segunda-feira, novembro 30

Receita de escritor


Necessitamos de realismo e imaginação para criar um bom romance. Como leitor, não gosto nada de narrativas fantásticas, entedio-me com tudo o que tem que ver com magia
Ken Follett

Ao espaço, passo a passo

 

 Vesna Benedetič

Livreiros e livrarias

Dê Alemeida
Antes da livraria, havia o livreiro. E já na época do Império. Consta que, em 1775, o cidadão Antônio Máximo de Brito pediu licença à mesa censória de Lisboa para importar cerca de 20 títulos, em português e francês. É o primeiro documento de que se tem notícia, no Brasil, sobre compra de livros com o fito de revenda.

Descobri o episódio ao fuçar a História das livrarias cariocas. No estudo, Ubiratan Machado relata as iniciativas individuais desses miúdos e desbravadores livreiros, a abertura das primeiras lojas no Rio de Janeiro, os casos de sucesso que atravessaram décadas, o aparecimento das grandes redes.

Para além de simples estabelecimentos de comércio, as livrarias da cidade se consolidaram como pontos de encontro. Espaços onde escritores, dramaturgos, artistas plásticos podiam conversar sobre estética, filosofia e política, além de praticar um de seus exercícios prediletos: a maledicência sobre os próprios pares.



No princípio do Século 19, o point era a Mongie, na Rua do Ouvidor. Por lá passaram autores como o romancista Joaquim Manuel de Macedo e os poetas Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães. Um pouco mais tarde, mas ainda dentro do século, o posto seria assumido pela Garnier, que também ficava na Ouvidor – como, aliás, a maioria das livrarias da cidade naquele tempo.

O francês Baptiste Louis Garnier trabalhava preferencialmente com obras editadas em seu país. Era conhecido por cobrar caro pelos livros, o que levou certo dia um jornalista a indagar por que não baixava os preços, compensando o lucro menor na escala maior de venda. “A regra é o aumento do consumo na razão da barateza do mercado”, argumentou o interlocutor. “Isso é possível em princípio”, admitiu Garnier, para então completar: “Só que os fatos aqui são rebeldes”.

Garnier era concorrente de Francisco de Paula Brito, que mantinha um misto de livraria, papelaria, tipografia e editora na Praça da Constituição (hoje, Praça Tiradentes). Sua firma era frequentada por gente como Machado de Assis, Manuel de Araújo Porto-Alegre e Casimiro de Abreu. Paula Brito, vale lembrar, foi o primeiro editor de Machado.

A turma costuma se sentar nos bancos de madeira estrategicamente instalados na calçada da loja para papear sem compromisso e observar a vida do Centro da cidade. Aos sábados, realizavam no local os encontros da Sociedade Petalógica, confraria de conversas sobre os mais variados assuntos, da beleza apolínea de um soneto à pirueta da dançarina da moda.

Livrarias como a José Olympio e a Freitas Bastos, onde Di Cavalcanti e o poeta Ronald de Carvalho chegaram às vias de fato, mantiveram essa tradição. Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Aníbal Machado e José Lins do Rêgo, por exemplo, eram figurinhas fáceis na José Olympio, cuja loja se localizava – adivinhe só ­– na Rua do Ouvidor. Graciliano Ramos, então morando numa pensão na Rua do Catete, passava o endereço da livraria a quem quisesse lhe enviar cartas. Era mais fácil encontrá-lo por lá do que em casa.

Tendo conhecido a literatura por meio do Círculo do Livro, clube de comércio com entrega a domicílio, só distingui as livrarias de coração quando já adulto. Primeiro, foi a Timbre, na Gávea. O corpulento Aluízio Leite, sócio e livreiro da loja, adorava indicar novas obras aos clientes habituais, e minha relativa ignorância transformava praticamente tudo em novidade. Sempre sentado à mesa que ficava logo após a porta de vidro, ele repelia obras de auto-ajuda (até as vendia, mas só com pagamento em dinheiro) e não hesitava em qualificar de ruim um livro, caso assim o julgasse. Aluízio tinha um humor cáustico. Quando certa vez uma dona lhe perguntou onde poderia encontrar livraria especializada em bonsais, respondeu de pronto: “Em Tóquio, minha senhora”.

Passei boas horas da minha vida na Timbre, depois revezando com a vizinha Bookmakers, que era dotada de uma especial vantagem: vendia, além de livros, café, vinho e cerveja. Quando comecei a trabalhar no Centro, a Leonardo da Vinci e a Galáxia se tornaram as paragens preferenciais. Dariam lugar, em alguns anos, à Livraria da Travessa original, na Travessa do Ouvidor, e à Folha Seca.

Comandada pelo querido Rodrigo Ferrari, a Folha Seca talvez seja hoje a livraria carioca que melhor se filia à tradição da Mongie, da Garnier, da Freitas Bastos, da José Olympio. Além da feliz coincidência de se situar na Rua do Ouvidor, a empresa tem no Rodrigo uma espécie de Paula Brito contemporâneo. Mais que livreiro e editor, ele é o imã que chama, à pequenina loja de número 37, historiadores, escritores, músicos, caricaturistas e toda sorte de malucos fundamentais.

E livrarias como a Folha Seca não são apenas lugares onde se vendem livros. São, como diria Borges, todo o universo. O labirinto em que a gente se perde só para experimentar, novamente, o assombro de se encontrar.

sexta-feira, novembro 27

Leitura na chuva

 

 Guy Shield

Que se passa conosco?

Lera Kiryakova
Deixou de se ler os grandes autores. Há uma confusão latente nas escolhas e nas preferências. No entanto, houve tempo, em Portugal, que a leitura era uma coadjuvante que parecia colmatar as nossas pequenas angústias. Pertenço a esse tempo malfadado. E tudo indica que o revolutear dos anos não conseguiu alterar a urgência que há em ler, em discutir com os amigos o conteúdo das coisas.

O Presidente Marcelo insistiu, há dias, na ausência de interesse pela leitura, e na necessidade de se inverter essa tendência. Lê-se pouco, muito pouco, aqueles dos autores que nos ensinaram a entender o mundo e os homens. E há, em demasia, programas sobre futebol, que constituem enxúndias de destroços morais e mentais.

Os mecanismos do poder moderno e da arte de governar dissolvem as questões essenciais, centradas nos aspectos mais supérfluos do nosso viver. Sei muito bem que o desvio dessas imposições conduz a resultados imprevisíveis.

O meu saudoso amigo Carlos Pinhão contou-me que tentou fazer, n’A Bola, uma inversão de valores. Estávamos, ainda, no rescaldo do 25 de Abril, e as coisas pareciam ter justificação. A intenção daquele querido companheiro gorou-se. E as tiragens do jornal caíram, de tal forma que tiveram de voltar ao costume.

Claro que o assunto escapa a toda a consideração formal do fenómeno político, mas não pode fugir a uma análise, mesmo superficial, dos modos de exercício do poder moderno e das debilidades da crítica de costumes. Para aonde vamos? 

