terça-feira, agosto 31

Baús da Terra Encantada

 


Banhos de mar

Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife.

Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?

De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamo-nos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.


Saíamos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo.

Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com os bichos-de-pé: “Olhe um porco de verdade!” gritei uma vez, e a frase de deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras de minha família, que de vez em quando me dizia rindo: “Olhe um porco de verdade.”

Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer.

Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.

No bonde mesmo começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu saía da cabina e sabia o que me esperava.

O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo.

Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva-vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.

Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça.

Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo.

Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura.

Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.

A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais?

Nunca mais.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Atrás da palavra perdida

 


A cidade das palavras

Era uma vez uma cidade habitada por palavras em que cada uma vivia em sua casa com as portas fechadas mas constantemente se visitavam ou então saíam para a rua e passeando cruzavam-se com outras palavras e saudavam-se mas com o crescimento progressivo da cidade as palavras quando saíam para a rua começavam a chocar umas com as outras e chocando-se retiravam-se encolerizadas e regressavam a casa mas já não regressavam como haviam saído e dentro de casa aumentavam por um efeito de cólera morosa e lembrando sempre as outras palavras começaram crescendo dentro de suas casa e da próxima vez que saíam par a rua já iam transformadas e quando encontravam outra vez as outras palavras passava-se outra vez a mesma coisa e regressavam a casa e continuavam a crescer e sempre em direções diferentes e cresciam de tal modo que já não conseguiam fechar as portas e novos braços abriam as janelas e a cólera trepava pelas paredes e começavam a escavar o tecto e ligadas ao andar de cima entrelaçavam-se à palavra do outro apartamento que também estava encolerizada e já chegava até ao telhado e subia pela antena da televisão e gritava encolerizada com as palavras dos outros prédios já subindo pelo céu acima e toda a cidade estava aos gritos e já não havia mais espaço para as palavras crescerem a não ser emaranhadas umas nas outras e os seus gritos confundiam-se e as palavras estavam todas unidas irremediavelmente e gritavam todas ao mesmo tempo de modo que ao longe era um só grito enorme que mais longe se transformava num sussurro e de muito mais longe até não se ouvia nada.

Ana Hartherly, "A cidade das palavras"

segunda-feira, agosto 30

Leitura à beira do mar

 


Epitáfio

Cada tempo tem a sua moda e vê-se que já passou a moda dos epitáfios, tão cultivada em outras épocas mais românticas. Hoje, quem pode e quer mostrar sentimento esmaga os seus defuntos sob o peso do mármore, do granito e do bronze, ou constrói sobre os sete palmos uma capela de cimento armado, com vitrais, em estilo gótico, ou italiano ou grego, ou ainda num feitio quadrado e medonho, todo eriçado de ângulos retos, com fachada de pó de pedra e portões de ferro fundido, ― estilo que não sei porque é chamado de "modernista" em gíria de cemitério. E assim, dedicada ao monumental, acha a parentela que já fez bastante; abandona a arte mais sutil de celebrar os mortos com palavras e limita-se a gravar no túmulo o nome e as datas, acrescidas de alguma das fórmulas oficiais: "Orai por ele", "Saudades eternas".

Antigamente não havia tanto dinheiro nem tanto espaço dedicado às edificações mortuárias. Os mortos se enterravam no chão das igrejas ou nos pequenos cemitérios do tamanho e do aspecto de uma casa com pé direito elevado, telhado e portão. Lá dentro o aspecto é o de uma espécie de claustro; no meio o pátio quadrado, com o jardim, e nas paredes do fundo, por trás das colunatas das varandas, as fieiras de carneiros pequenos e arrumados uns sobre os outros, à feição de gavetas, mal dando espaço para uma inscrição. São assim os cemitérios de irmandade que ainda se encontram atrás de cada igreja, nas velhas cidades de Minas, tão quietos, tão recolhidos, tão protegidos de intrusos, do sol e do tempo ruim, que até parecem uma espécie de conventos de além-túmulo, exclusivos dos irmãos da confraria.


Sem espaço para anjos, cruzes, bustos e outras estatuárias, a vaidade dos parentes tinha que se limitar aos dizeres dos epitáfios. Há deles em latim, em francês, em prosa e em verso. Uns citam a Bíblia, outros Dante, outros Camões. Dois mais modernos, ou mais republicanos, usaram Gonzaga e Cláudio Manuel. Outros compõem com musa própria, choram filhos infantes e cônjuges perdidos em legendas miúdas e negras, pintadas maciçamente sobre a pedra, ou em letras vazadas no mármore com capitais floridas de iluminura. Há os de coração humilde, zelosos da própria modéstia, que evidentemente deixaram providenciado o epitáfio: o embora seja ele repetido com certa frequência, sempre comove quando encontrado: "Aqui jaz um pecador". Alguns pedem orações, pedem uma lágrima ou anunciam "suspiros e saudades". E mães, pobres mães aflitas, dizem coisas ingênuas de cortar coração na pedra que guarda os seus anjinhos, como aquela, genitora da "inocente Maria Cordulina (Dadá), que subiu ao céu aos quatro anos incompletos".

Mas entre todos os epitáfios que li nos cemitérios de Minas o que mais me comoveu foi o da moça Matilde, nascida em 1846, casada em 1867 e morta de parto aos vinte e sete anos, em 1873. O seu aflito esposo lhe dedicou estes versos:

Pensão todos que morreste
Que viúvo me deixaste
Quando apenas na jornada
Mais depressa um pouco andaste.

Após de ti eu caminho
Na mesma senda prossigo,
Meu passo não é tardio;
Bem cedo serei contigo.

Podem os versos não ser bons; mas são bonitos por dentro. E além de comovida me deixaram com inveja. Pois qual de nós, minhas irmã;s, ousa esperar do viúvo tal promessa gravada no mármore eterno, de nos acompanhar em passo "que não é tardio" e isso depois de nos saberem para sempre caladas e bem enterradas debaixo do chão?
Rachel de Queiroz, O Cruzeiro 11/06/1949

sábado, agosto 28

Acumulador possessivo

 


O bibliotecário

Sempre ao fim da manhã e também ao fim da tarde, o bibliotecário recolhe os livros abandonados em cima das mesas. Aproveita para afagar as lombadas, ajeitar as folhas, limpar as capas, com gestos ternos e profissionais. Depois, e usando de todo o cuidado para não lhes causar algum desgosto ou perturbação, conduz cada livro ao seu exacto lugar. Com veemente paciência, procura então colocar cada volume na posição mais cómoda, alinhando a lombada com as restantes lombadas da mesma estante. As mãos tremem-lhe de tanto zelo.

