segunda-feira, fevereiro 25

Sabedoria


Escrever

Aos cinco anos a minha mãe ensinou-me a ler e passadas semanas comecei a ensinar-me a escrever, trabalho que continua porque, às vezes, sou um aluno difícil de mim mesmo e tenho que estar constantemente a meter-me na ordem. Apresento-me as páginas, respondo

– Ainda não é isso

e começo de novo até me ordenar

– Volta a fazer

Susa Monteiro
de modo que torno à mesma frase, danado comigo, furioso que ser espontâneo dê tanto trabalho como dizia o Manel da Fonseca. Não trabalho na quinta ou na décima versão, trabalho para conseguir a primeira, 
a única que interessa e que, às vezes, surge depois da oitava, outras no meio da décima sétima, outras ainda, mais frequentes, não surge nunca. Um livro é um milagre estranho, com regras por vezes aparentemente contraditórias, ou absurdas, ou as duas coisas juntas, o sucesso e o fracasso sempre indistintos, a solução questionável, o resultado aleatório e a qualidade duvidosa. Se calhar o máximo que é possível não passa de uma satisfação transitória: portanto relê, relê, relê, volta ao início, principia de novo: trabalhas no escuro, à espera de uma pequena luz que tarda em chegar. Como Hipócrates dizia acerca do trabalho do médico, a Arte é longa, a Vida breve, a experiência enganadora, o juízo difícil e a oportunidade fugidia. Mas, se não fosse assim, que interesse tinha? Nada é vulgar, tudo é excepcional. Escreve outra vez. Tenta de novo. Como dizia 
o meu amigo Eugénio isto é um ofício de paciência e o escritor não passa de um relojoeiro das emoções, digo eu, a tentar fazer coincidir os ponteiros da alma com os do tempo. E o livro uma natureza-morta de emoções. Sopra-lhe vida, tu. Sopra-lhe tudo o que és, segundo a técnica de Deus com o barro inicial. Faz as personagens de uma costela tua, dá-lhes o teu tamanho e a tua esperança. E tenta transformar a vitória numa gloriosa derrota. Até agora, no trabalho em que estou, suado e aflito, consegui dois capítulos. Talvez o primeiro me sirva de apoio, talvez tenha começado a voar no segundo. Como voar agora? Como dar a isto a dimensão de um homem? Gloriosas derrotas? Goethe sustentava que não alcançar era a nossa única grandeza. De modo que a vitória possível é uma resplandecente humilhação. Com isto bem presente talvez possas continuar. Talvez o dedo da tua mãe te auxilie, apontando um espaço branco no livro de leitura:

– Diz-me esta frase aqui

de modo que repete em voz alta para ela as palavras que começam a lá estar, e surgindo devagarinho, uma após outra, da brancura do papel. Continua a avançar tacteando, continua a avançar. Espera por ti na esquina de uma página, tropeça, levanta-te, não pares. Já tens 
o título do livro, as cores dele, uma espécie de clima que começa a ser-te familiar: é o teu rosto de homem nu e desfigurado, o melhor que podes conseguir é o teu rosto vivo e, nele, todos os rostos da tua vida, até ao último, que só terás quando não puderes ganhá-lo porque já não és e, ao não seres, continuas. Goethe ainda: é o não chegares que faz a tua verdadeira grandeza. E então pede

– Mais luz


como ele fez ao morrer. Pede

– Mais luz

enquanto te transformas em trevas que têm a forma do teu corpo. Depois levanta-te e continua sozinho dado que ninguém te ajuda. Estás de facto sozinho. Os ruídos da casa desapareceram. A presença dos outros desapareceu. O tempo é apenas um ponteiro que não aponta nada ou aponta mil caminhos, o que é a mesma coisa. E o caminho não passa de um vazio cheio de sons que se torna necessário encontrar o único som autêntico, o som inicial, a tua voz oculta por mil ecos aliás indecifráveis ou aparentemente sem nexo. Tudo é irreal, tudo é misterioso e é necessário transformar esse tudo num fiozinho, quase invisível, de água pura. Um livro não é o que está escrito nele, é o que está escrito em ti, um livro é o teu sangue ao longo das páginas. O teu sangue, o teu olhar e o teu gesto, como queria Rilke, tornares-te um pássaro quase mortal de alma, o título que pretendes dar ao que agora escreves e encontraste numa elegia do Duíno, como um grito do Poeta enterrado na água. Não como: o grito

(sem como)

do Poeta enterrado na água e, com esse grito usado como bengala na mão, caminha ao teu próprio encontro, que é tudo aquilo que poderás achar, ou seja um infinito nada com vozes. Escuta-te. Tropeça na tua sombra e escuta-te porque tens que deixar de escutar-te para poderes ouvir. E então as palavras principiam, uma a uma, a chegar. Ninguém desce vivo de uma cruz, a não ser que já haja nascido. Ainda estás, ainda és. A tua mãe chama-te com um livro aberto nos joelhos, ela que explicava tão bem a forma como ensinara os filhos a lerem. A gente ia e vinha e ela continuava à espera, ela, uma rapariga de vinte e tal anos com todas as palavras deste mundo no colo, quietas, prontas a correrem para ti ao aprenderes-lhes os nomes. Escrever é nomear apenas, uma tentativa de ordenação do confuso vazio interior, és tu a aproximares-te de ti mesmo. Digo isto e ilumino-me dos olhos verdes dela, à minha procura entre o seu sorriso e o mundo. Ocupava tão pouco espaço e no entanto a vida inteira cabia-lhe lá dentro. Vieste dali e é a esse ali que tens de voltar. Diz

– Mãe

porque aliás nunca te foste embora. Pois não?

