sexta-feira, maio 31

Procura

Elena Petrovna Samokish-Sudkovskaya

Para explorar o mundo

Fora ali que tudo aprendera, fora ali que fizera as “grandes leituras”, fora ali que descobrira Florença, Paris , a América de Hemingway, de Saroyan, de O’Neill, fora ali que explorara o mundo dos antigos, pela mão de Plutarco e de Sienkiewicz! Fora ali que sem aviso prévio eu encontrara e amara a Senhora de Rênal, saída do romance de Stendhal, para entrar na minha vida – e nela ficar para sempre! Aquele mundo estava cheio de vozes e de segredos. Como poderia eu escolher deixá-lo? Fora ali que eu me banhara , com o Nero, nas águas grandes e temerosas do Índico
Eugénio Lisboa

Viagem sobre o abismo


Olhar com alguma distância

 Byron Eggenschwiler
Percorrendo as ruas fui descobrindo coisas espantosas que lá ocorriam desde sempre, disfarçadas sob uma máscara ténue de normalidade: um viúvo que, depois de se reformar, passava as tardes sentado no carro, a porta aberta, a perna esquerda fora, a direita dentro; um sujeito tão magro que se podia tomar por uma figura de cartão, ideia reforçada por andar de bicicleta e, sobretudo, por nela carregar o papelão que recolhia nos contentores do lixo; a mulher que, com uma regularidade cronométrica, vinha à janela, olhava para um lado e para o outro, como se aguardasse há muito a chegada de alguém. Eram três exemplos de situações que - creio ser esta a melhor formulação - aconteciam desde sempre e pela primeira vez. Se olharmos para as coisas com alguma distância, retirando-as do contexto, deixando-nos contaminar pela estranheza, tudo, tudo mesmo, adquire uma aura macabra e repetitiva, singular, reconhecível, que se mistura com a substância dos sonhos, a matéria das mentes perturbadas. Penso sempre, não sei porque, que talvez a resposta esteja naquela revista antiga que não resistiu às traças: nos sobreviventes de Hiroxima, no clarão absoluto que os cegou, no mundo irreal em que foram condenados a viver a partir desse momento, no segundo em que uma luz fenomenal e terrível se acendeu, iluminando-lhes a vida de escuridão. Também nós deveríamos olhar para as coisas sob esse novo ângulo de luz, passando os dedos pelas arestas invisíveis, estabelecendo ligações musicais, sinfónicas entre, por exemplo, a perna esquerda do homem do carro e a frequência cardíaca da senhora que assoma à janela. Haverá em toda esta sequência aparentemente aleatória de acontecimentos não uma ordem metafísica mas, sem dúvida, uma harmonia, um ritmo, uma canção, um segredo que não se ouve, que não se vê e, no entanto, existe.
Bruno Vieira Amaral, "As Primeiras Coisas" 

quarta-feira, maio 29

Sem palavras


Confissão de um viciado em livros

Tenho uma biblioteca de tamanho considerável. Apesar de ocupar bastante espaço, prova-se mais do que passatempo. É bem útil em meu trabalho como revisor e preparador de textos. Também está sempre à mão de minha namorada quando ela necessita… jogar algo em minha direção quando está com raiva. Fico puto, que é o objetivo dela. Em suma, sou um bibliófilo.

Somos ratos de sebo e livreiros de rua. De longe, identificamos um de meus pares. O tipo raramente pergunta por um título. Ele vistoria o local, como um detetive que fuma calmo um cachimbo imaginário. Quando algo salta aos olhos, passa-se à inspeção. Além da obra, verifica-se o estado físico do material. A edição em si também contribui: seu histórico, curiosidades que só aquele exemplar trará. Dedicatórias longas e rasuras sempre se destacam para mim. São narrativas dentro da narrativa: observações, grifos, até críticas improvisadas inscritas para alertar o próximo leitor do que pode vir a encarar.

Coleções específicas e artes de capa são outros elementos nesta contabilidade. Adoro as edições da Círculo do Livro. Quando a capa de um destes é ruim, é uma delícia. Tenho um exemplar de “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu, cuja capa é um jovem louro em uma pose que remete a aplicativos de namoro-sexo. (Nota: também possuo um exemplar da Brasiliense, anterior às alterações no texto que o autor realizou para o relançamento.)

Nunca há livros demais para um amante desta estirpe. Há aquele livro que não foi lido, a edição não manuseada por suas mãos, as surpresas que um título sumido de catálogo abriga. É uma adição cuja próxima dose virá antes mesmo que os efeitos da anterior sejam levados às traças. Livros levam a livros, todo mundo sabe disso. Joãozinho Trinta cunhou “Nada se cria, tudo se copia.” Para um bibliófilo, a versão adequada seria: “Nada se lê em um dia, tudo se lê em uma vida.”

O bibliófilo não está para brincadeiras. Não é um passageiro das letras, que busca um objeto de distração. O bibliófilo quer um novo ídolo para adoração. Mostrar aos compadres e comadres, ostentar o achado e ser capaz de citar trechos do mesmo para a roda enquanto os parceiros no crime salivam. A leitura e o objeto livro são prêmios que nunca desgastam. Bom, o livro físico sofre os efeitos do tempo e da conservação, mas vá dizer isso para um caçador de obras. Ele se transformará na coruja da fábula. Seus filhotes não são feios, eles têm história, sinta essa textura, veja o tipo da letra, o amarelo que prova sua resistência. São seres orgânicos, que respiram e sentem.

Certa ocasião, estava com amigos na Lapa, humanos e um em papel. Era uma obra de Clarice Lispector, “A paixão segundo G.H.” (um bibliófilo raramente esquece um título). Caminhávamos pelas ruas lotadas, quando, num esbarrão, o bebê que carregava cai no rua. Sem pestanejar, empurrei uma amiga e fui ao resgaste antes que mais danos ocorressem. Ao me levantar, ela me olhou num misto de surpresa e indignação. “Você gosta mais de livros que de gente.” Apesar de constrangido, nada comentei. Algumas verdades estão implícitas, mesmo quando a acusação se abre à nossa frente como páginas novas.

Quando perguntado sobre sua apreciação ao odor das massas, o então candidato militar João Figueiredo marcou: “O cheirinho dos cavalos é melhor.” Embora não seja um fã deste personagem, entendo-o em parte. Não escolhemos nossos amores, somos escolhidos. Alguns livros são mais ricos e em melhores condições que muita gente na rua. E quem resiste ao cheirinho de livro novo?…
Daniel Russell Ribas

Papo na biblioteca

Doinky Doodles

A sangrenta história das traduções da Bíblia

Em 1427, o papa Martinho V ordenou que os ossos de John Wycliffe fossem exumados de seu túmulo, queimados e jogados em um rio. Wycliffe morrera havia 40 anos, mas a fúria causada por sua ofensa ainda permanecia viva.

