domingo, junho 30

Sessão de domingo

David Hettinger

Livro de cabeceira

Alexandre da Macedônia é conhecido pelo apelido de Magno por ter conseguido unificar as orgulhosas cidades-Estado gregas. conquistar todos os reinos entre a Grécia e o Egito, derrotar o exército persa e criar um império que se estendia até à Índia - em menos de treze anos. As pessoas têm-se interrogado desde então sobre como é que um governante de um irrelevante reino grego pode ter realizado uma tal façanha. Mas sempre existiu uma segunda pergunta, para mim mais intrigante: por que razão havia Alexandre de querer conquistar a Ásia?

Ao considerar esta questão, vim a concentrar-me em três objetos que Alexandre transportou consigo ao longo de toda a sua campanha militar e que colocava todas as noites à cabeceira , três objetos que sintetizavam a forma como ele via a sua campanha. O primeiro era um punhal. Junto ao punhal, Alexandre guardava uma caixa. E , dentro da caixa , colocava o mais precioso dos três objetos: um exemplar do seu texto preferido, a Ilíada.

Como chegara Alexandre a possuir estes três objetos e o que significavam para ele?

Alexandre dormia com um punhal porque queria escapar ao destino do seu pai, que fora assassinado. A caixa fora tomada a Dario, o seu adversário persa. E levara a Ilíada para a Ásia porque era a história através da qual via a sua campanha e a sua vida, um texto fundador que captava o espírito de um príncipe que iria à conquista do mundo.

A epopeia de Homero foi um texto fundador para os gregos durante gerações. Para Alexandre , adquiriu o estatuto de um texto quase sagrado, razão pela qual o levava consigo durante a campanha . É isso que os textos , sobretudo os fundadores , fazem: mudam a forma como vemos o mundo e também a forma como agimos sobre ele. Foi isso certamente que se passou com Alexandre. Foi induzido não só a ler e a estudar este texto, mas também a recriá-lo. Alexandre, o leitor, colocou-se a si próprio na história, vendo a trajetória da sua própria vida à luz de Aquiles de Homero. Alexandre Magno é conhecido por ter sido um rei excessivo . Mas acontece que foi também um leitor excessivo."
Martin Puchner, " O Mundo da Escrita"

'Recheio' para a mente


Escritores nas termas

Não devem existir no mundo muitos eventos literários que aconteçam em antigos hotéis de termas. Por coincidência saí de um deles, na pequena cidade do Luso, em Portugal, diretamente para um outro, o Fliaraxá, que decorreu no Grande Hotel de Araxá, em Minas Gerais, entre os dias 19 e 23 de junho.

O Grande Hotel do Luso e o Grande Hotel de Araxá começaram a ser construídos no mesmo ano, em 1938, muito à imagem do Grande Hotel Gellert, de Budapeste, que comemorou recentemente o seu centenário e foi o edifício inspirador de “O Grande Hotel Budapeste” (2014), de Wes Anderson.


Hospedei-me no Gellert na virada do século, quando a democracia húngara dava os primeiros passos. Os quartos imensos ainda exibiam elegantes elementos de arquitetura art deco, mas eram frios e úmidos, com as alcatifas manchadas e rasgões nas cortinas. Todo o magnífico edifício parecia ter sido saqueado, durante décadas, por sucessivas hordas de bárbaros. Os recepcionistas continuavam a atender os clientes com a lendária má vontade dos funcionários públicos, muito mal pagos, dos regimes do antigo bloco de Leste. As termas, contudo, mantinham o fausto dos primeiros tempos, quando Budapeste era ainda um dos dois corações do Império Austro-Húngaro (o segundo maior país da Europa, depois do Império Russo), com as suas colunas em mármore, as paredes cobertas de mosaicos coloridos, os vitrais nas abóbadas altas e as cinco piscinas, com água a diferentes temperaturas.

O charme da decadência é comum a todos estes grandes hotéis. Livros combinam muito bem com tal ambiente. Afonso Borges, o idealizador da Fliaraxá, deveria pensar em criar uma rede de festivais literários em grandes hotéis de termas, incluindo o Gellert (já estou me candidatando).

Em Araxá, a festa juntou cerca de cem escritores, que falaram para perto de trinta mil leitores. Estive na primeira edição do festival, há oito anos. De então para cá, a mudança mais impressionante não teve tanto a ver com o aumento do número de escritores e de leitores, mas com a forma como esses leitores se sofisticaram. Algo semelhante vem acontecendo em todas as comunidades que abrigam festivais de literatura, desde Olinda e Recife (com a Fliporto), até Cachoeira (com a Flica). A multiplicação de festivais literários vem melhorando o Brasil.

Para um escritor, não há melhor surpresa do que a de encontrar um bom leitor num lugar remoto. Um bom leitor é aquele que nos coloca questões inquietantes, capazes de mudar a forma como lemos os nossos próprios livros. Lembro-me sempre de um adolescente, um menino esguio e desamparado, que conheci numa escola, num bairro muito pobre de Brazzaville, na República do Congo. Logo na primeira pergunta compreendi que seria eu a beneficiar daquela conversa. Assim foi. Ainda hoje defendo teses, sobre um dos meus romances, que aprendi com ele.

Nas fumegantes piscinas do Gellert veem-se todos os dias senhores muito gordos, de muita idade, a jogar xadrez. É uma tradição ancestral, a de jogar xadrez nas termas. Nas piscinas do Luso e de Araxá não vi ninguém jogando xadrez. Em contrapartida, vi alguns leitores. Imagino rodas de banhistas discutindo literatura. Acho bonito.

sábado, junho 29

A cara do fim de semana


Árvore genealógica

Júlio Verne foi meu pai.

H. G. Wells foi meu sábio tio.

Edgar Allan Poe foi o primo com asas de morcego que guadávamos lá em cima, na sala do sótão.

Flash Gordon e Buck Rogers foram meus irmãos e amigos.

Aí têm minha ascendência.

Acrescentando, claro, o fato de que muito provavelmente Mary Wollstronecraft Shelley, autora de Frankenstein, foi minha mãe.

Com uma família dessas, eu não poderia deixar de ser outra coisa: um escritor de fantasia e de curiosíssimas histórias de ficção científica.

Vivi nas árvores com Tarzã uma boa parte de minha vida, com meu herói, Edgar Rice Burroughs. Quando desci da folhagem, pedi uma pequena máquina de escrever quando tinha doze anos, para o Natal. E matraqueando na máquina, escrevi meu primeiro seriado de imitação, John Carter, Condestável de Marte, e de cor, bati episódios inteiros de Chandu, o Mágico.

(...)

Devorava as obras de H. Rider Haggard e Robert Louis Stevenson. Em meio aos verões de minha juventude, pulei alto e mergulhei bem fundo no vasto oceano do Espaço, muito, muito tempo antes de a Era Espacial propriamente dita fosse mais do que um pontinho no telescópio de duzentas polegadas de Monte Palomar.
Ray Bradbury, "E de Espaço" (trecho da introdução)

Leitura pré-natal


Sabor de Brasil no livro de Sérgio Rodrigues

Seria um livro de contos? Seria uma novela? Um romance? Ou um objeto literário não identificado? Ou uma grande metáfora da tragicomédia brasileira em que fatos e fantasias não se negam, se complementam. É o novo livro de Sérgio Rodrigues, “A visita de João Gilberto aos Novos Baianos”, que tem no folhetim “Jules Rimet, meu amor”, uma das mais deliciosas narrativas que li ultimamente. E reli com prazer e emoção.

A Copa do Mundo é ao mesmo tempo a dor mais profunda e humilhante no coração nacional com a derrota para o Uruguai no Maracanazo de 1950 e também a suprema alegria redentora da vitória em 1958, que nos livrou do complexo de vira-latas e se tornou o nosso maior orgulho quando fomos tricampeões em 1970 e ganhamos a posse definitiva da Taça Jules Rimet, uma linda escultura em ouro da deusa da vitória.

Para um leitor estrangeiro não familiarizado com o Brasil, é difícil aceitar como fatos, ou ao menos fantasias verossímeis, a história do roubo da taça, quando dois ladrões pé de chinelo, Luiz Bigode e Chico Barbudo, e o malandro otário Peralta roubam a taça do nono andar da CBF e a vendem pelo seu peso, 1,8 kg, depois transformados em duas barras de ouro. Mas é fato.

Também é fato, embora supere a ficção, que a CBF mandou fazer uma réplica de metal — que ficava trancada no cofre! — enquanto a real era exposta atrás de uma vitrine...

Mas essa fabulosa história, cheia de detalhes, ângulos e hipóteses, se mistura com um encontro amoroso complexo e cheio de humor e ironia, entre um escritor de um sucesso só e uma ruiva linda e misteriosa, ligados pela Jules Rimet e pela lendária seleção húngara de 1954.

