, editora La Oveja Negra, 1982; El Áncora Editores, 2002) e, dessa maneira, passou à história do jornalismo e da literatura na língua espanhola.



Até mesmo a reportagem incluída nesse livro sobre a figura privada e pública de seu irmão ganhador do Nobel foi publicada na imprensa sem assinatura. A identidade do autor só foi revelada para a publicação desse volume que hoje pode ser lido, em muitos aspectos, como uma novidade sobre um fenômeno que ele viveu de perto, sem nenhuma estridência além da que seu trabalho podia desatar.

Seu amigo Gustavo Tatis, escritor que acompanhou sua vida e sua obra até o final ―e que escreveu um livro já célebre sobre Gabo e sua família, La Flor Amarilla del Prestidigitador (Navona 2019)―, contava da Colômbia: “Eligio lutou para ser ele mesmo. Não queria viver da fama de seu irmão mais velho. Em alguns casos, como [Mario] Vargas Llosa, com quem esteve em Caracas quando Gabo recebeu o prêmio Rómulo Gallegos, não tinha como dissimular, mas perante outros, como Guillermo Cabrera Infante e Alejo Carpentier, apresentava-se como Eligio García, e como Eligio García assinava depois essas reportagens”.

No livro ―que é hoje uma raridade sobre o boom de escritores latino-americanos visto por dentro, quando daquela explosão só resta um sobrevivente, Vargas Llosa―, Eligio narra a estranha situação criada com o autor de A Sagração da Primavera. Alejo Carpentier, que na época estava no auge da sua fama como antipático, concedeu a Eligio uma entrevista que nunca chegava a acontecer, por diferentes indisposições do gênio cubano. E assim Eligio García andou em peregrinação, sobretudo por Paris, sem que a reportagem desse certo, até que, nessa cidade, parecia que as coisas se encaixariam. Falso alarme, porque novamente aquele homem, muito mais áspero que sua literatura, lhe deu com a cara na porta, ainda que tenha querido presenteá-lo com um livro autografado. “Como você se chama?” Eligio lhe disse seu nome, e Carpentier pediu que fosse mais específico. Até que terminou por lhe dizer seus dois sobrenomes. “E por que não me disse isso antes?!” “Nunca dizia a ninguém”, conta Tatis.

Era, prossegue Tatis, “de uma simplicidade impressionante”. E acrescenta: “Ajudou escritores jovens a se sentirem próximos de Gabo, estudou Física para não se aproximar da literatura, ou talvez para se aproximar de Ernesto Sábato, que foi seu amigo [e é um dos grandes retratos do livro], e acabou escrevendo um dos livros-chaves sobre a escrita de seu irmão, Tras las Claves de Melquíades, além de La Tercera Muerte de Santiago Nasar, sobre o romance que Gabo ambientou em Sucre, o lugar de nascimento de Eligio”.

Sua paixão por fazer jornalismo “como os norte-americanos” está presente sobretudo no texto que dedica ao seu irmão em Caracas, naquela ocasião do prêmio Rómulo Galegos. Possuído por aquela aspiração de totalidade que tinham os contemporâneos de Norman Mailer e Truman Capote, e o próprio lado jornalístico de Gabriel García Márquez, Eligio terminava esse retrato com um monólogo que poderia ser entendido como uma busca psicológica pelas origens literárias do autor de Cem Anos de Solidão. “Então, aí está ele, o autor, como se não o fosse, como se fosse outro e não ele, seu dublê, sabendo pela boca de Carmen Balcells aquelas notícias, recordando possivelmente como ela essas lembranças, como o tempo passa, minha mãe, Bendición Alvarado, sabendo também pela boca do poeta Álvaro Mutis, que ontem à noite ligou para ele do México e lhe gritou vociferante ‘durma tranquilo, meu general, porque hoje é uma data histórica', essa obra sacana me deixou sem fôlego, sabendo como os leitores devoravam o livro com muitíssimo mais furiosa ansiedade do que foram devorados vivos Leticia Mercedes María Nazareno e seu minúsculo general de divisão pelos sessenta cães iguais das minhas desventuras”.