No entanto, e apesar do cuidado com que o bibliotecário se entrega à sua meticulosa tarefa, os livros dedicam-lhe uma profunda inimizade. Conspiram e manobram nas suas costas, desde o primeiro dia.

O bibliotecário ouve-os falar e dá conta de tudo. Mas tanto se lhe dá porque ama verdadeiramente os livros. Porque ama-os apaixonadamente com todas as suas forças. Os livros, porém, não se deixam comover por estas demonstrações de afecto. Escarnecem do seu irritante desejo de agradar, lançam ofensas, urdem as piores armadilhas: os livros de história disfarçam-se de livros de botânica, os de medicina escondem-se sob as capas dos de teologia, e assim por diante.

Ora, os mais acérrimos inimigos do bibliotecário são os livros de poesia. Já vi livros de poesia enterrarem os dentes, sem cerimónias, nas mãos pequenas do bibliotecário. Mais do que isso: já vi clássicos da poesia puxarem-lhe a língua, cuspirem-lhe na cara, chamarem-lhe falso Judas e lambe-cus. Felizmente, são dos menos solicitados pelos leitores. De facto, apesar dos seus esforços para atraírem as atenções, com as suas capas escandalosamente azuis ou desmesuradamente grandes, raras são as vezes em que saem do lugar. Por isso, o ódio cresce a cada dia que passa. E à noite, colados à sua imensa imobilidade, os livros de poesia sonham com a morte do bibliotecário.

Rui Manuel Amaral, "Caravana"

sexta-feira, agosto 27

Leitura da manhã

Edouard Vuillard 


 

Verbetes

Babel

A maldição de Babel não foi os homens desentenderem-se por falarem línguas diferentes, mas sim desentenderem-se falando a mesma língua.
(Dovev Rosenkrantz)

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(A) Contradição do sobreiro

A vida descreve-se pela contradição do sobreiro: o jovem não tem paciência para esperar meio século para que a árvore cresça e seja adulta. Por isso, não a planta. Quando chega a velho e, finalmente, tem paciência para esperar, planta-a, mas já não tem tempo para a ver crescer.

***
Corvos

Aos homens que tentavam sedentarizar-se, os Ubitatã cortavam-lhes os pés: «se não caminham, não precisam deles». E davam os pés a comer aos corvos.

O rei da Assíria, Sardanapalo, pelo contrário, cortava os pés dos nómadas para que estes se tornassem sedentários. Depois, dava-os a comer aos corvos.

Em ambos os casos, os corvos é que ficavam a ganhar.

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Ler

Podem não existir livros a mais, mas existe tempo a menos.
(Wilhelm Möller)

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Ócio

O ócio não é o contrário de trabalho. A felicidade é que é o contrário de trabalho.
(Marian Bibin)

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(Relação entre o) telhado e a dúvida

Por mais andares que uma casa tenha termina sempre no telhado. É assim a vida do homem: por mais certezas que tenha, termina sempre na dúvida.
(Malgorzata Zajac)

Afonso Cruz, "Enciclopédia da Estória Universal – Recolha de Alexandria"

Porta da felicidade

 


Balada de Luís Jardim

Não utilize o suicídio. Use o álcool. Leia ou não leia as crônicas do sr. Luís Jardim, mas use o álcool. Matar-se é por demais rigoroso. Beba. Beba sempre que puder. Nem um só dia sem álcool. O mundo não é triste nem alegre, mas a qualquer hora do dia ou da noite, o senhor encontrará insofismáveis razões para beber. Que a constituição assegure o direito ao álcool que os poderes da república erijam o bar em instituição nacional. Álcool a preços módicos, abundante, para todo mundo. Embriague-se pelos menores motivos, embriague-se sem motivo algum porque afinal é por demais melancólico não se ter razão alguma para tomar pileque.

Se o senhor alimenta algum complexo de inferioridade, beba. Se o senhor é triste de natureza, beba ao morrer do dia, que o crepúsculo sempre foi a hora mais difícil para as índoles oprimidas. Caso o senhor seja feito de irremediável feiura, beba de meia em meia hora um cálice de cachaça. A cachaça vai bem com as pessoas feias e hão de achar que o senhor é terrível. Se o senhor é um artista fracassado, torne-se um ébrio, frequente os botequins abertos a noite inteira, espalhe contando a toda parte os versos que não fez, a melodia divina que ficou na sua cabeça, as cores e as formas maravilhosas que não se resolveram na tela.


Não se mate: beba. Li-Tai-Po, um lírico chinês de milhares de anos, quis uma noite colher a lua de um lago e morreu bêbado nas águas mansas. Tenha paciência. O poeta Hafiz bebeu shiraz a vida toda e a gente faz dele uma ideia feliz. Não se mate. Aproveite o tempo bebendo, continue a viver, bebendo. Às vezes, um único coquetel resolve. Experimente, embebede-se um pouco, não desista.

Se os domingos o aborrecem, sente se à mesa de um bar, gaste em uísque o dinheiro do aluguel. Se o senhor é rico e o spleen da alta sociedade começa a roubar-lhe o encanto, procure um boteco humilde, beba com os operários e os malandros, aprenda a conversar com eles, a discutir com eles, a trocar navalhadas quando a lua vai alta.

Se o senhor é tímido, faça ponto obrigatório num bar central, e daí parta para cavalgadas heroicas, provoque distúrbios, enfrente a polícia, faça comícios no coração da cidade, exponha-se diariamente numa sarjeta à visitação pública. Se o senhor cometeu homicídio, embriague-se. Se o mar lhe traz a ideia insatisfeita do infinito, embriague-se a valer. Se o senhor espera em Deus, espere bêbado. Se o senhor não crê na imortalidade da alma, e isso o assusta, durma sempre bêbado, espante a morte de seus pensamentos, mergulhe-se num sono espesso sem remorso.

Se a bebida prejudicar-lhe o trabalho, atenda ao senso-comum. Se o senhor perdeu as eleições, beba. Se o senhor é prático de farmácia e se realmente (como dizem) é muito triste ser prático de farmácia, beba vinho, arme-se de vinho para a mágoa do cotidiano.

No capítulo das mulheres beba sistemática e pateticamente. Se as mulheres o iludem, beba. Se as mulheres o desprezam, beba. Se elas o amam, beba também, porque amanhã pode ser que elas venham a enganá-lo. Embriague-se pelas louras e pelas morenas. Não se mate de amor: beba de amor.

quinta-feira, agosto 26

Bom passeio !

 


Última curva

Albert Marquet
Chegou meu tempo de ficar calado,
Silêncio é tudo que me resta agora,
Aquilo que me fez viver outrora
Hoje está morto, já, e sepultado.

Posso eu ainda pensar em vida, em obra?
O que posso é manter-me respirando
Porque isso é o que fazemos todos quando
Respirar passa a ser o que nos sobra.