O folhetim é o grand finale, mas outras histórias como “Conselhos literários fundamentais” e “A fruta por dentro” encantam a cada frase; o homem é um craque em domínio de bola, em dribles sensacionais, em tática e técnica, mestre na estratégia de García Márquez — levar o leitor ao próximo parágrafo eletrizado e hipnotizado pelo ritmo das palavras.

sexta-feira, junho 28

Que se dane o mundo!

Inha Bastos

A Odisseia do espaço

Sem sair de sua poltrona, podia ocupar-se com várias coisas. Quando estivesse cansado de relatórios oficiais, memorandos e atas, ligaria o Newspad no circuito de informações da espaçonave e passaria os olhos pelas últimas notícias da Terra. Entraria em contato com cada um dos principais jornais eletrônicos. Sabia de cor o prefixo dos mais importantes e nem precisava consultar a lista fornecida para esse fim.

Ligando a unidade de memória do aparelho, veria a primeira página do jornal escolhido e anotaria os tópicos que lhe interessassem. Cada manchete possuía um código de dois algarismos. Era só marcar o número desejado para que o pequeno retângulo do tamanho de um selo aumentasse até ocupar toda a tela, formando uma imagem nítida e fácil de ler. Quando terminasse a leitura, faria voltar à tela a página completa e selecionaria outro assunto para exame mais detalhado.

Floyd pensou consigo mesmo que talvez aquele aparelho, apesar da extraordinária tecnologia necessária ao seu funcionamento, não fosse ainda a última palavra na eterna busca do Homem, em seu desejo de comunicações mais perfeitas. Aqui estava ele, em pleno espaço, afastando-se da Terra a uma velocidade de milhares de quilômetros por hora e, no entanto, podia, em fração de segundo, ver as manchetes de qualquer jornal. (Pensando bem, os próprios jornais eram anacrônicos na era da eletrônica.) As notícias eram atualizadas de hora em hora. Ainda que alguém lesse apenas o texto em inglês, poderia passar a vida inteira sem outra ocupação senão ver a sempre renovada torrente de informações enviadas pelos satélites transmissores.

Era difícil imaginar que o sistema pudesse ser mais aperfeiçoado ou tornado mais prático. Porém mais cedo ou mais tarde, pensava Floyd, acabaria sendo substituído por algum novo aparelho, tão impossível de ser imaginado quanto teria sido o noticioso eletrônico para Caxton ou Gutemberg.

Arthur C. Clarke, "Uma odisseia no espaço" 

quinta-feira, junho 27

Traição?


Ler um romance

Um romance é uma segunda vida. Como os sonhos de que fala o poeta francês Gérard de Nerval, os romances revelam cores e complexidades de nossa vida e são cheios de pessoas, rostos e objetos que julgamos reconhecer. Assim como no sonho, quando lemos um romance, às vezes ficamos tão impressionados com a natureza extraordinária das coisas que nele encontramos que esquecemos onde estamos e nos vemos no meio dos acontecimentos e das pessoas imaginárias que contemplamos. Em tais ocasiões, achamos o mundo fictício que descobrimos e apreciamos mais real que o mundo real. O fato de essa segunda vida nos parecer mais real que a realidade muitas vezes indica que substituímos a realidade pelo romance. Ou no mínimo o confundimos com a vida real. Mas nunca lamentamos essa ilusão, essa ingenuidade. Ao contrário, assim como em alguns sonhos, queremos que o romance que estamos lendo prossiga e esperamos que essa segunda vida continue evocando em nós uma sensação consistente de realidade e autenticidade. Apesar do que sabemos sobre a ficção, ficamos irritados e aborrecidos se um romance deixa de sustentar a ilusão de que é, na verdade, a vida real.

Sonhamos supondo que o sonho é real; essa é a definição de sonho. Do mesmo modo, lemos um romance supondo que ele é real – mas no fundo sabemos muito bem que não é assim. Esse paradoxo se deve à natureza do romance. Comecemos por enfatizar que a arte do romance conta com nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios.

Marc Chalme
Leio romances há quarenta anos. Sei que podemos adotar muitas posturas em relação ao romance, que existem muitas maneiras de engajar alma e mente nele, tratando-o com leviandade ou seriamente. Da mesma forma, aprendi pela experiência que há muitos modos de ler um romance. Às vezes, lemos logicamente; às vezes, com os olhos; às vezes, com a imaginação; às vezes, com uma pequena parte do cérebro; às vezes, como queremos; às vezes, como o livro quer; e, às vezes, com todas as fibras de nosso ser. Houve uma época, em minha juventude, na qual me dediquei por completo aos romances, lendo-os com atenção – até com êxtase. Naquele tempo, dos 18 aos 30 anos (1970 a 1982), eu queria descrever o que me passava pela cabeça e pela alma da mesma forma como um pintor retrata com precisão e clareza uma paisagem vívida, complexa, animada, cheia de montanhas, planícies, rochedos, bosques e rios.

O que ocorre em nossa cabeça, e em nossa alma, quando lemos um romance? Em que essas sensações interiores diferem do que sentimos quando vemos um filme, contemplamos um quadro ou escutamos um poema, mesmo um poema épico? De quando em quando, um romance pode proporcionar os mesmos prazeres que uma biografia, um filme, um poema, um quadro ou um conto de fadas. No entanto, o efeito singular e verdadeiro dessa arte é fundamentalmente diferente do de outros gêneros literários, do filme e do quadro. E talvez eu possa começar a mostrar essa diferença falando sobre as coisas que eu fazia e as complexas imagens que surgiam dentro de mim quando eu lia romances apaixonadamente em minha juventude.

Assim como o visitante do museu que, antes de mais nada, quer que o quadro que está contemplando entretenha sua visão, eu preferia ação, conflito e abundância na paisagem. Gostava da sensação de estar ao mesmo tempo observando secretamente a vida particular de um indivíduo e explorando os cantos escuros do panorama. Mas não quero lhes dar a impressão de que o quadro que eu tinha dentro de mim era sempre turbulento. Quando eu lia romances em minha juventude, às vezes uma paisagem ampla, profunda e pacata surgia dentro de mim. E, às vezes, as luzes se apagavam, o preto e o branco se intensificavam e depois se separavam, e as sombras se moviam. Às vezes, eu me encantava com a sensação de que o mundo inteiro era feito de uma luz diferente. E, às vezes, a penumbra entrava em cena e cobria tudo, o universo inteiro se tornava uma emoção única e um estilo único, e eu gostava disso e achava que estava lendo o livro por causa dessa atmosfera específica.

À medida que, lentamente, eu era atraído para o mundo existente dentro do romance, eu percebia que as sombras das ações que tinha realizado antes de abrir o livro, sentado em minha casa, em Beşiktaş, Istambul – o copo de água que eu havia tomado, a conversa que tivera com minha mãe, os pensamentos que me passaram pela cabeça, os pequenos ressentimentos que eu alimentara –, lentamente se esvaeciam.

Sentia que a poltrona laranja na qual estava sentado, o cinzeiro malcheiroso a meu lado, a sala carpetada, as crianças jogando futebol na rua e os apitos da balsa distante pouco a pouco se afastavam de minha mente; e que um mundo novo se revelava, palavra por palavra, frase por frase, diante de mim. Enquanto eu lia página por página, esse mundo novo se cristalizava e se tornava mais claro, assim como aqueles desenhos secretos que se mostram pouco a pouco, quando derramamos uma solução reagente sobre eles; e linhas, sombras, eventos e protagonistas vinham à luz. Nesses momentos iniciais, tudo que retardava minha entrada no mundo do romance, tudo que me impedia de lembrar e visualizar personagens, eventos e objetos me afligia e me irritava.

Um parente cujo grau de parentesco com o protagonista real eu esquecera, a localização incerta de uma gaveta contendo uma arma ou uma conversa que eu percebia que tinha duplo sentido, mas cujo segundo sentido eu não conseguia decifrar – esse tipo de coisa me incomodava horrivelmente. E enquanto meus olhos avidamente percorriam as palavras, eu queria, com um misto de impaciência e prazer, que tudo se encaixasse sem demora. Nesses momentos, todas as portas de minha percepção se abriam o máximo possível, como os sentidos de um animal tímido libertado num ambiente completamente estranho, e minha mente começava a funcionar muito mais depressa, quase em estado de pânico. Enquanto concentrava a atenção nos detalhes do romance que tinha nas mãos, de modo a me afinar com o mundo no qual estava entrando, eu lutava para ver as palavras em minha imaginação e visualizar tudo que o livro descrevia.

