terça-feira, julho 31

Leitor de Quixote


Terramarear

Uma das paixões que tive na adolescência foi uma coleção chamada Terramarear. Eram aventuras de piratas, usurpadores de tronos reais, heróis legendários, desbravadores de selvas e territórios inóspitos. Minha imaginação - ou o que eu viria a chamar depois de imaginário - e meu vocabulário básico se nutriram nessa fonte. Até hoje, se leio palavras como flibusteiro, espadachim, tilintar ou retinir (de espadas), amurada, vagalhões, recifes de coral, convés, um arrepio me leva de volta àquele tempo, em que eu, rapazola, começava a descobrir o mundo pela mais eficaz de todas as formas: a leitura. O fascínio provocado pela coleção já principiava pelo título. Numa época em que não tinha sido dado ainda o grito inicial do concretismo e as artes visuais e a linguagem não estavam tão ligadas, Terramarear era um achado. Em minhas lembranças mais antigas, Terramarear brilha como uma invocação mágica, um abre-te sésamo.

A passeio


A verdadeira rede de leitura

A "Bibliambule", criada pelos designers franceses Amandine e Charlotte, tem como objetivo promover o acesso a livros para todos, propondo uma estética cujo aspecto dominante é divertido para atrair públicos que não necessariamente têm o hábito de se interessar pela leitura. A ideia principal é tirar os livros do espaço intimidador e santuário das bibliotecas e colocá-los no espaço público, este lugar de coabitação aberto a todos e para o uso de todos. 

Cada "Z'Ambulant bibliotecário" pode personalizar seu "Bibliambule" com os livros que ele quer, mais jovens, mais romance, mais quadrinhos ... Também é possível imaginar um sistema de empréstimos numa espécie de bookmobile ecológico.


segunda-feira, julho 30

O dia começou

Ronald West

Observação bíblica

Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro
Afonso Cruz, "Jesus Cristo bebia cerveja"

O bom mergulho

 Caroline Magerl

A casa viaja no tempo

Emmanuel Garant
Volto, como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa, eu… E tantas vezes vim aqui que não tomo consciência das coisas que mudaram.

Sento-me, por acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é tranquila e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se lembra de mim há muito tempo. “Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de paletó e sem gravata. Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu me lembro muito bem. Eu tinha seis anos…”

Seis anos! Certamente não me lembro dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve cheia de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos através de muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim fazem parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.

A primeira recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes dançava no jardim. Era certamente linda; mas não creio que tivéssemos trocado, através dos anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga impressão de que, por algum motivo imponderável, ela não simpatizava comigo. Só agora me dou conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de seus flertes, seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou, sei que hoje, ainda tão moça, tem dois filhos – e a maternidade veio definir melhor sua radiosa beleza juvenil.

Inutilmente procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante esses inumeráveis domingos. Certamente fui sempre, para ela, uma figura constante, mas vaga – um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver distraidamente de vez em quando – às vezes com um ano ou mais de intervalo, que viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo consciência de que é a primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos anos de vagos “boa-noite” e “como vai?” mas nossa conversa tranquila e trivial me emociona de repente quando ela diz: “eu tinha seis anos...”

Penso em tudo o que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi – e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa noite de domingo, sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de domingo – e não voltaram mais.
Rubem Braga

domingo, julho 29

Paraíso na Terra

Emily Sutton

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Marcella Karmann
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava história. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que ouvisse, não entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu que não participava do auditório imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para uma cidade que parecida feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre parecem personagens de Lope da Vega. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outras dizem que essas coisas só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles,  “Escolha o seu sonho”

Poesia com voz

Fica a dica


Em ciência leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos
Millôr Fernandes

Bela vista


O primeiro Machado

23 de junho [1939]

Meu primeiro contato com Machado de Assis data do mês que passei com Mimi e Florzinha, quando Roberto, ainda em colo de ama, não fora entregue aos cuidados das tias. Depois de vários adiamentos, papai resolvera limpar a casa, fazer alguns retoques no telhado e no forro, reformar o banheiro — estava bastante maltratada.

Pintada a óleo, a óleo devia ser repintada, mas como cheiro de óleo envenena, durante a pintura não poderia continuar habitada. Houve uma distribuição de domicílios. Papai e mamãe foram para a casa de Ataliba, Mariquinhas carregou Emanuel para Magé, eu e Madalena ficamos na casa das primas, que era na Boca do Mato. A novidade foi excitante. Navegadores de primeira viagem, sentíamo-nos à deriva – e o casarão suburbano, com comida, hábitos, móveis, decoração, conversas e linguagem diferentes, com outra paisagem, outra luz, outro cheiro e calor, era um cosmos que se abria em mil e mil descobrimentos fascinantes.