Naquela época, a igreja era todo-poderosa, e quanto mais contato Wycliffe tinha com Roma, mais indignado ele se sentia. Em sua visão, o papado estava envenenado por corrupção e interesses pessoais. E ele estava determinado a fazer algo sobre isso.

Wycliffe começou a publicar panfletos argumentando que, em vez de buscar riqueza e poder, a igreja deveria se preocupar com os pobres.

Em uma ocasião, descreveu o papa como "o anticristo, o sacerdote mundano de Roma e o mais amaldiçoado dos batedores de carteira".

Em 1377, o bispo de Londres exigiu que Wycliffe aparecesse perante sua corte para explicar as "coisas surpreendentes que brotaram de sua boca".

O julgamento de Wycliffe na Catedral de São Paulo, em Londres, ocorreu em 3 de fevereiro de 1377. A audiência foi uma farsa do começo ao fim.

John Wycliffe 
Tudo começou com uma briga violenta sobre se Wycliffe deveria sentar-se ou não. Juan de Gaunt, filho do rei e aliado de Wycliffe, reiterou que os acusados permanecessem sentados; já o bispo exigiu que ele se levantasse.

Quando o Papa ouviu falar sobre o fiasco do julgamento, emitiu uma bula [carta ou documento oficial papal] em que acusou Wycliffe de "vomitar do calabouço sujo de seu coração as mais perversas e condenáveis heresias".

Wycliffe foi acusado de heresia e colocado em prisão domiciliar. Mais tarde, acabou forçado a deixar seu posto como professor do Balliol College, em Oxford.
'Emancipação dos pobres'

Wycliffe dizia acreditar firmemente que a Bíblia deveria estar disponível para todos. Via a alfabetização como a chave para a emancipação dos pobres.

Naquela época, embora partes da Bíblia já tivessem sido traduzidas para o inglês, ainda não havia uma tradução completa do livro sagrado.

As pessoas comuns, que nem falavam latim nem podiam ler, só podiam aprender com o clero. E muito do que eles achavam que sabiam, ideias como o fogo do inferno e o purgatório, não faziam parte das Escrituras.

Assim, com a ajuda de seus assistentes, Wycliffe produziu uma Bíblia em inglês, durante 13 anos, começando em 1382.

Era inevitável que uma reação violenta eclodisse: em 1391, antes que a tradução da Bíblia fosse concluída, um projeto de lei foi apresentado ao Parlamento para proibir a Bíblia em inglês e prender qualquer pessoa que possuísse uma cópia do livro sagrado.

O projeto de lei não foi aprovado - John de Gaunt cuidou disso no Parlamento -, mas a igreja retomou sua perseguição contra Wycliffe.

Mas Wycliffe havia morrido 7 anos antes, em 1384.

Sem alternativas, o melhor que podiam fazer era queimar os ossos [em 1427], de modo que seu túmulo não fosse reverenciado.

O arcebispo de Canterbury disse que Wycliffe tinha sido "aquele canalha pestilento, de memória condenável, sim, o precursor e discípulo do Anticristo que, além de sua maldade, inventou uma nova tradução das Escrituras em sua língua materna".

Em 1402, Jan Hus, um recém-ordenado padre tcheco, foi designado para celebrar missas em Praga.

Inspirado pelos escritos de Wycliffe, que então circulavam pela Europa, Hus usou sua posição para fazer campanha pela reforma administrativa e pelo fim da corrupção na Igreja. Como Wycliffe, Hus dizia acreditar que a reforma social só poderia ser alcançada por meio da alfabetização.

Sendo assim, dar às pessoas uma Bíblia escrita em tcheco, em vez de latim, se tornou imperativo.

Hus reuniu uma equipe de estudiosos e em 1416 surgiu a primeira Bíblia tcheca. A publicação do livro foi considerada uma provocação direta àqueles que ele chamou de "os discípulos do anticristo" e a consequência era previsível: Hus foi preso por heresia.

O julgamento de Hus, que ocorreu na cidade de Constança (atual Alemanha), é um dos mais espetaculares da história. A audiência teve a presença de quase todos os manda-chuvas da Europa.

Um arcebispo chegou com 600 cavalos; 700 prostitutas ofereceram seus serviços; 500 pessoas se afogaram no lago; e o papa caiu da carruagem em cima da neve.

O entorno era tão apoteótico que a eventual condenação e execução brutal de Hus poderia ser considerada um anticlímax nesta história. Hus foi condenado como herege e morreu queimado vivo.

Sua morte desencadeou uma revolta popular. Sacerdotes e igrejas foram atacados. Houve retaliação por parte das autoridades. Em poucos anos, a Boêmia entrou em guerra civil.

Tudo porque Jan Hus teve a coragem de traduzir a Bíblia.

Em relação à Bíblia inglesa, William Tyndale foi outro tradutor famoso que perdeu a vida por causa do livro sagrado. Ele vivia na Inglaterra do século 16, governada pelo rei Henry VIII.

A tradução da Wycliffe ainda estava proibida e, embora as cópias dos manuscritos estivessem disponíveis no mercado negro, eram difíceis de encontrar e caras de adquirir. A maioria das pessoas ainda não tinha ideia do que a Bíblia realmente dizia.

Mas a impressão em papel estava se tornando mais comum, e Tyndale achou que era o momento certo para uma tradução acessível e atualizada.Direito de imagem Getty Images Image caption William Tyndale foi outro tradutor famoso que perdeu a vida por causa do livro sagrado

Ele sabia que poderia criar uma. Tudo o que ele precisava era do financiamento e da bênção da igreja. No entanto, rapidamente se deu conta de que ninguém em Londres estava disposto a ajudá-lo. Nem mesmo seu amigo, o bispo de Londres, Cuthbert Tunstall.

Mas o clima religioso parecia menos opressivo na Alemanha.

Lutero já havia traduzido a Bíblia para o alemão; a Reforma Protestante estava se acelerando e Tyndale achava que teria mais sucesso com seu projeto ali. Então, viajou a Colônia e começou a imprimi-la.

Sua iniciativa provou-se um erro. Colônia ainda estava sob o controle de um arcebispo leal a Roma.

Quando estava no meio da impressão do Evangelho de São Mateus, descobriu que as autoridades estavam prestes a invadir a gráfica. Rapidamente, pegou seus originais e fugiu.

Essa história se repetia várias vezes. Tyndale passou os anos seguintes esquivando-se de espiões ingleses e de agentes romanos.

Mas ele conseguiu concluir sua Bíblia e as cópias logo inundaram a Inglaterra ─ ilegalmente, é claro.