Raul Drewnick

Refúgio

 

 Iza Dudzik

Uma história de tanto amor

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:

— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! E é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!

Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:

— Nós comemos Petronilha.

A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:

— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.

O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma préciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeulhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.
Clarice Lispector

quarta-feira, agosto 25

Lugar para se perder

 


Manuscritos

Eu abrira-me em confidência a Mrs Prest; e é verdade que poucos progressos teria feito sem ela, porque dos seus lábios amigos saiu a frutuosa ideia de todo este caso. Foi ela quem inventou a solução expedita, quem desatou o nó górdio. Acha-se, em geral, que não ascende da natureza feminina nenhuma vista larga nem dotada de grande liberalidade; refiro-me a uma solução prática; mas por vezes tive a sensação de que sabe afoitar-se a arrojadas concepções — de que nenhum homem seria capaz — e com singular serenidade. “Limite-se a pedir-lhe que o aceite na condição de hóspede." — Sem ajuda, penso que não teria lá chegado. Eu andava com rodeios, esforçava-me por ser engenhoso, por pensar que combinação de artes seria capaz de fazer-me chegar a um relacionamento, quando me deu esta feliz sugestão: para chegar ao seu relacionamento eu teria, primeiro, de ser considerado um familiar da casa. Naquela altura ela não conhecia muito mais do que eu as Misses Bordereau; e eu até trouxera da Inglaterra alguns fatos precisos que lhe eram desconhecidos. Em épocas remotas tinham tido o nome ligado a um dos maiores nomes do século, e naquela altura viviam obscuramente em Veneza e com muito reduzidos meios, sem visitas, inabordáveis num velho e degradado palácio de um canal retirado dos circuitos habituais: era o mais concreto que a seu respeito a minha amiga sabia. Há cerca de quinze anos ela própria se instalara em Veneza e tinha-se entregue a uma grande quantidade de obras caridosas; mas o círculo da sua beneficência não incluía as duas americanas tímidas e misteriosas (era por assim dizer suposto que no seu longo exílio tivessem perdido todas as características nacionais; para além de terem na sua origem, como o nome denunciava, um qualquer ramo francês) que não pediam favores e desejavam passar despercebidas. Nos primeiros anos em que ali residiram, Mrs Prest fizera uma tentativa para as encontrar, mas só tivera êxito com a “pequena”, chamava assim à sobrinha, apesar de ser a maior das duas como verifiquei pouco depois. Soubera que Miss Bordereau estava doente e suspeitava de que vivesse com dificuldades; fora lá a casa oferecer os seus préstimos para não ficar, ao fim e ao cabo, com um caso de penúria (uma penúria americana) a pesar-lhe na consciência. A “pequena” recebeu-a na grande, fria e embaciada sala veneziana, a divisão central da casa com pavimento de mármore e tecto de escuras vigas cruzadas, e nem sequer lhe tinha dito para se sentar. Isto não me encorajava muito porque desejava lá ter com rapidez um assento e, tanto quanto pude, fi-lo saber a Mrs Prest. Foi no entanto com profunda argúcia que me respondeu: “Ah, mas toda a diferença está aí; eu ia fazer-lhes um favor, e o meu amigo vai pedir que lhe façam um. Se forem orgulhosas, surgir-lhes-á do lado favorável.” E começou por se oferecer para ir mostrar-me a casa — levar-me até lá na sua gôndola. Fiz-lhe saber que já tinha ido vê-la meia dúzia de vezes, mas aceitei o convite porque me encantava vaguear por aqueles sítios. Logo um dia depois de chegar a Veneza eu tinha lá ido (antes, na Inglaterra, fora-me descrita por um amigo, e fui convencido de que elas estavam na posse dos manuscritos), e com o olhar assaltara a casa enquanto meditava no plano de ataque. Que fosse do meu conhecimento, Jeffrey Aspern nunca lá estivera mas a sua voz parecia ter ali, como indireta consequência, o eco fraco de uma ressonância.
Henry James, "Os manuscritos de Aspern" 

Embarcar!

 


Que livros compravam Simone de Beauvoir, Joyce, Hemingway e Lacan em Paris?

Durante a primeira parte do século XX, Paris representava mais do que nunca a cidade dos intelectuais, um ponto de encontro onde confluíam alguns dos autores-símbolo daquela época. Gertrude Stein chamava-a de Geração Perdida, uma expressão que se tornou famosa graças ao romance Paris É uma Festa (1948), de Ernest Hemingway, e que descrevia os jovens que tiveram o azar de chegar à maturidade no contexto da Primeira Guerra Mundial. A capital francesa oferecia recantos que pareciam refúgios seguros, como a histórica livraria Shakespeare and Company. Fundada em 1919 por Sylvia Beach, dedicava-se, e ainda se dedica, à venda de livros em língua inglesa, naquele momento difíceis de conseguir a um preço razoável.

James Joyce, Adrienne Monnier e Sylvia Beach na Shakespeare and Co. (1938)

 De fato, na Brentano custavam cinco vezes mais que os livros em francês, e o catálogo da Biblioteca Americana não era tão extenso a ponto de ser atractivo. Já o serviço da Shakespeare and Company apresentava-se como algo único. Por oito francos e outros sete de depósito era possível solicitar um livro em empréstimo, ou dois se a cifra subisse para 12 francos. O tempo máximo de leitura permitido era de duas semanas para as publicações mais antigas e uma para as mais recentes. Todos esses detalhes são conhecidos graças ao trabalho do Projetco Shakespeare and Company, comandado pelo professor Joshua Kotin, da Universidade de Princeton (EUA), que vasculhou os arquivos digitalizados da livraria parisiense na Internet. Através desses dados, os pesquisadores revelam os gostos literários de alguns dos grandes escritores que costumavam frequentar a loja, como Gertrude Stein, James Joyce, Ernest Hemingway, Aimé Césaire, Simone de Beauvoir, Jacque Lacan e Walter Benjamin.


Os papéis escritos à mão mostram os nomes dos clientes e os livros solicitados em empréstimo. Assim, revela que Hemingway levou, entre as 90 publicações anotadas na sua ficha, as memórias de Joshua Slocum, Sailing Alone Around the World (“Navegando sozinho ao redor do mundo”, 1900), ou inclusive um exemplar de um dos seus próprios livros, Adeus às Armas (1929). Stein, por sua vez, leu a novela romântica A Love in Ancient Day (“um amor na antiguidade”, 1908), de Truda H. Crosfield, e a fantasia Equality Island (“ilha da igualdade”, 1919), de Andrew Soutar, enquanto Walter Benjamin escolheu um dicionário alemão-inglês e The Physical and Metaphysical Works of Lord Bacon (“as obras físicas e metafísicas de lorde Bacon”, 1853), este último pouco antes do seu suicídio, em Setembro de 1940, quando a polícia espanhola lhe comunicou que o entregaria à Gestapo. Lacan aproveitou o serviço para pedir um obscuro livro sobre a história da Irlanda durante a leitura de Joyce, e Claude Cahun, sob o nome de Mlle Lucie Schwob, dedicou-se às obras de Henry James. Atrasavam-se na devolução e a política era sempre a mesma: entregar ao infractor um desenho que retratava Shakespeare arrancando os cabelos.