Mimi era leitora inveterada e, de pouco dormir, chegava a romper madrugadas com livros na mão, livros dos quais, por não ignorar os meus pendores livrescos, contava-me depois os enredos com o mais lato seguimento e minudência. Se eu gostava, lia o livro, o que resultava em longas e posteriores conversações nas quais a boa prima não se dava conta, em absoluto, da nossa diferença de idade e com suma sisudez, manejando pincenê como uma batuta, aceitava ou rebatia os meus balbuciantes argumentos literários, o que de resto me envaidecia.

E foi assim que travei conhecimento com o mestre. Ela havia devorado Helena numa noite e no outro dia estava com a sensibilidade em polvorosa – é o melhor livro dele, dizia, e narrou-me todo o entrecho depois do almoço, na fresca e ensombrada varanda, que ladeava a casa em toda a sua longitude e que até o meio tinha uma tecedura de guaco, cujas virtudes expectorantes, sob a forma de chá ou de balas, eram amplamente recomendadas e exploradas.

Solicitei o romance, mas a verdade é que achei decepcionante, transmiti minha impressão, Mimi repisou o seu entusiasmo, e não pensei mais no autor.

Um ou dois anos mais tarde, passava eu para aquilo que no colégio se chamava o curso adiantado de português, isto é, o curso ao termo do qual era tirado o exame final dessa matéria. Para leitura e análise tínhamos uma grossa antologia de pífio papel, mas se houve livro que eu amasse, foi este. As amostras que trazia davam logo para gostar ou detestar. Foi nele que li “O Plesbicito”, de Artur de Azevedo, incorporando-o imediatamente à minha perene simpatia. Foi nele que amei Maupassant, por causa do “Adereço de esmeraldas”, amor que foi diminuindo como tempo até se mudar em desinteresse, desinteresse de que escaparam as curtas páginas de “Ao luar”, sim de que escaparam as curtas páginas de “Ao luar”. Foi nele que Schiller me arrepiou com o episódio da luva e Coppée me emocionou como os vícios daquele capitão reformado, a primeira ficção francesa em que eu encontrava uma referência ao Brasil. Foi nele também que li um trecho de Dickens, “O jantar de Toby”, jantar de tripas numa noite glacial, jantar de pobre, trazido pela filhinha, maravilhosa revelação, pois a alegria de Toby me impressionou tanto que eu quis sem demora conhecer o romance por inteiro. Foi nele que aprendi a detestar Garcia Redondo, Pedro Rabelo, Coelho Neto, Alcides Maia, Macedo e tantos outros. Foi nele que, afinal, encontrei o meu Machado. Vinha em pedaços como fatias de um grande bolo, grande e saboroso. Fui comendo deliciado: aquele admirável trecho do fanático por brigas de galo, o do pesadelo em que o diabo tira libras de um saco para por em outro, o episódio da ponta do nariz, a célebre volta aos tempos, cavalgada às avessas, imorredouro retrocesso, e, principalmente, o famoso jantar da família Brás Cubas, ágape a que iria assistir, coberto de vergonha, numerosos similares. E o que não pude acreditar mui prontamente foi que houvesse relação entre o padeiro desses nacos surpreendentes e o confeiteiro de Helena de tão chocha e açucarada memória. E atirei-me ao manjar inteiro, começando pelas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Daí para Quincas Borba, depois para Dom Casmurro, quando fiquei para toda a vida apaixonado por Capitu, paixão que só se igualaria com a provocada por Vidinha, a gargalhante mulatinha dos lundus. Quando cheguei aos contos – “Conto de escola”, “Uns braços”, “O diplomático”, “Uma senhora”, “Missa do galo”, “Capítulo de chapéus”, “Ideias de canário” – quando cheguei aos contos alumbramento de que Antônio Ramos compartilhava, senti que formavam um trilho ideal, caminho único encimado por uma estrela, estrela guiadora, bem diversa daquelas, indiferentes às lagrimas e aos risos, que o mal-aventurado Rubião pedia à bela Sofia que fitasse.

Marques Rebelo, A mudança

sábado, julho 28

Cupido!


Sem medo



... Lê livros de aventuras, a grande fome dos que temem a aventura
José Rodrigues Miguéis

Livros, segundo Nani




O assassino cego

Ele diz: Sakiel-Norn é agora um monte de pedras, mas um dia foi um próspero centro de comércio e troca. Ficava num cruzamento entre três estradas - uma que vinha do leste, outra que vinha do oeste e outra que vinha do sul. Ele se ligava com o norte por um largo canal que ia dar no próprio mar, onde havia um cais bem protegido. Não resta nenhum traço dessas escavações nem desses muros protetores: depois de sua destruição, os blocos de pedra foram levados pelos inimigos ou por estrangeiros para serem usados em seus abrigos para animais, em suas gamelas de água e em seus fortes grosseiros, ou então foram enterrados na areia pelas ondas e pelo vento.