Os melhores

Roman Kramsztyk
Em certo sentido (o livro) não lhe dizia nada de novo, o que era parte do fascínio. Dizia o que ele teria dito, se tivesse a capacidade de organizar seus pensamentos dispersos. Era o produto de uma mente semelhante à dele, porém muitíssimo mais poderosa, mais sistemática, menos amedrontada. Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o que você já sabe
George Orwell

Leitura errante


Não se deixe enganar: a magia mora nos clássicos

Onde se localiza o prazer pela leitura? E como incentivar este hábito? Vale a leitura de textos simples, como best-sellers ou o negócio é mergulhar nos clássicos? Nestes, a leitura é mais densa e o texto, supostamente, mais difícil.

Qual a melhor opção?

 Lucija Mrzljak
Nem sempre ler um texto simples e claro traz o mistério e o encantamento da literatura para junto da alma da gente. Escrever sem trevas vira relatório, documento, contação de casos. E a boa literatura não se resume na simplicidade. O grande escritor é um bordadeiro, um tecelão, um ourives. O bom escritor sabe que o leitor está fora do contexto da romance e vai lê-lo com indiferença. O leitor é isento, morno, letárgico. Ele tem que ser transformado em cúmplice, em um amante quente e inseparável.

Já nos best-sellers, a história segue como um roteiro pré-estabelecido. Existem centenas de cursos pelo mundo afora que ensinam, como se fosse uma receita de bolo, escrever novelas e romances fáceis. E degustativos, palatáveis, fáceis de serem consumidos. E existem os leitores para esta literatura, ao milhões. Os números de venda não mentem. São entretenimento e como tais devem ser tratados.

E os romances clássicos são pinturas com luz áurea; são música sinfônica inquebrantável; são bordados. São pura matemática. São obras-primas que sabem enredar o leitor, fazê-lo parte da trama, deixá-lo sem força para os afazeres do cotidiano. Eles transformam o leitor em ator da trama, fazendo a magia e o encantamento da verdadeira literatura aflorar. Dostoiévski, Tolstói, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e tantos outros são desta lavra.

Não se deixe enganar: a magia mora nos clássicos
Afonso Borges

domingo, fevereiro 24

Promessa de segunda-feira


Descoberta de Shakespeare

Sabe que, se quiser ser um grande homem, deverá ler livros sérios. Deveria ser como Abraão Lincoln ou James Watts, estudando à luz de vela enquanto todo mundo dorme, aprendendo sozinho latim, grego e astronomia. Ele não abandonou a ideia de ser um grande homem; promete a si mesmo que logo começará leituras mais sérias; mas por enquanto só quer ler histórias.

Lê todos os contos de mistério de Enid Blyton, todos os dos Hardy Boys, todos os de Biggles. Mas os livros de que mais gosta são as histórias da Legião Estrangeira francesa, de P.C. Wren.

- Quem é o maior escritor do mundo? - pergunta a seu pai.

- Shakespeare - responde o pai.

- Por que não P.C. Wren? - ele indaga. Seu pai não leu P.C. Wren e, apesar de seu passado militar, não parece interessado. - P.C. Wren escreveu quarenta e seis livros . Quantos livros Shakespeare escreveu ao todo? - ele desafia e começa a recitar os títulos.

Seu pai diz 'Ah' de modo irritado, mas não sabe a resposta.

Se seu pai gosta de Shakespeare, então Shakespeare deve ser ruim, ele conclui. No entanto, começa a ler Shakespeare, na edição amarelada com bordas gastas que seu pai herdou e que deve valer muito porque é antiga.

J.M. Coetzee, 'Cenas de uma vida"

Amar é...


Secadora

A verdade é que, com tanto amor, os acidentes sucediam-se. Os livros ficavam
sujos,
imundos,
arranhados,
surrados,
vomitados,molhados,
maltratados...
E, embora fosse tudo por amor, a vasta biblioteca da família, com cerca de duzentos anos, ia ficando cada vez mais ameaçada.
O Secador de Livros, editado pela Caminho, de Carla Maia de Almeida e ilustrações de Sebastião Peixoto,

Profissão carrasco

Estão abertas as vagas para carrasco no Sri Lanka. Como requisito para o emprego de remuneração equivalente a menos de um salário mínimo, os candidatos devem apresentar “excepcional caráter moral” e “excelentes faculdades mentais”. Basicamente, alguém de mãos firmes e coração invulnerável. Não vá o carrasco se deixar impressionar pelo olhar de um condenado, como o verdugo de Hilda Hilst. Não vá questionar o merecimento da pena nem se gabar de executá-la com exagerado entusiasmo.

Um carrasco é como uma criatura sem voz e sem rosto tanto mais medonha quanto mais mansamente idiota, bicho criado no aprisco da lei, cujas mãos profissionais são as mãos de muitos homens. Se for para enlouquecer, que seja dentro dessa normalidade aparente de executores e condenados. Talvez colabore nesse enlouquecimento manso o uso de cordas em vez lâminas. Não pensar certamente colabora muito. Não sentir colabora ainda mais.