“Muitas coisas me surpreenderam”, diz Kotin. “Surpreendeu-me que Lacan lesse sobre a Irlanda, ou que Stein lesse romances de fantasia. Mas também pela diversidade das pessoas que eram sócias da livraria. E, por último, pela diversidade dos livros. Esperava que Joyce, Woolf e Mansfield fossem os autores mais populares, não achava que fossem Norman Douglas, Charles Morgan e Rosamond Lehmann”, acrescenta.

Hoje, o histórico de empréstimos desses escritores pode ser consultado livremente na página do projecto, com buscas por cliente ou por livro. Para Kotin, a grande quantidade de material consultado demonstra uma semelhança com nossos hábitos actuais. “Comparo as suas leituras com o nosso tipo de consumo: podemos ler romances e poemas sofisticados, mas ainda vemos coisas na Netflix.”

Beach publicou em 1922 a legendária novela de James Joyce, Ulisses, e manteve a Shakespeare and Company aberta até 1941, quando se recusou a vender o último exemplar de Finnegans Wake (1939) a um oficial nazi. George Whitman conseguiu reabrir a loja 10 anos depois e doou os arquivos a Princeton em 1964. A equipe de Kotin trabalha há seis anos no armazenamento desse infinito material e, apesar disso, o professor afirma que ainda estão num ponto inicial. “Agora que temos o site, não vejo a hora de descobrir clássicos esquecidos ou comunidades de escritores unidos por seus gostos. E também informações sobre os americanos expatriados em Paris. Tenho muitíssimas perguntas. O projecto é uma ferramenta para lhes dar resposta”, afirma. Nos próximos meses, o plano é incluir um mapa que mostrará onde os autores residiam e uma lista dos livros mais populares.

Sylvia Beach não quis cumprir a regra da Associação Americana de Bibliotecas que exige que essas instituições destruam os registos dos usuários para proteger a sua privacidade. O resultado foi um arquivo de inestimável valor. “Era uma obsessiva colecionadora de informações. Nos anos vinte, a loja e a biblioteca já eram muito famosas. Ela sabia que as pessoas se interessariam pelos arquivos no futuro. Mesmo quando fechou, continuou emprestando livros”, conta Kotin.” 

terça-feira, agosto 24

Imaginação à solta

 


Autobiografia

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.


Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?

Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.
Mario Quintana

Alerta ecológico

 


Aforismos

O melancómico anuncia

Quando morrer vou deixar a luz acesa para as pessoas pensarem que ainda estou por cá.

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Receita para o optimismo
Para fazer nascer o optimismo só há duas hipóteses: pensar nos filhos ou beber tequila.

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Crescimento: uma definição
Passar dos terrores nocturnos para os terrores diurnos.

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O importante é a pose
Ela vai ao Lidl de Xabregas, mas comporta-se como se estivesse a comprar uns sapatos Prada em Nova iorque.

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Assim acontece
O seu saldo não lhe permite consultar o seu saldo.

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Márcio interrompe o jantar para fazer uma pergunta:
Em que categoria das Finanças está Deus inscrito?

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Márcio tem uma reflexão
O mundo divide-se entre sentimentais cínicos e cínicos sentimentais.

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Dona Bina folheia a imprensa
Ser pessimista é a profissão mais antiga do mundo.

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Dona Bina acha que já não há gente decente
O “maluquinho da aldeia” foi substituído pelo “normalzinho da cidade”.

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Definição havaiana de poeta
O poeta é um surfista que tem medo das ondas.

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Nunca tinha ouvido esta
Você é muito mais interessante ao vivo do que na internet.

Nuno Costa Santos , "Melancómico – o livro"

segunda-feira, agosto 23

Leitura no aconchego

 


Essas cidades acidentadas

Morar numa cidade acidentada pode ser divertido quando se é novo e rampas e ladeiras convocam os músculos juvenis ao exercício. Mas, à medida que a idade declina, aplica-se a cidade a lograr os velhos. E sempre que eles retomam o fôlego no fio das esquinas, oferece-lhes ela mais caminho, tropeços e cansaços, como se os punisse por insistirem nos dias.

Não é que o viúvo Zoltan Tremlich, com a idade, tivesse passado ao estado de ingratidão, com respeito à casa ampla, soberana de vista sobre a enseada, legado tardio duma parente longínqua. Mas começava a ter pena de que a falecida tia, que não era, aliás, uma bondade de mulher, lhe não houvesse antes deixado em testamento um modesto rés-do-chão na Rua dos Lojistas, perto do cais e da praça, sobretudo do Clube dos Valetes de Paus, onde não era desagradável entreter umas tardes de doce subalternidade.
Mário de Carvalho, "O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel"

Assim começa o dia...

 

Deborah DeWit

O patriota

Foi pegando por acaso um jornal velho que encontrei a história dessa singular comemora&ção do último 7 de setembro. Matou-se um rapaz de 20 anos, operário, que morava no morro da Formiga. Seria horrível dizer que foi levado por um triste gosto de trocadilho que esse rapaz escolheu para morrer ― um formicida. Bebeu o veneno, sentou-se a soleira de uma porta (da casa número 13) e morreu ali.

O bilhete assim dizia: "Hoje é um dia cheio de glórias da independência de minha Pátria. Mas eu estou muito infeliz porque "ela" me abandonou. E também porque não posso gritar, nem pedir, nem solicitar pela minha independência. Me refiro à mulher que eu tive a infelicidade de amar, e não à Pátria, que eu morro amando como bom brasileiro".

Bem me lembro quando eu tinha 20 anos e meu amigo Afonso Arinos de Melo Franco me fez presente de um livrinho seu chamado "Carta aos que têm 20 anos". As ideias e conselhos do livro não me impressionaram. Deles tenho apenas uma lembrança confusa; pode ser que hoje eu os achasse bons e Afonso Arinos de Melo Franco não achasse mais. As pessoas que lidam com estatística têm uma palavra para isso, que aprendi há pouco tempo: chama-se "defasagem". Quer dizer mais ou menos, se não me engano, falta de coincidência, que é um dos males da vida. Amas uma bela mulher, ela te acha um chute, e, enfim, um dia a desamas e ela se dana a te adorar. Bem, isso é antes uma coincidência às avessas, muito vulgar no tempo, no espaço e no sentimento. Quem sabe, se o formicida falhasse, talvez já no próximo 7 de setembro iria o operário José pensar: "ora, sim senhor, e eu que fiquei tão abafado por causa daquela fuleira".