O projeto estava completo, mas Tyndale era um homem marcado pelas autoridades. E ele não era o único.

O cardeal Wolsey estava fazendo campanha contra a Bíblia de Tyndale. Ninguém próximo a Tyndale estava a salvo.

Thomas Hitton, um padre que conheceu Tyndale na Europa, confessou ter contrabandeado duas cópias da Bíblia para a Inglaterra. Ele foi acusado de heresia e queimado vivo.

Um advogado que mal conhecia Tyndale, Thomas Bilney, também foi jogado nas chamas em 1531.

Richard Bayfield, um monge que havia sido um dos primeiros apoiadores de Tyndale, foi torturado incessantemente antes de ser amarrado à estaca e queimado. E um grupo de estudantes em Oxford foi confinado em uma masmorra, usada para armazenar peixes salgados, até a morte. 

O fim de Tyndale não foi menos trágico. Ele foi traído em 1535 por Henry Phillips, um jovem aristocrata que roubara o dinheiro do pai e o perdera em apostas.

Tyndale estava escondido em Antuérpia, sob a proteção quase diplomática da comunidade mercantil inglesa. Phillips tornou-se amigo de Tyndale e o convidou para jantar. Quando deixaram a casa do comerciante inglês juntos, Phillips fez um gesto a criminosos para que Tyndale fosse preso.

Foi o último momento de sua vida em liberdade.

Tyndale foi acusado de heresia em agosto de 1536 e queimado na fogueira algumas semanas depois.

Em Antuérpia, a cidade onde Tyndale acreditava estar seguro, Jacob van Liesveldt produziu uma Bíblia em holandês.

Como tantas outras traduções do século XVI, seu ato foi tanto político quanto religioso.

Sua Bíblia foi ilustrada com xilogravuras: na quinta edição, ele representou Satanás com a aparência de um monge católico, com pés de bode e um rosário.

Foi um passo longe demais.

Van Liesveldt foi preso, acusado de heresia e condenado à morte.

O século XVI foi, de longe, o período mais sangrento para os tradutores da Bíblia.

Mas as traduções sempre geraram - e continuam a gerar - fortes emoções.

Em 1960, a Reserva da Força Aérea dos EUA alertou os recrutas contra o uso da Versão Padrão Revisada recém-publicada na época porque, segundo eles, 30 pessoas em seu comitê de tradução haviam sido "afiliadas às frentes comunistas".

Em 1961, o americano TS Eliot, um dos principais poetas do século XX, opôs-se à Nova Bíblia em inglês e escreveu que "assusta sua combinação do vulgar, do trivial e do pedante".

E tradutores da Bíblia ainda estão sendo mortos. Não necessariamente por causa da tradução do livro sagrado, mas por suas atividades como missionários cristãos.

Em 1993, Edmund Fabian foi assassinado na Papua Nova Guiné por um homem local que o ajudara a traduzir a Bíblia.

Em março de 2016, quatro tradutores da Bíblia que trabalhavam para uma organização evangélica dos EUA foram mortos por militantes em um local não revelado no Oriente Médio.

Traduzir a Bíblia pode parecer uma atividade inofensiva, mas a história mostra que não.

Harry Freedman

terça-feira, maio 28

Dê exemplo


Direito adquirido

Quando o desembargador morreu e o livreiro que comprou sua biblioteca foi retirar os livros, de uma das páginas do Código Civil saiu uma traça de óculos que avisou: "Veja bem o que vai fazer comigo ou arque com as consequências. Eu tenho direito ao usucapião e não saio daqui nem que chova canivete"
Raul Drewnick

Queda que muda a gente


Uma casa cheia de livros

Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silêncio, mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma pausa mínima na sua vigia, sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressão porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nível transparente, nessa dimensão sussurrada. Os livros sabem mais do que nós mas, sem defesa, estão à nossa mercê. Podemos atirá-los à parede, podemos atirá-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vê-los cair, duros e sérios, no chão.

Quando me pediram para entrar numa sala, entrei. Não contava surpreender-me. Estávamos numa biblioteca pública e eu era capaz de imaginar com antecedência o que me queriam mostrar. A senhora que caminhava dois passos à minha frente era dona de uma voz branda, feita de boa fazenda, e dizia que se tratava da oferta de um senhor que tinha morrido. O filho tinha cumprido a vontade do pai e tinha acordado as condições com a biblioteca: quase nenhumas. A sala não era uma sala, era uma sucessão de salas. Cada uma delas estava completamente ocupada por estantes cheias. Com a mesma voz de antes, a senhora explicava-me que os livros tinham vindo nas próprias estantes onde estavam. Uma empresa de mudanças tinha-se ocupado desse serviço durante dia e meio, sem parar, meia dúzia de homens.

Eu já vi muitos livros e não contava surpreender-me mas, depois, prestei mais atenção. Enquanto ouvia a descrição do cenário em que encontraram os livros - uma casa cheia de livros, todas as paredes cheias, do chão ao tecto, prateleiras com duas fileiras de livros, pilhas de livros - foquei o meu olhar nas lombadas, nos títulos. A forma como estavam ordenados, lembrou-me a caligrafia da minha avó, uma caligrafia septuagenária, agarrada a uma perfeição talvez desnecessária, a um esforço de manter a correcção mesmo depois de estar quase tudo perdido, como se essa correcção pudesse salvar. Tratava-se de uma organização que previa a dimensão estética - o tamanho das edições, as colecções, as cores das capas - mas, também, uma vertente literária - géneros, história da literatura - e alfabética - B depois do A. Por vincos ínfimos, dava para perceber que eram livros lidos. Mas tão bem tratados, tão minuciosamente acarinhados. Ao mesmo tempo, entre prateleiras, entre salas, fui percebendo quais eram os autores que, criteriosamente, não estavam representados e quais os que tinham toda a sua obra naquelas estantes; fui percebendo quais os períodos e os temas que interessavam à pessoa que juntou todos aqueles milhares de livros.

É uma vida, repetia a senhora, é uma vida inteira. E contou que aqueles livros estavam agora à espera de serem catalogados e, a pouco e pouco, arrumados junto dos outros. Foi nesse momento que consegui distinguir com clareza o quanto estavam assustados. Olhavam para todos os lados, não conheciam o futuro que os esperava. Afinal, o eterno podia mudar com tanta facilidade, bastava um sopro. Foi nesse momento que consegui distinguir as suas vozes fininhas, a cruzarem-se no ar daquelas salas, cheiro a livros e a medo. Vestidos com roupas novas, roupas nobres e tão despreparados para as exigências de uma realidade feita de mãos e transtornos, feita de pressa real.