Pouco depois, o esforço intenso e cansativo produzia resultados, e a vasta paisagem que eu queria ver se descortinava diante de mim, como um continente imenso que aparece com toda a nitidez quando a neblina se dispersa. Então eu podia ver as coisas contadas no romance como alguém que olha pela janela, facilmente, confortavelmente, e observa o panorama. Ler a descrição de Pierre observando a batalha de Borodinó do alto de um monte, em Guerra e Paz, de Tolstói, é para mim um modelo de como ler um romance. Muitos detalhes que percebemos que o romance está urdindo delicadamente e preparando para nós e que julgamos necessário ter disponíveis na memória, enquanto lemos, aparecem nessa cena como num quadro. O leitor tem a impressão de estar não entre as palavras de um romance, mas de pé diante de uma paisagem pintada. Aqui, são decisivas a atenção do escritor para com o detalhe visual e a capacidade do leitor de, através da visualização, transformar as palavras numa grande paisagem pintada. Também lemos romances que não transcorrem em vastas paisagens, em campos de batalha ou na natureza, mas em salas, em sufocantes atmosferas interiores – A Metamorfose, de Kafka, é um bom exemplo. E lemos essas histórias como se observássemos uma paisagem e, transformando-a em pintura com os olhos da mente, acostumamo-nos com a atmosfera da cena, deixando-nos influenciar por ela e, na verdade, procurando-a constantemente.

Deixem-me dar mais um exemplo, novamente de Tolstói, que lida com o ato de olhar por uma janela e mostra como se pode entrar na paisagem de um romance durante a leitura. A cena é do maior romance de todos os tempos: Anna Kariênina. Anna conheceu Vronski em Moscou. Voltando para casa à noite, de trem, ela está contente, porque em São Petersburgo verá o filho e o marido na manhã seguinte:

[Anna] retirou de dentro de sua bolsinha uma espátula para separar as páginas de um romance inglês. A princípio, não conseguiu ler. O vozerio e o vaivém das pessoas a incomodavam, no início; em seguida, quando o trem se pôs em movimento, era impossível não ouvir os barulhos; depois, a neve, que batia na janela da esquerda e grudava no vidro, o vulto do condutor agasalhado que passava por ela com um dos lados do corpo coberto de neve e as conversas sobre a terrível nevasca lá fora distraíam sua atenção. E logo tudo se repetia; os mesmos solavancos que sacudiam, a mesma neve na janela, as mesmas mudanças abruptas do vapor quente para o frio, e de novo para o calor, o mesmo lampejo dos mesmos rostos na penumbra e as mesmas vozes, e Anna começou a ler e a entender o que lia. Ánuchka já cochilava, segurando uma bolsinha vermelha sobre os joelhos com as mãos largas e de luvas, uma delas, rasgada. Anna Arcádievna lia e compreendia, mas não tinha gosto em ler, ou seja, em seguir o reflexo da vida de outras pessoas. Sentia uma desmedida vontade de viver por si mesma. Se lia como a heroína do romance cuidava de um doente, tinha vontade de entrar, com passos inaudíveis, no quarto do doente; se lia como um membro do parlamento discursava, sentia vontade de fazer ela mesma o discurso; se lia como Lady Mary saía a cavalo atrás da matilha numa caçada, como provocava a cunhada e surpreendia a todos com a sua coragem, Anna sentia vontade de fazer tudo isso ela mesma. Mas nada havia para ela fazer e Anna, revirando a espátula lisa em suas mãos pequeninas, redobrava o esforço para ler.

Anna não consegue ler, porque não consegue parar de pensar em Vronski, porque quer viver. Se conseguisse concentrar-se no romance, poderia facilmente imaginar Lady Mary montando seu cavalo e seguindo seus cães. Visualizaria a cena, como se estivesse olhando pela janela, e se sentiria entrando pouco a pouco nessa cena que observa a partir de fora.

A maioria dos romancistas intui que ler as páginas iniciais de um romance é semelhante a entrar numa paisagem pintada. Deixem-me lembrar como Stendhal começa O Vermelho e o Negro. Primeiro, vemos, de longe, a cidade de Verrières, a colina em que está situada, as casas brancas com seus pontudos telhados vermelhos, os tufos de viçosos castanheiros e as ruínas das fortificações da cidade. O rio Doubs corre mais abaixo. Depois, tomamos conhecimento das serrarias e da fábrica que produz toiles peintes, coloridos tecidos estampados.

Apenas uma página adiante, já encontramos o prefeito, uma das personagens principais, e identificamos sua maneira de pensar. O prazer real de ler um romance surge com a capacidade de ver o mundo não a partir de fora, mas pelos olhos dos protagonistas que habitam esse mundo. Quando lemos um romance, oscilamos entre a visão demorada e momentos fugidios, pensamentos gerais e eventos específicos, numa velocidade que nenhum outro gênero literário pode oferecer. Olhando de longe para uma paisagem pintada, de repente nos encontramos entre os pensamentos do indivíduo que está na paisagem e entre as nuances de seu estado de espírito. Algo semelhante ocorre quando vemos numa paisagem chinesa uma pequena figura humana pintada entre penhascos, rios e árvores frondosas: concentramo-nos nessa figura e tentamos imaginar através de seus olhos a paisagem que a cerca. (As pinturas chinesas são concebidas para ser lidas dessa maneira.) Então nos damos conta de que a paisagem foi composta para refletir os pensamentos, emoções e percepções da figura que nela se encontra.

Da mesma forma, quando percebemos que a paisagem dentro do romance é uma extensão, uma parte do estado mental dos protagonistas, constatamos que nos identificamos com esses protagonistas numa transição inconsútil. Ler um romance significa que, enquanto confiamos à memória o contexto global, acompanhamos, um por um, os pensamentos e atos dos protagonistas e lhes atribuímos sentido dentro da paisagem geral. Agora estamos no interior da paisagem que pouco antes contemplávamos de fora: além de ver as montanhas mentalmente, sentimos o frescor do rio e o cheiro da floresta, falamos com os protagonistas e nos aprofundamos no universo do romance. Sua linguagem nos ajuda a reunir esses elementos distantes e distintos e a perceber os rostos e os pensamentos dos protagonistas como parte de uma visão única.

Nossa mente trabalha muito quando estamos imersos num romance, mas não como a mente de Anna no trem barulhento e coberto de neve que segue para São Petersburgo. Continuamente oscilamos entre a paisagem, as árvores, os protagonistas, os pensamentos dos protagonistas e os objetos que eles tocam – passamos dos objetos às lembranças que evocam, aos outros protagonistas e enfim aos pensamentos gerais. Nossa mente e nossa percepção trabalham diligentemente, com grande rapidez e concentração, realizando numerosas operações ao mesmo tempo, porém muitos leitores nem sequer percebem que estão realizando essas operações. É exatamente igual ao que acontece com quem está dirigindo um carro: sem se dar conta, o motorista aperta botões, pisa em pedais, gira o volante com cuidado e em conformidade com muitas regras, lê e interpreta sinais de trânsito e presta atenção ao tráfego.

A analogia com o motorista é válida não só para o leitor, mas também para o romancista. Alguns romancistas não se dão conta das técnicas que utilizam; escrevem espontaneamente, como se executassem um ato perfeitamente natural, alheios às operações e aos cálculos que seus cérebros efetuam e ao fato de que estão usando as marchas, os freios e os botões que a arte do romance lhes fornece. Vamos empregar a palavra “ingênuo” para descrever esse tipo de sensibilidade, esse tipo de romancista e esse tipo de leitor de romance – que não estão nem um pouco preocupados com os aspectos artificiais da escrita e da leitura de um romance. E vamos utilizar o termo “reflexivo” para descrever a sensibilidade oposta: em outras palavras, os leitores e escritores que se fascinam com a artificialidade do texto e seu malogro em alcançar a realidade e que dão muita atenção aos métodos empregados na escrita de um romance e à maneira como nossa mente funciona quando lemos. O romancista exerce a arte de ser ao mesmo tempo ingênuo e reflexivo.

Ou ingênuo e “sentimental”. Friedrich Schiller foi o primeiro a propor essa distinção, em seu famoso ensaio “Über naive und sentimentalische Dichtung” (Sobre poesia ingênua e sentimental; 1795-6). A palavra sentimentalisch, usada por Schiller para descrever o poeta moderno, pensativo e angustiado, que perdeu seu caráter e sua ingenuidade infantis, tem um sentido um tanto diferente da palavra “sentimental”. Mas não vale a pena nos determos nessa palavra, que, de qualquer modo, Schiller tomou emprestada do inglês, inspirado por Uma Viagem Sentimental, de Laurence Sterne. (Como exemplos de gênios ingênuos e infantis, Schiller respeitosamente cita Sterne, além de Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe e até mesmo Dürer, entre outros.) Basta-nos notar que Schiller utiliza a palavra sentimentalisch para descrever o estado de espírito que se afastou da simplicidade e da força da natureza e se deixou arrebatar pelas próprias emoções e pensamentos. Aqui, meu objetivo é chegar a um entendimento mais profundo do ensaio de Schiller, que amo desde a juventude, assim como aclarar meus pensamentos acerca da arte do romance por meio desse ensaio (como sempre fiz) e expressá-los acuradamente (como estou me esforçando para fazer).