Essa reportagem de Eligio, que inclui outros textos de épocas concomitantes, tem esta nota de rodapé: “Este texto foi publicado na revista Flash, de Bogotá, em fevereiro de 1971, sem assinatura e com o título de ‘Gabriel García Márquez se afunda na solidão da glória’, e assim também foi reproduzida no Chile e na Venezuela. Esta é, portanto, a primeira vez que meu nome aparece vinculado a este texto”.

De semelhante envergadura, como estudo literário de um jornalista que faz a lição de casa antes de perguntar, é o trabalho que fez Eligio com o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante em Londres no final dos anos setenta. O autor de Três Tristes Tigres ainda estava se recuperando de um colapso nervoso, já era um exilado incomodado perigosamente pela ditadura cubana, e o jovem García foi à sua casa e conseguiu dele tal quantidade de detalhes extremamente literários que daí surge um dos mais formosos retratos de Cabrera como escritor. Naturalmente, em algum lugar aparece o boom da literatura latino-americana do qual o cubano foi escanteado.

Falando da origem do termo e também de seus integrantes, Cabrera Infante diz a Eligio: “A palavra boom aplicada à literatura e não à economia foi uma invenção argentina. Concretamente, de uma revista de Buenos Aires: daí a atribuição do seu início à publicação de O Jogo da Amarelinha [de Julio Cortázar]. Acredito que se comete uma injustiça com Vargas Llosa. Foi A Cidade e os Cães, que ganhou o prêmio Biblioteca Breve e disputou o Formentor em 1962, o romance que fez o público na Espanha e na América Latina se interessar por uma literatura de ficção escrita em espanhol. Mas nesse mesmo ano, não se deve esquecer, Jorge Luis Borges ganhou ex-aequo com Beckett o prêmio Formentor, que o transformou em uma figura literária internacional, levando a literatura escrita em espanhol mais longe que Vargas Llosa”.

O peruano, naturalmente, é tema dos retratos de Eligio. E não, a famosa briga entre Vargas Llosa e Gabo não aparece aqui. A reportagem se intitula O bom, o mau e o feio, foi publicada em 1967 depois da passagem do jovem Vargas Llosa por Bogotá e é, outra vez, um retrato veloz, mas profundo, de uma das personalidades-chaves do boom. “Trabalhador incansável, peão da literatura, como ele mesmo se qualifica, Vargas Llosa não parou quieto um só instante (…). Teve tempo para investigar todas as referências à obra de García Márquez anterior a Cem Anos de Solidão, um livro que gostaria muito de ter escrito ele mesmo, como admitiu publicamente em uma reportagem. E também reservadamente seus elogios ao colombiano foram ainda maiores e mais entusiasmados, já que segundo, Vargas Llosa, esse romance faz de García Márquez uma espécie de Amadis de Gaula das Américas, o autor de um desses romances de cavalaria que tanto agradam ao escritor peruano”.

Eligio acompanha o futuro Nobel ao cinema, onde os irmãos veem um filme de Clint Eastwood. “Ouvem-se murmúrios na sala, alguém tenta aplaudir, outro assobio. Mas um assobio mais potente o abafa: vem da tela. É a música do filme que se inicia: é Clint Eastwood, em companhia de outros dois foragidos, em busca de um punhado de dólares.” Ennio Morricone pondo silêncio na sala.

Este tesouro do novo jornalismo hispano-americano, compadre de Los Nuestros, de Luis Harss, contém outras delícias, como a conversa com Jorge Luis Borges, o retrato de Cortázar, o desenho nu de Carlos Fuentes e o relato ímpar de suas horas com Juan Carlos Onetti no apartamento que o uruguaio teve na Avenida de América, em Madri. Em nenhuma dessas avenidas pelas quais transitou Eligio García deixou rastro de que falava de uma tribo, de um nome ou de um sobrenome que tornasse sua voz mais poderosa que as de qualquer outro. Era o homem que só quis ser Eligio García, um escritor, um jornalista. O livro teria que ser ensinado nas escolas dos que querem aprender a fazer perguntas aos escritores.