Cordão de mendigos cegos, Kuttar (1879)
O canal e o cais foram construídos por escravos, o que não causa surpresa: foi por meio dos escravos que Sakiel-Norn alcançou sua magnificência e seu poder. Mas a cidade era conhecida também pelo seu artesanato, especialmente a tecelagem. O segredo das tinturas usadas por seus artesãos era cuidadosamente guardado: seus panos brilhavam como mel líquido, como uvas roxas amassadas, como uma xícara de sangue de boi derramado ao sol. Seus véus delicados eram leves como teias de aranha, e seus tapetes tão macios e finos que você pensava que estava andando no ar, um ar que se parecia com flores e com água correndo.

Isso é muito poético, ela diz. Eu estou surpresa.

Pense nela como uma loja de departamentos, ele diz. No fundo são apenas mercadorias de luxo. Assim fica menos poético.

Os tapetes eram tecidos por escravos, que eram invariavelmente crianças, porque só dedos de crianças eram suficientemente pequenos para um trabalho tão delicado. Mas o trabalho incessante exigido dessas crianças fazia com que elas ficassem cegas por volta dos oito ou nove anos, e a cegueira delas era a medida pela qual os negociantes de tapetes avaliavam e exaltavam a sua mercadoria: Este tapete cegou dez crianças, eles diziam. Este aqui cegou quinze, este outro vinte. Uma vez que o preço subia na mesma proporção, eles sempre exageravam. Era costume o comprador duvidar do que eles diziam. Com certeza não mais que sete, que doze, que dezesseis, eles diziam, examinando o tapete com os dedos. É áspero como um pano de chão. Não passa de um cobertor de mendigo. Foi feito por um gnarr.

Uma vez cegas, as crianças eram vendidas para donos de bordéis, tanto as meninas quanto os meninos. Os serviços das crianças que tinham ficado cegas desse jeito valiam uma fortuna; o toque delas era tão suave e preciso, diziam, que sob seus dedos você podia sentir as flores se abrindo e a água jorrando da sua própria pele.

Elas também eram muito hábeis em abrir fechaduras. Aquelas que conseguiam escapar abraçavam a profissão de cortar gargantas no escuro e eram muito procuradas como assassinos de aluguel. Sua audição era apurada; elas conseguiam andar sem fazer nenhum ruído, e passar através de aberturas mínimas; diferenciavam pelo cheiro uma pessoa que dormia profundamente de outra que sonhava agitadamente. Matavam tão suavemente como se fosse uma mariposa roçando pelo seu pescoço. Eram consideradas impiedosas. Eram muito temidas.

As histórias que as crianças murmuravam umas para as outras - enquanto teciam seus tapetes sem fim - eram sobre essa possível forma de vida futura. Havia um ditado entre elas de que apenas os cegos são livres.
Margaret Atwood

sexta-feira, julho 27

Servido?

Lido Contemori

O cotidiano com livro

 Anne Soline

O livro faz parte da casa, da comida, da experiência, da maternidade, do cotidiano
Adélia Prado

Arqueólogos descobrem biblioteca mais antiga da Alemanha

Arqueólogos descobriram em Colônia as ruínas da biblioteca mais antiga da Alemanha. Segundo o diretor do departamento de conservação de monumentos de Colônia, Marcus Trier, as ruínas são do século II. Especialistas estimam que a biblioteca foi construída pelos romanos entre 150 e 200 depois de Cristo, a sudoeste do fórum romano que havia na cidade.

A descoberta das ruínas ocorreu por acaso há um ano, durante as obras para a construção de um centro da Igreja Luterana na cidade. Desde então, especialistas trabalhavam na escavação.

"Chegamos a um resultado que não podíamos determinar no início", destacou Trier ao jornal local Kölner Stadt-Anzeiger, e acrescentou que inicialmente os especialistas acreditavam que as ruínas seriam de um espaço público de reuniões.

Ao analisar a estrutura e compará-la com outras construções antigas em Éfeso, Alexandria ou Roma, os pesquisadores tiveram certeza de que ali havia uma biblioteca.

Arqueólogos acreditam que o prédio tinha dois andares e uma altura entre sete e nove metros. Além do muro, as ruínas conservam ainda dois pequenos pedaços do chão da biblioteca.

Depois da descoberta, a Igreja Luterana mudou os planos da construção. As ruínas devem agora ser integradas ao centro religioso e, no futuro, serão abertas para a visitação.

Deutsche Welle

O Paraíso existe


Assim começa o livro...

– Há uma data na varanda nesta sala – disse Germana – que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.

