quarta-feira, junho 30

Viajando

 


A ave estranha

Um dia em que o azul do ar transluzia e os seus delgados filetes paralelos vibravam como cordas de violino, ao reino dos Perus, sem que se soubesse donde, chegou uma ave estranha.

Era alta e garbosa, leve e esguia. Vinha envolvida numa doida atmosfera de rubro, de miragem dourada. A doce curva de seu pescoço tomava os mais elegantes ímpetos para atingir o céu distante. Rebrilhavam as suas penas nos matizes mais variados e imprevistos; ora, a turquesa das alturas vivia-lhe na

plumagem; ora, a esmeralda do mar serpenteava pelo seu dorso; por toda ela, aqui, ali, pintas, olhos, cruzes, estrelas de safiras, ágatas, de topázios e rubis cuiscavam.

Foi grande a surpresa no domínio do Perus. Cada qual, não saindo do círculo de giz em que desde tempos imemoriais se haviam metido, ergueu a cabeça hedionda.

Oh espanto! Oh terror! A ave não se parecia com eles.

Não tinha as penas negras de brilho esverdinhado; movia-se em todos os sentidos; os traços de giz não suspendiam seus passos. Mal pousou em terra, familiarmente, como se de há muito conhecesse o hábito, pôs-se a falar, a comentar, com liberdade, com segurança. Não tinha medo nem das palavras, nem das ideias, nem dos outros perus, os maiores, que eles diziam existir poderosos.

Era tolerante: sabia a grande variabilidade das coisas, a maneira diversa que cada qual pode compreendê-las.

Mas os perus não se podiam capacitar que o mesmo objeto visto por duas pessoas desperte dois modos de ver diferentes.

Para eles toda árvore era verde, todo verde era um só, isso nascia da reflexão da sua natureza íntima.

Todos eram iguais, do mesmo povo, com a mesma voz, com mesmos gostos; as diferenças que, porventura, se lhes pudesse dar o nascimento os anos lhes tiraram.

Sabiam escrever, mas só de um modo, sabiam pensar, mas só de um modo, não admitiam a dúvida.

Era certo o que diziam, era exato o que representavam. Paravam nas palavras, não iam ao pensamento.

E a letra? Ah! A letra!

Quem tinha letra bonita, escrevia as verdades; e na letra bonita estava o imperativo categórico.

O mundo era rígido, para eles, igual, medido, não tinha diferenças, não tinha nuances, era uma curva abominável. O mundo, já lá dizia o filósofo, é a ilusão do nosso entendimento.

O espanto foi contido e com falsas vozes de amigo, os perus indagaram:

— Donde vens?

— De longe. Atravessei mares, lagos, rios e minhas asas por vezes roçaram na cabeleira verdoenga das florestas. Vi o azul fosforescente do mar dos trópicos, as adustas areias da Ásia, a gama de fogo do Chibuazo, do Cotopaxi. Vi pagodes, cubatas, palácios. Os boulevards de Paris, os jardins de Sandes e as nascentes do Nilo encantaram alternativamente meus olhos. Raças, povos, famílias, de cores e de sangue mais vários amei.
Lima Barreto

Começa o dia

 


Um dia você aprende

Um dia você aprende que deve obedecer. Um dia você aprende que não pode ter tudo o que quer, que gente que tem orgulho próprio é chato e que se deve ser solidário. Que você não deve confiar em ninguém, que deve ‘fazer o bem sem olhar a quem’

Um dia você aprende que deve obedecer. Um dia você aprende que não pode ter tudo o que quer, que gente que tem orgulho próprio é chato e que se deve ser solidário. Que você não deve confiar em ninguém, que deve ‘fazer o bem sem olhar a quem’, que, se for menino, não chora e que, se for menina, deve se preservar. Você vê que a vida é só uma e que deve aproveitá-la.

Você aprende que deve-se pensar duas vezes antes de tomar qualquer atitude. Você aprende que deve aprender com seus erros e aprende que raramente aprende com seus erros. Você aprende a se contradizer, você aprende a mudar de ideia, você aprende a se calar, você aprende a aceitar. Aprende que deve lutar pelos seus ideais. Aprende que deve sonhar e que deve ter os pés no chão.

Você percebe que quem imita os outros não tem personalidade e que quem é autêntico é esquisito e excluído. Você aprende que as pessoas podem ser muito cruéis. Que as pessoas podem dar tudo de si mesmas para ajudar. Você aprende que sentir ciúmes é ruim. Você aprende que quem não sente ciúmes é desleixado.