Estive doente durante quinze dias e apercebi-me do vazio inextrincavelmente ligado à ausência de conflito de que as televisões são espelho e regra. O futebol é tido e havido como a custódia das nossas urgências. E, com um mínimo de atenção, verificamos que o futebol tomou conta das nossas vidas, criando uma tensão peculiar que faz com que os seus mais fanáticos utentes e consumidores se ausentem dos aspectos mais prementes e complexos da suas vidas.
Baptista-Bastos

quinta-feira, novembro 26

Eis a questão

 

Masha Dudar

Jardim

Um inglês plantou um jardim dentro de um garrafão de vidro. Isso foi em 1960. A última rega que o jardim recebeu foi em 1972. De lá pra cá o ecossistema no interior do garrafão equilibrou-se e cresceu autossuficiente, necessitando somente de luz solar.


O feito do britânico demonstra mais uma vez que a natureza sempre encontra um jeito. De fato, quem precisa de muito somos nós. Para a natureza basta o sol e este lindo planeta, tal qual o temos compartilhado desde que inauguramos nosso caminhar ereto. Já a espécie humana se comporta como se um planeta apenas não fosse suficiente. Olha que somos de longe o melhor pouso deste sistema solar. Não é bairrismo, tiro onda porque para além de Marte, por enquanto, nem adianta sonhar.

Há quem nos defenda. Dizem que a humanidade também encontra um jeito, reparando por exemplo em soluções novas para lidar com a enorme quantidade de plástico que polui nossos oceanos. Mas junto da natureza somos mais jovens que bebês. Ela já ditava o ciclo da vida milhões de anos antes de esquecermos um pouco as caçadas e descobrirmos que dava para viver plantando e colhendo num cantinho que pudéssemos chamar de nosso.

Desconfio que foi nessa encruzilhada que começou a treta. Quando passamos a chamar de nosso um lugar que pertence também a bilhões de outras espécies iniciamos a dar prejú. Tem quem não considera absurdo extinguir uma espécie. Tem quem ache normal derrubar uma árvore centenária. A treta tá feia. Não vou entrar no campo minado da alimentação porque vou me enrolar, tenho minhas dificuldades, igual geral. Mas algum consenso creio que já poderíamos ter alcançado.

Adianta pensar em colonizar a Lua? Não sorri por lá nem uma plantinha, um jequitibá, não canta um uirapuru. Teremos que levar a floresta daqui. Por via da dúvidas, por gentileza, seu Latimer, cuide bem do garrafão.
Marco Antonio

terça-feira, novembro 24

Cada um acha seu caminho

 

 Laufer

Amor de Carnaval

A primeira vez que o vi foi numa batalha de confetes. O dia tinha sido chuvoso. De vez em quando uma bátega d’água caía, prenunciando uma tarde com aguaceiro. A todo instante chegava {a janela para olhar o tempo. Logo naquela tarde em que pretendia estrear meu vestido novo, a chuva queria estragar os meus planos.

De cada vez que sondava o céu com os olhos, mamãe, que no meio de seus afazeres me observava, dizia:

— Não adianta olhar para o céu, hoje não tem batalha alguma. À tarde vamos ter temporal.

Nos entreolhávamos, eu e minha prima e respondia, mal-humorada:

— A senhora tá agourando pra gente não brincar. Bem que no seu tempo gostava de aproveitar.

Lá pela tardinha o tempo melhorou, o céu tingiu-se de uns laivos rosa.

“Graças a Deus”, pensei.

Ao escurecer, saímos. Vestia o famoso vestido novo. DE seda bois-de-rose, saia plissada, gola de pelerina, uma gravata de laço, estampada. A praia se achava repleta. Os passeios cheios de gente que ia e vinha, blocos de toda espécie, que passavam cantando, interrompendo o trânsito. Os carros circulavam vagarosamente, conduzindo foliões de outros bairros, famílias, moças e rapazes que lançavam serpentinas e confetes sobre a multidão que estacionava no passeio. Em frente ao posto 4 se achava o palanque para os membros do concurso de samba. Parou um carro e dele desceram os juízes que iriam julgar qual o melhor do carnaval daquele ano. O povo se comprimia mais ainda naquele ponto, paralisando completamente a circulação. Junto a um banco, eu olhava a multidão que se divertia. A orquestra começou a tocar o Olha, escuta meu bem …, que foi acompanhado pelo vozerio da multidão alegre. As luzes se acenderam, o burburinho era cada vez maior. Milhares de rolos de serpentinas coloridas eram atiradas dos carros, entrelaçando-se por sobre os fios, caindo na calçada em blocos ou não, se espalhavam em toda extensão da avenida, alguns cantando ao som de pequenas orquestras populares. Bandos de mulatas fantasiadas, se requebrando, em blocos ou não, se espalhavam em toda extensão da avenida, alguns cantando ao som de pequenas orquestras populares. Um frio nas pernas e, instintivamente, levei a mão às meias. Olhei em torno e não vi ninguém que me pudesse ter atirado lança-perfume. “Provavelmente, algum esguicho extraviado”, pensei, continuando a olhar os carros que passavam. A banda do palanque atacava agora uma marchinha do meu agrado, muito em voga na época.

Foi quando senti de novo o frio nas pernas. Evidentemente, desta vez era comigo. Procurei com os olhos entre a multidão que se encontrava próximo de mim e não vi ninguém conhecido. Um vozerio acompanhado de palmas fez-se ouvir por minutos. Acabava de subir ao palanque, sendo reconhecida pela multidão, que a aplaudia freneticamente, uma conhecida cantora popular. Às palmas e ao vozerio vieram juntar-se as buzinas dos vários carros parados ao longo da praia. Tentava abrir caminho entre o povo, sufocada pelo aperto que se fizera ao redor, quando o mesmo esguicho frio nas pernas me fez lançar um olhar rápido à minha frente: à distância de um metro mais ou menos, o vi pela primeira vez, que sorria para mim. Siegfried ou outro herói de Wagner, pois só podia ser um herói de lenda alemã. Correspondi-lhe ao sorriso e a partir de então começou o tempo do amor, o tempo do sofrimento, o tempo pelo qual esperava, o mais belo momento da minha vida.

Maria Helena Cardoso, "Por onde andou meu coração: memórias"

segunda-feira, novembro 23

Casa de leitor

 


O lado errado

Acha que escreveu um romance feminista?, perguntou-me a Martine, a jornalista francesa, já a entrevista ia a meio. Olhei pela janela, via as costas do Panteão, na véspera fotografara a sua imponente fachada com a frase inscrita, “Aux grands hommes, la Patrie reconnaissante”. Tentei controlar as garras que me esgravatavam a garganta, esperando que o anti-histamínico que havia tomado há pouco as amansasse. Mal descera à sala de estar do hotel, ainda a Martine preparava o gravador, senti a aflição que tão bem conheço, pigarreei, de nada serviria, o meu corpo detetara alguma coisa que o pusera em alerta, dali a instantes teria um ataque de tosse, os olhos lacrimejantes, o nariz a escorrer. Um dos primeiros alergologistas que consultei explicou-me que as alergias resultam de uma hiper-reação do sistema imunitário, o meu corpo engana-se, inventa perigos em coisas inofensivas como pólen, pó, pelos de gato ou de cão, perfumes, laca de cabelo, o meu corpo demasiado receoso, demasiado prudente, talvez demasiado ávido de inimigos, numa defesa exagerada contra quase tudo. A Martine continuava à espera da minha opinião sobre o feminismo no meu romance, respirei fundo, pedi desculpa, Preciso de ir um bocadinho lá fora.