Muito tempo depois de sair de lá, a quilómetros de distância, voltei a pensar naqueles livros. Aquela selecção privada iria diluir-se nas prateleiras da biblioteca. O fim de uma ilusão costuma causar-me melancolia. Foi o caso. Muito provavelmente, na memória daqueles livros, o tempo que passaram nessa casa antiga, protegida, iria diluir-se também. Daqui a anos, depois de mundo e cicatrizes, ao encontrarem-se por acaso poderão nem sequer reconhecer-se. Poderão ser como aquelas pessoas que se reencontram e que não sabem se devem cumprimentar-se ou não e que, ao não fazê-lo, é como se tivessem deixado de conhecer-se.

Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas.

José Luís Peixoto

domingo, maio 26

À deriva... com prazer


Mea culpa

Li muito, mas também me fartei de sofrer por causa do que não li, nessa altura : ficavam-me os olhos nas montras da Minerva e da Progresso, onde chamavam por mim […], livros que só mais tarde viria a ler
Eugénio Lisboa

Turma do surfe

Chris Lench

Procura-se

Procura-se aflitivamente pelas igrejas e botequins, e no recesso dos lares e nas gavetas dos escritórios, procura-se insistente e melancolicamente, procura-se comovida e desesperadamente, e de todos os modos e com muitos outros advérbios de modo, procura-se junto a amigos judeus e árabes, e senhoras suspeitas e insuspeitas, sem distinção de credo nem de plástica, procura-se junto às estátuas e na areia da praia, e na noite de chuva e na manhã encharcada de luz, procura-se com as mãos, os olhos e o coração um pobre caderninho azul que tem escrita na capa a palavra “endereços” e dentro está todo sujo, rabiscado e velho.

Gilles Sacksick
Pondera-se que tal caderninho não tem valor para nenhuma outra pessoa de boa-fé, a não ser seu desgraçado autor. Tem este autor publicado vários livros e enchido, ou bem ou mal, centenas de quilômetros de colunas de jornal e revista, porém sua única obra sincera e sentida é esse caderninho azul, escrito através de longos anos de aflições e esperanças, e negócios urgentes e amores contrariadíssimos, embora seja forçoso confessar que há ali números de telefone que foram escritos em momentos em que um pé do cidadão pisava uma nuvem e outro uma estrela e os outros dois... – sim, meus concidadãos, trata-se de um quadrúpede, eu sou um velho quadrúpede e de quatro joelhos no chão eu peço que me ajudeis a encontrar esse objeto perdido.

Pois eis que não perdi um simples caderno, mas um velho sobrado de Florença e um pobre mocambo do Recife, um arcanjo de cabelos castanhos residente em Botafogo em 1943, um doce remorso paulista e o endereço do único homem honrado que sabe consertar palhinha de cadeira no Distrito Federal.

O caderno é reconhecível para os estranhos mediante o desenho feito na folha branca do fim, representando Vênus de Milo em Birome azul, cujo desenho foi feito pelo abaixo assinado no próprio Museu do Louvre, e nesse momento a deusa estremeceu. Haverá talvez um número de telefone rabiscado no torso da deusa, assim como na letra K há trechos de um poema para sempre inacabado escrito com letra particularmente ruim.

Na segunda página da letra D há notas sobre vencimentos de humildes, porém nefandas dívidas bancárias e com uma letra que eu não digo começa o nome de meu bem, que é todo o mal de minha vida.

Procura-se um caderninho azul escrito a lápis e tinta e sangue, suor e lágrimas, com setenta por cento de endereços caducos e cancelados e telefones retirados e, portanto, absolutamente necessários e urgentes e irreconstituíveis. Procura-se, e talvez não se queira achar, um caderninho azul com um passado cinzento e confuso de um homem triste e vulgar... Procura-se, e talvez não se queira achar.
Rubem Braga

sábado, maio 25

Dica de passeio


Epitáfios

Videocassete
Nasceu velho e morreu menino. A tecnologia não rebobina.

Fax
Partiu sem que ninguém compreendesse sua magia.

Pager
Filho prodígio do Bip, morreu jovem. Não conheceu seu neto, o WhatsApp.

Ficha telefônica
Viverá para sempre em nossas analogias.

Cassete
Será eternamente lembrado, ó patriarca das seleções musicais.

Máquina de escrever elétrica
Sua suavidade marcou o fim dos maus tratos às teclas.

Telégrafo
.— .- –.- .. … – . . … –.- . -.-. . .-. . ..

Orkut
Soube como ninguém viver em comunidade.

Telegrama
Nasc pt do escr pt abrev pt Saud pt eterna pt

Cartão de Natal
Reencarnou no plano digital.

Agenda Eletrônica
Esquecida em vida, esquecida depois da morte.

Lista Telefônica
Ah, esta foi grande!

Disquete
Em seus momentos de glória, sempre foi fino.
Rubem Penz

Para grandes voos

 Moonsub Shin

Fila do pão

Pouco antes da segunda fornada da tarde começa a formar-se uma fila à porta da padaria, passa em frente do sapateiro, da tabacaria, do mini mercado do Iuri, onde tudo é limpo e apetecível, as frutas dispostas numa paleta de cores, os legumes borrifados, as mercearias organizadas em prateleiras de inox; a fila segue corredor fora e, por vezes, quando a fornada se atrasa, alonga-se até ao talho. Há outras padarias no centro comercial do bairro onde cresci, mas só ali, naquela padaria, se forma uma fila à hora da segunda fornada da tarde.

Albert Anker
Hoje, a fornada tarda e, por isso, a fila vai longa. O bairro envelheceu, está cheio de viúvos, enquanto esperam na bicha do pão, não sentem a solidão. Um homem indiano, também velho, é dos primeiros da fila. Magro, mas de uma magreza extrema que espanta, o seu corpo, de tão magro, tem a qualidade rara da translucidez. Na cabeça redonda, crânio lustroso, não se vê um único cabelo. As orelhas largas de abano desequilibram a fragilidade do rosto. Usa um bigode branco. Está imóvel, olhar fixo num ponto, alheio ao burburinho do corredor. Sempre que a fila avança, dá dois passos, depois, deixa-se ficar, esperando, absorto, corpo curvado como um junco soprado por um vento caprichoso. A aparência física, mas, sobretudo, a postura, um alheamento genuíno, uma leve arrogância aristocrata, a de quem nasceu numa casta superior e por isso dela pode abdicar, tornam a parecença inevitável: em que pensará o gandhi do bairro onde cresci?