Aprende que não deve se preocupar muito com as coisas. Aprende que não deve deixar a vida correr solta. Que o maior tesouro são os amigos e que você perde os amigos. E ao perder, ainda jogam na sua cara que não era uma amizade verdadeira. Que os outros te julgam e que você não deve julgar ninguém. Que deve-se olhar além das aparências. Que as pessoas te julgam pelo que você aparenta. Que dinheiro importa. Que amor acaba. Que amor verdadeiro não acaba. Que não existe amor verdadeiro. Que dinheiro não trás felicidade.

Aprende que quanto mais você se esforça, mais insuficiente parece ser. E que não se deve desistir dos sonhos. Também, que se deve desistir de coisas que não se consegue depois de tentar muito. Aprende que a vida é curta. Aprende que você ainda tem a vida toda pela frente. Aprende que há burrices como preconceito e discriminação. Aprende que sente preconceito. Aprende que julga os outros e aprende que se deve aprender a tratar as pessoas igualmente. Aprende que as pessoas não são iguais. Aprende que somos iguais. E que alguns são mais iguais que os outros.

Aprende que não pode errar e que não se acerta sempre. Aprende que cantar faz bem. Aprende que pode-se ser altamente repreendido por cantar. Aprende que dançar é bom e que as pessoas podem te repreender por dançar. Aprende que as pessoas te magoam sem nem precisarem de um motivo. E que podem fazer comentários como se você não se importasse com aquilo.

Aprende que quando a pessoa é fora dos padrões ela se sente ofendida quando lhe falam isso. Aprende que as pessoas são fora dos padrões e fingem não se importar. Que fazer piadas é legal e que é melhor fazê-las do que manter a amizade. E que quem não aceita as piadas são tolos. Que a sinceridade é utópica e desnecessária. Que sinceridade é tudo. Que confiança se perde fácil.

Aprende que por mais que tente o contrário, um dia vai magoar alguém. Aprende que com conversas tudo se resolve. Aprende que tem gente que não sabe conversar e que nessas conversas, as palavras podem funcionar como armas.

Aprende que de repente as palavras podem significar nada, algo muito importante ou várias coisas. Aprende que alguns momentos são inúteis… e que outros, que parecem ser tão simples, mudam tudo.
No fim, você aprende que tudo o que você aprende chega a um belo resultado: aporia.
 Mário Quintana

terça-feira, junho 29

Sinalize

 


Sobre as palavras

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.


Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Cecília Meireles

Esportistas

 

Fabián Rivas

O testamento do Tio Pedro

À beira da estrada, batida do sol e da chuva, exposta ao granizo, sem árvores em torno, sem uma horta, sem um jardim, isolada na planície limpa, quase árida, ficava a choupana do tio Pedro. Ladino, indolente e supersticioso, o velho possuía apenas essa palhoça, uma vaca, que a mulher ordenhava nos felizes dias de cria, e um cão leproso, que latia muito à lua mas que não mordia. Nada mais.

De que vivia o casal? De uma chaga que o tio Pedro tinha na perna e que alimentava, mantendo-a sempre aberta, roxa e pustulosa, com o suco irritante de ervas cáusticas. Quatro farrapos em torno, a perna exposta à porta, mostrando aos transeuntes a nojenta úlcera coberta de pus e de moscas, e eis a fonte de renda que dava a pitança ao casal. De resto, uma velha carabina auxiliava a caridade pública, fornecendo para os dias de festa pratos saborosos de caça do campo. O podengo mantinha-se à custa do próprio esforço, perseguindo o tatu na planície e mendigando ossos, aqui e ali, nas herdades da vizinhança. Quanto à vaca, tinha sempre na frente do seu estômago a vasta extensão da campina onde retouçava o broto tenro da barba de bode.

A chaga do tio Pedro, começara pequenina e insignificante. Um dia, ao saltar uma cerca, um espinho entrara-lhe na perna esquerda, um pouco acima do tornozelo. Tio Pedro sentiu a dor mas não fez caso. No dia seguinte, a perna estava vermelha, bastante quente e inflamada e todavia no lugar onde entrara o espinho só havia um ponto escuro, um pequenino ponto azulado que lembrava a picada de um alfinete.