Dois homens que conversavam junto à entrada do hotel, mantendo entre eles a distância de segurança de metro e meio, olharam-me amedrontados, Oh mon dieu, comme elle tousse. O de sobretudo azul afastou-se e o outro seguiu-o. Escangalhada no meio do passeio, tentei recompor-me, inspirei fundo pelo nariz, expirei pela boca, repeti, o ar fresco foi sossegando os canais que levavam para dentro de mim pedacinhos do mundo que me rodeava. Quando regressei à sala do hotel, a Martine lamentou, Talvez seja por minha causa, tenho cinco gatos. Sentei-me junto dela, o anti-histamínico começava a fazer efeito. A Eliete é feminista?, é uma heroína dos nossos tempos?

Susa Monteiro


Que pena esta miúda ter nascido do lado errado, se fosse um rapaz… ouvi o meu pai dizer à minha mãe no dia em que aprendi a ler sozinha, o meu pai estava tão orgulhoso da minha proeza. Muitos anos mais tarde, contei-lhe que tinha ouvido a conversa deles. O meu pai não se lembrava, negou que ela tivesse acontecido. Mas se eu era ainda muito pequena no dia em que aprendi a ler, no final da quarta classe já havia crescido o suficiente para que não houvesse qualquer fantasia na memória que guardo de ele a despedir-se da minha professora, a professora acabara de elogiar-me, desejava-me felicidades, e o meu pai, Se esta miúda não tivesse nascido do lado errado, podia ser o que quisesse.

O meu pai não dizia estas coisas por mal. Nascido em 1929, numa aldeia transmontana, cresceu a ver o meu avô agredir violentamente a minha avó. Ser rapaz tinha-o poupado aos maus-tratos e desde muito cedo começou a instruir-me, Tens de tirar um curso, não podes depender de um homem, a voz do meu pai sempre presente nas aulas, Esforça-te por seres boa aluna, os estudos são o passaporte para a tua independência.

Em criança, ainda tentei compensar a falta do cromossoma Y. Subia mais depressa às árvores do que os rapazes do bairro, tinha em geral melhor resultado escolar do que eles, usava o cabelo curto e abominava bonecas e vestidos, Parece mesmo um rapazinho, diziam as vizinhas à minha mãe, levando-me a pensar que, afinal, era fácil corrigir o erro. Só que à medida que o meu corpo foi crescendo, as vizinhas, os familiares, as professoras alertavam a minha mãe, É uma maria-rapaz, Se não tem mão nela, não se livra de um desgosto, Há coisas que uma menina não deve fazer. A lista das coisas que uma menina não devia fazer aumentava de dia para dia, assim como a dos cuidados que uma menina devia ter, uma humilhante lista escrita ao longo dos séculos que, ainda que eu me rebelasse contra ela, ia condicionando o meu pensamento, a maneira de me comportar, as minhas opções de vida.

A sua escrita é pelo menos feminina?, continuou a Martine, possivelmente insatisfeita com a resposta que lhe terei dado, devolvendo-me ao hotel e ao presente, Não sei o que é escrita feminina, escrevo com tudo o que sou, com tudo o que vivi, sou mulher, não posso nem quero fugir disso. Também não podia fugir do meu corpo em pé de guerra, a produzir disparatadamente histamina que, em vez de me proteger, me agredia. Que fazer se um corpo se torna excessivamente reativo?, se o deixarmos descontrolado ele acaba por virar-se contra si mesmo, se o moderarmos ele baixa sonolentamente as defesas, quer em relação a perigos inventados quer a reais. Eu começava a sentir os efeitos secundários do anti-histamínico.

Há arte feminina e masculina? Amolecida, fiz um esforço para encontrar uma resposta em que me reconhecesse.

As mulheres só acederam recentemente ao poder e a arte é uma forma de poder. Aliás, por a arte ser indevidamente desvalorizada – e consequentemente desprezado o seu poder – algumas mulheres foram criadoras de obras artísticas muito antes de lhes ter sido permitido aceder a outras formas de poder entendidas como mais importantes. Sempre, claro está, numa desproporção gigantesca em relação aos homens. Mas não penso que haja uma arte feminina ou masculina, isso seria negar ao criador o gesto artístico de se ampliar, de ser diferente, de ser outro. Tenho em mim todos os outros e todo o mundo, criar é procurar um leito diferente daquele em que a biologia, a sociedade e a cultura me verteram, procurar caminhos por onde possa – qual rio – desaguar no mar. Independentemente de esse mar ser a morte ou a eternidade.

Acha que a eternidade será igual para os homens e para as mulheres?, desafiou-me a Martine, o gravador já desligado. Despedimo-nos com a distância imposta pela pandemia e pelo peso soturno do Panteão.

Aux femmes, ma grande reconnaisance.

sábado, novembro 21

Fim de semana

 


Nossa alada segurança

Está aqui uma coisa com que eu não contava. O brasileiro acredita no anjo da guarda. A gente anda tão descrente de tudo, num astral tão baixo, que me veio um alento quando li a pesquisa. Não tenho ideia de como se chegou a essa curiosidade. Mas, ao lado de Deus, a Saldiva perguntou pelos anjos. Noventa e três por cento dos brasileiros têm fé em Deus. Noventa e um por cento acreditam nos anjos. Em particular no anjo da guarda. E a tal ponto que até o conhecem pessoalmente. 

Sim, alguns já o viram. Juram que o viram. Tal qual Murilo Mendes viu Mozart, no quarto do casarão das russas em que morava em Botafogo. Essas testemunhas de vista garantem que o anjo da guarda parece um homem de carne e osso. Parece e não parece. Primeiro, é alto, louro e forte. Medidas exatas, bem-proporcionado como um atleta, mas com uma luz que o nimba de espiritualidade. Ah, ia esquecendo: e tem asas. Não está dito se as asas estão abertas ou fechadas. 

Presumo que em estado de repouso, como foi visto, não apareçam as asas. Como um pássaro de asas elegantemente recolhidas. O brasileiro pode ser feio, pobre e doente. Pode até morar longe. Mas tem um anjo só para ele. Mendigo ou empresário. Branco ou negro. Gabiru que seja, pequetito, mal alimentado, tem direito ao seu anjo exclusivo. Alto, louro e forte. Sempre gostei dessa ideia de um anjo da guarda que nos livra da solidão. Um homem só é um homem mal acompanhado, dizia o Gide.