Uma vez concorreu a um prêmio literário. “Se não for bom, não o premiem”, disse seu irmão. Não o premiaram. Quando descobriu o tumor que acabaria com sua vida, Gabo lhe ofereceu toda a sua ajuda. “Ele o amava”, diz o amigo Tatis, “e não queria ser ele”. Em todo caso foi, conta seu amigo, “uma ponte para ele”.
“Um bando de loucos”

Uma irmã de Gabo certa vez recriminou a recém-falecida mulher do escritor pelos entraves que ela impunha a qualquer aproximação dos irmãos do Nobel, mesmo que por telefone. Mercedes Barcha, que morreu nesta semana no México, a mulher que pôs a vida em ordem para que o autor de Cem Anos de Solidão se dedicasse apenas à literatura, lhe disse: “É que vocês são um bando de loucos”. “Mas você levou o mais louco de todos!”, replicou sua cunhada.

O diálogo foi lembrado por outro irmão do escritor que em 2008, já se sabendo que este vinha perdendo a memória, anunciou publicamente que não sairiam novos livros de Gabo. A inconfidência, como outras, pareceu imprópria a Mercedes. Conta Tatis que ela apaziguou “o temperamento dos numerosos irmãos de Gabo, que encarnavam com certas semelhanças os Aurelianos e os Buendía de Macondo, todos eles narradores orais, ingovernáveis, vulcânicos e aprazíveis, mas com matizes excepcionais, como a serena sabedoria de Aida, a amorosa obstinação religiosa de Ligia, a abnegação de Margot, a tranquilidade de Rita”. Em meio a esse universo de loucos e cordatos, “Mercedes protegia Gabo de ataques à privacidade e às inconfidências” dos próximos. Mas “sua relação com todos eles foi uma curiosa mistura de hermetismo amoroso e afetivo, sabedoria, prudência e cordialidade”.

Gabo, que não mexia com dinheiro, era administrado em tudo por La Gaba. Deu casa de presente ao irmão que não a tivesse, foi deferente com todos e sempre teve a segurança de que Mercedes administrava também “o departamento de rancores”, no qual, por outro lado, não tinha tantos afazeres.

É o amor!

Harriet Russell


 

Crónica de uma morte anunciada

Dias antes, o assassino, um homem de 75 anos, antigo combatente no Ultramar, ameaçou,

Tenho em casa uma arma, vou matar-te.


Aposto que o Candé abanou os ombros e sorriu, aquilo não podia ser a sério, se deus não o queria matar, muito menos um homem quereria. Deus já provara duas vezes que o Candé era preciso nesta vida,
A minha mãe sempre me disse que eu não era para estar aqui, que eu não pertencia a este mundo,
contava, comovido, o ator Candé a fazer de Candé no espetáculo Rifar o Meu Coração. Estivera à morte em criança, uma doença teimava em não lhe largar o corpo, e voltara a estar há dois anos, quando teve o acidente,

Vai para a tua terra, preto.

Quantas vezes outros lhe haviam dito o mesmo?, tantos, tantos outros, que os insultos tinham passado a ser uma vozeria. Não, ninguém o queria matar. Não, não ia morrer. Estava a meio da vida, talvez menos de meio, nem 40 anos fizera. Recuperava do acidente que o deixara em coma, mas ainda era ele que carregava o lado esquerdo do corpo. Há dois anos, numa noite, o Candé pedalava na sua bicicleta por uma estrada deserta quando um carro veio do nada e para o nada fugiu. Entre esses nadas, o carro embateu nele, abandonando-o no chão.

O corpo dele outra vez no chão. Desta vez durante o dia, perto da uma da tarde. Desta vez quatro furos no corpo. Quatro balas,

Onde está a Pepa?

perguntou o Candé e morreu.

A morte é a máscara da revolução, a revolução é a máscara da morte.

Conheci-o num outro espetáculo da Mónica, Noites Brancas. Eu estava sentada na plateia, ele convidou-me para dançar com ele no palco. Recusei. Nunca tinha pisado um palco e sou desajeitada, o meu corpo perdeu há muito o dom da dança.

