quinta-feira, maio 31

Força de leitor


Recompensa em acreditar

Detenhamo-nos nesta ideia: onde está a fé do leitor? Porque, para ler um livro, devemos acreditar nele? Se não acreditamos no livro, não acreditamos no prazer da leitura
Jorge Luis Borges

Sugestão de feriado

Leitura da tarde (1948),  Patrick Leonard

Do esgoto ao livro

Em setembro do ano passado, o Governo do Rio de Janeiro lançou um edital para pregão eletrônico através do qual contrataria uma “empresa especializada na prestação de serviços de apoio técnico-administrativo para atender as necessidades da Rede de Bibliotecas Parque”.

O resultado desse certame foi publicado no Diário Oficial do Estado do último dia 18. Por R$ 4,2 milhões, a empresa escolhida (e homologada) foi Liderança Limpeza e Conservação Ltda, empresa com sede em São José, no interior catarinense inscrita sob o CNPJ 00.482.840/0001-38. O curioso é que, como se vê no Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral desse CNPJ (na imagem abaixo), a empresa é especializada, dentre outras coisas, em “criação de animais de estimação”, “atividades relacionadas a esgoto”, “coleta de resíduos não-perigosos”, "comércio varejista de bebidas" etc... Mas, segundo consta no edital a empresa vai ser responsável pela contratação de 64 profissionais, entre eles bibliotecários, mediadores sociais e coordenador do Educativo, Programação e Conteúdo.

O período de vigência do contrato é de 12 meses e está embarcado nele as atividades das bibliotecas-parque Estadual, de Manguinhos e da Rocinha.

Especialistas ouvidos pelo PublishNews avaliaram a medida equivocada não só pela falta de especialização por parte da empresa, mas também pelo número de funcionários insuficiente. Quando operava a pleno vapor, a Biblioteca Parque Estadual sozinha mobilizava um contingente de 110 funcionários.

A rede de Bibliotecas Parque do Rio é composta por três unidades: a da Rocinha, a de Manguinhos e a Estadual, as duas últimas fechadas.. A Biblioteca Parque Estadual, localizada no centro da capital fluminense, está fechada desde dezembro de 2016. Com a realização lá do LER – Salão Carioca do Livro, renovou-se a esperança de reabertura da casa. Na cerimônia, o secretário Leandro Sampaio, da Cultura, chegou a dar uma data de reabertura da biblioteca: 28 de maio, ontem. De acordo com o site da própria secretaria, o equipamento encontra-se ainda temporariamente fechado, conforme imagem abaixo. Na mesma ocasião, o responsável pela pasta disse que para funcionar, o espaço seria preenchido com funcionários da própria secretaria.

Para conseguir reabrir a biblioteca da Avenida Presidente Vargas, o governo fluminense vem negociando com o Centro de Memória da Eletricidade no Brasil um acordo que poderá resultar na cessão do prédio ocupado pela biblioteca à entidade cultural mantida por empresas do setor elétrico. Em janeiro passado foi assinado um protocolo de intenções neste sentido, mas diferentemente do que o PublishNews publicou originalmente, os termos dessa cessão e suas contrapartidas ainda não foram estabelecidos, segundo informou à redação a assessoria de imprensa do Centro de Memória da Eletricidade.

Leonardo Neto

quarta-feira, maio 30

Hora de entrar no serviço


Sair no lucro

A vantagem de ser leitor, e não crítico, é essa: poder não gostar de qualquer escritor sem precisar entrar em detalhes
Raul Drewnick

Há sempre alguém no livro

Emilio Urberuaga 

O desaparecido

Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.

Rubem Braga

terça-feira, maio 29

Cartesiana


O papel, o digital, as pessoas

Lisa Aisato
Quando acontecem atentados que atingem os tradicionais repositórios de livros, a que chamamos bibliotecas por norma levanta-se um rol de coros que por norma e sem excepção lamentam o sucedido. Assim aconteceu ao longo do tempo em que o saber, colocado de forma escrita, podia, na opinião dos conquistadores, ser um perigo para a sociedade que acabavam de tomar.

Isto aconteceu em inúmeras situações ao longo da história, mas as mais conhecidas são as destruições da biblioteca de Alexandria e mais recentemente, isto é neste século, também no Iraque e na Síria. Uma coisa é certa e comum as diferentes destruições: São efectuadas na sequência de conflitos bélicos.

No caso da biblioteca de Alexandria, cuja maior destruição terá ocorrido no ano 646, e foi conduzida por muçulmanos que combatiam na altura o Império Romano. Diz-se, que quando o comandante que tomou a cidade e solicitou orientações ao seu chefe Omar este lhe respondeu: Dos livros existentes, os que forem contrários ao Alcorão devem ser destruídos. Os que forem a favor do Alcorão podem ser destruídos pois temos o Alcorão. Consta que os livros foram distribuídos pelos balneários públicos de Alexandria e utilizados para combustível dos fornos que aqueciam a água dos balneários públicos.

Bem, mas não vamos falar deste assunto que contudo quem quiser aprofundar poderá consultar por exemplo (aqui). Hoje o objectivo é falar sobre a forma de guardar a informação, e principalmente sobre o dilema papel/digital, se é que ele existe.

Na nossa época, cada vez mais utilizamos ferramentas digitais para obter, tratar e guardar informação. E, sendo eu um apologista dessas ferramentas, fruto até da minha formação académica, não posso por outro lado deixar de me questionar sobre o caminho que estamos em muitos casos a trilhar sobre esta matéria.

Quando aparece alguém a defender que o futuro é o digital, seja nos livros seja na prestação de serviços só podemos apoiar essas iniciativas. O digital veio democratizar a informação permitindo que todos, (ou quase todos) tenham livre acesso à informação.

É certo que sem essa nova forma de acesso, muitas pessoas não teriam acesso à informação e, mais ainda, não teriam acesso de forma tão rápida e fácil. Quem, mesmo hoje poderia adquirir livros em papel em quantidade que permitissem consultar, quando quisessem toda a informação? Claro que ninguém poderia fazer isso.

É por isso que ninguém com bom senso pode prescindir de tudo o que é tradicional, os livros em papel, ou mesmo pergaminho, e preferir o que supostamente é moderno, o digital. Também o bom senso não pode conduzir a que se elimine tudo o que for inovação e por isso do digital e se utilizem apenas os suportes tradicionais da informação os livros.

Manter tanto quanto for possível os vários suportes de informação com a vantagem que cada um tem relativamente aos outros deve ser a nossa principal preocupação se quisermos deixar às futuras gerações aquilo que nós aprendemos e inventámos.

Se o não fizermos, estamos a comportar-nos como a força militar que destruiu a biblioteca de Alexandria pela última vez.

Digital sim, pois democratiza o acesso.

Mas apenas digital, não, pois os restantes suportes têm demonstrado ao longo do tempo uma longevidade que vai muito para além do que o digital tem.
Preservar utilizando ambos os suportes é o desejável já que outro tipo de preservação ainda não é possível – a vida.

Como alguém disse uma vez, o grande problema da destruição de legados culturais e repositórios tradicionais de informação, é um problema grave. É também um problema grave a destruição dos suportes digitais de informação sejam livros nesse formato ou outros. Mas o maior problema, e esse não tem solução fácil ou melhor, não tem solução é a destruição de quem as lê ou leu.