Pessimamente acompanhado estará o brasileiro sozinho hoje em dia. Carente, sonhador, ansioso, seria de fato um risco deixá-lo só. Juntos, dois brasileiros seriam na certa má companhia um para o outro. E vice-versa. Só lhes viriam caraminholas à cabeça. E acabavam fazendo bobagem. O anjo da guarda não só faz companhia e conforta, como assiste e aconselha. Por isso é que esse pessoal que saqueia os supermercados opera de madrugada. Enganam os próprios anjos. Saem à socapa. 

Sem entrar na controvérsia teológica, há todo um folclore sobre o anjo da guarda. Diz o povo que o anjo vai embora se você dorme pelado. Se dorme com sede, o pobre do anjinho chega a morrer afogado, ao tentar beber água. Contrariado ou até distraído, pode se afastar por um momento. E lá se vai a nossa segurança. Guarda-costas, capanguinha do bem, no anjo da guarda está a nossa garantia. Alto, louro e forte, como o viram. Ou como o projetamos. Amém.

Nestes tempos, é ótima mudança

 

Miguel Morales Madrigal 


Escritores e os seus gatos

T.S. Elliot escreveu um livro inteiro sobre eles, que são protagonistas de vários contos de Edgar Allan Poe e de três poemas no clássico “As flores do mal”, de Charles Baudelaire. Truman Capote, Anton Tchecov, Lewis Carrol, W.B. Yeats, Jorge Luis Borges e Ezra Pound também viveram cercados por esses animais tão queridos quanto odiados. A exemplo de Ernest Hemingway, que chegou a ter cinquenta na sua propriedade da Ilha de Key West, nos EUA. A lista parece interminável: Aldous Huxley, Victor Hugo, Herman Hesse, H. P. Lovecraft, Guimarães Rosa, Mark Twain, Honoré de Balzac, La Fontaine, Ferreira Gullar, Lord Byron, William Faulkner, Raymond Chandler, Jean-Paul Sartre, Carlos Drummond de Andrade, Mia Couto, Julio Cortazar, Stephen King. Mas, afinal, que tipo de afeto une tão intensamente os escritores aos gatos?

A liberdade, afirmam alguns. A discrição, ponderam outros. “Gosto de gatos porque eles são elegantes e silenciosos, e têm efeito decorativo; uns leõezinhos razoavelmente dóceis, andando pela casa”, conta Patricia Highsmith no ensaio que dedicou aos felinos. Eu, que convivo com eles há cinco anos, diria que uma resposta concreta é improvável. E que o amor que se revelam capazes de acender deriva de um tanto de coisas, muitas delas indecifráveis. Assim como os gatos são.


Mila, a minha gata, é silenciosa a maior parte do tempo. Quando quer atenção, ou comida, arranha o pé da cama ou simplesmente mia. “Como todas as criaturas puras, os gatos são práticos”, já disse William S. Burroughs. A relativa independência evita a necessidade permanente de atenção, embora isso não deva ser confundido com indiferença (as consequências seriam terríveis).

Além disso, gatos dormem muito, o que garante a placidez imprescindível ao ofício da escrita. Charles Bukowski admirava-os justamente pela capacidade de acumular até 20 horas de sono por dia, “sem hesitação e sem remorsos”.
“Os gatos oferecem para o escritor algo que os outros humanos não conseguem: companhia que não é exigente nem intrometida, que é tão tranquila e em constante transformação quanto um mar plácido que mal se move”, observa Patricia Highsmith. São, ainda, implicantes e vaidosos. Traços inconfundíveis, apesar de nem sempre confessáveis, também daqueles que rendem suas horas à escrita.

Ao perceber que uma pessoa não quer a sua companhia, o gato se apressa em forçar uma aproximação travessa, esfregando-se nas pernas do incauto ou pulando para o colo. Em contrapartida, desdenha por simples diversão quem se achega trazendo carinhos. “O gato não é humilde”, sintetiza Lygia Fagundes Telles, outra amante dos felinos.

Pablo Neruda chamava os gatos de “pequenos imperadores sem orbe”, e num de seus poemas confessou: “Tudo sei, a vida e o seu arquipélago, / o mar e a cidade incalculável, / a botânica / o gineceu com os seus extravios, / o pôr e o menos da matemática, / os funis vulcânicos do mundo, / a casca irreal do crocodilo, (…) / mas não posso decifrar um gato”.

Talvez, no fundo, a paixão dos escritores pelos gatos se defina nessa afeição pelo que é incompreensível. “O gato, que nunca leu Kant, é possivelmente um animal metafísico”, comentou certa vez Machado de Assis. 

Quando esbarro meus olhos nos olhos da Mila – fixos, firmes, enigmáticos -, a frase ecoa, fazendo vibrar notas sempre novas, sempre originais. Mas esqueçamos por um segundo todo o mistério. Se como disse Patricia Highsmith, “o gato faz de um lar, um lar”, Mila é a minha casa. E isso basta. 
Marcelo Moutinho

sexta-feira, novembro 20

A quase moça Edelzuíta

Kim Younggon
Edelzuíta sabia contar histórias para o gosto de cada menino. História de encantamento, com gente, bicho, religiosa, de exemplo e assombração. Sabia contar cada uma melhor do que a outra. Algumas histórias que contava causavam alegria, fazendo todo mundo sorrir. Era quase uma moça, cabelos finos, rosto pálido, tinha os traços de cabocla. Trabalhava no sobrado amarelo do funcionário do banco. Varria os cômodos, limpava os móveis, lavava e enxugava a louça. Levava Tânia, a filha da patroa, ao colégio todos os dias. A gente ficava esperando que ela acabasse de lavar a louça e viesse logo para contar histórias no passeio, em noite de luar.

A primeira história que escutei ela contar foi a da caipora, que era uma mulher com apenas uma banda. Protegia as matas e os bichos. Se encontrasse o caçador, castigava, fazendo que ele não achasse o caminho de volta. Uma vez um caçador ouviu uma voz que lhe disse para não caçar mais nas matas. O caçador não ligou e foi bem do dele caçar na mata. Encontrou um jacu e atirou nele sem perder tempo. O pássaro voou e veio com as garras ferir o caçador, que caiu no chão. Deu o segundo tiro no jacu, que voou mais rápido dessa vez e com as garras afiadas furou os olhos do caçador, que chegou em casa cambaleando e ensanguentado. O caçador então escutou a voz dizer: “Eu não disse pra você não ir caçar na mata! Com a caipora não se brinca!” Edelzuíta falou que, quando o caçador se perde na mata por causa da caipora, a única maneira dele achar o caminho de volta é deixar fumo e cachaça pra ela no pé da árvore.

Depois eu escutei ela contar a história do saci, o negrinho de uma perna só, que usava uma carapuça vermelha. Saía à noite para espantar os cavalos e os burros. Montava nos animais e entrançava as crinas. No outro dia, o vaqueiro encontrava os cavalos e os burros espalhados lá longe pelas capoeiras e pastos.