O que não impede que já estivesse, a essa altura, jungido a outras servidões, sem coragem nem fé para soltar o seu grito do Ipiranga, mais inclinado a escolher a morte que a lutar pela independência.

Quem luta consigo mesmo cansa igual ao que luta com outro. E tem ataques de raiva com vontade de se matar e tem ataques de tédio tão desgraçado que não tem vontade de coisa alguma, nem de ser, nem de não ser. Respondemos a Hamlet: "não interessa".

Nós outros, que atingimos a idade chamada provecta, somos quase sempre sobreviventes dos suicídios que não chegamos a fazer. O pior desses suicídios é que eles sempre matam alguma coisa dentro de nós. Era para preservar essa coisa que queríamos a morte; escolhendo a vida, nós a traçamos de um jeito sutil, mas certo.

Vinte anos são uma bela idade, para a vida e a morte. Mas é inútil mandar cartas aos que têm 20 anos, como é inútil fazer desfilar pelas ruas milhares de soldados e cavalos e carros e clarins e tambores e bandeiras para alegrar os jovens corações patriotas. José rendeu homenagem à Pátria, mas talvez a alegria dessa Amada em festa tornasse mais negra a tristeza de seu coração. Assim são os moços; e eu é que não os lastimarei.

domingo, agosto 22

Inspire-se

 

Deborah DeWit

Melhores do que os outros

Os elitistas acham sempre que fazem parte da elite. A pirâmide, no entanto, tem uma imensidão de vértices, é provável até que não se trate realmente de uma pirâmide. Por isso, não faltam perspetivas para que uns e outros se considerem no topo.

Há o elitismo social, de classe, relacionado ou não com o elitismo económico; há o elitismo cultural, relacionado ou não com o elitismo académico; há o elitismo moral, relacionado ou não com o elitismo religioso; há uma quantidade inúmera de elitismos, derivações de derivações, ramificações, tipos específicos e especializados, insignificantes para quem está fora, vitais para quem está dentro.

Yuriy Sultanov

Em qualquer dos casos, o elitismo é sempre a defesa da superioridade de uns em relação aos outros, é sempre a afirmação da diferença e da separação. As suas razões são o núcleo daquilo que coloca gente contra gente, que justifica guerras. O elitismo garante que uns são mais capazes do que outros, ou que uns têm mais direito do que outros.

Mesmo quando se dedica a áreas extravagantes, a mundos microscópicos, o elitismo é sempre uma atitude política. A elasticidade do seu metabolismo permite-lhe sobrevivência em todas as áreas do espetro político, sem exceções. Consegue adaptar-se a qualquer habitat argumentativo. Com mais regularidade do que seria de supor, há apologias do elitismo que, camufladas ou explícitas, são feitas no próprio instante em que se afirmam contra ele. São a elite dos que se afirmam contra a elite.

Os defensores das castas dizem que é assim desde sempre, dizem que essa é a ordem natural, moldam a história e a ciência de acordo com os resultados lógicos que pretendem alcançar. Não é difícil fazê-lo, os argumentos são uma massa mais moldável do que o barro.

Depois, para lá disso, muito longe e logo ali, há os seres humanos, que nascem, alimentam expetativas e morrem. Quando seremos capazes de olhar para os outros como olhamos para nós próprios? Quando seremos capazes de olhar para nós próprios como olhamos para os outros?
José Luís Peixoto, Notícias Magazine (Fevereiro 2017)

Bom dia

 


Páscoa branca

Começa a nevar. Silenciosamente a nevar. E a terra, endurecida como um cadáver, cobre-se de branco, os ramos começam a desenhar-se em branco sobre o céu de um cinzento agora mais claro, numa delicadeza impressionante, confundindo-se com ele. Contenho a respiração. Toda eu espanto. Os flocos balançam, bailam lá fora onde não há sopro de vento, dentro do quarto, dentro de mim, brancura imaculada, tranquila… e então; por entre os troncos negros das macieiras, mudo como a natureza, a cauda entre as pernas altas, flocos de neve a cobrir-lhe o pêlo, o cão. Seguiu- me, portanto. Como há pouco, no cimo da escada da gare, fico transida de emoção. Era-me dolorosamente familiar, conhecia-o desde sempre, amava-o desde sempre, ouvia-o uivar por mim nas horas de angústia. “Tu?”, perguntei. E a palavra implantou-se no silêncio como uma árvore no deserto.

(…)

Vasto e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla da floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo dos dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e eu detemo-nos para em seguida recomeçarmos o nosso jogo de agarra, correndo e saltando para a direita, para a esquerda e em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo, ele ofegante, a língua de fora. “Pobre, pobre”, digo e enterro a cabeça no seu pêlo, de onde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de macieira. E falo-lhe. Conto-lhe coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair das pétalas na Primavera e o da neve no Inverno. Não há pressa, não há horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta planície verde, onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e as suas palavras vão de alma a alma, em linha recta, sem curvas, sem desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta, imensas como o mar onde navegam barcos que não buscam margens nem destinos. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz, vivêssemos na luz, regressássemos à luz…

– Posso entrar?

É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de morango, diz:

– O café vai-lhe saber bem, num dia como este.

E olhando o nevão por detrás da janela:

– Coisa tão rara, uma Páscoa branca.

– A janela, dantes, era muito estreita – digo eu – mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:

– Conhecia a casa? – Conhecia. E as macieiras também.
Ilse Losa “Páscoa Branca”

sábado, agosto 21

Hora de embarcar

 