Confia em mim,
segredou-me com firmeza e lá fui eu pela mão dele
Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s’oublier

sem saber ainda que aquela era a canção dele, o corpo do Candé, um escudo humano a proteger-me das luzes do palco e das sombras da plateia, senti-me por uma vez a bailarina da caixa-de-música que havia no quarto das minhas primas, como eu invejava a elegância da bailarina, uma mão quase a segurar o peito, e a outra presa ao braço graciosamente dobrado sobre a cabeça. Quando a canção terminou, voltei a ter consciência de mim e do meu corpo enferrujado,

E agora, como é que volto para onde estava?

O Candé terá ouvido a minha pergunta muda, pegou-me ao colo e devolveu-me ao meu lugar de espectadora com a gentileza de um gigante bom. Um gigante bom. Foi assim que passei a pensar nele.

Obrigada, Candé, eu estava com medo,
disse-lhe quando o espetáculo acabou,
Medo de quê?, não se pode ter medo de nada,
respondeu com a sua gargalhada inconfundível.
Preto, vai para a senzala, é lá o teu lugar
Onde está a Pepa?

No final de outro espetáculo, julgo que Esta Noite Improvisa-se, já na Zona J, em Chelas, fiquei à conversa com os atores. Estávamos na rua, com outros espectadores e moradores do bairro, era uma bonita noite de verão. Discretamente, um cão pulguento apareceu ali com uma perna partida e foi enroscar-se debaixo da luz do candeeiro,

Não o podem ter neste estado,
afligi-me, e logo um dos moradores,
O cão tem dono, a perna já cicatrizou,

Leva-o contigo, vou tentar descobrir porque o dono o tem maltratado,
disse o Candé, contrariando a maioria, e eu assim fiz. No dia seguinte, ele calcorreou as duas encostas do vale de Chelas até saber que o cão se chamava Piruças e pertencera a um homem do bairro da Flamenga que uns dias antes o fechara na sua carrinha. O homem, desempregado há muito, não quis que o Piruças estivesse em casa quando se enforcou. Desde então, o pobre cão deambulava pelos caminhos que costumava fazer com o seu companheiro.

Como podia o Candé adivinhar que a sua cadela Pepa também iria ficar sem ele? Logo a Pepa que tanto o ajudou no regresso à vida, à sua mulher, aos seus filhos. Saiu do coma em que o acidente de bicicleta o deixou com muitas lesões e, com a Pepa a guiá-lo, recuperou a locomoção, a fala, as memórias que se tinham apagado,

Quando os vivos não mais conseguirem lutar, os mortos lutarão.

A Pepa e as palavras do Heiner Müller,

Voltei a mim porque ainda tinha o texto d’A Missão decorado, fui repetindo-o, repetindo-o, repetindo-o na minha cabeça até que ganhou sentido outra vez,
confidenciou ele,

A morte é a máscara da revolução.

Palavras que o salvaram, palavras que ele criou. Numa tarde fui com o Luís assistir aos ensaios d’A Boa Alma que ele escreveu para a Mónica. O Candé veio ao nosso encontro e disse-lhe,

Tens razão, o amor é caro.

Citava uma frase da peça que tinha acabado de ouvir pela boca da Mónica. Já me esqueci de muito desse texto, mas o Candé, ao identificar e destacar aquela frase, guardou-ma. Mais do que o Luís que a escreveu, o Candé criou-a. Pertence-se mais a quem cuida do que a quem concebe, e foi o Candé que cuidou de
O amor é caro.

Ouvi-o dizer esta frase várias vezes. Como se quisesse torcê-la. E agora isto. O amor é caro e o ódio barato. Por isso o ódio se espalha, viral.

Violei muitas pretas em Angola, quem sabe se uma delas não era a tua mãe

Vai para a tua terra, preto de merda.

Quantas vezes outros lhe haviam dito o mesmo? Mas agora ele estava caído no chão. As balas tinham-lhe aberto o corpo e ele ia gelando,

Onde está a Pepa?

Num inverno levado da breca, em Sousel, emprestou-me o casaco dele. E, com o casaco, um abraço,

Então eu sou o africano e tu é que tens frio?

Se pudesse ser eu agora a abraçá-lo, a aquecê-lo, se pudesse prometer-lhe que será feita justiça, que isto não volta a acontecer, se ouvisse mais uma vez a sua gargalhada.

sábado, agosto 22

Dá um tempo!