A noite ficava ora alegre, ora suave, quanto mais ela contava uma história. Uma noite, aconteceu ela contar a história da menina dos brincos de ouro.

“Era uma vez uma mãe que deu uns brincos de ouro à filha mais nova. A menina costumava tirar os brincos e colocá-los em cima de uma pedra quando ia à lagoa buscar água e tomar banho. Um dia ela foi à lagoa, tomou banho, encheu a lata e esqueceu os brincos. Com medo de ser castigada pela mãe, voltou à lagoa para buscar os brincos. Chegando lá, encontrou um velho muito feio, que a agarrou, botou nas costas e a levou consigo. O velho botou a menina dentro do surrão, que era um saco grande. Coseu o surrão e disse à menina que ia sair com ela de porta em porta para ganhar a vida. Quando ele ordenasse, ela cantasse dentro do surrão, senão ele batia com o bordão. Em toda porta que chegava, o velho botava o surrão no chão e dizia: “Canta, canta meu surrão, senão te meto este bordão”. E o surrão cantava com sua voz triste: “Neste surrão me meteram, neste surrão hei de morrer, por causa de uns brincos de ouro, que na fonte fui esquecer”.

“Todo mundo ficava admirado quando ouvia o surrão cantar e dava dinheiro ao velho. Aí um dia o velho chegou à casa da mãe da menina que reconheceu logo a voz da filha. Logo ela convidou o velho para comer e beber e, como já era tarde, pediu que ele dormisse ali em sua casa. De noite, como ele tinha bebido muito, ferrou no sono. E roncou até de manhã. Aí a mãe e as outras filhas abriram o surrão e tiraram a menina que estava muito fraquinha, quase para morrer. Em lugar da menina, a mãe e as filhas encheram o surrão com excrementos. No dia seguinte, o velho pegou o surrão, botou nas costas e partiu cedo. Parou adiante, bateu na porta de uma casa. Perguntou ao dono se não queria ouvir um surrão cantar. Botou o surrão no chão e disse: “Canta, canta meu surrão, senão te meto este bordão”. Nada do surrão cantar. Não gostando, o velho repetiu a ordem. Nada. Sem se conter, o velho meteu o cacete no surrão que se arrebentou e mostrou o que estava dentro dele. O velho percebeu a peça que tinham pregado nele, ficou com tanta raiva que ali mesmo caiu morto no chão.”

A gente não sabia o que era melhor quando Edelzuíta contava uma história. Se o prazer que a história causava em cada trecho que ela contava ou a mansidão de sua voz enchendo os nossos corações de puro encantamento. Cada um de nós escutava atento e estava sempre querendo mais.

quinta-feira, novembro 19

Amigos

 

Albrecht Dürer

O céu é um lugar muito distante

O menino tinha 5 anos e algumas convicções. Uma delas era não gostar da escolinha. Toda tarde, quando precisava ir, ele protestava, chorava, esperneava. Só depois de muita resistência acabava indo. E ia porque outra de suas convicções era a de que não havia um gato mais bonito que o da dona da escolinha.


O gato se chamava Bonito – o menino pronunciava Monito – e ficava escarrapachado num sofá, na secretaria da escola. Por isso, as mães de alguns alunos diziam que ele era o secretário da escola.

O menino via o gato só na entrada e na saída, mas sabia – essa mais uma de suas convicções – que, de todos os meninos e meninas da escola, era dele que Monito mais gostava. Esses dois momentos únicos serviam para tornar menos sofridas as tardes do menino.

Um dia, ao chegar à escola, ele não viu o gato.

“Cadê o Monito?”, perguntou, primeiro à mãe e depois à dona da escola.

As duas trocaram gestos e ele ficou sem resposta. Na saída, o sofá vazio o fez repetir a pergunta. A dona da escola, dando-lhe um beijo, disse que o gato estava viajando.

Na tarde seguinte, o menino quis novamente saber do gato e a dona da escola respondeu que ele tinha ido para o céu. Por uma semana o menino perguntou se Monito havia voltado. Sem o gato, as tardes se fizeram insuportáveis para ele. Agora, dava ainda mais valor aos sábados e domingos, dias em que ia à casa do avô para brincar com ele.

O menino não trocaria o avô por nenhum outro. O máximo que aceitaria fazer seria mudar uma coisinha ou outra nele. Por exemplo, gostaria que ele soubesse brincar um pouco melhor. O avô tinha boa vontade, esforçava-se, mas não sabia brincar direito de nada: nem jogar bola, nem empurrar carrinho, nem lutar espada.

Um domingo, o menino propôs ao avô que fossem ao quintal para experimentar a eficiência de um revólver espirrador de água. No começo, o avô se saiu muito bem. Os dois puseram uma lata sem tampa no chão e, em dez minutos, recarregando várias vezes o espirrador no tanque e revezando-se nos disparos, conseguiram enchê-la até transbordar. Uma façanha! O garoto se pôs a pular:

“Viva! Viva! Nós dois, vô, somos os maiores enchedores de lata do universo.”

O problema ocorreu depois. Vendo uma aranhinha no muro, o avô sugeriu uma brincadeira: fazer, com os jatos do revólver, um círculo em volta da aranha. Seria um rio que ela teria de atravessar. O menino aprovou a ideia e, com três disparos certeiros, desenhou uma parte do círculo. Depois, passou o revólver ao avô. Foi um grande erro. Com a inabilidade de sempre, o avô apertou o gatilho e atingiu a aranhinha em cheio.

“Para, vô”, gritou o menino, mas o avô já havia disparado mais um jato forte e acertado de novo a aranha, que ficou grudada no muro.

“Acho que ela morreu, vô.”

O avô disse que não, que ela estava viva, mas era mais um de seus enganos. A aranha estava morta, bem morta, e o menino começou a chorar.

“Calma, calma”, pediu o avô. “Chorar por quê? Ela agora vai para o céu.”

Ao ouvir isso, o menino, chorando ainda mais desconsoladamente, correu para a cozinha. Voltou um minuto depois, com uma caixa de fósforos vazia. Pegou a aranhinha com muito cuidado e colocou-a dentro da caixa:

“Ela não vai pro céu nada. Eu não deixo. Se ela for, ela não volta nunca mais, eu sei. Ela vai ficar comigo. Comigo.”

Foi a primeira vez que olhou com ressentimento para o avô.
Raul Drewnick

terça-feira, novembro 17

Bom proveito!

 


Gosto do desvio


No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver
Manoel de Barros

Viagem coletiva!

 

 Kim Younggon

Décimo quarto dia

Dod Procter 
Eu tanto não sabia o que fazer que o que fiz foi levantar do sofá com a tela do computador ainda brilhante, refletindo o resultado, e esquentar um leite no micro-ondas, sem café.


Nunca havia tomado leite puro e quente, e nem gostava de leite sem café, mas a partir daquele dia as coisas não seriam as mesmas.