Quando um leitor de livros (uma pessoa) desaparece, é uma biblioteca inteira que desaparece e se perde pois o seu conhecimento intrínseco não pode recuperar-se depois da sua morte se não existir um suporte onde o seu conteúdo possa ser preservado. Ora, como facilmente percebemos manter o conhecimento de alguém que desaparece fisicamente é impossível, pois esse conhecimento vai muito para além do que está guardado na sua memoria. Ouvir alguém contar uma história ao vivo, não é a mesma coisa que ler essa historia escrita por exemplo num livro. É melhor e mais fiável ao vivo.

Há todo um conjunto de conhecimento que nessa situação não pode ser transmitido. É o tom da voz, a sua altura o timbre, e ainda a expressão facial e corporal que acompanha o contar da historia. Por isso, vamos tirar o máximo partido do conhecimento residente nestas bibliotecas enquanto elas não forem destruídas pela lei natural da vida.

Se pudermos recolhamos o máximo de conhecimento dessas bibliotecas, preservando-o quer em papel quer em digital (video) na certeza porém de que o o original nunca será recuperado.

Destes três suportes apenas pudemos controlar dois deles: Os livros, ou melhor a escrita e o digital. Por isso mantenhamos o máximo que pudermos desses suportes informativos para que no futuro, quem nos suceder, não tenha que perder tempo a inventar a roda de novo e possa orientar a sua energia para novas invenções, contribuindo assim para o desenvolvimento da humanidade.

segunda-feira, maio 28

Declaração de amor


Mercado

Se no Brasil há dois petshops para cada livraria, ensine-se a leitura aos cães e gatos ou transformem-se os livros em ração
Raul Drewnick

Leitura especializada


Os novos leitores

Sem ter plena consciência disso, ao ler este texto, você está fazendo parte de uma transformação radical. O surgimento de símbolos que registram ideias foi uma revolução. Poder ler, caro leitor e querida leitora, é habilidade com mais de cinco milênios de histórias. 

Houve cinco berços de escrita no nosso planeta: Egito, Sul da Mesopotâmia, Mesoamérica, China e vale do Rio Indo. Há um debate sobre o uso andino dos quipos (sistema de nós em cordões) como escrita tridimensional. Decifrar uma escrita traz um universo de descobertas para a compreensão do passado. Escrita e Estado estão associados e a função de escriba é, praticamente, uma função oficial. Os governantes e seus aliados burocráticos controlam impostos, leis, quantidades de estoques, contratos e textos religiosos. O mais frequente registro escrito, por exemplo em Ur (Suméria) ou em Palenque (Iucatã), trata de listas de reis e dos seus feitos. A escrita possibilitou o controle sobre as populações. Até hoje colhemos um eco do princípio: o governante letrado é mais bem aceito. Falar ou escrever mal é uma injúria jogada à socapa na face de um poderoso. Getúlio Vargas decidiu que deveria fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Um membro da junta militar de 1969, o paraibano Aurélio de Lira Tavares, teve a mesma ideia. Nada endossa mais a pretensão de poder do que, como dizia Angel Rama, o apoio da “Cidade das Letras”.  

Foto com animação
Yuval Harari, no livro Sapiens, fez a primeira crítica que conheço sobre a sedentarização dos grupos humanos (e as consequentes escrita e Estado). Para o historiador israelense, os bandos de caçadores e coletores eram mais felizes e com dieta mais variada do que os que plantavam cereais à margem de grandes rios, como o Tigre, Nilo ou Yang-Tse. Em tantas décadas de dedicação à história, nunca tinha lido argumentos adversos à transformação técnica da Revolução Neolítica (agricultura) e Urbana. Inconscientemente, meu cérebro desenvolvimentista achava que bronze era melhor do que pedra e o ferro superava os metais mais maleáveis. Marcado por uma provável visão europeia, eu sempre vi o Estado, a escrita, a vida urbana e a domesticação de plantas e animais como um salto humano para o progresso. Harari lembra que o Estado, as pirâmides, os zigurates, a escrita e os vastos campos de arroz foram benéficos à glória de alguns e submissão de muitos. A explosão civilizacional do Egito, por exemplo, foi uma cornucópia fabulosa que jorrou dividendos sobre o faraó e um pequeno grupo. Além da elite nilota, os beneficiados das novas técnicas e dos milhares de artefatos artísticos foram os museus contemporâneos e os historiadores. A glória do Louvre e do Britânico oculta milhões de trabalhadores que entregaram suas vidas para que sacerdotes, faraós e escribas pudessem nos impressionar com sua criatividade e feitos. Grupos nômades ágrafos deixam menos legados materiais. Seriam mais felizes? Harari assevera que sim. 

As complexas escritas ideográficas do Egito e outros lugares foram dando lugar à revolução do alfabeto. Realizamos uma grande exposição em São Paulo (A Escrita da Memória) sobre o salto rumo ao modelo que, no fundo, você e eu aproveitamos até hoje. Conjunto fixo de sinais gráficos com sons associados facilitaram o aprendizado. Não foi à toa que o alfabeto nasceu entre comerciantes fenícios. 

A escrita espraiou-se. Dos suportes originais (estelas, pergaminhos, papiros, tabletes de barro, papel) atingiu todas as superfícies, inclusive a pele humana. Com o despertar da comunicação instantânea das redes, mais a alfabetização crescente no nosso planeta, somos o período da história com mais alfabetizados e com o maior volume de leitura e escrita de todos os tempos. Um jovem de 14 anos passa quase o dia inteiro escrevendo e lendo. Ressurgem, nas telas, as formas semíticas (sem registrar vogais), escritas simbólicas (emojis) e uma comunicação que parece combinar o alfabeto fenício com rebuscamentos de códices maias. Escrita simbólica e fonética, talvez impossível de ser lida em voz alta, mas perfeitamente compreensível para adolescentes. 

O tempo do leitor foi transformado. Todos que escrevemos para o público sabemos a lição surpreendente: se o argumento principal estiver a partir do terceiro parágrafo, não chegará a muitos. Sou testemunha privilegiada do fenômeno. Escrevo crônica contra ditaduras em geral, enumero as clássicas de direita (Pinochet, Geisel, Trujillo) e, depois, dedico um enorme espaço às ditaduras de esquerda (Cuba, Venezuela, Stalin, Mao). Mal o texto sai a público e uma pletora de mensagens inunda minha praia: “Da esquerda você não fala nada, não é seu comuna?”. Problema central? As ditaduras de direita estavam no segundo parágrafo e as de esquerda no quarto. O sábio beneditino que levava meses copiando e ilustrando um delicado manuscrito no silêncio do scriptorium medieval foi substituído pelo leitor polarizado, focado em manchetes, com déficit de atenção e mais rápido em formular insultos do que em capacidade de ler. Talvez Yuval Harari tenha razão, éramos mais felizes arrancando raízes e abatendo capivaras. Nunca tantos seres humanos tiveram a capacidade de ler. Nunca tantos leitores tiveram crescente dificuldade com a interpretação do lido. 