 

Felicidade

O que é a felicidade?

Me pergunto enquanto as roupas secam no terraço, quase sorrindo pro vento que não somente seca, mas que cura. Vento de verão. Meu gatinho deita em cima do meu – e do seu – tapete preferido, alongando as suas patinhas o máximo possível, para um descanso merecido. Eu sento no sofá com o computador no meu colo, toca uma música boa, mas falta entender alguma coisa.

O que é a felicidade?

Para alguns, acordar e tomar café da manhã com quem se ama é ser feliz. Para outros, só ter a pessoa amada por perto, com ou sem café da manhã, já é ser feliz. Para alguns, o fim da corrida, o suor, e o corpo dizendo que está vivo. Para outros, acender um cigarro e soprar a fumaça como purpurina no mundo é sua forma de ser feliz. Para os médicos está errado, para os dependentes é necessário, para os terapeutas é relativo.


O que é ser feliz?

Para muitos, uma cerveja gelada num bar, um grupo de amigos, e um dia de férias que não importa se é terça, meio-dia ou outono. Para tímidos, o seu melhor amigo. Para introvertidos, um livro que fala sobre ser introvertido. Para o ansioso, chegar ao fim do dia sem lembrar da ansiedade. Para o calmo, tanto faz.

Para velhos, ser feliz é ver uma criança correr na rua, e contar pra ela da época em que aquela rua era de pedra. Para o doente, ouvir do médico que tem cura. Para o ator, a plateia cheia, para o escritor, felicidade é história, para o louco, um outro louco, para uma criança, a hora de brincar. Para a mãe, o filho. Para o cozinheiro, felicidade é água na boca, para o hippie, compartilhar, para o capitalista, o dinheiro, para o pobre, também.

Para uma viúva, felicidade é casa cheia, para um casal, felicidade é casa vazia. Para a cartomante, é aquilo acontecer. Para o obsessivo, é aquilo não ter acontecido. Para os cientistas, é descobrir. Para o sofrido, esquecer. Para um influenciador, likes. Para negros, igualdade. Para o medroso, uma mão, para o deprimido, um abraço, para o sonhador, uma janela, para o adolescente, a hora em que os pais vão dormir.

Para um coração machucado, felicidade é encontrar um novo alguém, para o novo alguém, felicidade é descobrir que ele é considerado o novo alguém. Para o amor, felicidade é mais de um, para o dia, felicidade é acordar, para a noite, o que cada um quiser. Para a árvore, felicidade é chuva, para a chuva, dança, para a dança, nós.

O que é a felicidade?

Felicidade, para uma mulher, é ter liberdade. Para uma amiga, é ser lembrada, para um romântico, felicidade é fechar os olhos, para os bichos, a natureza, para a natureza, respeito. Para a saudade, ser feliz é receber uma visita, para dias difíceis, felicidade é ganhar uma surpresa, para o tempo, felicidade é paciência, para a distância, tecnologia, para uma pandemia, a vacina.

E o vento que está feliz de secar as roupas, o tapete de acolher o gatinho, o computador de estar sendo usado, a música de estar sendo ouvida. E eu, que talvez esteja exatamente onde deveria estar.
Drica Muscat

sexta-feira, agosto 21

Leitura noturna

 

Violetno

O gesso

Um dia talvez eu mande passar para o bronze; mas me afeiçoei a essa cabeça de gesso encardido que é a única lembrança material que tenho daquela que partiu.

Seus olhos brancos parecem fitar um mundo estranho, contemplar alguma coisa além das coisas deste mundo. O ar é severo, quase triste. Mas sei como fazer vibrar essa imobilidade; minha arma é a luz. É com a luz que devagar e ternamente vou passeando os olhos pela face, a testa, a orelha delicada, os cabelos presos atrás por um laço. Então é como se os músculos ainda vivessem e os cabelos ainda tivessem o brilho macio, os lábios ainda pudessem se comprimir levemente, como se ela tivesse alguma palavra a dizer e não quisesse dizê-la.

O escultor não se deixou encantar pela sua beleza; trabalhou com dura honestidade, com lenta obstinação, menos preocupado em fazer uma obra de arte em si mesma que em retratar a mulher.