Era uma comemoração triste.

Eu tinha pegado. Portanto, agora tanto fazia. Eu podia lamber o carpete embaixo dos sapatos sujos que pisaram por todos os chãos do meu dia a dia. Eu era positiva. Dane-se. Leite quente, sem café.

Sentei vestindo um pijama largo na cama, minha roupa permanente dos dias que viriam, a caneca de leite quente em uma mão, e com a outra fui avisando, pelo celular, com muita culpa, as pessoas com quem eu havia tido algum contato nos últimos dias: sinto muito, peguei o Covid.

Em alguns momentos, escrever isso me apavorava, eu estava afrontando um dos meus maiores medos sozinha, sem o meu companheiro, que naquele momento estava viajando a trabalho por três meses em outro país. Em outros momentos, eu me aliviava: se peguei, hoje, pelo menos hoje, não tem mais como pegar. Nesse vaivém de sensações, alguma tosse e um pouquinho de febre, as pessoas, preocupadas, começaram a me enviar respostas. E aí, no meio do turbilhão de pensamentos, notificações, páginas com informações sobre o vírus, parei um pouquinho, respirei fundo, e me perguntei, com o nada de amor próprio e gentileza que me restavam naquele momento:

Será que naquela noite eu morreria?

Pegou Covid, e morreu com o celular na mão. Pegou Covid, e morreu com leite quente na boca. Pegou Covid, e relutou para não morrer, mas morreu de tanto relutar.

Eu tinha as manchetes todas prontas na minha mente. E o pior de tudo era o silêncio. Não tinha saída. Ninguém poderia fazer sopinha pra mim. Me dar um abraço, muito menos. Era eu, meu gato recém-recuperado de inúmeros problemas de saúde e o leite. Ninguém mais.

Dormi mal, pensando ter decorado o número do Samu caso tivesse dificuldade de respirar. Não consigo decorar números. Não sei até hoje qual é o número do Samu. Não contei nada para os meus pais, e decidi não contar até estar curada. Não contei para quase ninguém, pois falar sobre isso doía.

Acordei no dia seguinte, sábado, me sentindo positiva por inteiro. Depois me estressei, e só queria ser negativa, não ter contraído o vírus, poder estar ao lado de alguém que eu amasse para essa pessoa me consolar me fazendo um cafuné.

Vaivém.

Quando me estresso, tenho tendência à obsessão. Portanto, com os produtos de limpeza trazidos por uma amiga que foi a responsável por fazer as minhas compras no supermercado e deixá-las na minha porta, tive a ideia genial de fazer uma boa faxina em casa.

Um dia ela descobre que está com Covid. No dia seguinte, faz faxina.

Eu me sentia fraca, já tinha perdido o apetite, mas limpar a casa era como me limpar por dentro, o impulso foi mais forte que eu. Joguei o líquido matador daquilo que eu já tinha contraído no chão, cujo cheiro é relativamente forte, e com o qual estou mais do que acostumada, e naquele momento eu me dei conta de que estava mesmo com Covid: eu havia perdido o olfato. Não sentia nada. Limpei a casa inteira sem sentir nenhum cheiro, e na hora do almoço percebi que o gosto das coisas estava quase que imperceptível. Fiz muito esforço para conseguir identificar a lentilha e os ovos, mas já sabia o que estava por vir. No domingo, vinte e quatro horas depois, eu não sentiria mais o cheiro ou o gosto de coisa alguma. Não saberia diferenciar doce de salgado. E essa foi a pior parte de todas.

Com os sintomas físicos alterando a cada dia, os sintomas psicológicos não deixaram de acompanhar a onda, e assim como uma hora eu estava muito ansiosa, logo depois ficava muito deprimida, depois muito obsessiva, depois muito apática. Depois quase feliz. Depois até que corajosa. Depois animada. Depois tossia. Depois comecei a ver séries que eu nunca teria visto em outras circunstâncias, pois perdi a concentração, e ler era impossível. Escrever ainda mais. Pensar nem se cogitava. Não juntava lé com cré. A febre eu verificava a cada 5 minutos, com aquele aparelho em formato de pistola que mandam apontar pra sua testa.

Um tiro, um número, um sintoma.

E se não desse tempo de viver da minha escrita? Eu não estava mais ligando pra diploma, eu não estava mais ligando pra dinheiro, ticket de metrô, hora de dormir, blusa meio rasgada. Eu não ligava pra mais nada: eu queria que tudo fosse pro inferno, mas naquele momento eu percebi que a literatura era algo que eu queria que vivesse comigo. Foi a primeira lição que o Covid me ensinou: me tira tudo, mas não me tira a escrita. A preocupação com o corpo e aparência se esvaiceu, o que eu queria era ter fome e sentir o gosto das coisas. Perdi 4kg em 10 dias, os 4kg que eu sempre quis perder, e, mesmo assim, nunca havia estado tão triste. Pra quê? O que importa é ter apetite. Segunda lição. O Brasil nunca me fez tanta falta. Calçadas e sóis de lugares onde nunca estive, mas onde o diminutivo era usado para descrever qualquer coisa: chazinho, dormidinha, beijinho. Canja, brincar de qualquer coisa com as minhas irmãs, mesmo que terminasse em pancadaria ‘amorosa’, o cheiro do cabelo da minha mãe, e as mãos do papai, com as unhas largas e curtas, cutículas comidas, fazendo carinho no meu rosto antes de uma prova. As paredes da minha casa de infância. As rugosidades dessas paredes. As panelas grossas meio descascadas, as mais eficientes. O chão gelado onde eu sentava no verão pra aliviar o calor. A padaria na Padre Antônio. Eu precisava do costume, de paralelepípedos, de pitangas na calçada, ô moça, num diga, menina, tá boa, nossa, senta aqui, vai com Deus. Brasil é carinho, e essa foi a terceira lição.

Depois da descoberta do Covid, eu vivi as semanas mais difíceis já vividas até hoje. Perguntas sem respostas, insônia, melancolia, solidão. Repensei sobre a vida inteira, do fio de cabelo aos pés. Risquei todos os dias no calendário, desde o dia da aparição dos primeiros sintomas, até chegar ao décimo quarto dia, em que fui liberada para ver gente de perto.

Durante a espera, parecia que esse dia não chegaria nunca. Fui inventando nadas pra fazer, rezando, me forçando a cozinhar e comer, mesmo sem ter a menor vontade de fazer qualquer coisa. Fui emagrecendo e perdendo a força. Entendi o quanto é necessário ter gente na vida da gente. Entendi o quanto a saúde física e mental precisam ser sempre a nossa prioridade. O quão vulneráveis nós somos. Entendi que precisamos cuidar mais do planeta. Muito mais. E uns dos outros também. E que o Bolsonaro é um merda, mas disso eu já sabia.

O tempo passou, os dias começaram, acabaram, o sofrimento veio, foi, veio de novo, e foi de novo. A lua rodopiou, o sol nem sempre apareceu, a chuva escorregou pelo chão que eu queria tanto pisar.