Aproximam-se dois miúdos. Chegam ruidosos, cabelo empastado de gel, ar trocista, vestidos de gangas barrocas, cheias de brilhos e tachas. A sua chegada provoca um frémito de desconforto. São ciganos e vivem nos blocos de realojamento que a câmara construiu há pouco tempo. As famílias ciganas quebraram a paz do bairro. Trouxeram ruído, alguma violência. Há uma guerra não declarada entre os habitantes do bairro residencial e os que vivem nos blocos de habitação social. É uma guerra silenciosa, mas, como em todas as guerras, assenta num ódio que não conhece excepções. Odeiam-se todos os que estão do outro lado: homens, mulheres, velhos, deficientes, crianças como estas que se aproximam da fila do pão. Os dois rapazes observam os velhos com olhos de gavião. O esquema é sempre o mesmo. Precisam de encontrar o mais frágil, aquele que mais facilmente deixe entrar o medo, a vítima ideal que permita o pequeno furto, tão pequeno e irrelevante, que nem parece ser aquilo que é.

A sua escolha, hoje, não é difícil. Ó senhor, compre-nos aí dez pães, vá lá! O velho indiano não lhes responde. Mantém o olhar fixo. Parece não os ver. Os rapazes pedincham durante mais algum tempo. O silêncio do velho irrita os rapazes.O monhé não diz nada, diz entre dentes o que parece ser mais novo.Compra aí dez pães, ó velho!, a intimidação passa a ser clara, a coacção já não se disfarça, o preconceito assume-se. Insistem no insulto e na ameaça. O velho mantém a sua calma. Rosto sério e alheio. Parece estar num outro mundo. De onde lhe vem a calma? Por que não treme, de raiva, o seu corpo tão frágil? Por que não lhes responde? Os miúdos acabam por desistir. Envergonhados, o orgulho atingido, desaparecem no corredor. Por breves instantes, tudo sossega no corredor da fila do pão. Iuri, no seu mini mercado, corta uma melancia riscada em quartos. Na tabacaria, um homem retoma a leitura dos jornais.

A fila está prestes a avançar quando, do sapateiro, sai uma mulher que veste um salwar kameez de cor clara, mas indefinida. Cheira a sabonete de sândalo e curcuma. Aproxima-se do velho gandhi e fala-lhe muito alto, aos gritos para se fazer ouvir. Desculpa-se por o ter deixado tanto tempo sozinho, estava muita gente no sapateiro, mas valera a pena, conseguira arranjar uma dobradiça que servia na perfeição na bengala. O velho acena a cabeça em sinal de assentimento. A mulher abre o saco. Tira uma bengala dobrável de alumínio. O velho pega-lhe e, imediatamente, inicia movimentos pendulares, de lá para cá, de cá para lá, reconhece o espaço, larga a escuridão, os seus olhos estão na ponta de borracha da bengala. A mulher senta-o num dos bancos do corredor e toma o seu lugar na fila do pão. Sentado, translúcido, sereno, o velho não sente a guerra silenciosa que se passeia pelas ruas do bairro. Não sente medo. Nem ódio. Não se deu conta dos rapazes ciganos. Não os viu. Não os escutou. O velho gandhi vive em paz porque o mundo não lhe chega.
Ana Cássia Rebelo

sexta-feira, maio 24

A livraria na porta


Ainda há estantes vazias

Antonella Massetti
Pois desde que me dei por gente procuro o romance em que se resuma toda a paixão, os sonhos, os desejos, as ambições, a dor, a solidão, o humor, o patético extravio do bicho-homem. Cultivo a esperança de ainda achá-lo. Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro, Suave é a Noite bateram perto de meus devaneios.Mas ainda há estantes vazias na biblioteca secreta de minha alma
Liberato Vieira da Cunha, "O silêncio do mundo"

Manhã no parque


Devaneio

Os professores me chamavam de estrábico. Mas os meus colegas da escola me chamavam — pelas costas, é claro — de caolho, zarolho, mirolho.

Certa ocasião eu fui falar com uma garota e ela olhou para mim e caiu na gargalhada.

Sofri muito com aquilo. E passei a andar à sorrelfa, para que não percebessem o meu defeito. Nunca mais olhei o meu rosto num espelho. Fazia a barba no chuveiro, o que aliás era uma boa ideia, água quente — eu tomo banho com a água fervendo — amacia os pelos do rosto e a raspagem é fácil e perfeita.

Fui ao oftalmologista, o doutor Cobra. O nome dele era Cobra. Não estou inventando.

E qual o problema do sujeito se chamar Cobra? Não tem gente que se chama Barata, Leitão, Pinto, Camarão, Aranha, Carneiro, Café? Eu podia arrolar aqui dezenas de nomes estranhos. Ele me examinou longamente e disse:

“O seu caso é raro, a sua síndrome é dificilmente encontrada em outra pessoa. E não tem cura."

“E uma cirurgia, doutor?"

“Qualquer cirurgia deixaria você irremediavelmente cego."

“E o que o senhor me aconselha para diminuir esse meu sofrimento?"

“Usar óculos escuros. Bem escuros. Assim ninguém percebe a sua anomalia ótica."

Nesta mesma ocasião os meus pais faleceram, num desastre de automóvel.

Meu pai, que também era estrábico, estava dirigindo.

“O estrabismo”, o doutor Cobra me disse, “não é genético, você e o seu pai sofrerem do mesmo problema é uma mera coincidência”.

Herdei dos meus pais bens suficientes para uma vida inteira.

Comprei os óculos escuros, saí da escola, nunca mais procurei o doutor Cobra.

Eu não tirava os óculos escuros para nada. À noite, quando ia dormir, apagava a luz e colocava os óculos na mesinha de cabeceira. Eu tinha oito pares de óculos, não queria correr o risco de ficar sem um deles. Eu nunca mais, repito, nunca mais olhei o meu rosto no espelho sem os óculos.

Eu gostava de andar pelo parque, próximo da minha casa, e costumava sentar-me num dos bancos para ficar olhando as pessoas passarem. Confesso que os óculos estavam me fazendo bem, eu já não via mais as coisas como antes, de maneira distorcida.

Entre os transeuntes da praça um chamava a minha atenção. Era uma jovem muito bonita, elegante, a quem eu contemplava, sem que ela percebesse, pois os óculos escuros o permitiam.

Chegando em casa ficava pensando nela, principalmente ao deitar. Eu a via com nitidez caminhando pela praça, e quando o sono me dominava eu sonhava com ela.

Um dia eu estava sentado no banco quando vi, feliz, ela se aproximando.

Para minha surpresa ela se sentou ao meu lado.

“Nós sempre nos encontramos e nunca nos falamos. O meu nome é Helena."

Disse isso estendo a mão para mim.

Eu a cumprimentei dizendo:

“O meu é José, mas os meus pais me chamavam de Zé."

“Então também vou chamá-lo de Zé. Posso?"

“Claro."

“Felizmente o sol já se pôs. Eu adoro o pôr do sol, você também? E quando vai tirar esses óculos escuros?"