No Louvre, há uma pequena imagem de 53 cm retratando um escriba. Ele está sentado, atento, esperando um ditado que, após anos de treinamento, torna-o apto a transferir ideias complexas para o suporte da escrita. Olho para a imagem sempre que vou a Paris e penso: o que ele diria da nossa sociedade lendo frases sintéticas o dia todo?

domingo, maio 27

Novos tempos

Libros, educacion

Embrulhem e vão buscar

Susa Monteiro
Ando às voltas com um livro dificílimo 
de escrever, chamado “A Outra Margem Do Mar”, tenho quatro capítulos mais ou menos alinhavados depois de não sei quantas versões e ainda não estou contente com elas, ou seja falta-me imenso texto e continuo 
a fazer e a riscar, a fazer e a riscar, a fazer 
e a riscar numa lentidão enervante, passo 
os dias sentado à mesa com isto, não sei 
se vou ser capaz, penso, como os Marines e a Tereza, que se fosse fácil não era para mim de modo que recomeço, e continuo, e teimo e não desisto. E no meio deste penar tenho que interromper uns dois dias por mês a fim de botar cá fora estas prosinhas para a Visão

(logo quatro)

que servem para me complicar o regresso ao romance, que espera aqui na mesa amuado comigo, decidido 
a dar-me cabo da cabeça quando voltar a ele. Se me perguntarem que raio de coisa ando a compor lembro-
-me logo da senhora que falava aos amigos de uma estátua que vira em Itália, alguém quis saber se era equestre, ela pensou no assunto, disse

– Assim assim

e Cocteau achava que nunca ninguém tinha definido tão bem o centauro. Quanto ao livro lá vai avançando em passitos minúsculos, um quarto de página por dia já não é mau, os húngaros têm uma frase engraçada a respeito disto


(“qualquer bocadito acrescenta, declarou o rato, e fez chichi no mar”)

de modo que lá vou caminhando de mijinha em mijinha, na esperança que estas gotas se transformem em ondas, a avançarem e a recuarem 
no papel, como esses velhos sentados nas praças das aldeias a esfregarem as palmas nos joelhos das calças. Estou para aqui a queixar-me mas não trocava este trabalho por nenhum outro: tudo começa, muito devagarinho, a palpitar de vida 
e eu, ao mesmo tempo fora e dentro da página, avanço como posso, a dançar, a dançar. Ainda por cima está sol, vejo as gaivotas na janela, vejo o lado oposto do rio, 
vejo o bico da esferográfica a comer papel, vejo 
as folhas do bloco que se vão enchendo de palavras por enquanto trémulas, inseguras, apoiadas em bengalas de consoantes que vacilam. Que trabalho mais fascinante este, assistir ao nascimento de sei lá o quê que não entendo bem de onde vem, de uma zona minha cheia de trevas mas com um riso de criança lá dentro. Apesar da angústia que traz consigo há não sei quê de divertidamente apaixonante na composição de um livro. Escreve-se numa espécie de estado segundo, a flutuar, tudo é ao mesmo tempo denso e leve, resistente e submisso, impossível e fácil. Era o que faltava que 
me deixasse vencer. A única questão complicada 
é que é perigoso, não existe rede por baixo como têm os trapezistas. Há uma semana ou duas aprendi num livro de filosofia quem inventou a rede para os artistas de circo e fiquei banzo, como vocês vão ficar quando 
eu disser: foi o imperador Marco Aurélio. E esta? 
O imperador Marco Aurélio que tanto admiro. A certa altura informaram-no que dois ginastas tinham morrido ao caírem do trapézio

(já havia trapézios nesse tempo, o que eu nem sonhava)

e Marco Aurélio, comovido, mandou que os artistas passassem a trabalhar com uma rede por baixo, ordenando que lhes acrescentassem colchões na ideia de diminuir ainda mais os riscos. Quando aperfeiçoaram a eficácia das redes os colchões desapareceram. As redes ficaram, claro, até hoje. Desde que aprendi isto penso sempre nele ao começar a escrever: já não corro 
o risco de quebrar a espinha. Há uma obra muito curiosa, chamada The Last Word, um best-seller que é uma seleção dos obituários do New York Times. Não são artigos tristes, são celebrações da vida, da mesma forma que não são sobre pessoas famosas, são sobre as criaturas que quase ninguém conhece e mudaram a nossa vida. Por exemplo o sujeito que inventou que a água sai quente puxando o manípulo para um lado e fria puxando para o outro, ou o senhor que descobriu os pacotinhos de chá, o que inventou o guardanapo, que Leonardo da Vinci aperfeiçoou bastante como aperfeiçoou quase tudo, ou o caramelo que nos deu o nylon e tão combatido foi, ou o deus que trouxe a esferográfica, ou a senhora que concebeu as pipocas, ou seja dúzias e dúzias de anjos desconhecidos, de quem dependemos tanto. E cada obituário, em lugar de cinzento e lamentoso é uma festa de alegria. O miúdo que aos dezassete anos fez o Super Homem. Ou a senhora dos quadradinhos de marmelada. Centenas de sobredotados tratados com respeito, carinho, admiração e humor. Não percebo o motivo de nenhum editor português ter publicado este campeão de vendas. Não querem ficar ricos, os idiotas, ainda por cima com uma obra espantosa, divertida, apaixonante. Preferem o lixo: é lá com eles. Na contracapa tem apreciações críticas excelentes. Uma conhecida romancista americana, por exemplo, diz mais ou menos: “estes obituários são magníficos: mal posso esperar para ler o meu”. Os portugueses são estúpidos, não é? Não merecem, não é? Vão à merda.

Começou o dia

Ellery Adams 

Leitura, hoje, mais um fim

Magy Grasso
Talvez pela multiplicidade de opções de entretenimento, noto que a leitura, ao contrário do tempo no qual me alfabetizei, é considerada mais um fim do que um meio. É como se, tendo aprendido a ler, não precisemos ler nunca mais, a não ser "utilitariamente". Comigo aconteceu diferente. Assim que me vi capaz de ler, aos seis anos, foi como se o mundo inteiro se abrisse para mim. Não havia a facilidade que o grande número atual de bibliotecas oferece, mas pude sair diretamente da cartilha para os livros de aventuras, de piratas, de Tarzan, todos da coleção Terramarear, que eu obtinha trocando-os por certa quantidade de embalagens do Café Jardim. Parece-me que hoje não se tem essa visão, e aprender a ler dá a impressão de ser um processo que se esgota em si mesmo. Aprende-se a ler, não se aprende a ler para. Aos professores, é óbvio, cabe estimular a compreensão de que a leitura, se é um instrumento valioso para se chegar ao universo da internet, é também, como sempre foi, uma via natural para os livros, cada vez mais interessante à medida que eles se tornam crescentemente digitais, com todos os recursos que isso significa.
Raul Drewnick

sábado, maio 26

Dia de passear


A traição das elegantes

"As fotos estão sensacionais, mas algumas das elegantes não souberam posar” – confessou Ibrahim Sued a respeito da reportagem em cores sobre as “Mais Elegantes de 1967” publicada em Manchete.