Os 'parasitas' que chegam

Tantos livros, meu Deus, e tão pouco tempo e, por vezes, tão pouca vontade de os ler! A minha própria biblioteca, que só recebia um volume depois de previamente lido e digerido, vai-se infestando de livros parasitas, que ali chegam muitas vezes não se sabe como e que, através de um fenômeno de magnetização e de aglutinação, contribuem para cimentar a montanha do ilegível; e, entre esses livros, perdidos, encontram-se os que eu escrevi. Não digo em cem anos, mas em dez, vinte, o que restará de tudo isto? Talvez só os autores de tempos imemoriais, a dúzia de clássicos que atravessam os séculos, tantas vezes sem muitos leitores, mas airosos e robustos, como que animados por uma espécie de impulso elementar ou de direito adquirido. Os livros de Camus, de Gide, que ainda há duas décadas se liam com tanta paixão, que interesse têm agora, apesar de escritos com tanto amor e tanto sofrimento? Porque é que daqui a cem anos se continuará a ler Quevedo e não Jean-Paul Sartre? Ou François Villon e não Carlos Fuentes? De que substância se deve fazer uma obra para que ela perdure? Dir-se-ia que a glória literária é uma loteria e a longevidade da arte um enigma. E, apesar de tudo, continua-se a escrever, a publicar, a ler, a glosar. Entrar numa livraria é pavoroso e paralisante para qualquer escritor, é como que a antecâmara do esquecimento: nos seus nichos de madeira, os livros já se preparam para dormir o seu sono perpétuo, muitas vezes antes de terem vivido. Qual foi o imperador chinês que destruiu o alfabeto e todos os vestígios da escrita? Não foi Heróstrato quem incendiou a biblioteca de Alexandria? Talvez só a devastação de tudo quanto foi escrito nos possa devolver o prazer da leitura, para podermos partir inocente e alegremente do zero.
Julio Ramón Ribeyro, "Prosas Apátridas"

sexta-feira, agosto 20

Sexta de cesta

 


Ansiedade da escrita

Theo Molkenboer
O que causa ansiedade em escritores: não escrever/escrever. Quem lê o que escrevem. Rever o que escrevem/não rever o que escreveram. Não ter boas ideias/ter muitas ideias, mas não ser capaz de decidir escrevê-las. Ter uma grande ideia e preocupar-se que ela não é boa o suficiente para escrevê-la. Não ter tempo para escrever/ter tempo para escrever. Não ser resenhado/receber 999 resenhas e uma daquele f.d.p que disse que o título do que foi escrito era muito grande
Mac Margolis

Passeio matinal

 