Houve carrascos do tempo da guilhotina que alucinaram. Um deles, uma vez, se viu lavado em sangue, e era sangue imaginário, o que chamam de crise hematofóbica. Dez anos antes de surtar, esse mesmo carrasco executou o assassino pelo qual santa Teresinha rezava. Consta que, pouco antes de morrer, o condenado caiu de joelhos no patíbulo, como que sob o peso das orações da santa. Não custa imaginar que um pouco do milagre tenha respingado no carrasco. Não custa desejar a todos os profissionais do ramo, hoje, no mundo, a mesma sorte. Está aí uma oração incidental para esse sábado, para que alucinem todos os carrascos.
Mariana Ianelli

sábado, fevereiro 23

Por que hoje é sábado


Na biblioteca


Receita

Não leiais para refutar ou contradizer, para aceitar ou aquiescer, para perorar ou discursar, mas para ponderar e considerar. Certos livros devem ser provados; outros engolidos; uns poucos mastigados e digeridos.

Quer dizer: devemos ler certos livros apenas parceladamente; outros incuriosamente, e uns poucos da primeira à última página, com diligência e atenção. Alguns livros podem mesmo ser lidos por terceiros, que nos farão deles um apanhado, mas isso somente no caso de assuntos desimportantes, e de livros medíocres, pois livros resumidos são como água destilada: insípidos
Francis Bacon, "Ensaios Civis e Morais"

Flor da leitura


Imaginemos, por absurdo, que os dicionários desapareciam

Uma palavra que durante décadas não seja utilizada na rua ou nos livros e permaneça apenas no dicionário tem um destino à vista: ser palavra-defunta. O dicionário pode ser visto, assim, como uma antecâmara da morte. Como se algumas palavras estivessem ali paradinhas, quietas, mudas (no sentido literal e metafórico) porque não falam, nin...guém fala por elas e ninguém as fala – com se estivessem, então, ali em fila, em linha, à espera do seu próprio velório. Ou podemos então mudar radicalmente de ponto de vista: o dicionário com os seus milhares e milhares de palavras, pode ser entendido como um depósito contra o esquecimento, um enorme arquivo. Eis, pois, um outro nome possível para o dicionário: instrumento para evitar o esquecimento. Imaginemos, por absurdo, que os dicionários desapareciam. Que uma qualquer ordem política determinava a sua destruição. Pois bem, seria uma matança. Em poucas décadas morreriam palavras como tordos. E se, no limite, não existisse qualquer livro, e ficássemos apenas […] com a linguagem das conversas rápidas, então o vocabulário ficaria reduzido ao mais essencial e mínimo: sim, não, comida, bebida, etc. Poderíamos assim, com a linguagem, expressar as necessidades do organismo mas certamente não as do espírito. Abrir o dicionário, pois, como ato de resistência e salvação: não vou ficar só com as palavras que ouço ou leio nos livros comuns – eis o que se poderia dizer. Abrimos ao acaso na página 310, e depois na página 315, sempre com a firme determinação de salvar duas ou três palavras de cada página. Como aquele que salva quem se está a afogar. E não é por acaso, aliás, que muitas das mitologias remetem o esquecimento para a imagem do rio. Uma água onde as coisas se afundam, deixam de ser vistas à superfície, desaparecem da vista. A passagem do rio utilizada também como metáfora do tempo que passa e leva e afunda as coisas que ainda há momentos estavam à nossa frente, bem vivas. Salvar palavras da água que engole e faz esquecer as coisas, eis o que é, em parte, abrir um dicionário. Dotados, então, de um espírito de nadador-salvador, abrimos ao acaso o dicionário e trazemos palavras mais ou menos raras – umas que já nadam há muito debaixo de água, com dificuldades, outras, mais resistentes, mais visíveis, mas ainda estimulantes (e algumas bem conhecidas dos nossos clássicos). Passemos pela letra M. Ao acaso e rapidamente. Morato – adjetivo que significa bem organizado. Maçaruco – (regionalismo) indivíduo mal trajado. Manajeiro – aquele que dirige o trabalho das ceifas os outros. Metuendo – que mete medo; terrível; medonho. E tropeçamos depois em palavras de significado popular e óbvio, mas bem divertido: Mata-sãos: médico incompetente; curandeiro. Eis, pois, a partir daqui, uma frase possível que quase poderíamos introduzir numa conversa de café (uma frase em letra M): - O manajeiro metuendo, maçaruco, aproximou-se do morato espaço do mata-sãos e disse: por favor, aqui não, vá curar mais além.
Gonçalo M Tavares

sexta-feira, fevereiro 22

Leitura para ninar

 Valentin Gubarev

Rio de Janeiro

“Minha mãe cozinhava exatamente:
Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava”

Adélia Prado

1.
Medir a distância média entre duas pessoas. Não há fitas métricas assim tão invasivas, mas o olho mede, avalia, assusta-se, entusiasma-se. O olho é uma fita métrica emotiva, sim, mas ainda assim exacta.
E é isso: no Rio de Janeiro a distância média entre seres humanos é menor. E tal facto tem enormes consequências.

Darren Thompson
Quando caminho pelo Rio de Janeiro, vejo manchas humanas em movimento. É a única cidade, mesmo no Brasil, em que a cor das pessoas verdadeiramente não existe. Noutras cidades, quando um branco e um negro caminham lado a lado, mesmo em forte e excelentíssimo companheirismo, eu vejo o negro e vejo o branco. No Rio, não. No Rio, há manchas de pessoas. Passa uma mancha de dois, outra mancha de quatro, outra de seis, e só com muito esforço se conseguirá analisar as cores (como um analista amador de pintura). Aquela mancha de pessoas resulta - percebemos então só com muito esforço e quase de forma artificial - de um homem negro, de um mulato e de outro branco (por exemplo).