O décimo quarto dia chegou.

Fiz o sinal da cruz. Agradeci meus médicos. Pedi ajuda para as pessoas mais próximas, eu já não conseguia mais ficar sozinha. Contei para os meus pais, agora não precisava mais tentar esconder para protegê-los. E descobri, a partir desse dia, o que vale a pena.

O que vale a pena é ter amigos que abrem as portas das suas casas sem pensar duas vezes, te dando um espacinho, da forma que podem, pra você se sentir protegida. O que vale a pena é a família, quem quer que seja a sua, aqueles que moram no ninho que sempre estará lá para acolher as suas lembranças boas, e seus planos mais malucos. O que vale a pena é abocanhar e sentir o gosto. O que vale a pena é saber que aquela vela é de lavanda sem ninguém ter te contado. O que vale a pena é alguém te dizer:

– Isso passa

Sem contar quantas vezes ela vai ter que dizer isso, porque, naquele momento, ela sabe que você não consegue ver o fim. O que vale a pena é continuar lutando, e ter coragem. Porque é difícil, é muito difícil, mas viver vale a pena, e nunca disseram que seria fácil.

Eu não morri, diferente do que eu imaginei no dia em que descobri que havia pegado o Covid. E hoje, ao contrário do que eu previ nos dias mais sombrios que vivenciei, estou bem. Meu gatinho melhorou. O Arnaud voltou pra casa. Voltei a comer, a sentir o gosto e o cheiro das coisas que amo. Nunca estive tão próxima dos meus amigos e família, de forma que todos passaram a ser um. E voltei colocar café no leite. Porque tem coisas que mudaram para sempre. Mas tem outras que voltaram a ser como eram.

Vaivém.

Porque a vida é assim. E porque, no fim,

Passa.
Drica Muscat

segunda-feira, novembro 16

Navega até em tsunami

 


Nosso trato

Minha filha reluta em dormir, acha sempre o que fazer para ir invadindo cada vez mais a madrugada. Sua vontade é ver o sol nascer, a biblioteca da sala toda avermelhada. Foi assim que fizemos um trato: mamãe se incumbe de atravessar a madrugada e colher notícias de tudo o que acontece enquanto ela sonha um sonho que depois vai me contar.


Colho o planeta Marte, as três Marias, os berros do louco na avenida, a sirene de polícia, o choro da gata no cio, a janela do prédio em frente que nunca se apaga, a cantoria dos sabiás. Deixo sobre o sofá minhas notícias para quando ela acordar. É nosso milagre particular de multiplicação do tempo, sobrepor ao sono um continuum de eventos reais ou inventados, visões de estrelas cadentes, trovões e o sininho frenético na varanda, triângulo da orquestra na chuvarada. Minha filha começa o dia atando-o à pregressa madrugada, como se afinal não tivesse perdido nada, como se soubesse sem saber que, por mais aventureira e venturosa que seja, essa vida continuará a ser sempre um sopro.

A morte não lhe é completamente estranha, já viu uma lagartixa graúda, que morava no banheiro da casa da avó, um dia reaparecer miúda, inerte e ressequida no parapeito da janela. De propósito, mas como quem não quer nada, lembrei minha menina da finada lagartixa, para emendar que assim é vida, meu amor, acontece com todos que nascem, isso de crescer, espichar a cauda, sair por aí, sumir e voltar, depois morrer. Acontece com todo mundo. Minha filha então me olha nos olhos e faz a pergunta esperada e fatal: “Com a gente também?”. “Comigo também?”. “Com você?”. “Com o papai?”. “A vovó?”. “O vovô?”.

Vou caindo da delicadeza para o mau sabor de arrolar com essas perguntas toda a nossa pequena família numa carreira de futuras lagartixas secas, quando é ela, minha menina, que desdramatiza a morte, dá por encerrada a conversa e vai brincar lá fora. Um instante só, pungente e rápido como um raio, que vi em seus olhos um lago escuro e nele como que todas as despedidas concentradas. Uma tristeza rápida como um susto, um sofrer bem, sem desperdícios, que o dia hoje está bonito, a vida é o que é, e nós temos o nosso trato.
Mariana Ianelli

Mau usuário

Oguz Gurel (Turquia)

 

A esperança no combate ao ódio está nos livros

Estou lendo “O infinito num junco”, da escritora espanhola Irene Vallejo, uma história do livro e da leitura, já publicado em Portugal, mas, tanto quanto sei, ainda não disponível nas livrarias brasileiras. A páginas tantas, a propósito da insistente prática humana em queimar livros e bibliotecas — desde a destruição da Biblioteca de Alexandria até as fogueiras nazis —, Irene Vallejo cita uma frase do cartunista Andrés Rábago, El Roto: “As civilizações envelhecem, a barbárie renova-se.”

Concordo no que diz respeito às civilizações, mas não estou tão certo quanto à barbárie. A barbárie é sempre a mesma, move-se às cegas pelas ruas, gritando idênticas frases de ódio contra qualquer transformação. A estupidez não evolui. Transmite-se, como uma doença infame, ao longo dos séculos. Só as circunstâncias se renovam. 


Uma das várias versões sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria implica no crime o então governador provincial do Egito, Amer Ibn Alas. Quando lhe perguntaram o que fazer com tantos livros, Amer teria retorquido: “Se esses livros estiverem de acordo com o Corão, então são redundantes e, portanto, supérfluos. Se não estiverem, são heréticos.” Esta mesma versão assegura que os livros foram utilizados para aquecer os banhos públicos. Terão sido necessários seis meses para queimar todos os papiros. 

Irene Vallejo mostra-nos que a história do livro é também uma história contra o livro — ou seja, contra o pensamento. Há as grandes fogueiras e há as pequenas fogueiras. Normalmente, as grandes começam por ser pequenas. Pensemos no Brasil: hoje, fundamentalistas cristãos queimam os livros de Paulo Coelho e de João Paulo Cuenca. Amanhã, estarão ateando fogo à Biblioteca Nacional. Depois de amanhã, se os deixarem, arrastarão até à fogueira os próprios escritores.

Na essência, não há diferença alguma entre a deformidade espiritual de um fundamentalista islâmico e de um fundamentalista cristão. 

Uma única nuvem do tipo cumulus — aqueles flocos de algodão, bem definidos, que se destacam no azul do céu — pode pesar tanto quanto uma manada de elefantes. Obviamente, uma dessas nuvens é muito maior do que um elefante. Um cumulonimbus pode alcançar até 15 quilômetros de altura. Junta, a água esmaga. Dispersa, levita. 

Acontece o mesmo com o ódio. Isolado, mal se dá por ele. O ódio isolado quase não tem peso. Um único homem tomado pelo ódio suscita mais facilmente troça do que terror. O problema é quando surgem homens que atuam como catalisadores de ódio. Estamos a ver isso acontecer neste preciso momento em países como Moçambique, onde, no último fim de semana, um grupo associado ao Estado Islâmico decapitou 50 camponeses.