Depois, esse ponto começou a purgar e a engrandecer, mas o calor passara. Volvido um mês, o ponto escuro já tinha o diâmetro de uma moeda de níquel de 100 réis, mas apresentava indícios de querer cicatrizar. Foi quando a mulher do tio Pedro uma velhinha encarquilhada, mais ladina ainda que o marido — atentando no tamanho da chaga que lembrava o do níquel, teve a ideia luminosa e prática de extrair níqueis da ferida. E expôs a sua ideia ao marido, que a achou esplêndida. Começaram então os dois na faina ardorosa de impedir a cicatrização da chaga. Ao princípio, lembraram-se da urtiga, cujos pelos excretam um líquido urente, que irrita e queima; e aplicada a planta à chaga, esta efetivamente aumentou. Mas a urtiga produzia dores, coisa de que o tio Pedro não gostava. Procuraram então outras ervas que alimentando a chaga, não produzissem dores. Com labor e paciência, acharam. Estava garantida a subsistência do casal.

Vagarosamente, maciamente, com a lentidão da lesma, começou essa chaga a se alastrar pela perna acima como um líquen; ao fim de alguns meses, tinha rodeado o tornozelo e, passado um ano, já invadia a região da tíbia e do perônio até o meio. Mas não doía e chamava o níquel. Todavia, à medida que a chaga aumentava, tio Pedro diminuía em peso e descorava; mas, como na choupana não havia balança nem espelho e o apetite era bom, tio Pedro não se apercebia da fuga das cores nem do desfalque em quilogramas. Pelo seu lado, a ardilosa mulher do tio Pedro, que tinha o defeito orgânico de ser míope, também não via... senão a ferida, essa amada úlcera, que não fechava nunca e que lhe proporcionava meios de ter o estômago farto e de dormir noites tranquilas.

Demais, a magreza e a palidez macilenta do velho aumentavam o efeito da chaga, armando a compaixão do transeunte, forçando-o a dar com maior liberalidade a esmola.

Nessa exploração feliz o casal atravessou três anos sem sofrer provações. A ferida chegava então ao joelho, começava a dobrar a rótula e ameaçava invadir a coxa mal fornida de carnes. Quase reduzido a pele e osso, o tio Pedro já sentia uma fraqueza que o intimidava. Foi quando ele percebeu que o peso lhe minguava e que, com a fuga do peso, o alento desaparecia.

Teve então ideia de impedir a marcha ascendente da úlcera, reduzi-la mesmo, fazendo-a retroceder até o meio da perna. Assim como assim, tanto vinha o níquel com uma chaga de dois palmos, como uma de quatro polegadas. Mas, ou porque a ferida já se habituara a subir ou porque a mulher do tio Pedro não descobrisse a erva que devia fazê-la descer, o certo é que a chaga alastrou sempre e, depois de galgar o joelho, invadiu francamente a coxa. E o pior é que quando mais mezinhas lhe aplicavam para fazê-la secar e retrair-se, mais ela purgava, avançando sempre.

No começo do inverno, quando a primeira geada cobriu a planície, crestando as ervas tenras e devorando assim a provisão da vaca, tio Pedro percebeu que já lhe era difícil sair da cama e arrastar-se até a porta da choupana para expor a úlcera. Teve então a primeira suspeita de seu próximo fim e chamando a mulher pediu-lhe que procurasse um tabelião e o levasse à choupana.

Um tabelião!... para quê?

Teria o tio Pedro uma fortuna oculta, conservada pela sua avareza no fundo de algum buraco, sem que a mulher o soubesse jamais?

O velho nada explicou e a mulher, sempre ladina, alentada pela esperança de uma riqueza inesperada, que depois da morte do marido viesse suprir a falta de chaga pingue, prestes a desaparecer para sempre, nada inquiriu. Foi ao povoado e de lá trouxe o tabelião.

O que se passou entre o notário e o moribundo, a mulher do tio Pedro só o soube depois que o velho fechou os olhos para sempre.

O finado tinha feito o testamento e este testamento era assim redigido:

"Deixo a vaca, uma espingarda e um cão; à minha mulher deixo o cão, e do produto da venda da vaca e da espingarda mandará ela rezar missas pelo descanso da minha alma."

Era só isto. Nada de mais conciso, nada de mais previdente, nada de mais liberal.

Sorridente e irônico, o tabelião perguntou à viúva se ela, como legatária e testamenteira, estava resolvida a satisfazer as disposições um tanto extravagantes e mesmo ilegais do testamento do seu defunto marido. E a velha encarquilhada, sem mostrar pesar nem espanto, respondeu serenamente "que sim".