Distância média entre duas pessoas, portanto, com valores mínimos mundiais.

2.
No Rio de Janeiro os humanos não caminham lado a lado, caminham encostados uns aos outros, em movimentos oscilantes e ininterruptos que fazem abalar a noção de posição individual. Os pés e a cabeça de um carioca, que avança em grupo, nunca estão no mesmo eixo. Os corpos são, no Rio, organismos inclinados, a cabeça nunca está exactamente acima dos pés - está sempre ligeiramente ou muito ou muitíssimo à esquerda ou à direita. Entre os pés e a cabeça não há uma linha recta, mas uma linha curva. Alegremente curva.

Quando caminho pelo Rio de Janeiro, vejo manchas humanas em movimento. É a única cidade, mesmo no Brasil, em que a cor das pessoas verdadeiramente não existe.

(O corpo de um carioca nem quando está deitado está direito; tudo é efusivamente torto, inclinadíssimo e temporário.)

3.
De resto, nunca joguei ao popular jogo da batalha naval com um carioca, mas certamente esse jogo terá aqui regras distintas. É impossível pensar os barcos, mesmo os barcos, sempre na mesma posição no universo do Rio: a4, d7, a5, d8. Certamente mudam matreiramente de posição (pelo menos de noite): pé aqui, cabeça acolá.
Gonçalo M. Tavares

quinta-feira, fevereiro 21

Exemplo de Paraíso


Sempre abrigados



Quando lemos uma história, nós a habitamos. As capas do livro são como um telhado e quatro paredes
John Berger

Não seja inútil


Trova da biblioteca

Na biblioteca há mil sábios
a nosso inteiro dispor.
— Sem sequer mover os lábios,
cada livro é um professor.

A. A. de Assis

Primeiros passos


O meu pai Nós

A única vez que vi o meu pai de óculos escuros foi quando o meu avô morreu. Morreu no dia 9 de Novembro, o pai colocou os óculos escuros, não os tirou mais nesse dia, nem em casa, nem no velório, nem quando voltou para dormir um bocadinho, nem durante a missa na manhã seguinte, nem durante o enterro, nem em casa depois, nem quando as pessoas vieram cumprimentá-lo, nem quando regressámos no fim daquilo tudo, ele, a mãe, nós. A mãe e nós ficámos na sala, ele fechou--se no escritório, ligou música de Bach para orgão no máximo da intensidade, fechado sozinho lá dentro e as paredes todas da casa não paravam de vibrar. À hora do jantar interrompeu a música, sentou-se na cabeceira da mesa, no lugar dele, esperou que chegássemos com a mãe e ocupássemos os nossos lugares, tirou os óculos escuros que enfiou no bolso, parecia sereno e distante, quase indiferente, praticamente não tocou na sopa nem no que havia para comer a seguir, e ali ficámos todos calados durante o tempo da refeição. Não me lembro de ter olhado para nenhum de nós como não me lembro de nenhum de nós o ter olhado. No fim acendeu um cigarro, depois do cigarro levantou-se em silêncio, alcançou de novo as escadas, tornou a fechar-se no escritório enquanto a mãe o olhava à socapa na cabeceira oposta da mesa, a música de Bach regressou e na manhã seguinte encontrei-o como de costume em tronco nu, a barbear-se ao espelho. Nós gostávamos de o ver fazer a barba porque os músculos das costas se mexiam e o seu corpo era muito bonito. Pelo menos nós achávamo-lo muito bonito e todos os seus gestos eram elegantes. Tinha um corpo magro e atlético porque fizera muito desporto, fez parte da seleção nacional de hóquei em patins nos campeonatos do mundo, costumávamos brincar com uma caixa de medalhas a que ele não ligava um pito, mesmo aos sessenta anos continuava a ganhar-nos corridas de bicicleta e a patinar admiravelmente, graças às suas lições com cinco ou seis anos eu já patinava muito bem, aos catorze ou quinze anos andei pelo Futebol Benfica e pelo Benfica depois, trouxe-me um stique óptimo de Inglaterra mas acabou-me com as proezas desportivas porque eu não estudava, deram-me ganas de o estrangular mas não me atrevi, ele foi para o hospital

(sempre gostei de o ver de bata)

e nós para o liceu ou para a escola porque os nossos pais tinham filhos com todas as idades, e tudo se passou como se nada se tivesse passado; uma das principais qualidades dele era um imenso pudor e uma imensa discrição em tudo, não fazia perguntas pessoais, não falava de coisas íntimas, quando estávamos doentes sentava-se numa das nossas camas e lia-nos em voz alta os poetas e os prosadores de que gostava, com a voz lindíssima que tinha, chamava-nos a atenção para a construção das frases, nunca havia frio ao pé da sua voz, às vezes encontrava-o na figueira do jardim a vasculhar as pobres produções que eu lá queimava, copiava algumas delas num caderno de capa verde e grossa que tinha no escritório, nunca me fez nenhum comentário mas recordo-me de o ouvir dizer à mãe, sem dar conta que eu andava por ali

– Não o podes tratar como os outros porque esse é diferente

e o respeito dele pelos artistas era infinito embora, claro, eu não fosse artista nenhum, mas sei que secretamente esperava sei lá o quê de mim