A verdade é mais grave, e todos a sentem: as “Mais Elegantes” estão às vezes francamente ridículas, às vezes com um ar de boboca e jeca, às vezes simplesmente banais. A culpa não será de Ibrahim, nem do fotógrafo, nem da revista, nem das senhoras; o que aconteceu é misterioso, desagradável, mas completamente indisfarçável: alguém ou, digamos, Algo, Algo com maiúscula, fez uma brincadeira de mau gosto, ou talvez, o que é pior, uma coisa séria e não uma brincadeira; como se fossem as três palavras de advertência que certa mão traçou na parede do salão de festim de Baltazar; apenas não escreveu nas paredes, mas nas próprias figuras humanas, em seus olhos e semblantes, em suas mãos e seus corpos: “Deus contou o dia de teus reinos e lhes marcou o fim; pesado foste na balança, e te faltava peso; dividido será teu reino”.

Oh, não, eu não quero ser o profeta Daniel da Rua do Riachuelo; mas aconteceu alguma coisa, e essas damas que eram para ser como símbolos supremos de elegância e distinção, mitos e sonhos da plebe, Algo as carimbou na testa com o “Manê, Tekel, Farés” da vulgaridade pomposa e fora de tempo. Oh, digamos que escapou apenas uma e que há uma outra que não está assim tão mal. Mas as doze restantes (pois desta vez são catorze) que aura envenenada lhes tirou o encanto, e as deixou ali tão enfeitadas e tão banais, tão pateticamente sem graça, expostas naquelas páginas coloridas como risíveis manequins em uma vitrina de subúrbio?

Que aconteceu? Ninguém pode duvidar da elegância dessas damas, mesmo porque muitas não fazem outra coisa a não ser isto: ser elegantes. Elas são parte do patrimônio emocional e estético da Nação, são respeitadas, admiradas, invejadas, adoradas desde os tempos de “Sombra”; vivem em nichos de altares invisíveis, movem-se em passarelas de supremo prestigio mundano – e subitamente, oh! ai! ui! um misterioso Satanás as precipita no inferno imóvel da paspalhice e do tédio, e as prende ali, com seus sorrisos parados, seus olhos fixos a fitar o nada, estupidamente o nada – quase todas, meu Deus, tão “Shangai”, tão “Shangai” que nos inspiram uma certa vergonha – o Itamarati devia proibir a exportação desse número da revista para que não se riam demasiado de nós lá fora!

Não sou místico; custa-me acreditar que algum Espírito Vingador tenha feito esse milagre contrário. A culpa será talvez da “Revolução”, que tornou os ricos tão seguros de si mesmos, tão insensatos e vitoriosos e ostentadores e fátuos que suas mulheres perderam o desconfiômetro, e elas envolvem os corpos em qualquer pano berrante que melífluos costureiros desenham e dizem – “a moda é isto” – e se postam ali, diante da população cada vez mais pobre, neste país em que mínguam o pão e o remédio, e se suprimem as liberdades – coloridas e funéreas, ajaezadas, e ocas, vazias e duras, sem espírito e sem graça nenhuma.

Há poucos meses, ao aceno de uma revista americana, disputaram-se algumas delas a honra de serem escolhidas, como mocinhas de subúrbio querendo ser “misses”, e no fim apareceram numas fotos de publicidade comercial, prosaicamente usadas como joguetes de gringos espertos. Desta vez é pior: não anunciaram nada a não ser a inanidade de si mesmas tragicamente despojadas de seus feitiços.

Direi que a derrota das “Mais Elegantes” não importa… Importa! As moças pobres e remediadas, a normalista, a filha do coronel do Exército que mora no Grajaú, a funcionaria da coletoria estadual de Miracema, a noiva do eletricista – todas aprenderam a se mirar nessas deusas, a suspirar invejando-as, mas admirando-as; era o charme dessas senhoras, suas festas, suas viagens, suas legendas douradas de luxo que romantizavam a riqueza e o desnível social; eram aves de luxo que enobreciam com sua graça a injustiça fundamental da sociedade burguesa.

Elas tinham o dever de continuar maravilhosas, imarcescíveis, magníficas. É possível que pessoalmente assim continuem; mas houve aquele momento em que um vento escarninho as desfigurou em plebéias enfeitadas, em caricaturas de si mesmas, espaventosas e frias.

Quero frisar que dessas senhoras são poucas as que conheço pessoalmente, e lhes dedico a maior admiração e o mais cuidadoso respeito. Não há, neste caso, nenhuma implicação pessoal. Estou apenas ecoando um sentimento coletivo de pena e desgosto, de embaraço e desilusão: nossas deusas apareceram de súbito a uma luz galhofeira, ingrata e cruel; sentimo-nos traídos, desapontados, constrangidos, desamparados e sem fé.

É duro confessar isto, mas é preciso forrar o coração de dureza, porque não sabemos se tudo isso é o fim de uma era ou o começo de uma nova era mais desolada e difícil de suportar.
Rubem Braga

sexta-feira, maio 25

Tá na hora de malhar!

Esther Aarts

As fadas da França

— Acusado, levante-se! — disse o presidente.

Ocorreu um movimento hediondo no banco dos réus incendiários, e algo informe e tiritante veio apoiar-se contra a barra. Era um feixe de trapos, de buracos, de peças, de cordas, de velhas flores, de velhos penachos; por cima de tudo, um pobre rosto fanado, brunido, enrugado, maltratado, em que a malícia de dois pequenos olhos negros cintilava no meio das rugas, como um lagarto na fenda de um velho muro.

— Como se chama? — perguntaram-lhe.

— Melusina.

— Como disse?…

Ela repetiu gravemente:

— Melusina.

Sob o forte bigode de coronel dos dragões, o presidente teve um sorriso, mas continuou impassível:

— Idade?

— Não sei mais.

— Profissão?

— Eu sou fada!…

De espanto, o auditório, o conselho, o próprio comissário do governo, toda a gente, enfim, soltou uma grande gargalhada. Mas isso não a perturbou absolutamente, e com voz frágil, clara e cheia de trêmulos, que subia alto na sala e planava como uma voz de sonho, a velha retornou:

— Ah! as fadas da França! Onde estão elas? Todas mortas, meus bons senhores. Eu sou a última. Não resta mais nenhuma senão eu… Na verdade, é grande prejuízo, pois a França era bem mais bela quando ainda tinha fadas. Éramos a poesia do país, sua fé, sua candura, sua juventude. Todos os lugares que freqüentávamos — os fundos dos parques cheios de mataréu, as pedras das fontes, as pequenas torres dos velhos castelos, as brumas dos lagos, as grandes planícies pantanosas — recebiam de nossa presença algo de mágico e de imenso. À claridade fantástica das lendas, viam-nos passar um pouco por toda parte, arrastando as saias num raio de luar, ou correndo pelos prados, na extremidade das plantas. Os camponeses nos amavam, nos veneravam.

Nas imaginações ingênuas, nossas frontes coroadas de pérolas, nossas varinhas de condão, nossos bastões encantados, misturavam um pouco de temor à adoração. Nossas fontes, igualmente, permaneciam sempre claras. As charruas se detinham nos caminhos que guardávamos; e como inspirávamos o respeito pelo que era antigo — nós, as mais velhas do mundo — de um a outro extremo da França deixavam-se as florestas crescerem, as pedras se deslocarem por si mesmas.