Nessa obra famosa, que Thomas Mann descreveu como “o mais belo ensaio da língua alemã”, Schiller divide os poetas em dois grupos: os ingênuos e os sentimentais. Os ingênuos estão irmanados com a natureza; na verdade, são como a natureza – calma, cruel e sábia. Escrevem poesia espontaneamente, quase sem pensar, não se dando ao trabalho de considerar as consequências intelectuais ou éticas de suas palavras e não se importando com o que os outros possam dizer. Para eles – ao contrário do que ocorre com escritores contemporâneos –, a poesia é como uma impressão que a natureza produz neles organicamente e que nunca mais os deixa. A poesia ocorre naturalmente ao poeta ingênuo, brotando do universo natural do qual ele faz parte.

A crença de que um poema não é algo pensado e deliberadamente elaborado pelo poeta, composto em determinada métrica e moldado através de revisão constante e autocrítica, mas algo que deve ser escrito irrefletidamente e que até pode ser ditado pela natureza, por Deus ou por outro poder – essa noção romântica foi advogada por Coleridge, devoto seguidor dos românticos alemães, e claramente expressa em 1816 no prefácio a seu poema “Kubla Khan”.

No ensaio de Schiller, que suscita em mim grande admiração toda vez que o leio, há um atributo entre as características definidoras do poeta ingênuo que desejo enfatizar de modo especial: o poeta ingênuo não tem dúvida de que seus enunciados, suas palavras, seus versos vão retratar a paisagem geral, vão representá-la, vão descrever e revelar, adequada e minuciosamente, o sentido do mundo – pois esse sentido não está distante nem escondido dele.

Em contraposição, de acordo com Schiller, o poeta “sentimental” (emocional, reflexivo) se inquieta basicamente por uma razão: ele não sabe ao certo se suas palavras irão abarcar a realidade, se irão alcançá-la, se seus enunciados irão transmitir o sentido almejado por ele. Assim, está extremamente consciente do poema que escreve, dos métodos e técnicas que utiliza e do artifício envolvido no seu empreendimento. O poeta ingênuo não vê muita diferença entre sua percepção do mundo e o mundo em si. Já o poeta moderno, sentimental-reflexivo, questiona tudo que percebe, até mesmo os próprios sentidos. E, quando vaza suas percepções em verso, princípios educativos, éticos e intelectuais o ocupam.

O famoso e, a meu ver, divertido ensaio de Schiller é uma fonte atraente para quem quer refletir sobre a inter-relação de arte, literatura e vida. Eu o li repetidas vezes na juventude, pensando nos exemplos que apresenta, nos tipos de poetas que aborda e nas diferenças entre escrever espontaneamente e escrever deliberada e conscientemente, com a ajuda do intelecto. Ao ler esse ensaio, eu também pensava em mim como romancista, naturalmente, e em meus vários estados de espírito durante a elaboração de um romance. E lembrava o que havia sentido anos antes, quando pintava. Dos 7 aos 22 anos, pintei constantemente, sonhando tornar-me pintor algum dia, porém continuei sendo um artista ingênuo e acabei por abandonar a pintura, talvez depois que tomei consciência disso. Essa obra de Schiller, densa e provocativa, há de me acompanhar enquanto eu estiver refletindo sobre a arte do romance, lembrando-me de minha juventude, que prudentemente oscilava entre o “ingênuo” e o “sentimental”.

Depois de certo ponto, o ensaio de Schiller já não trata de poesia apenas, ou de arte e literatura em geral, mas se torna um texto filosófico sobre tipos humanos. Nesse ponto, quando o texto alcança seu auge dramático e filosófico, gosto de ler nas entrelinhas os pensamentos e opiniões pessoais. Quando diz que “há dois tipos diferentes de humanidade”, Schiller também quer dizer, segundo historiadores alemães da literatura: “Aqueles que são ingênuos como Goethe e aqueles que são sentimentais como eu!” Schiller invejava Goethe não só por seus dotes poéticos, como por sua serenidade, sua naturalidade, seu egoísmo, sua autoconfiança, seu espírito aristocrático; pela maneira como ele, sem esforço, chega a grandes e brilhantes pensamentos; por sua capacidade de ser ele mesmo; por sua simplicidade, sua modéstia e seu gênio; e por sua inconsciência de tudo isso, à maneira de uma criança. Ele próprio, Schiller, em contraste, era muito mais reflexivo e intelectual, mais complexo e atormentado em sua atividade literária, muito mais cônscio de seus métodos literários, cheio de perguntas e incertezas com relação a eles – e considerava tais atitudes e traços mais “modernos”.

Trinta anos atrás, lendo Poesia Ingênua e Sentimental, eu também – como Schiller furioso com Goethe – reclamava da natureza ingênua e infantil dos romancistas turcos da geração anterior. Eles escreviam com muita facilidade e nunca se preocupavam com problemas de estilo e técnica. E eu aplicava o termo “ingênuo” (cada vez mais num sentido negativo) não só a eles, mas a escritores de todo o mundo que viam o romance balzaquiano do século XIX como uma entidade natural e a aceitavam sem questionar. Agora, após uma aventura de 35 anos como romancista, eu gostaria de continuar com meus próprios exemplos, mesmo quando tento me convencer de que encontrei um equilíbrio entre o romancista ingênuo e o romancista sentimental que existem dentro de mim.

Ao discorrer sobre o mundo retratado no romance, usei a analogia com a paisagem. Acrescentei que alguns leitores não percebem o que ocorre em nossa mente quando lemos um romance, como os motoristas que não se dão conta das operações que executam ao dirigir o carro. O romancista ingênuo e o leitor ingênuo são como quem acredita sinceramente que entende o lugar e os indivíduos que vê da janela do carro, enquanto se desloca pela paisagem. E, como acredita no poder da paisagem que vê da janela do carro, esse tipo de gente pode começar a falar sobre as pessoas e a fazer pronunciamentos que suscitem inveja no romancista sentimental-reflexivo. Já o romancista sentimental-reflexivo dirá que a vista da janela do carro é limitada pela moldura e que de qualquer modo o vidro está sujo, e se recolherá a um silêncio beckettiano. Ou, como eu e muitos outros romancistas literários contemporâneos, descreverá a roda, os botões, a janela enlameada, as engrenagens como parte da cena, de modo que nunca esquecemos que o que vemos é restrito pelo ponto de vista do romance.

Antes que nos deixemos levar pela analogia e seduzir pelo ensaio de Schiller, vamos listar as ações mais importantes que ocorrem em nossa mente quando lemos um romance. Ler um romance sempre implica essas operações, mas só os romancistas de espírito “sentimental” conseguem reconhecê-las e chegar a um inventário detalhado. Essa lista vai lembrar-nos o que o romance realmente é – algo que sabemos, mas que bem podemos ter esquecido. São estas as operações que nossa mente executa quando lemos um romance:

1. Observamos a cena geral e seguimos a narrativa. No livro que escreveu sobre Dom Quixote, de Cervantes, o pensador e filósofo espanhol José Ortega y Gasset diz que lemos romances de aventura, novelas de cavalaria, romances baratos (histórias de detetive, de amor, de espionagem e por aí afora) para ver o que acontece na sequência; mas lemos o romance moderno (o que hoje chamamos de “romance literário”) por sua atmosfera. De acordo com Ortega y Gasset, o romance de atmosfera é algo mais valioso. É como uma “paisagem pintada” e contém bem pouca narrativa.

Mas lemos um romance – seja com muita narrativa e ação, seja sem narrativa nenhuma, como uma paisagem pintada – sempre da mesma forma fundamental. Nosso procedimento habitual consiste em acompanhar a narrativa e tentar descobrir o significado e a ideia principal sugeridos pelas coisas que encontramos. Ainda que um romance, assim como uma paisagem pintada, apresente, uma a uma, muitas folhas de árvore individuais, sem narrar um só acontecimento (o tipo de técnica usada, por exemplo, no nouveau roman francês de Alain Robbe-Grillet ou Michel Butor), começamos a meditar no que o narrador está tentando sugerir dessa maneira e no tipo de história que essas folhas acabarão formando. Nossa mente busca um motivo, uma ideia, um propósito, um centro secreto.