(ele esperava sei lá o quê, eu esperava imenso)

Susa Monteiro
reparei que havia agora uma fotografia do avô na sua mesa de trabalho, junto ao microscópio e aos papéis, descobri numa gaveta da sua secretária as cartas que o meu avô lhe escrevera da guerra em França a tratá-lo por Janjão, só falei nisso à mesa uma vez, quando aproveitei um silêncio para dizer Janjão, os minúsculos olhos azuis do meu pai pareceram-me de repente turvos mas não disse nada e compreendi de repente, assustadíssimo, que ele continuava a ser o menino do pai dele, sem nunca o referir e, pela primeira e última vez, senti-o tão perto e tão pequeno. Não falou mas deu-me ideia que, juntamente com a garfada seguinte, engoliu uma espécie de lágrima em que ninguém reparou. Infelizmente nunca mais tornei a ver os óculos escuros porque me deu ideia que ele se achava necessitado deles. Quando houve o almoço dos cinquenta anos de casados dos meus pais disse-lhe

– Gosto muito de si paizinho

e ele respondeu

– Eu também gosto muito de ti filhinho


e foi a conversa mais comprida que tivemos. Que pena não haver por aí uma peça de Bach agora.

quarta-feira, fevereiro 20

Por que alguns livros nos chegam com lixo

Catarina Sobral

Diferentes leituras

Michael Hirshon
Uma das características do grande escritor é o fato de diferentes espíritos encontrarem nele diferentes inspirações
Somerset Maugham

Noites de leitura

Gizem Vura

O medo e a poesia

Peter Franklin
De todos os medos que me acompanham desde que cheguei nessa vida o maior deles é o medo de sentir medo. O primeiro, lá no começo, foi o da chuva, chegou, ficou, cara de pau mesmo, não teve jeito de ir embora até que, um dia, conformada, ficamos amigos, eu e o medo da chuva. Ainda hoje, quando os morros uivantes de Jaraguá do Sul decidem vestir suas capas cinzentas ele vem assim como quem não quer nada. Depois veio o medo de dentista e nem tive tempo para pensar em nada, agressivo, tenso, um alicate conduzido por uma mão peluda me nocauteou e entre gritos e choro, sem anestesia, vi três dentes subirem a ladeira. Tranquila, superei, mesmo tendo que usar aparelho depois de 24 anos para consertar o estrago.

O medo de falar em público encheu gavetas, arrebatou prateleiras e se tornou tão ameaçador que não havia outro jeito, era eu ou ele. Foi exterminado miseravelmente nos anos em que fui professora e hoje parece nunca ter existido. Veio do pó e ao pó retornou humilhado, sem escolha. O medo de dirigir trouxe uma coleção de problemas e com eles vieram buzinas, xingamentos e micos no trânsito. Depois de anos e hoje dirigindo pelas estradas soube que este medo pegou carona com o anterior e sumiu. O medo de andar de bicicleta é imperativo, aristocrático e faz com que eu me sinta a mais idiota das criaturas por um simples motivo: eu não sei andar de bicicleta! Sei que o leitor pode estar um pouco chocado, então, encerro aqui esta parte, pois este é assunto para outra crônica.

Somos corajosos, enfrentamos tudo, mas tem um medo que nos domina, cerca, beija, abraça, se finge de amigo, some por tempos, um dia volta com tudo e aí não tem mais jeito, é um fim de sentinela: é o medo da morte! Na hora marcada da nossa chegada a este mundo cruel e louco ele vem junto com a placenta e assim permanece enquanto somos gente, enquanto a alma não descola. E para essa praga que corrói por dentro tenho o remédio certo, tomo doses generosas que amenizam as dores e tenho a sorte de, às vezes, poder elaborar a bula. Parece mágica não? É que eu trato o medo da morte com poesia, com a arquitetura das palavras. Não tem mundo que não fique mais bonito, não tem amor que não volte, não tem lágrima que não durma. Coisa mais linda do mundo essa coisa de poesia! Tem um que de ver o invisível, de lucidez na loucura, de pintar quadros com a mente. Nessas horas de harmonia geométrica ler poesia é como estar no inferno e deitar em tapetes de gelo. E hoje eu quisera isso, escrever esta crônica com recheio de versos em prosa.
Elyandria Silva

terça-feira, fevereiro 19

Viagem com Atlas

Hollie Hibbert

Guilhotinar a cultura

Em 1933, a Alemanha hitleriana promoveu, em dezenas de cidades, a queima pública de livros "não alemães" e de "intelectuais judaicos". A "Bücherverbrennung" (queima de livros) obedeceu ao projecto de "sincronização cultural" de Goebbels visando a "limpeza" da cultura alemã. Foram assim atirados ao fogo, no meio de multidões ululantes e de braço estendido, obras de, entre outros, Thomas Mann, Walter Benjamin, Brecht, Musil, Heine, Freud, Einstein... Hoje já não se acendem fogueiras, usam-se guilhotinas. Mas o objectivo continua a ser a "limpeza", desta vez comercial, e a "sincronização cultural", agora com os padrões do lucro a qualquer preço, mesmo que seja ao preço da própria cultura. Se não vejam-se os "intelectuais" sacrificados na "Bücherguillotinierung" (guilhotinagem de livros) recentemente organizada pelo Grupo Leya de Miguel Pais do Amaral: Garrett, Fernão Lopes, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Ramos Rosa, Goethe, Holderlin... Ao menos os nazis queimavam livros em nome de uma ideia de cultura, o que sempre é um pouco mais respeitável que fazê-lo por mera ganância.
Manuel António Pina  -  Jornal de Notícias, 19/02/2010