Fiquei trêmulo, escondi as mãos enfiando-as no bolso.

“Tenho que ir embora, lembrei agora que estou atrasado para um encontro importante."

Saí apressado, creio mesmo que corri esbaforido.

Nunca mais fui passear na praça.

Passaram-se uns meses, e um dia eu estava tomando um cafezinho — confesso que sou um viciado em café, o meu único vício —, quando senti um toque no meu ombro.

Era Helena.

“Você sumiu. Tenho ido todos os dias à praça para ver se o encontro, mas não tenho tido esse prazer. Pensei que você gostasse de mim."

“Eu gosto... muito...”, gaguejei.

“E por que desapareceu? Isso me deixou muito triste."

Criei coragem e decidi falar a verdade.

“Por quê? Por quê? Por isso!"

Tirei os óculos e olhei Helena de frente.

“Você tem olhos lindos."

Ela devia estar escarnecendo, nada se iguala à maldade das mulheres! Havia vários espelhos no botequim. Olhei num deles. O meu estrabismo desaparecera! Se eu fosse uma pessoa religiosa acreditaria num milagre.

Bem, devo confessar que nada disso ocorreu. Foi mais um sonho. Eu encontrar a moça na praça foi um sonho. E qual é o problema? O sonho, para a ciência, é uma experiência de imaginação do inconsciente durante nosso período de sono. Em diversas tradições culturais e religiosas, o sonho aparece revestido de poderes premonitórios ou até mesmo de uma expansão da consciência.

Aquele sonho era um presságio? Iria ocorrer o que eu sonhei?
Rubem Fonseca

quinta-feira, maio 23

Luz na escuridão


Crônica portuguesa

Se visitarem Lisboa e passarem pela Avenida de Roma, e depararem com um sexto andar cor de rosa sob uma pequena mansarda de onde pendem uns cravos túnicos, olhem bem para essa janela e pensem na sagacidade jurídica do Dr. Gabriel Calado. As coisas passaram-se assim. A proprietária do andar era uma atriz conhecida, e o andar, um cubículo apertado, pendurado no alto do prédio. Mas por cima erguia-se um volumoso telhado em forma de campânula que também lhe pertencia. Para quê uma superfície de telha tão ampla, quando ali se poderia rasgar uma janela de onde a atriz pudesse enxergar a cidade, as árvores da cidade, sentir o vento que vinha do mar, imaginar a grande pança azul do Oceano Atlântico, e lá ao largo as longínquas costas da três Américas? Seria o sonho de um sonho, abrir uma janela. O problema é que havia milhares de janelas abertas nos telhados, e contudo a lei não o permitia. Então a actrizita foi falar com o Dr. Gabriel que lhe disse que se formulasse o pedido de licença conforme a lei, a sua pretensão jamais seria atendida. A menos que utilizasse a lei, aplicando-a a uma situação irreal.

O argumentário do advogado era este - Se lavrassem um pedido de licença para que fosse aberta uma janela no telhado, apesar dos vinte mil exemplos que havia em Lisboa, a resposta seria negativa, mas se pedissem para fechá-la, como os serviços davam primazia à imobilidade, o resultado iria ser negativo, a janela não poderia ser fechada, e nessa altura poderiam abri-la. A proprietária do minísculo apartamento estava perplexa. Como? Queria abrir uma janela e pedia para fechá-la? Como, se não havia nenhuma janela? Tal e qual, disse-lhe o Dr. Gabriel Calado. Vamos experimentar? Pelo sim pelo não, se concorressem pelas vias normais, o primeiro processo demoraria três anos, o recurso, outros três e até; que houvesse um suborno eficaz, demorar-se-ia pelo menos quatro, isto é, nunca decorreriam menos de dez anos até se abrir a hipotética janela.

Então decidiram fazer um requerimento solicitando o encerramento da janela que não existia. Ao fim de três anos, veio a resposta. A resposta era esta - De modo algum. Pelas trinta leis que regiam o fecho das janelas, era impossível fechar aquela. O Dr. Gabriel esfregou as mãos de triunfo. Pois não existindo, juridicamente, a janela tinha passado a existir. A janela foi aberta num domingo de manhã. À medida que se retiravam as telhas ia-se cumprindo a lei, ia-se tornando impossível fechar a janela que antes não existia. Ao meio dia, a atriz debruçou-se na janela, olhou para fora e viu a cidade, o estuário do Tejo, o início do mar, o caminho aberto para as três Américas, e pensou - "Aqui, sobre este parapeito, vão pender cravos túnicos. Mesmo que um dia eu corra mundo e possa mudar de casa, esta janela será a prova do triunfo da irrealidade sobre o real, mãe de todos mitos. Obrigada, Gabriel Calado.

Lídia Jorge

quarta-feira, maio 22

Escalada

Livraria

Lembro-me de ti
na livraria
com os olhos na estante
e a mão nas lombadas
com teu toque digital
de unhas não pintadas
apalpando a literatura mundial

Lembro que nunca
senti maior o ímpeto
de ser Dante
Cervantes Shakespeare
e ser levado por ti
para tua casa
e lido na cama
e sentir teu suspiro
na hora de Julieta
perguntar a Romeu
tu me amas?

E ser então Romeu
e dizer sim
o amor é meu amo
tu és minha ama
e te amo e te amo.

Raul Drewnick

Sala de leitura


A primeira biblioteca móvel

Um dos primeiros sistemas de bibliotecas itinerantes foi a “Biblioteca Perambulante”, montada em um grupo de vilarejos perto de Carlisle, na Grã-Bretanha, em 1851. A força motriz por trás disso era o filantropo local George Moore. Trabalhando com Richard Abbatt e JP Foster, os homens organizaram uma série de postos de depósito a serem instalados em nove aldeias do noroeste da Inglaterra; Ireby, Torpenhow, Bothel, Mealsgate, Crookdale, Bolton, Boltongate, Sandale e Uldale. Caixas de livros foram trocadas entre as aldeias, um bibliotecário voluntário indicado em cada estação. Os assinantes pagavam um centavo por mês ou um xelim por ano. A coleção era trocada a cada seis semanas por um mensageiro que levava as malas a pé. O mensageiro, John Sanderson, era um “caminhante notável”, tendo supostamente percorrido 150 milhas em 48 horas. As bibliotecas foram um grande sucesso.

Um artigo de The British Workman, em 1875, descreveu a biblioteca de perambulantes assim:

“Ficamos muito interessados ​​em ouvir de um cavalheiro que recentemente viajou por Cumberland, um velho de aparência alegre que andava pela estrada, com um fardo que parecia novo. Provou ser a biblioteca de perambulação: a caixa grande contendo uma provisão de livros que o mensageiro levava de Mealsgate para Bolton New Houses. Ao depositar seu fardo, ele teria então que levar os livros que estavam em uso no Bolton New Houses adiante para outra aldeia, e assim por diante, para um círculo de oito aldeias.”

terça-feira, maio 21

Quando em Paris...