Mas o século progrediu. As estradas de ferro vieram. Cavaram-se túneis, entulharam-se os lagos, cortaram-se tantas árvores, que bem depressa não sabíamos mais onde nos metermos. Pouco a pouco, os camponeses deixaram de acreditar em nós. À noite, quando batíamos nos postigos, Robin dizia: “É o vento”, e tornava a dormir. As mulheres vinham lavar roupa nos lagos. Desde então tudo se acabou para nós. Como não vivíamos senão da crença popular, perdendo-a, tínhamos perdido tudo. A virtude das nossas varas de condão esvaiu-se, e, de poderosas rainhas que éramos, transformamo-nos em velhas mulheres, enrugadas, malvadas como fadas esquecidas; com o pão para ganhar e mãos que não sabiam fazer nada, além disso.

Durante algum tempo, éramos encontradas nas florestas, arrastando cargas de lenha seca ou amontoando espigas à beira das estradas. Mas os florestais eram duros para nós, os camponeses nos atiravam pedras. Então, como os pobres que não encontram mais no que ganhar a vida na região, fomos procurar trabalho nas grandes cidades.

Algumas entraram nas fiações. Outras venderam maçãs de inverno, à entrada das pontes, ou objetos religiosos nas portas das igrejas. Empurrávamos diante de nós carrocinhas de laranjas, estendíamos aos passantes ramalhetes de um níquel, que ninguém queria, e os pequenos zombavam de nossos queixos trêmulos, e os sargentos da cidade nos faziam correr, e os ônibus nos atropelavam. Depois a doença, as privações, um lençol de hospital sobre a cabeça… E eis aí como a França deixou todas as suas fadas morrerem. Ela tem sido bem punida por isso!

Sim, sim! Riam, meus caros. Não obstante, acabamos de ver no que se torna um país que não tem mais fadas. Vimos todos esses camponeses gananciosos e sorridentes abrirem suas caixas de pão aos prussianos e lhes indicarem as estradas. Aí está! Robin não acreditava mais nos sortilégios; mas também não acreditava mais na pátria… Ah! se houvéssemos estado ali, nós outras, de todos esses alemães que entraram em França não sairia um vivo. Nossos duendes, nossos feios diabinhos os teriam conduzido pelos caminhos que se afundam na terra. Em todas as fontes puras que levavam nossos nomes, teríamos misturado beberagens encantadas que os teriam enlouquecido; e, em nossas reuniões, ao luar, com uma palavra mágica, teríamos confundido de tal forma as estradas, os rios, e entrançado tão bem espinhos, sarças, carrascais — essas partes baixas do bosque, onde eles iam sempre enroscar-se — que os olhinhos de gato do Sr. de Moltke não poderiam jamais reconhecê-los.

Conosco os camponeses teriam marchado. Grandes flores dos nossos lagos nos teriam dado bálsamo para os ferimentos, os fios da Virgem nos teriam servido de pensos; e, nos campos de batalha, o soldado, ao morrer, teria visto a fada do seu cantão inclinar-se sobre seus olhos semifechados, para lhe mostrar um canto de bosque, um trecho de estrada, alguma coisa que lhe lembrasse a terra natal. É com isto que se faz a guerra nacional, a guerra santa. Mas, ai de nós! Nos países que já não crêem, nos países que já não têm fadas, essa guerra não é mais possível.

Aqui a frágil voz delicada interrompeu-se por um momento, e o presidente tomou a palavra:

— Tudo isto não nos diz o que fazia a senhora com o petróleo encontrado em seu poder, quando os soldados a detiveram.

— Eu queimava Paris, meu bom senhor — respondeu a velha, muito tranqüilamente. — Eu incendiava Paris, porque a odeio, porque ela se ri de tudo, porque foi ela que nos matou. Foi Paris que enviou sábios para analisarem nossas belas fontes miraculosas, e dizerem exatamente o que entrava de ferro e de enxofre na sua composição. Paris zombou de nós nos teatros. Nossos encantamentos se tornaram truques; nossos milagres, divertimentos; e viram-se tantas caras abjetas ostentarem nossos vestidos cor-de-rosa, nossos carros alados, em meio ao luar e aos fogos de Bengala, que ninguém mais pensa em nós sem rir… Havia pequerruchos que nos conheciam pelos nomes, que nos amavam e nos temiam um pouco.

Mas, em lugar dos belos livros, enfeitados de ouro e de figuras, onde aprendiam nossa história, Paris agora lhes põe nas mãos a ciência ao alcance das crianças, grossos alfarrábios, de onde o aborrecimento remonta como poeira cinzenta e apaga nos pequeninos olhos os palácios encantados e os espelhos mágicos… Oh! sim, estou contente de os ver queimar, vossa Paris… Era eu que enchia as caixas dos incendiários, e eu própria que os conduzia aos lugares adequados: “Vão, meus filhos, queimem tudo, queimem, queimem…”

— Decididamente, essa velha é louca — disse o presidente. — Podem levá-la.

Alphonse Daudet

Sempre alerta e operante


O pior time do mundo

Cafuringa Futebol Clube. Da cidade de Pilão Danado. Só interessava perder. Perder, perder, perder. Ganhar nem pensar. O pior time do mundo. Encontrasse um time pior, estivesse ganhando o jogo por um a zero, os defensores dessem um jeito, antes que o juiz trilasse o apito final. Fizesse logo dois pênaltis, um atrás do outro, a derrota não escapasse ao apagar das luzes. Torcedores iam ao delírio. Foguetes pipocavam. Gritos e gritos e gritos. Ê-Ô, Ê-Ô, Cafuringa é Perdedor! Ê-Ô, Cafuringa é perdedor.

O grito de guerra ecoava no estádio.

Costumava perder de goleada. Dez a zero a última, o auge da emoção, torcedores choravam, abraçavam-se. Noticiário com manchete empolgante na mídia. Plantão de notícia. A TV estampava. Mais Uma Derrota do Pior Time do Mundo. De goleada: treze a zero. O Cafuringa Futebol Clube não deu trégua ao Arempepe Esporte Clube, um que gostava também de perder, mas nem tanto como o rival.

O pior em campo: Gol-Contra. Zagueiro especializado em fazer gol contra. Na goleada última fez três. Um de cabeça, outro de bicicleta, o terceiro de bicuda, furou a rede..

Era a glória. Não cansava das derrotas. Não tinha jeito. Nasceu para perder, até a última gota de sangue.

Pergunta do repórter ao atacante Zé Velho:

– Vai acabar hoje a série centenária de derrotas contra o Pedrada Futebol Clube?

Sem hesitar, resposta contundente:

– Perder, perder, perder, uma vez perder, perder até morrer.

Bandeiras desfraldadas. Retrato dos ídolos tremulando. De arrepiar. Furão, Perna de Pau, Pereba, Azavesso, Frangueiro, Bola Murcha, Chulé. Os mais ovacionados. Ídolos sem igual. A foto na camisa do torcedor, rosto sorridente do craque Azavesso, desdentado, cabeludo. No álbum de figurinhas, disputado a peso de ouro pelos colecionadores.

Novos jogadores. O time rejuvenescido. Ganhou de repente por um a zero, a zebra aconteceu contra o Bagunça Futebol e Regatas. Ganhou outra, a terceira seguida. Não era possível! Meu Deus, tem pena da gente, o presidente suplicou, as mãos rogando para o céu. Demitido o técnico.