Cidades leitoras

Rob Gonsalves

Restos do Carnaval

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

Juan Gris
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
Clarice Lispector

segunda-feira, fevereiro 18

Roda de leitura

Fritz Wagnet

Biblioteca

Albert Josef  Franke
Na estante, os imortais da literatura acotovelam-se, lutando por espaço, enquanto as traças cumprem infatigavelmente as ordens do tempo
Raul Drewnick

Onde todos passeios são possíveis


O gramático

Alois Heinrich Priechenfried 
Alto, magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como ervas selvagens pela face de um abismo, sobre os cantos da funda boca munida de maus dentes, o professor Arduíno Gonçalves era um desses homens absorvidos completamente pela gramática. Almoçando gramática, jantando gramática, ceando gramática, o mundo não passava, aos seus olhos, de um enorme compêndio gramatical, absurdo que êle justificava repetindo a famosa frase do Evangelho de João:

— No princípio era o VERBO!

Encapado pela gramática, e às voltas, de manhã à noite, com os pronomes, com os adjetivos, com as raízes, com o complicado arsenal que transforma em um mistério a simplicíssima arte de escrever, o ilustre educador não consagrava uma hora sequer às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, às vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo tempo:

— Arduíno, põe essa gramatiquice de lado. Presta atenção aos teus filhos, à tua casa, à tua mulher! Isso não te põe para diante!

Curvado sobre a grande mesa carregada de livros, o cabelo sem trato a cair, como falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o colarinho da camisa, o notável professor retirava dos ombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe, indicando a estante:

— Dá-me dali o Adolfo Coelho.

Ou:

— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves Viana.

Desprezada por esse modo, Dona Ninita não suportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas gramáticas, com os seus dicionários, com os seus volumes ponteados de traça, e começou a gozar a vida passeando, dançando e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz que não conhecia O padre Antônio Vieira, o João de Barros, o frei Luís de Sousa, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como ninguém, fazer sorrir as mulheres.

— Êle não prefere, a mim, aquela porção de alfarrábios que o rodeiam? Então, que se fique com eles!

E passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quais não figuravam, jamais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes de Azurara, nem Rui de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do seu mundanismo, D. Francisco Manuel de Melo.

Assim viviam, o professor, com seus puristas e Dona Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o desventurado gramático surpreendeu a mulher nos braços musculosos, mas sem estilo, de Gaudêncio de Miranda. Ao abrir-se a porta, os dois culpados empalideceram, horrorizados. E foi com o pavor no coração que o rapaz se atirou aos pés do esposo traído, pedindo súplice, de joelho:

— Me perdpe, professor!

Grave, austero, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o ilustre educador encarou o patife, trovejando, indignado:

— Corrija o pronome, miserável! Corrija o pronome!

E, entrando no gabinete, começou, cantarolando, a manusear os seus clássicos…
Humberto de Campos

domingo, fevereiro 17

Banho de leitura

 Katja Spitzer

Queria morrer no mar

Kathleen Denis
Tinha uns sentimentos estranhos, mãe e pai aborrecidos. Não queria morrer embarcado no seco. Moço bonito, corpulento, olhos verdes, pele cor de espuma branca. Disputado pelas moças da aldeia. Não ligava. Dizia baixinho, quem é do mar não se separa dele. Completamente verde naquelas águas, o que mais queria. Quem ama essas águas verdes nunca se queixa da vida, morre nas ondas doces do mar, sua voz prosseguia.

Pressentimento? Intuição? Pretensão alimentada às escondidas? Ideia transmitida a ele desde cedo. Desejo feito de ondas verdes no íntimo, sempre. Chegava cantante aos seus ouvidos, trazido, ninguém duvide, pelas vozes encantadas do mar.

Não se desligava de seu amor forte nascido com o balanço das ondas. Ninguém entendia a esquisitice, mangavam dele, o abestado.

Um dia, tudo teria o seu fim natural, levado no seio das ondas, no rosto o soprar do vento marinho, molhados os cabelos encaracolados. Esperassem o final, não demoraria. Acreditariam então que não andava brincando com o que mais queria.

Diante da cena de seu sumiço, ficariam rendidos, subjugados à verdade de seu relacionamento com o mar. Saberiam que ele, o moço de pele tostada pelo sol de verão, olhos translúcidos de verde, língua lambendo o salitre nas comissuras dos lábios sanguíneos, outra coisa desse mundo não queria, a não ser morrer no mar.

O pai irritado. A mãe chorava, rezava o terço, suplicava. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro tirasse da cabeça do filho aqueles sentimentos. Vivia dizendo que quando chegasse o dia, ninguém tentasse procurar seu corpo por entre as ondas, não achariam em qualquer lugar. A mãe aflita, o pai de olhos arregalados, de tanto escutar ele repetir aquele desejo insistente, que escorria, vinha, escorria.

O pai proibiu que ele saísse no saveiro barra afora. Inseguro para conduzir a embarcação. Não sabia manejar firme o leme ante os arrecifes. Se topasse com o rodamundo, vento que encapelava o mar, erguendo ondas altas, adeus, meu saveiro Vencedor com o seu tripulante sonhador.