Veículo de viagem

A leitura consegue levar você a lugares distantes. Distantes da TV, principalmente
Campanha da Biblioteca Folha

Leitura com gatos


Por que....

Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo o mundo, arregaçou as mangas e disse:

- Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!

E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:

- Ou vai ou racha!

E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:

- Agora a gente vai fazer serviço de tatu!

O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal, do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição, quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:

- Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada.

Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:

- Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon!

Lulu foi embora embarcado em nunca mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre Lulu Bergantim!

segunda-feira, maio 20

Rua de leitores


Estocolmo e outros pesadelos

Escreve duas páginas e já fica ofegante. Pergunta aqui, pergunta ali, mas Estocolmo é sempre mais adiante.

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Cada noite é maior a dificuldade para distinguir um fantasma falso de um fantasma de verdade.

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Aos dezoito anos eu já era mais tolo do que jamais seria. Só que ainda não sabia.

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Depois de três tentativas desistiu e assumiu o papel de ex-suicida.

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O predador sexual comprou uma boneca inflável com desempenho regulável e garantia semestral.

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Jogado ao mar, o gato comeu um peixe antes de se afogar.

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É um homem que reconheceria todos os seus defeitos, se tivesse algum.

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Não acredito em versões atenuadas do amor, expurgadas dos desesperos e das lágrimas.

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O amor ainda é a melhor forma de alguém testar os limites de sua tolice.

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Se a poesia não conseguir desenvolver em você pelo menos um início de tristeza, deixe-a para quem a mereça.

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Frases curtas têm a vantagem de às vezes conseguirem passar sem que as alcance uma crase.

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Pago o preço da idade. Palavras como amor e primavera já não aceitam minha carteirinha de poeta.

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O que tenho a dizer sobre a literatura é que venho lidando com ela há pelo menos seis décadas e de vez em quando posso gabar-me de algum progresso.

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Quando imaginou que eu pudesse estar duvidando de sua glória, o poeta começou a puxar recortes da gaveta, tão velha quanto ele, seu quarto e sua tristeza.

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Mudamos demais: até a gripe hoje nós compartilhamos pelas redes sociais.

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A meia dúzia de recortes que formam minha fortuna crítica definham numa gaveta que há décadas não é aberta.

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A sorte da literatura é que, ao contrário do que imaginei, ela nunca dependeu de mim.

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Eu poderia, sem sair de casa, conversar diariamente com um velho que se diz sábio, se eu me aturasse.
Raul Drewnick

Biblioteca no muro


Esch-sur-Alzette (Luxemburgo), Mantra
 

A tumba de Kafka

Está no novo cemitério judaico de Praga, no bairro de Strasnice, enterrado junto a seus pais e suas três irmãs, que morreram nos campos de extermínio nazistas. Na verdade, esta bela cidade é praticamente um monumento ao mais ilustre de seus escritores. Toma todo um dia visitar as esculturas a ele dedicadas, as casas onde viveu, os cafés que frequentava e o magnífico museu, e em todos estes lugares coincido com bandos de turistas que tiram fotos e compram seus livros e souvenires. Eu também o faço: dos escritores que admiro, colecionaria até seus ossos.

Comove-me ver, no Museu Franz Kafka, muitas páginas da sua Carta ao Pai, que nunca enviou. Tinha uma letra arrevesada e saltitante, que, às vezes, pareciam desenhinhos de HQs. Essa enorme carta foi a primeira coisa que li dele, quando era adolescente. Eu me dava muito mal com meu pai, de quem tinha um medo pânico, e me senti totalmente identificado com esse texto desde as primeiras linhas, sobretudo quando Kafka acusa seu progenitor de tê-lo tornado inseguro, desconfiado de todos, de si mesmo e da sua própria vocação. Recordo com um calafrio aquela frase em que Kafka explica sua insegurança a ponto, diz, de não confiar em mais ninguém e mais nada, exceto o pedacinho de terra que seus pés pisam.

Este museu, diga-se de passagem, é o melhor que já vi dedicado a um escritor. Sua penumbra, seus corredores labirínticos, seus hologramas, os filmes arruinados da Praga do seu tempo, as grandes gavetas misteriosas que não podem ser abertas, e até a tenra canção em iídiche entoada por uma moça que parece de carne e osso (mas não é) não podem ser mais kafkianos. Tudo o que se sabe dele está exposto ali, e de maneira sutil e inteligente. As fotos mostram a trajetória fugaz dos quarenta e um anos que viveu; aparece quando menino, quando jovem e quando adulto, a figurinha estilizada, o olhar penetrante e suas grandes orelhas curvas de lobo da estepe.

Há um texto maravilhoso escrito quando, recém-formado advogado, acaba de começar a trabalhar numa companhia de seguros (de oito a nove horas por dia, seis dias por semana), afirmando que esse trabalho matará sua vocação, porque como poderia chegar a ser um escritor alguém que dedica todo seu tempo a um estúpido afazer alimentício? Exceto os rentistas, todos os escritores do mundo se fizeram perguntas parecidas. Mas este fez o que a maioria deles não costuma fazer: escrever quase sem parar, em todos os momentos livres que tinha, e, embora tenha publicado muito pouco em vida, deixar uma obra que, incluídas suas cartas, é de longuíssimo fôlego.

Nada me parece mais triste que alguém que sentia intensamente essa vocação e que, como Kafka, foi capaz de escrever tantos livros jamais tenha sido reconhecido enquanto vivia, e só postumamente se notasse que foi um dos grandes escrivinhadores de todos os tempos (W.H. Auden o comparou a Dante, Shakespeare e Goethe e disse que ele, como aqueles, era a síntese e o emblema de sua época). As coisas que publicou em vida passaram praticamente despercebidas, e isso que entre elas figurava A Metamorfose. O pedido a seu amigo Max Brod para que queimasse seus inéditos revela que acreditava ter fracassado como escritor, embora talvez restasse alguma esperança, porque, do contrário, ele mesmo os teria queimado.