Os torcedores inflamados, sonoro protesto, passeata aos gritos. Desaprovação geral no estádio. De-Canela, ex-astro do time, hoje chefe da torcida organizada, chegou a queimar a camisa do time.

O time entrando no gramado, apupos, xingamentos, ameaças. Um horror! Segundo turno, ocupava o primeiro lugar. Podia ser campeão. Aberração, Calamidade. Tragédia.

Até que retomou o rumo certo. Melhor dizendo, o errado, o costumeiro. Voltou a perder, uma partida atrás da outra, engordando o famoso vicio. E o refrão voltou a ecoar no estádio: “Eê! Ê! Ê! Perder Pra valer! Quem quiser venha ver!” Abraços, choro incontido. Fogos de artifício, foguetes, berros, histerismo.

O pior time do mundo na manchete. Com o seu trio de atacantes inesquecível: Mudo, Zoinho e Surdo. Ovação geral do torcedor empolgado. Convicto. Eternamente.

Cyro de Mattos

quinta-feira, maio 24

Siga o fluxo

Helena Perez Garcia

O que roubam os inocentes

No segundo volume de suas memórias, Pedro Nava, atônito e entre parênteses, perguntava a seus leitores: “(onde estão os frutos d’antanho?)”. Ele se referia a uvaias, jambos, abius, jenipapos e sapotis. Admito não conhecer essas frutas, ao menos no sentido bíblico, mas compreendo a perplexidade do autor, abandonado pelos perfumes e sabores de sua infância. Também sinto as minhas faltas, e uma delas, nem sei se original, me impele a atualizar a dúvida de Nava, transplantando-a do campo memorialístico para o brejo policialesco, bem menos fértil. Que fim, pergunto eu, levaram os ladrões de frutas?

Não faz muito tempo, o pomar ainda era uma espécie de território sagrado, uma posse que precisava ser mantida em estrita e respeitosa vigilância. Dia sim, dia não, e não raro à noite, o lugar podia ser invadido por bandos de meninos vadios, de grande fibra e péssimas intenções. Lá em casa, meu pai dava o alarme e corríamos expulsar os intrusos, feito dois macacos suicidas. Eram guerras teatrais, travadas com inimigos mais de fantasia que de sangue. Garanto, aliás, que jamais enfrentamos qualquer resistência. Surpreendidos, os ladrões fugiam aos pulos, só revidando a distância, com mímicas inócuas, simiescas, e meia dúzia de palavrões recém-aprendidos.

Nossa preocupação, é bom que se diga, nem era com a perda das frutas. Defendíamos a integridade das plantas. Porque os saqueadores não as poupavam. Aqueles eram ataques empreendidos sem amor, furtos de paixão, isso sim, movimentos de afronta e gula em que as únicas vítimas eram as árvores e alguns bichos.

Nossas pereiras, ameixeiras ou jabuticabeiras, escaladas sem perícia ou feridas a vara, sempre acabavam com um galho a menos, o caule comprometido, e um ou outro ninho de pardal despejado pelo chão, em meio à fermentação rasteira dos frutos maduros demais, bicados de passarinho.

Em termos quantitativos, a safra só era importante porque, quando farta, podia ser repartida entre um número maior de visitas. Amigos, parentes, vizinhos, todos ganhavam o seu farnel, mesmo que não o merecessem. Um costume que permanece vivo. Nos terminais de ônibus de Curitiba, nas estações-tubo ou na Praça Rui Barbosa, reparem: aos domingos, ainda é relativamente fácil encontrar gente carregando, em sacolas plásticas, as mimosas colhidas no quintal de suas mães, sogras e avós. No outono, este é um de nossos principais suprimentos afetivos, uma provisão de reminiscências doces e domésticas contra a amargura dos dias da semana, a vida adulta levada em apartamentos sem jardins, vilas ou ruas pavimentadas, sem terra que possamos penetrar.

Vale lembrar que nossos primeiros pais foram ladrões de frutas. Descendemos de uma longa linhagem de pobres bandidos, tão famintos quanto ingênuos e românticos. E por isso volto aqui ao Pedro Nava, que citei tão apressadamente lá no começo desta crônica. Criança, ao percorrer a chácara de sua avó materna, Inhá Luísa, atrás de “frutas proibidas”, Nava dizia se sentir como certo “príncipe perdido na floresta paradisíaca”. Um nobre aventureiro em busca da própria perdição.

Mas quem, afinal, entre nós, ainda rouba frutas? Nunca mais ouvi meus pais se queixarem da ação daqueles ladrõezinhos. Suas árvores crescem em paz e os sabiás solfejam, dizendo amém. Os transgressores infantis decerto não veem mais graça nas esferas multicoloridas que pendem, cheirosas, sobre os seus bonés; nelas, não restou qualquer curva que os atraia. Viraram tentação morta, um código cuja chave de decifração se perdeu. Mesmo assim, eu me pergunto: se não se roubam mais pitangas, o que é que roubam, hoje, os inocentes?

Boia de salvação

Assim começa o livro....

Caro Zuckerman,

No passado, como você sabe, os fatos não foram mais que anotações num caderno, meu aprendizado em matéria de ficção. Para mim, como para a maioria dos romancistas, todos os eventos genuinamente imaginativos têm origem lá, nos fatos, em coisas concretas e não ideológicas ou abstratas. No entanto, para minha surpresa, parece que agora comecei a escrever um livro realmente de trás para a frente, pegando aquilo que já imaginei e, por assim dizer, desidratando‑o a fim de restaurar minha experiência original, a realidade pré‑ficcional. Por quê? Será para provar que há um abismo significativo entre o escritor autobiográfico que dizem que sou e o escritor autobiográfico que de fato sou? Para provar que a informação que colhi da minha vida era incompleta na ficção? Se isso fosse tudo, não creio que teria me dado ao trabalho, uma vez que leitores argutos, caso tivessem interesse suficiente, seriam capazes de compreendê‑lo por conta própria. Nem ninguém encomendou este livro ou pediu uma autobiografia de Roth. A encomenda, se houve, foi feita trinta anos antes, quando certos líderes de minha comunidade judaica desejaram saber quem era o tal garoto que escrevia aquelas coisas.

Não, o impulso parece ter tido origem em outras necessidades e, ao lhe enviar este manuscrito — pedindo que me diga se acha que devo publicá‑lo —, cumpre explicar o que me terá levado a apresentar‑me assim sem disfarce. Até hoje sempre utilizei o passado como base para uma transfiguração, entre outras coisas como uma espécie de intrincada explicação de meu mundo para mim mesmo. Por que me expor sem transfigurações diante das pessoas, quando em geral, no mundo imaginário, me abstive de divulgar sem disfarces minha vida íntima perante uma audiência séria ou de me tornar uma personalidade midiática? No pêndulo da autoexibição, que oscila entre o agressivo exibicionismo de Mailer e o retraimento radical de Salinger, ocupo uma posição intermediária, tentando resistir, na arena pública, à curiosidade ou ao pavoneamento gratuitos sem fazer do sigilo e da reclusão algo sagrado demais. Sendo assim, por que decidir pela visibilidade biográfica agora, especialmente quando fui treinado para crer que a realidade independente da ficção é tudo que existe de importante e que os escritores deveriam se manter na sombra?