Uma tarde, de vento alegre, empurrou o saveiro para cortar as ondas que se esbatiam em seu peito moreno. Subiu na embarcação. Foi na direção das ondas brilhando no vasto verde. Ouviu aquela voz cheia de encanto no canto melodioso do vento. “É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”.

Não se ouviu falar mais dele. Nem encontraram seu corpo. Nem tampouco algum escombro do saveiro. Nada. Era doce morrer no mar. Nas ondas verdes do mar. Reinventara-se para sempre, como havia prometido a si mesmo.
Cyro de Mattos

Super-heróis também leem

Michael Fleming

A leitura

Não leiais para refutar ou contradizer, para aceitar ou aquiescer, para perorar ou discursar, mas para ponderar e considerar. Certos livros devem ser provados; outros engolidos; uns poucos mastigados e digeridos. Quer dizer: devemos ler certos livros apenas parceladamente; outros incuriosamente, e uns poucos da primeira à última página, com diligência e atenção. Alguns livros podem mesmo ser lidos por terceiros, que nos farão deles um apanhado, mas isso somente no caso de assuntos desimportantes, e de livros medíocres, pois livros resumidos são como água destilada: insípidos.
O ler faz um homem completo, o conferir destro, o escrever exato. Bem por isso, se alguém escreve pouco, deve ter boa memória; se confere pouco, muita sagacidade; se lê pouco, muita manha para afetar saber o que não sabe.
Francis Bacon, "Ensaios Civis e Morais"

Compulsão


'Dom Quixote' e seus números

Sabe-se que Albert Einstein lia Dom Quixote. Era o romance que levava em suas viagens e sempre o tinha em sua mesa de cabeceira. Sentia atração pelo personagem cervantino; um fidalgo de La Mancha para quem a cavalaria era “uma ciência que encerra em si todas ou a maior parte das ciências do mundo”.

Para Einstein, por sua vez, a literatura não seria apenas uma maneira de se relacionar com o acaso, mas também uma forma de se identificar com a matemática pura, que ele definiu, em sua forma, como a poesia das ideias lógicas.


De um ponto de vista sempre criativo, Einstein manteve sua falta de respeito por estruturas rígidas. Fez isso da maneira quixotesca, criando a irreverente Academia Olímpia com um grupo de amigos. Uma irmandade com rituais típicos dos romances de cavalaria, da qual o cientista foi nomeado presidente.

Da forma como correram as coisas, pode-se dizer que a aventura científica de Einstein foi quixotesca, já que teve de enfrentar os moinhos do mundo acadêmico de sua época. “Agora eu também sou um membro oficial da guilda das prostitutas”, escreveu em uma carta, depois de conseguir seu cargo de professor na Universidade de Zurique.

Quixotismos à parte, é possível que, levado por sua condição científica, Albert Einstein tenha se indagado alguma vez sobre a velocidade das pás dos moinhos que aparecem no romance de Cervantes. É possível, inclusive, que tenha feito cálculos sobre o valor da força normal entre Rocinante e o solo de La Mancha, que, ao ser tão horizontal, coincidiria com o peso do cavalo somado aos ossos de seu cavaleiro, no momento exato de investir contra os gigantes. Certamente Einstein analisava os episódios do romance a partir das abstrações propostas pelas leis da física. É possível também que gostasse da maneira rústica que Sancho Pança tinha de fazer operações aritméticas.

O cálculo mental que Sancho faz quase no fim da segunda parte do livro nos mostra que Cervantes era um autor que completava seus personagens com os mínimos detalhes. Neste caso, Quixote propõe a seu escudeiro que defina um preço para cada açoite com que deve punir a si mesmo. Sancho responde “um quartilho”, ou seja, a quarta parte de um real para cada açoite. Fazendo contas, Sancho diz que não ganhará menos de três mil e trezentos quartilhos. Em seguida, expõe seu cálculo mental, separando milhares de centenas, os três mil dos trezentos, para depois começar a fazer metades e meias metades, o que resulta em um jogo numérico:

(3.300 : 4) = (3.000 + 300) : 4 = (3.000 : 4) + (300 : 4) = 750 + 75 = 825

“São ao todo oitocentos e vinte e cinco reais”, replica Sancho, esperando chegar à sua casa com o dinheiro, “rico e contente, embora bem açoitado”.

O romance de Cervantes não está repleto somente de questões aritméticas como a citada, mas também algébricas, geométricas e inclusive lógicas. Serve como exemplo o famoso paradoxo do enforcado, quando chega até Sancho, governador da ínsula Barataria, um forasteiro com uma história que, no fim, contraria toda a lógica por apresentar duas opções iguais em relação à sua possibilidade.

Segundo o forasteiro, um rio dividia duas partes de um mesmo terreno, e sobre esse rio havia uma ponte e uma forca. A lei dizia que se alguém queria atravessar a ponte tinha de dizer primeiro, sob juramento, aonde ia e o que ia fazer. Se dizia a verdade, era autorizado a passar. Se mentia, morria enforcado.

Então, aconteceu que um homem foi cruzar a ponte jurando que ia morrer naquela forca. Se sua passagem fosse liberada, teria mentido em seu juramento e, por mentir, deveria ser enforcado. Mas, se fosse enforcado, teria dito a verdade e, por isso mesmo, por dizer a verdade, deveria ter ficado livre.

Sancho acabou deixando o homem com vida. Fizesse o que fizesse, se o enforcasse ou se o deixasse livre, em qualquer dos dois casos, Sancho violaria a lei.