Embora num contexto muito diferente, estamos a ver também isso suceder nos EUA, em torno do inacreditável delírio de Donald Trump, ocupado agora em criar uma laboriosa realidade paralela que lhe permita perpetuar-se no poder. 

A única esperança no combate ao ódio e à loucura — como se conclui lendo “O infinito num junco” — está nos próprios livros. Como canta o português Manuel Freire, “não há machado que corte / a raiz ao pensamento. // Nada apaga a luz que vive / no amor, no pensamento.”
José Eduardo Agualusa

sábado, novembro 14

Dia de livraria

 


Ovos nevados

Mesmice e solidão despertam carências. A gente procura saídas na escrita, na leitura, nas lembranças, nos contatos remotos em que pessoas sem rosto tornam-se apenas voz ou letras. Assim sobrevivemos há meses, num voo de pouca autonomia e alguma turbulência.

Acabo de voltar de mais uma viagem ao passado. A coluna de culinária do jornal diário acordou a saudade da distante infância e da avó. Era uma prosaica receita de ovos nevados, uma de minhas sobremesas preferidas de então, servida em dias especiais à mesa da matriarca.

Mas havia muito mais a saborear do que o doce delicado cujo preparo as crianças não acompanhavam. Vinha para a mesa em uma bela terrina, vermelha por fora e branca por dentro, o que realçava o conteúdo. O mesmo recipiente em que a avó batia a massa do bolo da tarde com colher de pau, a meu lado, no banco de jardim confeccionado pelo avô. Lembro de pelo menos dois bônus: ela me contava histórias enquanto misturava os ingredientes com vigorosos movimentos e, ao passá-los para a forma, deixava que provasse as sobras, antecipando a delícia.

Com poesia no DNA, ovos nevados para mim eram nuvens brancas, iguaizinhas às do céu, boiando num creme amarelo. O mesmo céu onde, encantada, eu via aviões desenharem com fumaça corações e o nome de alguma namorada ou esposa. Ou flutuarem pipas coloridas, oscilando ao vento.

A sobremesa durava o tempo da refeição, nunca sobrava para mais tarde. E agora, com imagem e receita impressas no jornal, chegaram de volta o perfume do creme de baunilha, o efêmero das nuvens que desmanchavam na boca, a terrina, as vozes e risos, a lembrança de um tempo de breves e ingênuos prazeres.

Madô Martins

sexta-feira, novembro 13

Dica para relaxar

 


Escrita


Quem escreve de um modo claro tem leitores. Quem escreve de um modo obscuro, comentadores
Albert Camus

O escritor

 

Carter Goodrich

Quem sabe Deus está ouvindo

Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia.

Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:

– Você vai criar um cajueiro aí?

Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.

– Mas é melhor arrancar logo, não é?


Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso – mas confesso que havia nele um certo remorso. Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isto a empregada não sabe: ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela, o da Morte.

Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa – "seu Rubem, o cajueiro..." –, mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou para ele a mudinha.

Veio me mostrar:

– Eu comprei um vaso...

– Ahn...

>Depois de um silêncio, eu disse:

– Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...

Ela olhou a plantinha e disse com convicção:

– Esse aqui não vai morrer, não senhor.

Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do vaso e ficara aliviada com minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:

– Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!

Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com certa gravidade:

– É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...

Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores.

quinta-feira, novembro 12

Eterno navegante

 


Covid-19

Morríamos de tudo -
de esperança
de vida
de alegria
de amor
de mulher.

Morremos de tudo -
de desesperança
de medo
de melancolia
de uma ninharia
de um vírus qualquer.

Livros levam à Lua

 

Georgiana Chitac

Literatura realista

- Mas leia, nem que seja só por curiosidade.

- O que há nele que eu não tenha visto? - disso Oblómov. - Para que escrevem essas coisas? Só para se distrair...

- Como para se distrair? Tem tanta fidelidade, tanta fidelidade! Até dá vontade de rir. São como retratos vivos. Qualquer um que se escolha, seja um funcionário, seja um oficial, seja um guarda-cancela, é um retrato da própria vida.

- E por que então eles se esforçam tanto? Só pela diversão de tomar uma pessoa e mostrar com fidelidade como ela é? Só que a vida mesma não está aí: não há compreensão da vida nem compaixão nem aquilo que o senhor chama de humanidade. Só há vaidade e mais nada. Descrevem ladrões, mulheres caídas, como se os tivessem apanhado na rua e levado para a prisão. Nos contos deles se percebem não as "lágrimas invisíveis", mas apenas se veem risadas rudes, a maldade...

- E o que mais é necessário? É ótimo, o senhor mesmo declarou: a maldade chocante, o combate encarniçado contra a depravação, o riso de desprezo contra a pessoa decaída... tudo está lá!

- Não, nem tudo! - exclamou de súbito Oblómov. - Retrate um ladrão, uma mulher caída, um palerma cheio de si, está certo, mas não esqueça a pessoa mesma. Onde está a humanidade? O senhor quer escrever só com a cabeça! - quase chiou Oblómov. - O senhor acha que, para os pensamentos, não é necessário o coração? Não, a vida frutifica com o amor. Estenda a mão para a pessoa caída, para que ela se levante, ou chore amargamente por ela, se pereceu, mas não zombe. Ame, lembre que ela é como o senhor, trate essa pessoa como se fosse a si mesmo, e aí, sim, eu lerei seus escritos e curvarei minha cabeça diante do senhor... - disso Oblómov e deitou-se de novo tranquilo no sofá. - Eles imaginam ladrões, uma mulher caída - disse -, mas esquecem o próprio homem, ou não são capazes de imaginá-lo. Então que tipo de arte é essa, que belezas poéticas os senhores encontraram? Ponham a nu o deboche, a sordidez, mas, por favor, se a pretensão de fazer poesia.

- Então o senhor quer que se descreva a natureza: rosas, rouxinóis ou a geada da manhã, enquanto tudo ferve e se agita à nossa volta? Precisamos apenas da nua fisiologia da sociedade; agora não há espaço para canções...

- O homem, o homem, me deem o homem! - disso Oblómov. - Amem...

- Amar um agiota, um hipócrita, um funcionário tolo ou um ladrão... será possível? Aonde o senhor quer chegar? É evidente que o senhor tem interesse por literatura! - exaltou-se Piénkin. - Não, é preciso castigá-los, bani-los do meio civil, da sociedade...

- Bani-los do meio civil! - exclamou de repente Oblómov, inspirado, e se pôs de pé diante de Piénkin. - Isso significa esquecer que dentro desse invólucro imprestável está presente um princípio mais elevado; que esse é um homem degradado, mas continua a ser um homem, exatamente como os senhores. Banir! E como o senhor vai banir seres humanos da esfera da humanidade, do seio da natureza, da misericórdia divina? - quase gritou, os olhos em chamas.

Ivan Gontcharov, "Oblómov"