A propósito de Max Brod, um dos poucos contemporâneos que acreditavam no talento de Kafka, há agora, por motivo da aparição do livro Kafka’s Last Trial, de Benjamin Balint, uma ressurreição dos ataques que já lhe fizeram no passado, inclusive críticos e intelectuais tão respeitáveis como Walter Benjamin e Hannah Arendt. Que injustiça! O mundo deveria estar para sempre grato a Max Brod, por ter, em vez de acatado a decisão do amigo a quem estimava e admirava, salvado para os leitores do futuro uma das obras mais originais da literatura. Em sua biografia e em seus ensaios sobre Kafka, Brod pode ter exagerado a influência que o misticismo judaico exerceu sobre ele, e talvez tenha se equivocado ao deixar em seu testamento à senhora Esther Hoffe os inéditos que ainda restavam, razão pela qual o Estado judaico e a Alemanha passaram muitos anos litigando por aqueles textos (finamente foi Israel que ficou com eles), tema sobre o qual versa o por outro lado estrambótico livro de Benjamin Balint. Ninguém que desfrute verdadeiramente lendo Kafka deveria lê-lo. Os que o atacam teriam que estar conscientes de que nada do que dizem em suas análises sobre Kafka seria possível sem a decisão extraordinariamente sagaz de Max Brod de resgatar esta obra essencial.

Hermann Kafka, o destinatário da impressionante carta que seu filho nunca lhe enviou, era um judeu humilde, que não teve contato nenhum com a literatura. Dedicou-se ao comércio, abrindo lojinhas de armarinhos que tiveram certo êxito e elevaram os níveis de vida da família. Mas havia nele algum germe de excentricidade kafkiana, porque como é possível que passasse a vida mudando de apartamento, inclusive dentro de um mesmo quarteirão? Os guias dizem que se mudou doze vezes de residência, e que não menos mudanças experimentaram suas lojas. A família se considerava judia e falava alemão, como a maioria dos tchecos de então, e não era particularmente religiosa. Kafka tampouco o foi, pelo menos até que chegasse a Praga aquela companhia de teatro em iídiche que tanto o impressionou. O museu documenta muito bem os efeitos dessa experiência, o empenho com que se pôs a estudar hebraico (que nunca chegou a aprender), a ler livros sobre o hassidismo e outros movimentos místicos, assim como o belíssimo texto que escreveu sobre aqueles atores e atrizes que faziam teatro em iídiche, sobrevivendo com as miseráveis gorjetas que o público lhes atirava na rua ou nos cafés onde atuavam.

O museu também dá detalhes sobre as quatro namoradas que Kafka chegou a ter e sobre como eram complicadas suas relações sentimentais. Apaixonava-se, sem dúvida, e era um amante tenaz, monopolizador, e lhes propunha casamento. Mas, assim que aceitavam, recuava, aterrorizado por ter chegado tão longe. A insegurança o perseguia também no amor. Pelo menos três dessas namoradas sofreram com esses desplantes; com uma delas, Felicia Bauer, celebrou o noivado com uma festa, poucos dias antes de rompê-lo. Com a amizade era muito mais constante. Seu melhor amigo foi sem dúvida Max Brod, que, naqueles anos, já tinha um nome literário e havia publicado alguns livros. Foi um dos primeiros em perceber o gênio de Kafka e o estimulou sem trégua a escrever e a acreditar em si mesmo, algo que efetivamente ocorreu, pois Kafka, pelo menos quando escrevia, perdia a insegurança da qual sempre padeceu e se tornava um insólito e seguro fazedor de pessoas e histórias. Uma tuberculose galopante acabou com sua existência, no começo da maturidade. Hitler deu cabo do resto da família.

domingo, maio 19

Receita de domingo

Ter na véspera o cuidado de deixar a janela do quarto bem aberta. Precisar o momento em que o dia e a treva fazem um composto que depressa se precipita. Despertar e ver através da moldura da janela a mocidade do universo, o incêndio límpido que debrua de vermelho quase frio as nuvens espessas. Ver que uma brisa alta se levanta e agita docemente as grinaldas. De repente, uma gaivota madrugadora cruzar o cenário. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, deixar que do corpo se apodere um nascimento sem traumatismo, sem nenhum elemento de pavor. Então, morrer de novo, devagar, penetrando, como um mergulhador suicida, a matéria do sono, sem querer lembrar que do outro lado um espaço luminoso nos aguarda. 

O café e os jornais devem estar prontos no momento exato em que violentamos a morte e surgimos à tona. Esse milagre doméstico precisa ser feito. Da área deve subir uma dissonância alegre de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas, frigideiras, cristais — anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e melhor não foram esquecidas. Um rádio muito alto deve celebrar o indizível acontecimento de mais um domingo. Perto do tanque, a galinha que vai morrer sai de súbito do seu mutismo e dá um berro. Só agora perceber que o nosso vizinho arranjou um canário belga.

 Todos os domingos são claros e festivos. Enquanto tomamos café, lembrar, se não for de todo impossível, que é dia de Flaflu. Basta isso para comunicar ao transcurso das horas uma firmeza saudável.

Depois de vestir o calção, zanzar pela casa, lutar no chão com o filho mais velho, receber dele um soco que nos deixe orgulhosos de sua força física. A mulher deve dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos desarrumando a casa, que somos mais crianças do que as crianças. Só depois de chatear consideravelmente a todos, sair em bando familiar na direção da praia, com a barraca mais velha e desmilinguida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser essa manhã a fazer acrobacias e divertir as crianças, torna-se indispensável a passagem de elegantes sócios da Hípica, montados em cavalos magníficos.

Comprar para as crianças tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uva cristalizada, pirulitos, algodão-doce, refrigerantes, balões, macaquinhos de pano. Fingir-se de distraído no momento em que o filho menor, armado, aproximar-se sorrateiro da barraca em que dorme um imenso alemão para desferir sobre as costas gordas do mesmo uma vigorosa paulada. Não se deve contrariar as crianças a todo momento, é o que recomenda a pediatria moderna. 

No instante em que as crianças já começam a "encher", a mulher deve resolver voltar e deixar-nos sós. Só então notar que as moças são belas. Depois, fechar os olhos, torrar ao sol até que a pele adquira uma sensibilidade própria, à espera que os insetos da terra nos despertem do meio sono.

A caminho de casa, é aconselhável encontrar, também de calção, um amigo que não se via há muito tempo e que goste de ostras. No carro dele, ir às ostras. Chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol, como uma espada, transpassando o dia. Só à última hora desistir de ir ver pessoalmente o Flamengo X Fluminense. Apelar para a televisão do amigo mais próximo. Recusar sinceramente o uísque que este nos oferece. Dizer bobagens.

Novamente em casa, conversar com a família. Enquanto as crianças são postas em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu, que as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, vencê-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la; se for a poesia, possuí-la; se alguém, ser humano, casal amigo, bater à porta, recebê-lo com simplicidade e alegria; mas se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe "Never more".

A noite pesada entra no domingo. À luz da lâmpada, viajamos. O livro deve dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo deveria ser composto de domingos. Então, nascer de nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.
Paulo Mendes Campos