Por isso, teve uma saída lógica na qual demonstrou sua habilidade na hora de resolver o paradoxo. A mesma lógica que combinou com astúcia no caso do açoitamento. Em vez de atingir seu corpo, açoitou o tronco de uma árvore.

sexta-feira, fevereiro 15

Leitores em trânsito


O facho de claridade

Poema é toda a página aberta diante de mim, caligrafada de esperança e de calma. Poema é o facho de claridade que incide sobre as coisas e os seres, acariciando com a mesma ternura inefável o bom e o mau, o perecível e o imperecível
Miguel Torga

Leitura da manhã

 Duncan Grant (Grã Bretanha, 1885-1978)

Em queda

Por mais que Umberto Eco nos tenha assegurado em variadíssimas entrevistas que o livro nunca vai morrer, a verdade é que todos os dias me convenço mais de que, se as coisas não mudarem muito depressa em relação ao excesso de atenção dada por jovens e adultos aos dispositivos digitais, a leitura a sério (não só em papel, mas em profundidade, com as sinapses todas a funcionar) tem os dias contados (excepto para a pequena minoria que não desiste, e ainda bem). Depois de, na altura da Feira do Livro de Lisboa, uma agente literária alemã me ter dito que a Alemanha (a Alemanha?) perdeu seis milhões de leitores em quatro anos, ouço agora um testemunho do professor responsável pelo mestrado em Edição na Sorbonne num podcast do site da revista profissional Livres Hebdo e fico de boca aberta: a França teve a sua maior queda de vendas de livros dos últimos dez anos – 45 milhões de exemplares em 2018 contra 54 milhões em 2017. A França, que foi sempre o símbolo do país livre e educado a que aspirávamos (sobretudo, antes do 25 de Abril) está em declínio há já muitos anos (por isso já tão pouca gente aprende francês), mas os resultados da Frente Nacional de Marine Le Pen de há uns tempos para cá e as mais recentes manifestações dos coletes amarelos mostram bem que as coisas vão pior do que gostaríamos. E, sem leitura, a tendência é mesmo para bater no fundo…

quinta-feira, fevereiro 14

Ao trabalho


Ter o que ler não falta

Penso que todo mundo já chegou a ter essa sensação: quando você se dá conta de que irá morrer algum dia e que não vai dar tempo de ver aquele total de séries e filmes que gostaria. Ou, pior, quando você faz as contas do número de livros que é possível ler em uma vida inteira.

Joseph Lorusso
Caso você leia pelo menos um livro por semana — o que é muito —, você faz 48 leituras por ano. Considerando que você viva até os 90 anos, mas tenha começado a ler semanalmente aos 15, a estimativa é que consiga ler somente 3.500 livros antes de morrer. Três mil e quinhentos! É angustiante. Não bastassem todos os clássicos do cinema e da literatura que vale a pena conhecer, novos filmes, livros e séries são lançados aos montes a cada ano
Raphael Montes

Tantos livros...

Huntsville (Canadá)

Ler

De todo o tempo que perdem os portugueses, não há eternidade como o tempo que perdem a não-ler. Durante o Verão, o país enche-se de turistas estrangeiros e quase todos – seja na praia, seja no hotel – andam quase permanentemente com um livro na mão. Esta estranha proclividade deixa o português perplexo: "Estes bifes são todos malucos – pagam um balúrdio para cá virem e depois, em vez de aproveitarem, passam o tempo todo a ler… Até usam o livro aberto para marcar os lugares!"

É o facto cultural mais assustador de todos – os portugueses não lêem livros. Em nenhum outro país da Europa é tão raro ver alguém a ler um livro em público. Causa genuína aflição vê-los a não-ler. Na praia, nas salas de espera, nos comboios, enquanto almoçam sozinhos, nos cafés… em toda a parte se vê uma população atarefadamente dedicada à actividade de não-ler. Porque é que não aproveitam estes tempos mortos?

Não se sabe. Uma das causas será o facto do português ter horror à solidão. Esteja onde estiver, e por muito entediada que seja a sua condição, o português prefere estar a olhar para os outros – os tais que, por sua vez (em vez de estarem a ler), estão a olhar para ele.

O Português tem medo de se mergulhar num livro porque isso significa deixar de “estar à coca”. Não pode estar em lado nenhum sem sentir que está de serviço, a controlar a situação. Olha os que entram, os que saem; os que ficam, os que voam e fazem “Bzzzz…”. Nem é só por bisbilhotice – é por desconfiança. Não pegam num livro porque têm medo de apanhar com uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. Para um português, ler é estar desprevenido.

Os preconceitos contra a leitura são terríveis. Entre o povo diz-se que faz mal à digestão ler a seguir ao almoço ou ao jantar. A obsessão dos portugueses com a digestão merecia, só por si, uma crónica. Na TV, na campanha do “Há mar e mar”, aconselham um mínimo de três horas! E julga-se que passam essas três ridículas horas a ler?

Os contos de Bruxa não acabam aí! Existe também a noção grosseira de que ler «cansa a vista» porque «faz mal puxar muito pela cabeça». O típico brutamontes defende-se destas acusações dizendo que «ando a trabalhar todo o dia e, quando chego a casa, é para descansar, não é para ler». A realidade é triste mas tem de ser revelada: o português prefere cansar-se a trabalhar (e lembremo-nos que tem a capacidade singular de cansar-se muito a trabalhar pouco) ao descanso que seria ele ler.
Miguel Esteves Cardoso, "A causa das coisas"