– Uma espécie de aristocracia ab imo. – E Bernardo riu-se, cheio de uma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda – «Ab imo, da terra», pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a. Pertencia ele ao ramo da família que do capitalismo ascendera ao posto imediato da intelectualidade e nisso fixara uma aristocracia. Pois que é a aristocracia senão o grau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação – pensava Germana – chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos. Bernardo Sanches era o exemplo duma raça heróica e magnífica enquanto a sua história fora uma questão de sobrevivência, mas que, com a segurança e o conforto, resultara numa brilhante mediocridade. Germana, sua prima, era por seu lado, um tipo fatídico das degenerescências, o artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade imediata. Era ela uma criatura paciente, tímida, e que inspirava confiança sem limites. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. Ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora. Ela balançava-se activamente numa velha rocking-chair que, a cada impulso mais violento, pulava no sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim. Tal como Quina – pensou. E, absorta, pôs-se a murmurar um lento monólogo, olhando à sua frente o caixilho da porta que comunicava com a cozinha, onde se via a pedra da lareira, arrumada e varrida de cinza.

– Você que diz, Germa? – perguntou Bernardo. Perscrutava-a com uma curiosidade passageira, um tanto mortificado porque alguma coisa que não ele próprio o obrigava a inquietar-se. Como ela o fitasse apenas, sorridente e sem lhe falar, achou mais cómodo sentir-se ali o hóspede venerável, e tomar aquele silêncio ainda como uma cortesia. Mas, na verdade, Germa nem sequer pensava nele. Suspeitar isto – ele sabia – seria o bastante para que Bernardo não voltasse mais e estabelecesse no fundo da sua alma permanente disposição de vingança. Preferiu, portanto, ignorar que Germa estava nesse momento totalmente desligada e ausente de si, e que subitamente o ambiente ficara repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, de tecto baixo, onde pairava um cheiro de pragana e de maçã, se enchia duma expressão humana e calorosa, como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde viveu, e o seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação. E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina.

quinta-feira, julho 26

Dica de passeio

Anton Franciscus Pieck

Por que nos esquecemos dos livros que lemos

É muito frequente lembrar os lugares onde lemos: na esteira da praia, à sombra das árvores; em um parque de diversões; em um apartamento minúsculo onde dava para ouvir o trem; na mesa da cozinha de casa. Mas é um pouco mais difícil se lembrar de qual livro foi lido em que lugar, quem era o autor, ou o enredo. Mesmo que às vezes se lembre que tinha capa vermelha ou que era uma edição de bolso.

Ou seja, guardamos lembranças da sensação física da leitura, mas menos do que foi lido. “Quase sempre me lembro de onde estava e me lembro do livro. Lembro-me do objeto físico”, disse Pamela Paul, editora do New York Times Book Review, a Julie Beck em uma reportagem na The Atlantic. Ela continua: “Eu me lembro da edição, da capa e, geralmente, de onde comprei ou quem o deu para mim. O que não lembro —e isso é horrível— é todo o resto.” “O que mais me lembro sobre a coleção de contos de Malamud, "O Barril Mágico" , é a luz morna do sol na cafeteria às sextas-feiras, onde eu o lia antes de ir para o colégio. Faltam os pontos mais importantes, mas já é alguma coisa. A leitura tem muitas facetas, uma delas pode ser a mistura indescritível, e naturalmente fugaz, de pensamento e emoção, e as manipulações sensoriais que ocorrem no momento e logo desaparecem. Quanto da leitura é, então, uma espécie de narcisismo, um marcador de quem você era e sobre o que estava pensando quando se encontrou com um texto?”, escreve Ian Crouch na The New Yorker sobre ler e esquecer o que se leu.

Há sortudos capazes de lembrar os enredos de filmes, séries e livros, mas para a maioria, como escreve Beck, é “como encher uma banheira, entrar nela e ver a água descer pelo ralo: pode deixar uma fina película na banheira, mas o resto não está mais lá”. Existem algumas razões científicas para explicar isso e têm a ver com a chamada “curva do esquecimento”, que é a velocidade com a qual nos esquecemos de algo, mais intensa durante as primeiras 24 horas depois que aprendemos alguma coisa, a menos que se faça uma revisão. Isso explicaria por que os livros lidos em um fôlego só, ou as séries devoradas em uma sentada, são esquecidos mais facilmente: não se pôs a memória da recuperação para trabalhar.

De fato, sabe-se que quem consome uma série assistindo um capítulo por semana ou um por dia se lembra dela melhor do que quem a vê inteira em um único dia. Ler um livro de uma só vez, às vezes, significa esquecê-lo mais cedo, porque só foi ativada a memória de trabalho, não há revisão. Em parte, sempre foi assim, mas de acordo com Jared Horvath, pesquisador da Universidade de Melbourne, citado por Beck, “a forma como se consome informação e entretenimento hoje mudou o tipo de memória que valorizamos”. A memória de recuperação se tornou menos necessária em parte graças à internet, agora a memória de reconhecimento é mais importante, afirma Horvath. A possibilidade de ter acesso à informação significa que não é necessário memorizá-la. Está disponível na internet, a grande biblioteca global, mas também em alguns de seus predecessores, como livros, cassetes ou VHS. De fato, Sócrates já era contra o “uso das letras” como uma espécie de memória externa que dificultaria a memorização. Hoje conhecemos a relutância do filósofo contra a letra escrita, e todo o seu pensamento, graças aos diálogos de Platão, que foram registrados por escrito.