Bem, em primeiro lugar, a pessoa que pretendi tornar visível neste momento foi, sobretudo, eu mesmo. Depois dos cinquenta, precisamos encontrar meios de nos tornar visíveis a nós mesmos. Chega uma hora, como aconteceu comigo há alguns meses, em que me vi de repente num estado de absoluta confusão, sem entender o que antes era óbvio para mim: por que faço o que faço, por que moro onde moro, por que compartilho minha vida com a pessoa que vive comigo? Minha escrivaninha se tornou um lugar estranho, assustador, e, ao contrário de outros momentos similares em que velhas estratégias deixaram de funcionar — seja pelos problemas práticos do cotidiano que todos enfrentamos, seja pelas dificuldades inerentes ao ofício de escritor, e eu estava engajado ativamente num caminho de renovação —, fui levado a crer que não teria condições de me reconstruir mais uma vez. Não apenas me senti incapaz de me reconstruir, mas senti como se estivesse me desfazendo.

quarta-feira, maio 23

Dica de passeio com segurança

Edimburgo (Escócia)

Dois bilhetes

Na grande sala de leitura da biblioteca da Universidade de Salzburgo, o bibliotecário enforcou-se no enorme lustre porque de súbito, como deixou escrito num bilhete, depois de vinte e dois anos de serviço não aguentava mais ordenar e emprestar livros que só haviam sido escritos para causar desgraça, com o que ele se referia a todos os livros já escritos. Isso lembrou-me o irmão de meu avô, que era guarda-florestal em Altentann, perto de Henndorf, e se matou com um tiro no topo de Zifankej por não poder mais suportar a infelicidade humana. Também ele deixou essa sua constatação registrada num bilhete.
Thomas Bernhard, "O imitador de vozes"

Mágica pela manhã


Intelectuais

Woody Allen & Romy Schneider
Conheceram-se numa tarde, na sala de leitura de uma biblioteca - ele atrás de substanciosas literaturas, ela em busca de excelsas filosofias. Conversaram muito nesse dia, embora a ele não encantassem os Kants e Kierkegaards dela e a ela não dissessem nada os Flauberts e Nabokovs dele. O diálogo foi, por isso, como a leitura de uma peça em que cada um dos atores, educado, espera acabar a fala do outro para entrar. A situação mudou no terceiro dia, depois que ele notou como os lábios dela se umedeciam convidativamente quando pronunciavam expressões como causas primeiras e imperativo categórico. A conversa teve jeito de conversa nesse dia e também no seguinte, quando ela, embora fosse uma tarde fria, apareceu com uma minissaia. A partir daí, os dois esqueceram um pouco as normas de construção de um texto literário e os cânones da filosofia. Tudo caminhou bem, até o dia em que ela, dizendo ter lido um livro de Dostoiévski, comentou que o achara fraquinho. Ele, para revidar, embora nunca tivesse lido um trecho sequer de Sartre, proclamou a opinião de um amigo anti-existencialista: a de que Sartre não era nem filósofo nem escritor. Depois desse incidente, analisando bem tudo, ele já não achava tão soberbos os lábios nem as pernas dela, grossas demais para os refinamentos exigidos pela filosofia. Continuaram frequentando a biblioteca, cada um agora em uma mesa, e foram infelizes para sempre, como costumam ser os que se deixam seduzir ou pela vã literatura ou pela árida filosofia.
Raul Drewnick

terça-feira, maio 22

A palavra dá solução


Não ameis a distância

Em uma cidade há um milhão e meio de pessoas, em outra há outros milhões; e as cidades são tão longe uma da outra que nesta é verão quando naquela é inverno. Em cada uma dessas cidades há uma pessoa, e essas pessoas tão distantes acaso pensareis que podem cultivar em segredo, como plantinha de estufa, um amor a distância?

Andam em ruas tão diferentes e passam o dia falando línguas diversas; cada uma tem em torno de si uma presença constante e inumerável de olhos, vozes, notícias. Não se telefonam mais; é tão caro e demorado e tão ruim e além disso, que se diriam? Escrevem-se. Mas uma carta leva dias para chegar; ainda que venha vibrando, cálida, cheia de sentimento, quem sabe se no momento em que é lida já não poderia ter sido escrita? A carta não diz o que a outra pessoa está sentindo, diz o que sentiu a semana passada... e as semanas passam de maneira assustadora os domingos se precipitam mal começam as noites de sábado, as segundas retornam com veemência gritando - "outra semana!" e as quartas já tem um gosto de sexta, e o abril de de-já-hoje é mudado em agosto...

F.B. Serger
Sim, há uma frase na carta cheia de calor, cheia de luz; mas a vida presente é traiçoeira e os astrônomos não dizem que muitas vez ficamos como patetas a ver uma linda estrela jurando pela sua existência - e no entanto há séculos ela se apagou na escuridão do caos, sua luz é que custou a fazer a viagem? Direis que não importa a estrela em si mesma, e sim a luz que ela nos manda; e eu vos direi: amai para entendê-las!

Ao que ama o que lhe importa não é a luz nem o som, é a própria pessoa amada mesma, o seu vero cabelo, e o vero pelo, o osso de seu joelho, sua terna e úmida presença carnal, o imediato calor; é o de hoje, o agora, o aqui - e isso não há.

Então a outra pessoa vira retratinho no bolso, borboleta perdida no ar, brisa que a testa recebe na esquina, tudo o que for eco, sombra, imagem, um pequeno fantasma, e nada mais. E a vida de todo dia vai gastando insensivelmente a outra pessoa, hoje lhe tira um modesto fio de cabelo, amanhã apenas passa a unha de leve fazendo um traço branco na sua coxa queimada pelo sol, de súbito a outra pessoa entra em fading um sábado inteiro, está-se gastando, perdendo seu poder emissor a distância.

Cuidai amar uma pessoa, e ao fim vosso amor é um maço de cartas e fotografias no fundo de uma gaveta que se abre cada vez menos...

Não ameis a distância, não ameis, não ameis!

Rubem Braga

Momento de paz

 Aeppol

Intimidade

Para mim esta é a melhor hora do dia — Ema disse, voltando do quarto dos meninos. — Com as crianças na cama, a casa fica tão sossegada.

— Só que já é noite — a amiga corrigiu, sem tirar os olhos da revista.

Ema agachou-se para recolher o quebra-cabeça esparramado pelo chão.

— É força de expressão, sua boba. O dia acaba quando eu vou dormir, isto é, o dia tem vinte e quatro horas e a semana tem sete dias, não está certo? — descobriu um sapato sob a poltrona. Pegou-o e, quase deitada no tapete, procurou o par embaixo dos outros móveis. — Não sei por que a empregada não reúne essas coisas antes de ir se deitar — empilhou os objetos no degrau da escada. — Afinal, é paga para isso, não acha?

— Às vezes é útil a gente fechar os olhos e fingir que não está notando os defeitos. Ela é boa babá, o que é mais importante.