2. Transformamos palavras em imagens mentais. O romance conta uma história, mas não é só uma história. A história emerge, pouco a pouco, de muitos objetos, descrições, ruídos, conversações, fantasias, lembranças, informações, pensamentos, eventos, cenas, momentos. Ter prazer com um romance é desfrutar o ato de partir de palavras e transformar essas coisas em imagens mentais. Ao visualizar na imaginação o que as palavras nos dizem (o que elas querem nos dizer), nós, leitores, completamos a história. Com isso, impelimos nossa imaginação, procurando descobrir o que o livro diz ou o que o narrador quer dizer, o que ele pretende dizer, o que supomos que ele está dizendo – em outras palavras, tentando encontrar o centro do romance.

3. Outra parte de nossa mente se pergunta até que ponto a história que o escritor está nos contando é uma experiência real e até que ponto é imaginação. Fazemos essa pergunta sobretudo nos trechos do romance que nos suscitam surpresa, admiração, espanto. Ler um romance é perguntar-se o tempo todo, mesmo nos momentos em que nos perdemos no livro mais profundamente: até que ponto isto é fantasia e até que ponto é real? Há um paradoxo lógico entre, por um lado, a experiência de perder-se no romance e ingenuamente pensar que é real e, por outro lado, a própria curiosidade sentimental-reflexiva em relação à medida de fantasia que o relato contém. No entanto, o poder e a vitalidade inexauríveis da arte do romance provêm de sua lógica única e de sua confiança nesse tipo de conflito. Ler um romance significa compreender o mundo por uma lógica não cartesiana – ou seja, com a constante e inabalável capacidade de acreditar ao mesmo tempo em ideias contraditórias. Assim, uma terceira dimensão da realidade começa, pouco a pouco, a emergir dentro de nós: a dimensão do complexo mundo do romance. Seus elementos conflitam mutuamente, porém ao mesmo tempo são aceitos e descritos.

4. Ainda nos perguntamos: a realidade é assim? As coisas narradas, vistas e descritas no romance correspondem ao que sabemos por nossa própria experiência? Por exemplo, perguntamo-nos: na década de 1870, um passageiro do trem noturno de Moscou a São Petersburgo poderia facilmente encontrar conforto e sossego suficientes para ler um romance, ou o escritor está tentando nos dizer que Anna é uma autêntica bibliófila que gosta de ler mesmo entre distrações ruidosas? No âmago do ofício de romancista há um otimismo que acredita que o conhecimento que adquirimos com nossa experiência cotidiana pode se tornar um valioso conhecimento da realidade, se receber a forma adequada.

5. Sob a influência desse otimismo, avaliamos e desfrutamos a precisão das analogias, o poder da fantasia e da narrativa, a construção das frases, a secreta e cândida poesia e a musicalidade da prosa. Problemas e prazeres de estilo não estão no âmago do romance, mas estão bem perto dele. Contudo, esse tópico convidativo só pode ser abordado mediante milhares de exemplos.

6. Formulamos juízos morais acerca das escolhas e da conduta dos protagonistas; ao mesmo tempo, julgamos o escritor por seus juízos morais sobre suas personagens. O juízo moral é um inevitável terreno pantanoso no romance. Tenhamos em mente que a arte do romance produz seus melhores resultados não quando julga pessoas, mas quando as compreende, e não nos deixemos dominar pela parte judicativa de nossa mente. Quando lemos um romance, a moralidade deve ser parte da paisagem, não algo que emana de dentro de nós e se volta contra as personagens.

7. Enquanto nossa mente realiza todas essas operações ao mesmo tempo, congratulamo-nos pelo conhecimento, pela profundidade e pelo entendimento que conquistamos. Sobretudo nos romances de alta qualidade literária, a intensa relação que estabelecemos com o texto parece a nós, leitores, nosso sucesso particular. Pouco a pouco vemos surgir a doce ilusão de que o romance foi escrito unicamente para nós. A intimidade e a confiança que se estabelecem entre nós e o escritor nos ajudam a evadir-nos e a não nos preocuparmos muito com os trechos do livro que não conseguimos entender ou as coisas que desaprovamos ou consideramos inaceitáveis. Assim, em certa medida sempre nos tornamos cúmplices do romancista. Quando lemos um romance, uma parte de nossa mente está ocupada em esconder, admitir, moldar e construir atributos positivos que favorecem essa cumplicidade. Para acreditar na narrativa decidimos não acreditar no narrador tanto quanto ele quer que acreditemos – porque queremos continuar lendo a narrativa fielmente, apesar de discordar de algumas opiniões, propensões e obsessões do escritor.

8. Durante toda essa atividade mental, nossa memória trabalha muito e sem parar. Para encontrar sentido e prazer no universo que o escritor nos revela nós sentimos que temos de procurar o centro secreto do romance e, assim, tentamos engastar na memória cada detalhe do romance, como se procurássemos reter a aparência de cada uma das folhas de uma árvore. A menos que o escritor tenha simplificado e diluído seu mundo para ajudar o leitor desatento, lembrarmo-nos de tudo é difícil. Essa dificuldade também define os limites da forma novelística. O romance precisa ter uma extensão que nos permita lembrar todos os detalhes reunidos no processo da leitura, porque o significado de tudo que encontramos ao deslocarmo-nos pela paisagem está relacionado com tudo o mais com que cruzamos. Num romance bem construído, tudo está relacionado com tudo, e essa rede de relações forma a atmosfera do livro e, ao mesmo tempo, aponta para seu centro secreto.

9. Buscamos o centro secreto do romance com extrema atenção. Essa é a operação que a nossa mente executa com mais frequência quando lemos um romance, esteja ela ingenuamente inconsciente disso ou sentimentalmente reflexiva. O que distingue o romance de outras narrativas literárias é o fato de que ele tem um centro secreto. Ou, mais precisamente, o fato de que ele conta com nossa convicção de que existe um centro que devemos buscar enquanto lemos.

De que é feito o centro do romance? De tudo que faz o romance, poderíamos responder. Mas estamos convencidos de que esse centro está longe da superfície do romance, que seguimos palavra por palavra. Imaginamos que se situa no plano de fundo e é invisível, difícil de localizar, elusivo, quase dinâmico. Otimistas, achamos que os indicadores desse centro estão em toda parte e que o centro conecta todos os detalhes do romance, tudo que encontramos na superfície da vasta paisagem. Discutirei até que ponto esse centro é real, até que ponto é imaginário.

Porque sabemos – ou supomos – que o romance tem um centro, agimos, enquanto leitores, exatamente como o caçador que vê um indício em cada folha e cada galho quebrado e os examina com toda a atenção, à medida que avança pela paisagem. Vamos em frente, sentindo que cada nova palavra, objeto, personagem, protagonista, conversa, descrição, detalhe, todas as qualidades linguísticas e estilísticas do romance e as reviravoltas de sua narrativa sugerem e apontam para algo além do que é aparente. Essa convicção de que o romance tem um centro nos leva a crer que um detalhe aparentemente irrelevante pode ser significativo e que o sentido de tudo que está na superfície do romance pode ser muito diferente. O romance é uma narrativa aberta a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos proporciona a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos imerge num universo tridimensional se devem à presença do centro – real ou imaginário.

O que basicamente separa o romance do poema épico, da novela medieval ou da tradicional narrativa de aventuras é a ideia de um centro. O romance apresenta personagens muito mais complexas que as da epopeia; focaliza gente comum e escava todos os aspectos da vida cotidiana. Mas deve essas qualidades e esses poderes à presença de um centro em algum lugar e ao fato de que o lemos com esse tipo de esperança. Quando nos revela detalhes mundanos da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos cotidianos e objetos conhecidos, lemos com curiosidade – na verdade, com espanto –, porque sabemos que isso indica um significado mais profundo. Cada aspecto da paisagem geral, cada folha, cada flor é interessante e intrigante, porque esconde um significado oculto.

O romance pode se dirigir às pessoas da era moderna, na verdade a toda a humanidade, porque é uma ficção tridimensional. Pode falar de experiência pessoal, do conhecimento que adquirimos através dos sentidos e, ao mesmo tempo, pode oferecer um fragmento de conhecimento, uma intuição, uma pista sobre a coisa mais profunda – em outras palavras, sobre o centro, ou o que Tolstói chama de sentido da vida (ou como quer que o chamemos), esse local difícil de alcançar e que otimisticamente pensamos que existe. O sonho de alcançar o conhecimento mais profundo, mais precioso do mundo e da vida sem ter de enfrentar as dificuldades da filosofia ou as pressões sociais da religião – e de chegar lá com base em nossa própria experiência, usando nosso próprio intelecto – é um tipo de esperança muito igualitário, muito democrático.