Em The Solitary Vice: Against Reading (O Vício Solitário: Contra a Leitura), a professora e ensaísta Mikita Brottman recupera este fragmento de O Tempo Redescoberto, de Proust, um grande explorador da confluência entre leitura e memória: “Um livro que lemos não permanece unido para sempre apenas ao que havia em torno de nós; continua fielmente unido também ao que éramos então, e só pode ser sentido de novo, concebido, através da sensibilidade, através do pensamento, pela pessoa que éramos então”. Brottman também cita as memórias de Azar Nafisi, Lendo Lolita em Teerã, onde o autor escreve: “Se um som pudesse ser guardado entre as páginas da mesma forma que uma folha ou uma borboleta, diria que, entre as páginas do meu Orgulho e Preconceito, o romance mais polifônico de todos... está escondido, como uma folha de outono, o som daquela sirene [antiaérea].” Essa relação com os livros lidos e às vezes esquecidos explica a existência das memórias bibliófilas. O livro de Brottman pertence, em parte, a esse gênero, e Lendo Lolita em Teerã, completamente. É um gênero que tem seu próprio acrônimo: Bob, book of books.

Pamela Paul mantém o seu diário de leituras desde os 17 anos e foi com base nele que escreveu My Life with Bob: Flawed Heroine Keeps Book of Books, Plot Ensues [Minha Vida com Bob: a Heroína Defeituosa Mantém o Livro dos Livros, a Trama Continua]. De acordo com um artigo no Financial Times, estamos em um bom momento para bibliomemórias. Lucy Scholes escreveu sobre o gênero: “A bibliomemória é um convite aberto para olhar as prateleiras da biblioteca de outra pessoa; uma oferta que eu, e claramente muitos outros, acho difícil recusar”. O capítulo do expurgo da biblioteca de Dom Quixote sempre foi lido como uma crítica literária mais ou menos camuflada, e como uma declaração das fontes do Quixote, mas também é uma lista de livros lidos, ou seja, uma bibliomemória. O desejo de registrar sua biblioteca essencial foi o primeiro impulso que levou Ismael Grasa a escrever La Hazaña Secreta [A Façanha Secreta], um livro que, entre muitas outras coisas, é um diário de leituras. Alberto Manguel cultivou o gênero com resultados brilhantes. Em Packin’ My Library [Encaixotando Minha Biblioteca], ele escreve que escritores e leitores sempre se perguntaram se a literatura tem algum papel na formação de um cidadão. Lucy Scholes responde que “em sua exploração da relação simbiótica entre vida e literatura, a bibliomemória parece ser um grito de guerra afirmativo”.

Aloma Rodríguez 

Esperando leitor

Evgenia Petrovna Antipova

Não perturbe os dorminhocos

Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler dormindo. Autor que os queira conservar não deve ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases feitas
Mario Quintana

Café da manhã


No original

Foi, julgo, na minha geração que o inglês ganhou decididamente ao francês (as músicas, os filmes, as séries inglesas e americanas com legendas, tornaram-se muito mais cativantes para os jovens portugueses de então do que Aznavour ou Brel, de que gosto tanto, e uma série que devorei na infância-adolescência chamada Belle et Sébastien, com uma cadela São Bernardo e uma criança). Hoje, no nosso país, toda a gente fala inglês – há uns dias a rapariga que estava na caixa do supermercado desenvolveu um diálogo tão irrepreensível com uns clientes estrangeiros que os deixou de cara à banda. (Mas de que estariam eles à espera, hã? Os portugueses têm um inegável talento para as línguas!) Também por isso, o número de livros lidos originalmente em inglês aumentou muito nos últimos anos em Portugal; não só as pessoas viajam mais e compram livros no estrangeiro, como existe uma grande oferta de edições em inglês, em paperback e bolso, às vezes muito mais baratas do que as traduções, em várias livrarias online. Por outro lado, há quem goste de ler sem a mediação de um tradutor e quem não tenha paciência para esperar pela edição portuguesa. Recentemente, publicaram no Clube do Autor o romance do norte-americano André Aciman, "Chama-me pelo Teu Nome", que deu origem a um filme que passara uns meses antes nas salas de cinema portuguesas. Mas, entre a exibição do filme e a publicação da tradução, já se tinham vendido cerca de 2500 exemplares em inglês ("Call me by your name" é o título original). Qualquer dia, não valerá mesmo a pena traduzir certas coisas.

quarta-feira, julho 25

Mais que uma janela


Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

Vladimir Volegov
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti 

Com livro também se brinca


Pesquisa mapeia hábitos culturais no Brasil

Uma pesquisa inédita realizada pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte, em parceria com o Instituto Datafolha e apoio da Fundação Roberto Marinho, mostra que Salvador é a cidade que mais lê entre 12 capitais das cinco macrorregiões do país. O índice é de 72%, contra apenas 56% no outro extremo, Recife.