Quantas vezes vi esses olhos se rindo em plena luz ou brilhando suavemente na penumbra, olhando os meus. Agora olham por cima de mim ou através de mim, brancos, regressados com ela é sua substância de deusa.

Agora ninguém mais a poderá ferir; e todos nós, desta cidade, que a conhecemos um dia; e, mais que todos, aquele que mais obstinada, mais angustiosamente soube amá-la, aquele que hoje a contempla assim, prisioneira do imóvel gesso, mas libertada de toda a dor e toda a paixão tumultuária da vida ― todos nós morremos um pouco na sua ausência.

Muitas vezes encontro sua lembrança em alguma esquina da cidade; subitamente me sinto viver uma tarde antiga, como se a vida tivesse voltado um instante ― ouço aquela voz dizer o meu nome, o bater de seus saltos na calçada, ao meu lado. Mas são lembranças vivas, carregadas de prazer e de angústia. Doem-me. Paro um momento na rua, como se fosse para deixar a tarde antiga passar pelos meus ombros, levada pela brisa; paro um momento e regresso ao dia de hoje, com todos os jogos do destino já idos e jogados.

Mas é noite, quando volto para casa, a cabeça de gesso me espera ― imemorial, neutra, severa, apenas quase triste. E minha ternura é toda sossego e pureza.

Leitura te dá asas

 

Centenário de Ray Bradbury é comemorado com edição de luxo de 'Fahrenheit 451', inéditos e maratona de leitura

Quando Ray Bradbury, autor de “Fahrenheit 451” nasceu, em 22 de agosto de 1920, na cidadezinha de Waukegan, no Meio-Oeste americano, a pandemia de Gripe Espanhola, que matou mais de 50 milhões de pessoas, se aproximava do fim. Bradbury cresceu numa família enlutada. Em 1918, o vírus levara seu irmão Sam, gêmeo de Leonard Jr., e seu tio Samuel. Sua mãe, Esther, quase morrera de Influenza (gripe comum).

Em “Becoming Ray Bradbury” (“Tornando-se Ray Bradbury”), o biógrafo americano Jonathan Eller, professor da Escola de Artes Liberais da Universidade Indiana, escreve que a família Bradbury desejava, silenciosa e talvez inconscientemente, que o pequeno Ray ocupasse o lugar o irmão morto. Segundo Eller, se estivesse vivo hoje, Bradbury “compreenderia os sacrifícios que devemos fazer para salvar vidas” durante a pandemia de Covid-19 e ficaria contente ao observar que as bibliotecas, sua grande paixão, foram capazes de reinventar em tempos de isolamento social.

– Bradbury quis preservar as bibliotecas como instituições livres e abertas que nos apresentam a preciosidade da palavra escrita em um mundo onde somos constantemente distraídos por maravilhas tecnológicas – diz Eller, que assina um texto introdutório à edição de luxo de “Fahrenheit 451” que a Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, envia às livrarias no mês que vem.


Bradbury revolucionou a ficção científica ao publicar livros como “Fahrenheit 451” e “Crônicas marcianas”, uma reunião de narrativas curtas sobre a colonização do planeta vermelho. Sempre desconfiado da tecnologia, ele só autorizou a publicação de “Fahrenheit 451” em e-book aos 91 anos, poucos meses antes de sua morte, em junho de 2012.

O romance apresenta uma sociedade distópica onde, distraídos pelas telas, ninguém mais lê e os bombeiros, em vez de apagar incêndios, queimam livros. O título indica a temperatura em que o papel entra em combustão: 451 graus Fahrenheit (ou 233 graus Celsius). Em 1966, o cineasta francês François Truffaut (1932-1984) adaptou o romance para o cinema. Bradbury gostou do filme, mas continuou antipático às telas. Dizia que os leitores eletrônicos cheiravam a “combustível queimado” e que a internet era “uma grande distração”.