Foi com grande intensidade e com essa esperança específica que li romances entre os 18 e os 30 anos. Cada romance que eu lia, sentado em minha sala em Istambul, proporcionava-me um universo tão rico em detalhes quanto qualquer enciclopédia ou museu, tão humano quanto minha própria existência e repleto de exigências, consolações e promessas que, em profundidade e extensão, só eram comparáveis às encontradas na filosofia e na religião. Eu lia romances como se estivesse sonhando, esquecendo tudo o mais, para adquirir conhecimento do mundo, para construir a mim mesmo e formar minha alma.

E. M. Forster diz, em Aspectos do Romance, que “o teste final de um romance será nosso afeto por ele”. Para mim, o valor de um romance está em seu poder de provocar uma busca por um centro que também podemos ingenuamente projetar no mundo. Para simplificar: a real medida desse valor deve ser a capacidade do romance de despertar a sensação de que a vida é, com efeito, exatamente assim. O romance deve se dirigir a nossas principais ideias sobre a vida e deve ser lido com a esperança de que fará isso.

Por causa de sua estrutura, adequada à busca e à descoberta de um significado oculto ou de um valor perdido, o gênero mais condizente com o espírito e a forma da arte novelística é o que os alemães chamam de Bildungsroman, ou “romance de formação”, que fala da moldagem, da educação e do amadurecimento de jovens protagonistas, à medida que se familiarizam com o mundo. Em minha juventude, eu me exercitava com a leitura desses livros (A Educação Sentimental, de Flaubert; A Montanha Mágica, de Mann). Pouco a pouco, comecei a ver o conhecimento fundamental que o centro do romance proporcionava – conhecimento do tipo de lugar que era o mundo e da natureza da vida – não só no centro, mas em toda parte do romance. Assim foi, talvez, porque cada frase de um bom romance suscita em nós um senso do conhecimento profundo e essencial do que significa existir neste mundo. Também aprendi que nossa trajetória por este mundo, a vida que levamos em cidades, ruas, casas, salas e na natureza consiste em nada mais que uma busca de um sentido secreto que pode ou não existir.

O romance pode suportar todo esse peso. Assim como leitores buscando o centro ao ler um romance, ou ingênuos e jovens protagonistas num Bildungsroman procurando o sentido da vida com curiosidade, sinceridade e fé, tentaremos avançar rumo ao centro da arte do romance. A vasta paisagem que percorremos nos levará ao escritor, à ideia de ficção e ficcionalidade, às personagens de um romance, à trama narrativa, ao problema do tempo, a objetos, ao ato de ver, a museus e a lugares que ainda não conseguimos prever – talvez como num romance real.
Orhan Pamuk

quarta-feira, junho 26

Leitura para pássaros

Dung Ho

A primeira vaca a gente nunca esquece

Você pode não acreditar, mas ainda existem sujeitos que, morando numa cidade grande e civilizada, quase às vésperas do século 21, nunca viram uma vaca. Ao vivo, quero dizer.

Eu — parece inacreditável. Mas há espécimes ilustres dessa fauna e um deles é o ministro José Serra. Há alguns meses ele deixou escapar numa entrevista que, ao visitar uma fazenda atendendo a solicitações de seu ministério, foi apresentado pela primeira vez a uma vaca. Serra disso isso de passagem, sem dar nenhuma importância ao fato. Mas os repórteres caíram em cima do assunto: como pode um homem adulto tão preparado — um ministro de Estado! — nunca ter visto uma vaca?

Serra teve de explicar-se: era um homem urbano, sempre morara em megalópoles, passara a vida afogado em números, tinha pouca intimidade com as coisas do campo. Sua resposta foi sincera, mas não convenceu muito. Os leitores mais caridosos limitaram-se a fazer tsk, tsk, pesarosos por todos os anos que ele perdeu por ter custado tanto a ver uma vaca.

Bem, de minha parte, compreendi exatamente o drama de Serra. Porque, entre outras coisas, até três ou quatro anos atrás, eu também nunca tinha visto uma vaca.

Quando ousadamente afirmo “nunca ter visto uma vaca”, subentenda-se que me estou referindo àquelas vacas que se deixam contemplar a 1 ou 2 metros de distância, que fazem um simpático “Mu!” à nossa aproximação e talvez até nos concedam um daqueles olhares longos e lânguidos, que os mais experientes garantem ser típicos das vacas. Vaquinhas de beira de estrada, que se vê em rebanhos quando passamos por eles de carro a 100 quilômetros por hora, evidentemente não contam — mesmo porque quem garante que se trata de vacas? (E se forem bois?) Vacas de cinema, televisão, histórias em quadrinho e presépio também não contam. O que conta é a vaca autêntica, leiteira e lindamente acessível no seu curralzinho.

Mesmo para quem, como eu, nasceu em Minas Gerais, é perfeitamente possível nunca ter visto uma vaca. As vacas, por algum motivo, preferem habitar as fazendas e não me recordo de ter ido a nenhuma na infância.

Nos anos 50, os grandes fazendeiros mineiros eram todos do antigo PSD, um partido político com forte vocação rural. Mas eu era fã de Carlos Lacerda e torcia pela UDN, o partido favorito da classe média urbana. Não era inimigo dos fazendeiros do PSD, mas também não queria saber de intimidades. Com isso, tive o que pode se chamar de uma infância atípica: em vez de passar as férias na fazenda, assistindo ao aleitamento das vacas ou às porcas dando crias, eu passava as férias no Rio, andando de bonde pra lá e pra cá ou indo ver o Flamengo no Maracanã.

Adolescente e já de vez no Rio, aí é que perdi por completo a chance de ver uma vaca. E assim se passaram os anos.

Até que o inesperado fez um surpresa. Em fins de 1992 ou 1993, o luxuoso Cesar Park, em Ipanema, hospedou uma vaca holandesa premiada, de passagem pelo Rio. Os jornais deram com grande destaque. A vaca grã-fina foi exposta na calçada do hotel, em plena avenida Vieira Souto, dentro de um quadradinho construído para ela. Eu passava casualmente por ali com uma amiga quando a vi. Cheguei mais perto para espiar. Ela tinha ar esnobe, mas, pelo jeito gracioso e femininamente vacum, parecia mesmo uma vaca. Ainda perguntei à minha amiga: “Tem certeza de que não é um boi?”.

Ela me garantiu: “É uma vaca. Conheço vacas. Boto a mão no fogo”.

E assim, depois dessa informação — literalmente — de cocheira, considerei perdida a minha inocência em matéria de vacas. Eu já podia me gabar de ter visto uma, ainda que grã-fina, esnobe e na Vieira Souto. Mas não há vacas perfeitas.

terça-feira, junho 25

Ajuda para selfie


Assim começa o livro...

O vulcão que erguera Taratua das profundezas do Pacífico já dormia há meio milhão de anos. Ainda assim, muito em breve", pensou Reinhold, "a ilha seria banhada por um fogo muito mais intenso do que as chamas que testemunharam seu nascer." Olhou em direção à plataforma de lançamento, e seu olhar escalou a pirâmide de andaimes que ainda cercava a Colombo. Sessenta metros acima do solo, a proa da nave apanhava os últimos raios do Sol poente. Esta seria uma das últimas noites que ela veria: logo estaria flutuando no dia eterno do espaço.

Aqui, debaixo das palmeiras, no alto da crista rochosa da ilha, imperava o silêncio. O único som do Projeto era o queixume esporádico de um compressor de ar, ou o grito indistinto de um dos operários. Reinhold aprendera a gostar destas palmeiras amontoadas: ao anoitecer, quase sempre vinha ali para contemplar o seu pequeno império. Entristecia-o pensar que elas seriam reduzidas a átomos quando a Colombo se erguesse para as estrelas, em meio a uma fúria flamejante.

A dois quilômetros dos recifes, o James Forrestal com seus holofotes vasculhava as águas escuras. O Sol agora já desaparecera de todo, e a rápida noite tropical vinha correndo do leste. Reinhold imaginava, com um leve sarcasmo, se o porta-aviões esperava encontrar submarinos russos tão perto da costa.

Pensar na Rússia fez com que se lembrasse, como sempre, de Konrad e daquela manhã na desastrosa primavera de 1945. Mais de trinta anos se passaram, mas a memória daqueles últimos dias, quando o Reich se desintegrava sob as ondas do Leste e do Oeste, nunca se desvanecera. Ainda conseguia ver os olhos azuis cansados de Konrad, e a barba dourada por fazer em seu queixo, quando apertaram as mãos e se despediram na cidadezinha prussiana arruinada, enquanto uma torrente ininterrupta de refugiados passava por eles. Fora uma despedida que simbolizava tudo o que acontecera desde então com o mundo: a divisão entre o Leste e o Oeste, pois Konrad escolhera a estrada para Moscou. Reinhold o considerara um tolo, mas agora não tinha tanta certeza.