Nancy Rhodes Harper

O Mendel dos livros

Ao regressar a casa depois duma visita nos subúrbios, fui surpreendido, já em Viena, por um aguaceiro que perseguia as pessoas na rua com o seu látego húmido, obrigando‑as a correr para os portais e os alpendres, e também eu me vi compelido a encontrar rapidamente um teto que me abrigasse. Felizmente, em Viena há um café em cada esquina, de modo que corri para o que estava mesmo à minha frente, já com o chapéu a pingar e os ombros empapados. Uma vez lá dentro, encontrei um café suburbano, dum estilo quase esquemático, o café vienense tradicional, burguês, cheio a rebentar de gente comum que consumia mais jornais do que bolos, sem as atrações nem a orquestra de jazz da última moda que os cabarés do centro haviam importado da Alemanha. Nesta hora do fim da tarde, em que o ar, que de qualquer modo seria sempre sufocante, se mostrava ainda mais carregado de fumo azul, dava no entanto uma impressão de limpeza, com o veludo dos sofás visivelmente novo e a reluzente caixa registadora de alumínio. Com a pressa, nem sequer me dera ao trabalho de ver o nome antes de entrar… de resto, para quê? Sentei‑me a uma mesa, quente e confortável, a olhar impaciente pelas janelas embaciadas, esperando que aquela chuva inoportuna achasse por bem afastar‑se alguns quilómetros. E assim estava, sem nada que fazer. Começava já a abandonar‑me àquela passividade indolente que irradia como um narcótico invisível de todo o autêntico café vienense. Com esta sensação de vazio, pus‑me a examinar discretamente as pessoas, a quem, naquele espaço enfumado, a luz artificial criava círculos dum cinzento nada saudável à volta dos olhos. Observei a menina da caixa, que, com gestos mecânicos, entregava ao criado o açúcar e a colher para cada chávena de café. Meio a dormir e vagamente consciente, li os cartazes supinamente desinteressantes afixados nas paredes, e esta espécie de modorra quase me soube bem. Mas, subitamente, fui arrancado à minha sonolência duma maneira estranha. Começava a formar‑se dentro de mim uma inquietação vaga, como uma leve dor de dentes que começa sem que se saiba se é do lado esquerdo, ou do direito, nos dentes de cima ou nos de baixo. Sentia apenas uma tensão surda, uma inquietação. Então, de repente — sem que soubesse como —, tive a certeza de já ter estado ali uma vez, muitos anos antes, e de haver uma recordação que me ligava àquelas paredes, àquelas cadeiras, àquelas mesas, àquele enigmático espaço cheio de fumo. Mas, quanto mais me esforçava por recuperar essa recordação, mais ela, maliciosa e escorregadia, se me furtava, como uma medusa luzindo incertamente no mais fundo da consciência, impossível de agarrar. Em vão fixava o olhar em cada objeto que havia no local; sim, havia coisas que não conhecia, como a caixa registadora, por exemplo, com o seu matraquear tilintante ao fazer as adições, ou os painéis castanhos a imitar pau‑rosa que revestiam as paredes, tudo isso devia ter sido instalado mais tarde. Mas sim, mas sim, tinha estado ali uma vez, há vinte anos ou mais, uma parte do meu eu, enterrado como um prego na madeira há muito recoberto e invisível, estava ali. Fazendo um esforço, lancei todos os meus sentidos no espaço à minha volta e dentro de mim… e nada. Maldição! Não conse‑ guia alcançar aquela recordação desaparecida, afogada dentro de mim. Irritei‑me, como sempre que um fracasso nos torna conscientes da insuficiência e da imperfeição das nossas capacidades mentais. Mas não perdi a esperança de recuperar aquela recordação. Sabia que precisava apenas dum pequeno gancho a que pudesse agarrar‑me, pois a minha memória é dum tipo especial, boa e ao mesmo tempo má, obstinada e caprichosa por um lado, mas por outro incrivelmente fiel. Engole o que é mais importante, tanto no que se refere a acontecimentos como a fisionomias, ao lido como ao vivido, e guarda‑o nas suas profundezas, na escuridão, e só coagindo‑a devolverá alguma coisa desse mundo subterrâneo, pois não bastará o simples querer. Contudo, basta‑ me a indicação mais ténue, um postal, duas linhas manuscritas num envelope, a folha suja dum jornal, e o esquecido, como o peixe no anzol, emerge prontamente da fluida e escura superfície, vivo e a saltar. Então reconheço cada particularidade duma pessoa, a boca, e na boca a falha entre dois dentes quando se ri, e o falsete do riso, e como se torce o bigode quando se ri, e como do riso emerge outro rosto, diferente, tudo isso vejo‑o então de imediato, numa alucinação completa, e recordo, passados anos, cada uma das palavras que essa pessoa me disse em certa ocasião. Mas, para perceber com os sentidos algo que aconteceu no passado, preciso sempre dum estímulo sensorial, que a realidade me ajude minimamente. E assim fechei os olhos para poder refletir mais intensamente, para forjar aquele misterioso anzol. Nada! Outra vez nada! Tudo estava enterrado e olvidado! E tanto me irritei com o deficiente e caprichoso aparelho pensante que tenho entre as têmporas que teria dado pancadas na testa com os punhos, como se a cabeça fosse uma máquina caça‑níqueis avariada que por má fé se recusasse a dar o que se lhe pediu. Não, assim não, este fracasso íntimo exasperou‑me tanto que não podia continuar sentado sem fazer nada, de modo que me levantei para espairecer. Mas, curiosamente, mal comecei a dar os primeiros passos pela sala, produziram‑se em mim, cintilando e reverberando, os primeiros alvores fosforescentes. À direita da caixa registadora, recordei‑me, devia haver uma porta que dava para uma sala sem janelas, iluminada apenas com luz artificial. E, de facto, assim era. Lá estava ela, a sala do fundo, com um papel diferente na parede, exata todavia nas suas proporções, quadrada, de contornos imprecisos: a sala de jogo. Instintivamente observei o mobiliário, com os nervos a vibrar já de alegria (sentia que dali a pouco saberia tudo). Duas mesas de bilhar estiraçavam‑se ao comprido, como outros tantos charcos de águas paradas cobertas de verdes limos, nos cantos acocoravam‑se mesas de jogo, numa das quais dois funcionários públicos ou professores jogavam xadrez. E a um canto, mesmo ao lado do fogão, por onde se ia para a cabina telefónica, havia uma mesa quadrada, pequena. E então, subitamente, fez‑se luz em mim, completamente. Soube logo, imediatamente, com um único e ardente choque que me fez estremecer de felicidade: meu Deus, este era o lugar do Mendel, o Jakob Mendel, o Mendel dos livros, e agora, passados vinte anos, eu tinha mais uma vez acabado por desaguar no seu quartel‑general, o Café Gluck, no alto da Alserstraße. O Jakob Mendel! Como pudera esquecê‑lo? Era inconcebível, todos estes anos. A essa personalidade singularíssima, a esse homem de fábula, a esse fenómeno mundial, famoso na universidade e num círculo restrito e respeitoso de admiradores… Como podia ter‑se‑me varrido da memória o mago do livro, o grande alfarrabista que se sentava aqui, imperturbável, dia após dia, de manhã à noite, símbolo do saber, glória e fama do Café Gluck? Não precisei de mais de um segundo para que a sua figura inconfundível se formasse na tela rosada das minhas pálpebras fechadas. Vi‑o imediatamente, em carne e osso, aqui sentado a esta mesinha quadrada com o seu tampo de mármore cinzento e sujo, sempre atravancada de livros e papéis. Aqui sentado, firme como uma rocha, imperturbável, os olhos com óculos assestados hipnoticamente num livro, aqui sentado, a murmurar e a resmungar enquanto lia, balançando o corpo e a careca mal tratada, com manchas, para a frente e para trás, um hábito que lhe ficara do Cheder, a escola judaica das crianças pequenas do Leste. Aqui, a esta mesa e só a esta mesa, lia os seus catálogos e os seus livros como lhe tinham ensinado na escola talmúdica, entoando em voz baixa e balançando‑se, qual berço negro que alguém embalasse. Pois, tal como nesse hipnótico vaivém rítmico a criança adormece e o mundo se dissolve, também para aqueles homens de fé o balançar e o embalar do corpo ocioso permite ao espírito aceder mais facilmente à graça da contemplação. E, de facto, este Jakob Mendel não via nem ouvia nada do que acontecia à sua volta. As vozes excitadas dos jogadores de bilhar e o repicar das bolas, os marcadores que estalavam nos varões das guias, o matraquear do telefone, a mulher que esfregava o soalho e acendia o fogão… não notava nada. Uma vez, uma brasa saltou do fogão, havia já fumo e cheirava a queimado no soalho a dois passos dele, quando um cliente, ao sentir o fedor infernal, viu o perigo e veio a correr apagar a fumarada. Mas ele, Jakob Mendel, distante apenas duas polegadas e já envolto em fumo, não se tinha apercebido de nada. Pois lia como outros rezam, como os jogadores jogam e os bêbados atordoados fitam o vazio, lia com um recolhimento tal que qualquer outra pessoa que vi ler depois disso me pareceu sempre superficial e profana. Em Jakob Mendel, naquele pequeno vendedor ambulante galiciano de livros usados, vi pela primeira vez, na minha juventude, o grande mistério da concentração absoluta que faz tanto o artista como o erudito, o verdadeiro sábio como o imbecil acabado, a tragédia feliz ou infeliz do verdadeiro possesso. Foi um colega da universidade, mais velho, que mo apresentou. Nessa altura ocupava‑me uma investigação sobre Mesmer, o médico e magnetizador da escola paracélsica, pouco conhecido atualmente. Na verdade, pouco avançava, pois a bibliografia sobre o assunto revelou‑se insuficiente, e o bibliotecário, a quem eu, inocente caloiro, recorrera, respondeu‑me sibilinamente que a documentação e as referências eram comigo e não com ele. Então, esse meu colega referiu pela primeira vez o nome dele. — Vou levar‑te ao Mendel — prometeu —, sabe tudo e consegue tudo, vai buscar‑te o livro mais raro ao mais recôndito."

Stefan Zweig, “O Mendel dos livros”

quinta-feira, agosto 19

Bela visão


 

O Sudoeste e a casuarina

Entre a fuga do vento Nordeste e o primeiro sopro frio do Sudoeste, há um instante vazio e ansioso: as cigarras calam, se eriçam as águas da lagoa e as casuarinas, que se balançavam indolentes, imobilizam-se na rigidez morta e reta dos ciprestes. Os urubus debandam das palmeiras, os pescadores recolhem as velas, e daqui da varanda vejo os lagartos procurarem medrosos os seus esconderijos. “É o sudoeste”, penso, e logo ele chega carpindo penas e desgraças que não são suas.


“Estou vindo do mar alto, trago histórias”, diz ele com a sua voz agourenta. Ao que responde, enfastiada, a Casuarina:

“Detesto as tuas histórias”.

Também eu, porque sei o que significa pra mim o pranto desatado e frio. Logo esta varanda, que o Nordeste amornara para o meu sono, estará tomada por tudo o que o vento ruim traz consigo: a baba do oceano doente, a escuma amarela e pútrida, o calhau sangrento, o grito derradeiro dos náufragos, os olhos esbugalhados das crianças afogadas que não entenderam o último instante, o hálito pesado do marinheiro que morreu bêbado e blasfemo, o lamento do grumete que o mastaréu partido matou e atirou ao mar.