No entanto, é graças a essa “grande distração” que os leitores de Bradbury podem celebrar o centenário do autor em tempos de pandemia e bibliotecas fechadas. Neste sábado, a partir das 17h30 (horário de Brasília), ocorre uma leitura coletiva de “Fahrenheit 451” no site http://raybradburyreadathon.com/. Participam 40 leitores: a maioria deles são estudantes e bibliotecários, mas alguns famosos também confirmaram presença, como ator William Shatner e o escritor Neil Gaiman, que também assina um texto incluído na nova edição de “Fahrenheit 451”. A maratona de leitura deve durar cinco horas e continuará disponível na rede por duas semanas.

Além dos textos de Eller e Gaiman, a edição de luxo de “Fahrenheit 451” traz trechos do diário que Truffaut manteve enquanto dirigia na adaptação cinematográfica do romance e o ensaio “Luz ardente” no qual o próprio Bradbury recorda a escrita do livro e seu carinho por bibliotecas públicas. “Fui oficialmente ‘formado’ pela biblioteca”, escreveu. Para celebrar o cententário do autor, a Biblioteca Azul planeja reeditar, até 2021, alguns títulos do autor e também publicar alguns inéditos.

As comemorações começaram em junho com o lançamento de “Prazer em queimar”, coletânea de 16 contos (13 deles anteriores a “Fahrenheit 451”). Num deles, “O bombeiro”, aparece pela primeira vez Montag, o herói do romance mais famoso de Bradbury. No conto, ele já queimava livros. Em setembro, chega às livrarias uma nova edição de “Zen na arte da escrita”, reunião de ensaios sobre a criação literária. No mês seguinte, sai uma nova tradução, assinada pelo escritor Eric Novello, de “O homem ilustrado”, conhecido antes pelo título “Uma sombra passou por aqui”. Publicado originalmente em 1951, o livro traz 18 contos nos quais o protagonista encontra um homem cujo corpo é completamente coberto por tatuagens. Cada uma delas conta uma história.

– São contos muito diferentes entre si: aventura, guerra, casamentos problemáticos, autores que precisam se exilar em Marte e livros queimados – conta Novello, autor de “Ninguém nasce herói” (Seguinte), romance inspirado por Bradbury que descreve um Brasil totalitário onde livros são proibidos pelo governo.

No ano que vem, saem alguns inéditos de Bradbury, como seus ensaios de futurologia e uma fábula infanto-juvenil sobre viagem no tempo. Também serão publicadas novas traduções da antologia de contos “O frutos dourados do sol” e dos romances “A árvore do Halloween”, “A morte é uma transação solitária”, “Licor de dente-de-leão” e “Um cemitério para lunáticos” – essas obras talvez ganhem novos títulos em português.

Segundo Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, Bradbury faz cada vez mais sucesso entre os leitores brasileiros. As vendas de “Fahrenheit 451” quase decuplicaram nos últimos cinco anos: de 8.200 exemplares comercializados em 2015 para 75 mil em 2019. Para Novello, Bradbury ainda encanta porque sua ficção científica, preocupada com o impacto da tecnologia em nossas relações interpessoais, antecipou dilemas do nosso presente e também outros que ainda estão por vir.

– A ficção científica sempre nos ajuda a digerir melhor o que estamos vivendo, a refletir sobre o presente sem sermos sufocados pela realidade. Bradbury fala de temas importantes de um jeito que é filosófico e também descontraído – diz. – Ele destrói a ilusão de que existe arte apolítica.

Para Eller, o biógrafo, Bradbury nunca quis prever o futuro, mas “impedir que determinados futuros virassem realidade”.

– Se a obra de Bradbury nos ensina alguma coisa é a empatia: aprender, por meio da literatura, a ver as coisas pelos olhos dos outros.

quinta-feira, agosto 20

Onde está a pequena leitora?

 

'A revolução dos bichos' de Orwell: quem são os porcos?

A fábula de George Orwell se passa numa fazenda: "O Sr. Jones, proprietário da Granja do Solar, fechou o galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as vigias".

É com palavras simples que o britânico George Orwell (1903-1950), cujo nome verdadeiro era Eric Arthur Blair, começa sua narrativa sobre os animais de uma fazenda que planejam uma revolução contra o proprietário explorador. O mestre da crítica social jamais poderia imaginar que A revolução dos bichos se tornaria um clássico da literatura política.