Os números da pesquisa “Cultura nas capitais” servem como diagnóstico para compreender, através de 14 hábitos como leitura e acesso a cinema, shows e festas populares, um universo de cerca de 33 milhões de pessoas. Desses, de acordo com a amostragem, mais de 30 milhões fizeram algum tipo de atividade, o que explicita o imenso potencial do mercado cultural no Brasil.

O instituto abordou mais de 10 mil pessoas acima de 12 anos entre 14 de junho e 27 de julho de 2017 com a seguinte pergunta: “o que você costuma fazer em seu tempo livre, quando não está trabalhando nem estudando?”.

Em números gerais, a pesquisa apontou que a leitura de livros é a atividade cultural mais comum entre os brasileiros: 68% das pessoas leram ao menos uma obra literária no último ano. Em compensação, a exclusão cultural aparece ao se revelar que 15% dos entrevistados não tiveram acesso a livro algum, três em cada dez nunca foram a um museu e 37% não entraram no teatro.
Fonte: O Globo

segunda-feira, julho 23

Café da manhã


Amar os livros

Há uma arte de amar os livros, como há uma arte de amar ovidiana, uma arte de amar o amor. Querer bem aos livros é sentimento que se parece muito com o amor dos sexos. Em ambos há sensualidade e egoísmo. Não são raras as pessoas que sentem a necessidade física da leitura. O volume de prosa e verso ocupa na vida de alguns eleitos um lugar tão importante como a mesa, o sono e o amor. Mulheres e livros. Nossas amadas e nossos guias. Fontes de inspiração, focos de prazeres, espelhos de ilusões. Se fosse forçoso escolher entre eles e elas, quantos não vacilariam!!! Muitos, entanto, escolheriam os livros e se consolariam bem facilmente da ausência da ternura feminina. 



O amante quer possuir só para si o objeto do seu amor. O bibliófilo guarda avaramente o seu tesouro de papel impresso. A biblioteca é o serralho em que este sultão conserva cativa as belas edições. Ali ninguém penetra sozinho. Dali não sai nenhuma peça, nem dada nem muito menos emprestada: mulheres e livros podem dar-se ou furtar-se, não se emprestam. Caso não seja possível passar sem bibliotecário, este será um ignorante, um castrado mental, o eunuco, enfim.
Eduardo Frieiro "A Arte de Amar os Livros"

Paquera de bar


Wander Piroli, o Hemingway esquecido das Minas Gerais

Wander Piroli é mais um nome na extensa lista de escritores que o Brasil se esmerou em esquecer. Um dos símbolos do que ficou conhecido como boom dos contistas nos anos 1970, Piroli era, em tudo, um simples —não confundir com simplista. Mestre em criar diálogos secos, diretos e cheios de sensibilidade, dizia preferir a vida à literatura, mas escreveu sem parar. Gostava de cachaça Claudionor, cigarro de palha, pescaria e amizade. Agora, doze anos depois de sua morte, o livro Wander Piroli - Uma Manada de Búfalos Dentro do Peito, do jornalista, poeta e escritor Fabrício Marques, vem tentar reparar esse esquecimento.

Mineiro até o último fio de cabelo, Piroli nasceu em 1931, em Belo Horizonte, cenário principal de tudo o que produziu em crônicas, reportagens, contos, poesia e romance ao longo da vida. Costumava dizer que o bairro operário em que cresceu até os 27 anos, Lagoinha, vizinho indesejado do centro rico da capital mineira, estava em tudo. “A minha visão de mundo é a visão da Lagoinha”, escreveu uma vez. “Uma visão primária, substantiva da coisa. Uma visão operária e marginal”. Seus textos eram tomados por personagens vivendo vidas ordinárias, comuns. Eram os trabalhadores de sol a sol, os malandros, as prostitutas e os “náufragos da noite”, como caracterizava os tipos com que conviveu na infância e juventude.

Na curta biografia assinada por Marques, também mineiro, o escritor Joca Terron avalia a importância de Piroli para a literatura brasileira: pouca ou nenhuma em termos oficiais, mas incalculável em termos de qualidade. “Mas no Brasil, país aculturado e sem vergonha, o que interessa é a cultura não oficial, e Wander Piroli está no centro dela (que é margem)”, diz Terron. Outro admirador do autor mineiro é Marçal Aquino: “Seus contos eram relatos diretos e contundentes sobre gente de carne e osso, tinham sempre uma carga humana, sem nunca esquecer de olhar ao redor”.