Por trinta anos, imaginara que Konrad estivesse morto. Apenas na semana passada o coronel Sandmeyer, da Inteligência Técnica, havia lhe dado a notícia. Reinhold não gostava de Sandmeyer, e tinha certeza de que o sentimento era mútuo. Contudo, nenhum deles deixava que isso interferisse no trabalho.

- Sr. Hoffmann - o coronel começara, em seu melhor tom oficial -, acabo de receber algumas informações alarmantes de Washington. É claro que são extremamente secretas, mas resolvemos revelá-las para o pessoal de engenharia, para que compreendam a necessidade da pressa. - Fez uma pausa dramática, gesto que não surtiu efeito em Reinhold. De algum modo, já sabia o que viria a seguir.

- Os russos estão quase empatados conosco. Conseguiram um tipo de propulsão atômica. Pode até ser mais eficiente do que a nossa. E estão construindo uma nave às margens do Lago Baikal. Não sabemos até onde chegaram, mas a Inteligência acredita que ela possa ser lançada este ano. O senhor sabe o que isso significa.

"Sim", pensou Reinhold, "eu sei. A corrida começou... e podemos perder.

- Sabe quem é o chefe da equipe deles? - havia perguntado, sem esperar de fato uma resposta. Para sua surpresa, o coronel Sand- meyer empurrara sobre a mesa uma folha datilografada e, no alto dela, estava o nome: Konrad Schneider.

- O senhor conheceu muitos desses homens em Peenemünde, não foi? - perguntou o coronel. - Isso pode nos dar uma ideia dos métodos que usam. Gostaria que o senhor me preparasse notas sobre o maior número deles que puder: as especialidades, as ideias brilhantes que tiveram e assim por diante. Sei que estou pedindo muito, depois de todo esse tempo... Mas veja o que pode fazer.

- Konrad Schneider é o único que importa - Reinhold respondera. - Ele era brilhante. Os outros, apenas engenheiros competentes. Só Deus sabe o que ele pode ter feito em trinta anos. Não se esqueça de que ele deve ter visto cada um dos nossos resultados, e nós não vimos nenhum dos dele. Com isso, tem uma tremenda vantagem sobre nós.

Não pretendera, com aquilo, criticar a Inteligência, porém, por um momento, pareceu que Sandmeyer ficaria ofendido. Mas então o coronel deu de ombros.

- Tem suas vantagens e desvantagens, como o senhor mesmo me disse. O nosso livre intercâmbio de informações significa um progresso mais rápido, mesmo se deixamos escapar alguns segredos. Os departamentos de pesquisa russos não devem saber o que seu próprio pessoal faz durante metade do tempo. Vamos mostrar pra eles que a democracia pode chegar primeiro à Lua.

"Democracia... Besteira!!, pensou Reinhold, mas não era louco de dizer. Um Konrad Schneider valia um milhão de eleitores. E o que Konrad já teria feito a esta altura, com todos os recursos da URSS por trás dele? Quem sabe, neste mesmo instante, sua nave já estivesse se afastando da Terra...

segunda-feira, junho 24

Companhia no sono

Marina Rey

Pássaros cegos

Hajin Bae
O meu pai queixou-se que via luzes que o cegavam.

– Surgem de noite, pai? – perguntei.
– De noite estou a dormir – respondeu, amargo.
– Para mais, – acrescentou – o que sabes tu de luzes?
– Desculpe, pai.
– Falei-te dessas aparições apenas para marcares uma consulta.
– No médico?
– Não, no astrólogo – comentou com impaciente cinismo.
– Preciso explicar ao médico os seus sintomas.
– Porque lhes chamas “sintomas”? São luzes. Luzes. Atravessam os céus como setas velozes.


Estendeu o braço no vazio e apontou para além do horizonte. E comentou, mais sereno, que existia um Sol dentro dele, por debaixo das pálpebras. Não havia como fechar os olhos, defender-se daquele estonteante fulgor. E aquilo doía tanto que, em certos momentos, lhe apeteceu a sombra final. A das toupeiras, que fecham as pálpebras para não ficarem cegas.

– O senhor, meu pai, passa muito tempo sozinho. Rejeita companhia.
– Não quero que me façam companhia. Companhia faz-se aos doentes.

Baixei o rosto com o peso da culpa. Passam-se meses sem que o visite. A solidão era a sua doença. De tanto olhar o teto nasceram-lhe cintilações.

– O seu sistema nervoso...
– Não tenho, nunca tive.
– O quê?
– Sistema, nem nervoso nem qualquer outro. Não tenho metabolismo, não tenho organismo, não tenho reações químicas. Quando falar de mim, use palavras que me respeitem. Sou o seu pai...
– Vê porque é que ninguém quer ficar consigo? Deixe espreitar-lhe o fundo dos olhos.

Estava certo que não iria encontrar nada. Falsas queixas, simples apelação. Engano meu. Manchas brancas emergiam do fundo escuro daqueles olhos morenos. Pareciam andorinhas brancas no meio da noite. Foi o que disse ao meu pai.

– Estupidez, não há andorinhas brancas.
– Como sabe, pai? Há andorinhas de todas as cores e feitios.
– Mesmo que houvesse, andorinha não é pássaro para andar no escuro.

Marquei consulta. Demoraria um mês até que o chamassem. Todos os dias me perguntava, ansioso, pelo exame. Agora, as andorinhas já são aos rebanhos. Bandos, corrigi. Bandos são dos criminosos. E eu sofro de luzes, de pássaros, andorinhas brancas.

No dia marcado, recusou-se a sair. A bem dizer, a recusa irritava-me mas não me surpreendia. Sempre foi assim, impondo os seus caprichos a quem ele mais amava.


– Não vou. Já me habituei a isto. As luzes são a minha mais fiel companhia.
– Por favor, pai, entre no carro!
– Um médico, o que é que entende do meu caso? Devias procurar um eletricista.


No hospital, o meu velho demorou-se nos corredores. Passava uma enfermeira e ele parava, os olhos caçadores seguindo o vulto branco até que se desvanecia para além de uma qualquer porta. Gosto de as ver fardadas, comentou ante o meu agastamento. Pena a tua mãe nunca ter andado de farda.

O médico espreitou fundo, mergulhou nas águas escuras dos olhos cansados do meu pai. E passou para outra sala. Perante os painéis luminosos com letras negras de diferentes tamanhos, o meu velho reclamou: estes painéis já os li no exame anterior. Não tem uns novos, com novas letras, com mais novidades? Nesse momento, o médico desistiu do exame oftalmológico. E quis saber mais sobre a vida do paciente do que sobre os seus olhos doentes. No final, expressou-se de forma enigmática: quem vive na sombra, inventa luzes.

– Pássaros – corrigiu o pai.
– Foi o que disse, por outras palavras.

No final, o médico abriu os braços e prosseguiu com novo ênfase. Há casos em que a solidão acende incêndios nos olhos, a alma fica consumida em cinza. E deitou-me um olhar acusador. Defendi-me, com convicção: que companhia lhe posso fazer, doutor, saio de manhã e volto à noite, já ele dorme?

– A verdade, meu caro doutor, é que não tenho tempo para ser filho.
– E a sua esposa?
– Separámo-nos, não tinha tempo para ser marido.

No caminho de regresso, o meu pai seguiu à frente, peito enfunado, passos determinados ecoando sincopadamente pelo hospital. Regressava não a casa mas ao seu passado militar. Foi oficial do Exército até ao dia em que a nossa mãe morreu. Nesse dia, deixou tombar no chão a farda, as divisas e a arma e saiu em roupa interior pela porta do quartel. Foi nesse momento que as primeiras asas brancas lhe atravessaram os olhos. Os dedos trémulos massajaram apressadamente as pálpebras receando que o vissem chorar em público.

– Gostou da consulta, pai?
– Gostei tanto que nunca mais lá volto. Os médicos bons são aqueles que vemos uma vez na vida.

E recordei-lhe as recomendações. Ele que saísse de casa, passeasse pelas ruas, fosse ao parque. Que parque? Todo aquele terreno foi convertido num prédio, resmungou. Já não há jardins na cidade. E ainda nos admiramos que os pássaros nos entrem pelos olhos? Custava-lhe andar pelos enrugados passeios, a cidade estava mais envelhecida do que ele. Chegados a casa bateu a porta, reentrando na gruta escura onde habitava como um morcego às avessas. No dia seguinte, dei início às obras. Construía uma varanda, um espaço aberto e sombreado onde o meu pai faria o seu recanto. Recusou. Mandou mesmo que parasse as obras e se devolvessem os materiais.