Ema concordou. Era bom ter uma amiga tão experiente. Nem precisa ser da mesma idade — deixou-se cair no sofá — Bárbara, muito mais sábia. Examinou-a a ler: uma linha de luz dourada valorizava o perfil privilegiado. As duas eram tão inseparáveis quanto seus maridos, colegas de escritório. Até ter filhos juntas conseguiram, acreditasse quem quisesse. Tão gostoso, ambas no hospital. A semelhança física teria contribuído para o perfeito entendimento? "Imaginava que fossem irmãs", muitos diziam, o que sempre causava satisfação.

— O que está se passando nessa cabecinha? — Bárbara estranhou a amiga, só doente pararia quieta. Admirou-a: os cabelos soltos, caídos no rosto, escondiam os olhos cinza, azuis ou verdes, conforme o reflexo da roupa. De que cor estariam hoje? — inclinou-se — estão cinza.

Ema aprumou o corpo.

— Pensava que se nós morássemos numa casa grande, vocês e nós... Bárbara sorriu. Também ela uma vez tivera a idéia — pegou o isqueiro e acendeu dois cigarros, dando um a Ema, que agradeceu com o gesto habitual: aproximou o dedo indicador dos lábios e soltou um beijo no ar.

— As crianças brigariam o tempo todo.

Novamente a amiga tinha razão. Os filhos não se suportavam, discutiam por qualquer motivo, ciúme doentio de tudo. O que sombreava o relacionamento dos casais.

— Pelo menos podíamos morar mais perto, então.

Ema terminava o cigarro, que preguiça. Se o marido estivesse em casa seria obrigada a assistir à televisão, porque ele mal chegava, ia ligando o aparelho, ainda que soubesse que ela detestava sentar que nem múmia diante do aparelho — levantou-se, repelindo a lembrança. Preparou uma jarra de limonada. Por que todo aquele interesse de Bárbara na revista? Reformulou a pergunta em voz alta.

— Nada em especial. Uma pesquisa sobre o comportamento das crianças na escola, de como se modificam as personalidades longe dos pais.

No momento em que Ema depositava o refresco na mesa, ouviu-se um estalo.

— Porcaria, meu sutiã arrebentou.

— A alça?

— Deve ter sido o fecho — ergueu a blusa — veja.

Bárbara fez várias tentativas para fechá-lo.

— Não dá, quebrou pra valer.

Ema serviu a limonada. Depois, passou a mão pelo busto.

— Você acha que eu tenho seio demais?
— Claro que não. Os meus são maiores...

— Está brincando — Ema sorriu e bebeu o suco em goles curtos, ininterruptos.

— Duvida? Pode medir...

— De sutiã não vale — argumentou. — Vamos lá em cima. A gente se despe e compara — aproveitou a subida para recolher a desordem empilhada. Fazia questão de manter a casa impecável. Bárbara pensou que a amiga talvez tivesse um pouco de neurose com arrumação.

Ema acendeu a luz do quarto.

— Comprou lençóis novos?

— Mamãe mandou de presente. Chegaram ontem. Esqueci de contar. Não são lindos?

— São.

— A velha tem gosto — Ema disse, enquanto se despia em frente ao espelho. Bárbara imitou-a.

É muito bonita — Ema reconheceu. Cintura fina, pele sedosa, busto rosado e um dorso infantil. Porém, ela não perdia em atributos, igualmente favorecida pela sorte. Louras e esguias, seriam modelos fotográficos, o que entendessem, em se tratando de usar o corpo — não é, Bárbara?

— Decididamente perdi o campeonato. Em matéria de tamanho os seus seios são maiores do que os meus — a outra admitiu, confrontando.

Carinhosa, Ema acariciou as costas da amiga, que sentiu um arrepio.

— O que não significa nada, de acordo? — deu-lhe um beijo.

— Credo, Ema, suas mãos estão geladas e com este calor...

— É má circulação.

— Coitadinha — Bárbara esfregou-as vigorosamente. — Você precisa fazer massagens e exercícios, assim — abria e fechava os dedos, esticando e contraindo na palma. — Experimente.

Eram tão raros os instantes de intimidade e tão bons. Conversaram sobre as crianças, os maridos, os filmes da semana. Davam-se maravilhosamente — Bárbara suspirou e se dirigiu à janela: viu telhados escuros e misteriosos. Ela adoraria ser invisível para entrar em todas as casas e devassar aquelas vidas estranhas. Costumava diminuir a marcha do carro nos pontos de ônibus e tentar adivinhar segredos nos rostos vagos das filas. Isso acontecia nos seus dias de tristeza. Alguma coisa em algum lugar, que ela nem suspeitava o que fosse, provocava nela uma sensação de tristeza inexplicável. Igual à que sente agora. Uma tristeza delicada, de quem está de luto. Por quê?

— Que horas são? — Ema escovava o cabelo.

— Imagine, onze horas. Tenho que sair correndo.

— Que pena. Não sei por que fui pensar em hora. Fique mais um pouco.

— É tarde, Ema. Tchau. Não precisa descer.

— Ora, Bárbara... deixa disso — levou a amiga até o portão.

— Boa noite, querida. Durma bem.

— Até amanhã.

Ema examinou atentamente a sala, a conferir, pela última vez, a arrumação geral. Reparou na bandeja esquecida sobre a mesa, mas não se incomodou. Queria um minutinho de... ela apreciava tanto a casa prestes a adormecer — apagou as luzes. A noite estava clara, cor de madrugada pensou, sentando no sofá. Um sentimento de liberdade interior brotava naquele silêncio. Um sentimento místico, meio alvoroçado, de alguém que, de repente, descobrisse que sabe voar. Por quê?

Edla van Steen

segunda-feira, maio 21

Viajante

Anne Soline

Projeto Bibliochila: interação família e leitura!

'Bibliodiário'
O Projeto Bibliochila, desenvolvido pela Biblioteca Pe. Moreau para as turmas do Jardim II e Pré da Educação Infantil do Santa Maria, tem obtido ótimos resultados e alcançado, além dos alunos, suas respectivas famílias. O projeto consiste no empréstimo de uma mochila personalizada que contém um livro de histórias, um caderno de registros – chamado de Bibliodiário – e alguns itens para que a criança reproduza a história, como fantasia, fantoche, bichinho de pelúcia e instrumento reciclado.

A cada aula de biblioteca, um aluno é sorteado para levar a mochila para casa. O objetivo é realizar a leitura do livro junto à família, utilizando os objetos enviados e registrar sua opinião sobre a história através de escrita, desenho, colagem, foto ou o que a imaginação permitir. Depois, cada aluno apresenta seu registro aos colegas em sala, responde às perguntas sobre o livro e compartilha como foi a visita da Bibliochila em sua casa.

O projeto proporciona aos pais e filhos uma boa experiência de contação de história, estimula a criatividade do aluno, desperta o hábito da leitura e reúne a família, possibilitando o diálogo, a troca, a interação e a união entre seus membros.

Os registros feitos no Bibliodiário são de uma riqueza imensa, através deles percebem-se quais as atividades que o projeto proporcionou em casa, como encenação da história, criação de novas histórias, passeios em família com a presença da Bibliochila, roda de leitura, brincadeiras, entre outras. Acreditamos que a leitura realizada em parceria com a família estreita os laços afetivos da criança com o objeto livro.

Comece bem a semana


O rio

O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.

O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.

Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:

- Vou dizer ao velho!

Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de vida.

José Lins do Rego