Orwell escreveu o livro entre fins de 1943 e 1944. Em seu país natal, porém, ele não encontrou nenhuma editora que o publicasse, pois o que a princípio parecia uma história infantil inofensiva era, na verdade, uma sátira sombria e uma dura acusação contra a ditadura de Stalin na União Soviética.

E como a URSS era aliada do Reino Unido contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial ainda em curso, a publicação de tal história não parecia nada oportuna. Em 1945, Animal Farm foi finalmente lançada pela Secker & Warburg.

E de que trata a fábula? Com um discurso impressionante, o idoso e respeitado javali Velho Major abre os olhos dos animais da fazenda para a incompetência do proprietário Sr. Jones, um fazendeiro constantemente bêbado, e classifica os humanos como exploradores que precisavam ser expulsos por uma revolução. Mas ele também adverte sobre o risco de se tornar igual aos humanos: "Todos os animais são iguais, independentemente de sua força ou inteligência."

Quando o Velho Major morre logo após o discurso, os animais aproveitam a oportunidade para expulsar o fazendeiro Jones da fazenda, sob a liderança dos porcos Napoleão e Bola de Neve. No começo, todos os animais governam juntos e tudo fica melhor: eles trabalham duro porque trabalham para si próprios e são solidários uns com os outros.

A Granja do Solar é então rebatizada Granja dos Bichos. Os espertos porcos, porém, logo assumem o comando e gradualmente transformam sua supremacia em ditadura, ofuscando tudo aquilo de que os animais queriam se livrar. Os porcos justificam seu poder com o slogan: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros".

As diferenças entre humanos e porcos como governantes se diluem no final do romance – também de forma visual. Os outros animais da fazenda não conseguem mais reconhecer quem é gente e quem é porco, ou quem é capitalista e quem é socialista.

A revolução dos bichos descreve o curso de uma revolução condenada ao fracasso. Orwell acreditava que as revoluções são capazes de mudar o poder de mãos. As estruturas sociais básicas, entretanto, permanecem intocadas: os poucos poderosos continuam a explorar uma maioria sem direitos.


A revolução dos bichos foi estritamente proibida na União Soviética e seus Estados-satélites. E no entanto George Orwell era um esquerdista convicto: membro do Partido Trabalhista Independente inglês, que na Guerra Civil Espanhola chegou a lutar nas fileiras do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), um grupo comunista visto como concorrência pelo stalinismo soviético.

A primeira tradução alemã do livro apareceu em 1946. Na República Democrática da Alemanha (RDA), no entanto, o livro extremamente desconfortável permaneceu censurado até a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Alemanha Oriental, em 1989, assim como outra obra de Orwell, 1984.

Após a morte de Orwell, em 1950, o serviço americano de inteligência CIA comprou os direitos do filme para ganhar vantagem contra a União Soviética na Guerra Fria. O desenho animado A revolução dos bichos foi produzido no Reino Unido entre 1951 e 1954 por John Halas e Joy Batchelor.

Embora guiando-se basicamente pelo original, o enredo desemboca numa segunda revolução contra o domínio dos porcos. Afinal, em plena Guerra Fria, a CIA dificilmente deixaria capitalistas e socialistas em condição de pé de igualdade, como Orwell fez no final do romance.

Na adaptação cinematográfica de 1999, John Stephenson mudou o enredo consideravelmente ao incorporar o colapso da União Soviética em 1989 e terminar com um final feliz próprio para crianças: após anos sob o domínio dos porcos, novos humanos reassumem o controle da fazenda. Os animais gritam: "... e finalmente ficamos livres!"

Com seus livros, o jornalista e escritor britânico George Orwell queria chamar a atenção para as mazelas políticas, muitas vezes empregando para tal a forma de sátira. A revolução dos bichos e 1984, publicado em 1949, estão entre suas obras mais famosas. Neste último, ele também demonstrou o que significa viver num Estado autoritário em que há vigilância total e onde os cidadãos são manipulados pela propaganda.

A revolução dos bichos é uma fábula que se encaixa em qualquer sistema totalitário. E que, apesar de seus 75 anos de existência, permanece tristemente atual.