– Na varanda, o senhor fica a ver as pessoas.
– As pessoas? – E sorriu, sacudindo a cabeça.
– Faça isso pelos pássaros. Vão gostar de ver o céu.
– Que céu? – perguntou.
– Pai, faça-me a vontade. Deixe-me acabar a varanda.
– Fico dentro, filho. O teto da minha casa é maior do que o céu. E quando me enterrarem façam-no aqui dentro. Não por mim. Mas pelos pássaros.

domingo, junho 23

No mundo da aventura


Aurora Boreal

Jessie Willcox Smith
Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

António Gedeão, "Obra Poética"

O viajante do tempo


A minha Ilha do Tesouro

Décadas antes de a palavra se integrar na nossa língua, eu já era um perfeito "nerd". Como a palavra ainda não existia, os meus colegas olhavam para mim e nem sequer me viam (não vemos o que está por nomear). Vivi assim largos anos de quase invisibilidade e pacífica inexistência.

Conversando com amigos da minha idade percebo que todos eles atravessaram juventudes agitadíssimas, trágicas e épicas: amores loucos, prisões políticas, esportes radicais, acidentes, drogas e álcool. Eu não. Provavelmente, nunca fui jovem. Ou talvez tenha sido, mas apenas por dois ou três vertiginosos dias, muitos anos depois.

Uma das poucas vantagens desta tragédia íntima é que, ao contrário dos meus amigos, não sofro com saudades da juventude. Enquanto os meus colegas praticavam a juventude, eu percorria os sebos de Lisboa, cidade onde estudei Agronomia e Silvicultura, comprando livros antigos ao preço da chuva, algo que já não é mais possível, porque os alfarrabistas se transformaram numa espécie de lojas gourmet para bibliófilos. Assim, a segunda vantagem é que enriqueci a biblioteca com uma meia dúzia de livros raros.


Os títulos mais preciosos que guardo, aqueles que correria para salvar em caso de incêndio, foram adquiridos nessa época, quando eu tinha vinte anos, a um velho alfarrabista alemão, o senhor Berkemeyer, que nunca tendo estado em África sabia tudo sobre o continente: são os quatro álbuns de fotografias de José Augusto Cunha Moraes sobre Angola, “África Occidental”, publicados entre 1885 e 1888. Os álbuns reúnem imagens incrivelmente bonitas de um jovem país em construção, das antigas cidades, como Luanda e Benguela, às florestas do norte e aos desertos do sul, testemunhando a riqueza das tradições dos diferentes povos que integram Angola e, ao mesmo tempo, a crueldade do regime colonial.

Há poucos dias, após participar de um evento literário numa pequena cidade portuguesa, veio ter comigo um homem alto, simpático, que, depois de me cumprimentar, anunciou ser descendente de José Augusto Cunha Moraes. O autor de “África Occidental” nasceu em Coimbra em 1855, mas radicou-se ainda menino em Luanda, onde o pai montara um estúdio de fotografia. Naquela época os negativos eram impressos em placas de vidro. Os positivos dessas imagens possuem um detalhe e um luxo de tons de cinza que ainda hoje as melhores câmeras têm dificuldade em igualar. A família de Cunha Moraes guardou, ao que parece em boas condições, centenas dessas placas.

Combinei com o neto de Cunha Moraes visitar o Porto, em breve, para conhecer o acervo do fotógrafo. É como se um velho pirata me tivesse aparecido do nada, para me levar à Ilha do Tesouro.

Espero que um dia essas fotografias originais possam ser expostas e reunidas num ou mais álbuns. As imagens de Cunha Moraes são janelas abertas sobre um mundo que desapareceu há muito. Sinto sempre o impulso de saltar por uma dessas janelas, mesmo sabendo que me aguardaria um tempo mais cruel do que este em que vivemos. Ah! Mas aquelas praias limpas, sem restos de plástico; aquelas pessoas que posam assustadas — quantas histórias teriam para contar?

Quantas histórias esperando para serem contadas, naquela casa do Porto, que guarda as fotografias de Cunha Moraes?
José Eduardo Agualusa 

sábado, junho 22

Lugar para passear

David Burliuk

É preciso que decantem

 Sara Ugolotti
Desconfio dos livros de sucesso, e desses, em geral, só vou ler os que tiveram um tempo de decantação
José Mindlin

Decoração


Vide televisão

Paisagem diária, repetitiva: deve haver umas quinze pessoas espalhadas no footing, entre os dois cinemas. Footing: passeio, passear, andar. Ninguém anda: nothing. Devia propor a modificação. Passa muita gente de carro. Surgem e desaparecem. Não consigo chegar à conclusão a respeito do desaparecimento deste povo. Por que se enfiaram em suas casas? Apenas a televisão? Ela pode ter sido chamariz justificativo. O argumento final. A descoberta. Quando visito meus parentes, fico deslumbrado com o ritual celebrado religiosamente na sala principal. A deusa quadrada emitindo brilho azulado e as pessoas sentadas. Silenciosamente, diante dela. Absorvendo. Nenhuma deusa dominou tanto os homens quanto esta. Por ela, os homens abandonaram tudo, se entregaram. No entanto, às vezes, pergunto: ela é que atraiu, ou os homens é que fugiram? Da rua, da calçada, do ar livre, do céu aberto, do cheiro de madressilva. Eu me lembro da minha rua, nas noites de verão, como uma grande assembleia de cadeiras na calçada. Diante das portas as cadeiras se reuniam em roda e alcançavam o meio da rua. Podia-se medir o relacionamento de uma pessoa pelo grupo que se formava em torno dela, depois do jantar. Recolheram pouco a pouco as cadeiras, e sobraram apenas alguns renitentes solitários, isolados, que não têm com quem conversar. Serão atropelados por um carro, qualquer noite.Tenho horror que me julguem o sacerdote de um culto nostálgico. O que pretendo dizer é que existiam no mundo situações muito humanas. Contato, reunião, troca de opiniões, conversa, enriquecimento mútuo, alegria no convívio. O povo se isolou voluntariamente ou inconscientemente? De repente, a rua passou a meter medo. Ou foi o poder de atração (sedução) da deusa azulada que modificou tudo?
Ignácio de Loyola Brandão, "Dentes ao sol"

sexta-feira, junho 21

Leitores de parque


Cerromaior (trecho)

A maior parte dos camponeses já havia feito as compras e enchera as vendas do largo. De quando em quando, atraídos pelas gargalhadas dos que estavam de fora, chegavam às portas.

O motivo do riso era a loucura mansa do aguadeiro, já bêbado, de fralda de camisa fora das calças, ajoelhado diante do burro.

O meu burro é um santo!

Cada domingo, a bebedeira trazia novos aspectos à doidice do Zé da Água. Perante as gargalhadas gerais, obrigava o burro a bater com as patas repetidas vezes no chão enquanto agitava ele os pés descalços, num compasso marcado.


Estavam a dançar o fandango. Por fim parou. Um sorriso alvar escorria-lhe do rosto e dos olhos aguadas e era, num momento, substituído por tal expressão de espanto que os olhos mortiços se lhe abriam atónitos.

Ganha-me o pão e ainda dança que nem um homem! Continua a falar e o animal segue-o, rua acima. As bilhas vão escorrendo, duas de cada lado da albarda. De súbito, Zé da Água salta e dá punhadas no peito, enquanto grita para o largo: É mais esperto que vocês todos juntos! Ajoelha de novo, põe as mãos e atira a voz para as alturas: Nosso Senhor mo guarde!...

[...]

Um cego, arrastando uma cantilena gritada, apareceu lá ao cimo da rua. Vinha a passo lento, batido, o corpo ora a um lado, ora a outro. Perto, uma criança de cabelos caídos sobre os olhos estendia a mão a esmolas.

Todos se voltaram desinteressados do fumo que se extinguia lentamente.

Desviando-se de um e de outro, Zé da Água largou o burro e correu a ajoelhar-se em frente do cego.

Pôs-se a bater no peito. Atirava a cabeça para trás. Nos olhos redondos parava-se um espanto idiota.

O garoto desviou o mendigo. A mão do cego, num movimento igual, passava e repassava pelas cordas desafinadas da guitarra. De calça rasgada, mostrando o joelho magro e sujo, o cego caminhava a passo certo.

A voz gritada era monótona, oca. Os olhos eram brancos, baços. E passou cantando como se a vila estivesse deserta.

Ficou um rastro de silêncio enchendo a rua: os moços, sérios; os namorados, tristes; os homens, mudos, abrindo alas para o cego passar. De joelhos, todo dobrado, Zé da Água tocava com a testa nas pedras da rua.

Por detrás, sobre os telhados da vila, as muralhas do Castelo eram de sépia, no céu azul da tardinha.