Da biografia, publicada pela Conceito Editorial como parte da série Beagá Perfis, que trata de personagens belo-horizontinos, fica a imagem de um incansável jornalista e ótimo escritor que caiu num anonimato injusto. Ao lado dele, na geração de 1970, estavam nomes como Sérgio Sant’Anna, Antônio Torres e Ignácio de Loyola Brandão, bem conhecidos hoje em dia, mas também de outros que, com o tempo, ficaram mais esquecidos, como Manoel Lobato, Luiz Vilela e João Antônio. Cada caso é um caso, mas confluem coisas semelhantes entre a maioria deles para o relativo esquecimento. Por exemplo, a visão de mercado de que o conto seria um gênero menor, e a necessidade dos autores de dividir a escrita com outras funções, como o jornalismo.

Para Piroli, Marques conta na biografia, o trabalho em redações jornalísticas apareceu como uma forma de sustentar a família, mas se tornou uma das partes principais de sua vida. Trabalhou em dezenas de publicações mineiras entre jornais alternativos e da grande imprensa, como Estado de Minas, Suplemento Literário, Última Hora, O Sol e Binômio. No meio da lida do jornal e da criação de quatro filhos, publicou seu primeiro livro A Mãe e o Filho da Mãe, em 1966. Começou escrevendo quase que por interesse econômico: ainda na casa dos 20 anos, inscrevia contos em concursos públicos e sempre acabava levando um prêmio para casa. Muito dessa produção, ainda na década de 1950, integraria seu livro de estreia, talvez o mais importante de sua carreira.

Só quase dez anos depois, o escritor publicaria O Menino e o Pinto do Menino, em 1975 e Os Rios Morrem de Sede, em 1976. Talvez seus trabalhos mais conhecidos, ambos infanto-juvenis, viraram sucesso de público ao propor, pela primeira vez, uma espécie de realismo para crianças. Piroli abriu mão das bruxas e duendes para falar às crianças da vida como ela é. “O (escritor) Otto Lara Resende, em uma crônica na TV Globo durante o programa Fantástico, falou sobre O Menino e o Pinto do Menino e aí as vendas estouraram”, conta Marques. Em 2001, os dois livros estavam na 32ª edição com 150.000 exemplares vendidos. Em vida, Wander ainda publicou cerca de sete títulos, entre infantis, de crônica e contos, como A Máquina de Fazer Amor e Minha Bela Putana.

“Qual a importância da obra de Piroli para a literatura brasileira?”, pergunta Marques ao crítico literário Antônio Hohlfeldt: “Acho que no conto foi algo de circunstância, embora sobreviva: esta linguagem jornalística, dura como um soco, mas, ao mesmo tempo, a intensa humanidade dos personagens. Na literatura infantil, maior: quebrar os velhos cânones de uma literatura bem-comportada e capaz de servir modelos bem-comportados. Wander introduziu no texto para crianças um modo de narrar até então absolutamente inexistente”. Quando morreu, descobriu-se que Piroli tinha mais 18 livros inéditos. Hoje, os direitos autorais são todos da editora Sesi-SP, que já reeditou alguns títulos, como O Menino e o Pinto do Menino e A Mãe e o Filho da Mãe.

Na biografia, por trás do retrato do escritor está também a história de um país que lutava contra a ditadura militar com as armas que dispunha, e que vivia, no pouco profissionalismo editorial —seja nos jornais, seja em editoras—, um momento de criatividade mais descontraída. Piroli, segundo os entrevistados por Marques, queria aproximar a produção intelectual da vida comum, levando tudo com um despojamento único. Nas redações em que foi editor, não faltava um garrafão de pinga debaixo de sua mesa e, em uma delas, até um pato circulava livremente entre as máquinas de escrever. Como chefe, aconselhava que se esquecesse os padrões jornalísticos: queria ler textos que contassem como as coisas realmente tinham acontecido, sem leads ou subleads. Era inimigo da objetividade e compunha títulos malucos e saborosos, como “Cada brasileiro nasce devendo sete salários mínimos”.

Ao escritor, que tinha uma relação descompromissada com a literatura —“Pescar é mais importante que escrever. Escrever faz mal para a saúde. Não conheço uma só pessoa que se tenha tornado melhor com a literatura; geralmente, piora. Há poetas, porém, que dizem que fazer poesia ‘é minha vida, é o ar que respiro’. Respiram mal e têm uma péssima vida”—, Marques acredita que também faltou sorte: “a editora Cosac Naify, por exemplo, tinha comprado todos os direitos dele, mas, logo em seguida, acabou”. Um tipo meio tímido, mas alegre, vivendo sem chamar atenção, corpulento, camisa sempre aberta no peito peludo, Piroli foi visto por seus contemporâneos como um Hemingway brasileiro, seja pelo modo de viver, seja pelo estilo seco dos textos. Exagero? Faz-se necessário ler antes de dizer.

domingo, julho 22

Em dia de chuva

Guarda das mágicas

Os livros quebram os grilhões do tempo. Um livro é a prova de que os humanos são capazes de fazer mágica
Carl Sagan 

O que usar como macador


Assim começa o livro....

Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado. E ele lhes falou, propondo-lhes temas musicais; e eles cantaram em sua presença, e ele se alegrou.

E então as vozes dos Ainur, semelhantes a harpas e alaúdes, a flautas e trombetas, a violas e órgãos, e a inúmeros coros cantando com palavras, começaram a dar forma ao tema de Ilúvatar, criando uma sinfonia magnífica; e surgiu um som de melodias em eterna mutação, entretecidas em harmonia, as quais, superando a audição, alcançaram as profundezas e as alturas; e as moradas de Ilúvatar encheram-se até transbordar; e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e este não estava mais vazio.

Então, falou Ilúvatar e disse: – Poderosos são os Ainur, e o mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram, irei mostrá-las para que vejam o que fizeram E tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

sábado, julho 21

Arme-as com livros


'Catacumba' aberta

Uma livraria é uma preciosa catacumba onde estão embalsamados e imortalmente conservados os espíritos dos mortos que não morrem
Philip Dormer Stanhope Chesterfield (1694 - 1773) 

Leitor em construção


Chatos e outros tipos

Quando dois chatos competitivos se encontram, só pode dar empate, prorrogação e cobrança de penalidades.

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Um chato tem sempre a última palavra, além das primeiras.

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Quando o chato sai para a rua, o sol corre para se esconder atrás da primeira nuvem.

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Um chato está sempre disposto a nos explicar novamente a causa da inclinação da Torre de Pisa.

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Mais que para todos, a solidão deve ser terrível para os chatos.

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Um chato é capaz de dialogar com suas vítimas em pelo menos três idiomas, sem contar o inglês.

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Os chatos sabem alemão e, para demonstrar seu conhecimento, só esperam a hora fatal em que pronunciaremos o nome de Brecht.

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O amor com fins recreativos é a principal atração das sextas-feiras à noite.

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Um dos piores tipos de chato é o honesto e cheio de obrigações a cumprir.

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Os verdes anos quase sempre amadurecem mal.

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Península é uma ilha que, por via das dúvidas, mantém um pé em terra firme.

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Retórica é tudo aquilo que você julga necessário dizer quando não diz simplesmente que um passarinho voa.

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Melhor estar só do que andar na companhia de um provérbio.

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Aqueles que confiam na sabedoria dos provérbios só semeiam ventos depois de consultar o horóscopo e o serviço meteorológico.

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Não entendo patavina de algaravias.

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Queremos que a literatura nos salve. Quem salvará a literatura de nós?

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Chorar na terceira pessoa é um velho truque dos romancistas.

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Erisipela, se não fosse o que é, teria um lugar assegurado entre aquelas aterrorizantes figuras gramaticais.
Raul Drewnick

sexta-feira, julho 20

Tapete mágico


Boas leituras

Natalia Andreeva
As leituras que a gente faz em busca do saber não são, na verdade, leituras. As boas, as fecundas, as prazenteiras, são as que a gente faz sem pensar em instruir-se 
José Azorín, "'Reflexos de Espanha"

Dia de fazer a cesta


Flybraries

Conhece a palavra "flybraries"? Calculo que não, mas, na prática, quer dizer "bibliotecas a bordo de aviões". A ideia foi da easyJet, uma companhia aérea que pretende promover a literacia e incentivar a leitura e vai fazê-lo sobretudo no âmbito dos mais pequeninos, transportando clássicos da literatura infantil (17 500 exemplares em sete línguas, incluindo o português) em 300 aviões (livros como Alice no País das Maravilhas ou O Livro da Selva constam desta flybrary). O director de marketing da easyJet para Espanha e Portugal explica que esta iniciativa tem que ver com o facto de o desempenho na leitura dos alunos do 4º ano ter piorado muito entre 2011 e 2016 (já escrevi aqui sobre o assunto) e de esta campanha combinar de certa forma entretenimento e pedagogia: "Queremos que voar seja uma experiência enriquecedora, divertida e memorável, não apenas para os adultos, mas também para as crianças, e consideramos que colocá-las em contacto directo com alguns dos maiores clássicos da literatura infantil será uma experiência enriquecedora em todos os aspectos." Esperemos que sim, que algum livro torne mesmo a viagem memorável e faça a criança querer ler mais. De todos os modos, há mais aliciantes e, para as crianças entre 6 e 12 anos, em viagens no espaço Europeu, a campanha inclui um concurso no qual meninos e meninas escreverão pequenas histórias completando a frase "Eu olhei pela janela e vi…" e, com sorte, poderão ganhar viagens para toda a família. A história vencedora será ilustrada e publicada na revista que viajará em todos os aviões da easyJet. Tiro o chapéu. Quem poderia pedir mais a uma companhia aérea?