Assim são as histórias do Sudoeste. Ouvindo-as (e tenho de ouvi-las, como se elas viessem de dentro de mim, como se por dentro eu tivesse mil frinchas por entre as quais o Sudoeste passa e geme) ressuscito os meus mortos e minhas tristezas e a eles incorporo a amargura dos incertos e a angústia sobressaltada dos que têm medo – tão minhas agora. E vejo, destacada na escuridão como uma medusa no mar, a mão lívida do meu pai morto, imobilizada no gesto, talvez amigo, que não chegou a ser feito; e os pequenos dentes do meu irmão Francisco, que morreu sorrindo; e escuto, nos soluços do vento, aquele terrível convulso regougar de Maria que a morte levou num mar de sangue e vômito; e tremo e me apavoro, não por receio de não ter enterrado para sempre meus mortos, mas por medo de tê-los enterrado antes de ter pago tudo o que lhes devia.
Joel Silveira

Café em família


 

Por que livros da extinta editora Cosac Naify custam até R$ 2,8 mil na internet?

Fecharam-se, em 2015, as portas de uma das editoras mais elegantes do Brasil. Em seis anos, suas obras se tornaram relíquias, tanto pela raridade de exemplares à venda quanto pelo valor cobrado por elas.

Belos livros editados pela Cosac Naify (1996-20015) são, agora, vendidos por centenas de reais pelos poucos, mas espertos donos de edições ainda embaladas. Os preços variam:


Um box de "Contos Completos" de Liev Tolstói, com três volumes, chega a ser vendido por R$ 2,5 mil. E o combo de "Guerra e Paz", um dos mais famosos e queridinhos entre o público da editora, por R$ 1,4 mil.

"O Outono da Idade Média", de Johan Huizinga, é anunciado por R$ 1,5 mil.

"David Copperfield", de Charles Dickens, tem ofertas de R$ 550 a R$ 2,8 mil.

"Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos", dos irmãos Grimm, chega a custar R$ 950.

"Antologia da Literatura Fantástica", com 75 histórias reunidas pelos autores Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, é vendido por cerca de R$ 800.

Mesmo livros usados não saem por menos de R$ 100 em sites dedicados a produtos de segunda mão. A maioria gira em torno de R$ 300 a R$ 500, a depender da popularidade e da raridade da obra.

Os livros são bonitos, mas existe complexidade por trás da beleza. A escolha de gráficas de ótima qualidade, inclusive premiadas, por exemplo, explica Luciano Guimarães, professor de Design Editorial da Universidade de São Paulo (USP).

"Uma das características que fez Cosac Naify ter qualidade reconhecida de forma quase unânime é ter aliado a escolha por gráficas de excelência - como a Ipsis, que tem vários projetos vencedores no Prêmio Fernando Pini de Excelência Gráfica —, o investimento em equipe editorial, com editores, produtores e designer editoriais muito qualificados. O resultado é percebido tanto na qualidade do material, quanto em uma dimensão conceitual: a materialidade corresponde a um conceito", explica.

Um exemplo disso é o livro "A fera na Selva". Uma publicação dos pesquisadores Gabriela Araújo Oliveira e Hans da Nóbrega Waechter, da Universidade Federal de Pernambuco, mostra que a gramatura do papel aumenta a cada 8 páginas, enquanto o tom escurece a cada duas, conforme a história se torna tensa.

"Ao final, há uma inversão das cores: o fundo prateado torna-se preto e o texto preto converte-se em prateado, quando o protagonista passa por um momento revelador sobre sua 'fera'", diz a publicação.

Segundo Guimarães, a maioria dos livros "regulares" no Brasil utiliza o papel offset, com gramatura entre 75 e 90 g/m2 e formato de 14 x 21 cm. A Cosac não tinha papel, gramatura ou formato específicos. Cada obra era feita com um tipo de papel correspondente ao seu conteúdo e proposta.

Outro ponto é a abrangência do catálogo. A editora foi uma das poucas que reuniu tantos livros sobre cultura, arte, moda e design, como "História do design gráfico", de Philip B. Meggs (vendido por R$ 700). Também foi apostava em autores brasileiros e internacionais com menor alcance na época, mas grandes obras, como Samuel Beckett, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Alejandro Zambra.

Também entram na conta as traduções zelosas, muitas feitas diretamente do idioma original - como as versões de "Anna Kariênina", "Ressurreição" e "Guerra e Paz" feitas por Rubens Figueiredo. Por fim, uma das maiores explicações: algumas obras ainda não foram relançadas por outras editoras no país.

"As traduções refeitas e atualizada de livros antigos, como a coleção de Tolstói. Comprei meu primeiro livro deles em 2011, a edição de 'Anna Kariênina'. Foi meu primeiro contato com o autor, que se tornou um dos meus favoritos, e também com a literatura russa", conta o analista de segurança de conteúdo Thiago D’Carlo, de 27 anos.

Para que ter só pela metade o que se pode ter por inteiro? D'Carlo quer completar a coleção que começou há 10 anos, mas esbarra nos preços altos. "Hoje, você não encontra 'Guerra e Paz' da Cosac por menos de R$ 300 reais (ou R$ 400) e por isso ainda não comprei, mas sigo nessa expectativa."

Entre os vendedores, estão pessoas jurídicas com catálogos em marketplaces como Mercado Livre, Amazon e Shopee, geralmente que possuem outros artigos de entretenimento à venda. Há pequenas livrarias e sebos, além de pessoas físicas que querem aproveitar o ótimo preço de mercado para levantar uma grana.

Quem compra livros da finada editora costuma celebrar a conquista nas redes sociais. A maior parte das pessoas compartilha, além do gosto pela arte, uma outra característica: não tinham muito dinheiro quando a editora ainda funcionava, por isso matam, só agora, a vontade de possuir seus exemplares.

O engenheiro civil Pedro Cavalcanti, de 25 anos, tem 38 livros da editora e se enquadra nessa descrição. Alguns foram comprados enquanto ela existia. Outro, exaustivamente garimpados em sebos e links.

"Comecei a ler bastante literatura russa uma época, e a Cosac sempre foi referência, principalmente porque as traduções eram feitas direto do idioma original. Eu não trabalhava naquele tempo, então comprar livros era meio difícil, mas a vontade de ter essas edições nunca passou', conta.

Cavalcanti está sempre pesquisando livros da editora e consegue garantir bons preços em grupos de compra e venda. Mas, por duas vezes, não fugiu a inflação. "De vez em quando aparece algo por um preço aceitável. Mas paguei caro em dois. 'Ficção Completa', de Bruno Schulz, que até hoje não foi relançada. E 'Contos completos' do Tolstói". A companhia das letras relançou essa edição por R$ 200, mas achei o design meio feio", diz.