Oito dias depois, realizava-se a feira mensal no povoado e a mulher do tio Pedro, de espingarda ao ombro, como uma vivandeira, tangendo na sua frente a vaca e acompanhada pelo cão, seguiu para a feira e ali procurou lugar azado para realizar a venda das coisas que levava. Um comprador apresentou-se e indagou o preço da vaca.

— Doze vinténs, respondeu, muito séria, a mulher do tio Pedro.

— Doze vinténs!... repetiu o camponês, olhando admirado para a velha.

— Sim, senhor, doze vinténs, nem mais nem menos, mas tem uma condição, respondeu a velhinha, sem se perturbar com o olhar desconfiado do campônio.
E qual é a condição?

— É esta: quem comprar a vaca há de comprar também a espingarda e o cão.

— Hom'essa!

— É como lhe disse: a vaca só será vendida juntamente com o cão e a espingarda.

— E qual é o preço, boa mulher, da espingarda e do cão?

— A espingarda — treze vinténs, o cão trezentos mil réis.

Cada vez mais espantado, sem compreender o estratagema da legatária finória, o campônio pôs as mãos nas ilhargas e desatou a rir, a rir, de tal sorte, que atraiu a atenção de toda a feira.

E daí a pouco, toda a gente que ali estava, sabia este caso original e estranho; que a viúva do tio Pedro pedira doze vinténs pela vaca, exigia treze pela espingarda, e trezentos mil réis, "sub conditione, sine qua non", de vender tudo ao mesmo comprador.

Como a vaca era nova, com fama de boa leiteira, valia bem os trezentos mil e quinhentos réis (que era o preço de tudo), o camponês, depois de muito indagar inutilmente pela razão da original exigência da velha, fechou o negócio, pagando a quantia pedida, e da feira partiu levando a vaca, o cão e a espingarda.

Então a viúva do tio Pedro, visivelmente satisfeita e com a consciência tranquila, foi em demanda da casa do vigário da freguesia e perguntou ao bom padre:

Senhor vigário, seria Vossa Reverendíssima capaz de dizer, por quinhentos réis, uma missa por alma do meu Pedro, que Deus haja na sua guarda?

O vigário, que ignorava o que se passara e que sabia das circunstâncias precárias da velha, respondeu logo:

— Com todo o prazer, boa mulher! onde não há el-rei o perde.

— Pois então, aqui tem os quinhentos réis, senhor vigário, e queira dizer a missa por alma do defunto Pedro.

Daí partiu logo para a casa do tabelião, com o fim de provar perante testemunhas que havia satisfeito as disposições testamentárias de seu finado marido.

E foi assim que a espertalhona viúva do tio Pedro demonstrou que o cão leproso, que o marido lhe deixara, valia tanto como a chaga que ele alimentara durante três anos, chaga essa que o velho, egoísta e avaro sempre, levara para baixo da terra, talvez com o intuito de explorar com ela, no outro mundo, a caridade das almas imbecis ou demasiado compreensivas.
Garcia Redondo

segunda-feira, junho 28

Leitora compulsiva


 

O vento

Este vento, o vento que sopra às revoadas mansas e pegajosas vindas do mar, é um vento cheio de cheiros que recordam histórias, cheio de histórias como um baú acabado de abrir, dos que só dão à costa trazidos pelos cheiros do vento.Sem pianos, sem sereias.

Quando é tempo delas e o vento mas oferece, entretenho-me a descascar as ervilhas-de-cheiro dos outros cheiros todos, para dar uma volta pelo jardim-escola; outras vezes, deixo-me temperar pelo manjericão, o jasmim, a hortelã, para vogar neste vento tão pegajosos e tão atlântico até ao porto de Tânger.

Sou dos que acreditam – eu acreditei, a pés juntos, que um dia passei a estar "onde vejo o vento" -, e o vento tem-me seguido como uma sombra, fiel e dedicada, com um comportamento onde me reconheço e por isso nos confundimos; muitas vezes penso que tenho andado enganado e, afinal, não passo da sombra do que se entende como sombra.

E que ninguém se atreva a esperar por parágrafos de ferro forjado, como "sombra da minha sombra"; deixemo-los sossegadinhos para os teclados eruditos de quem gosta de se considerar e que se lhe chame escritor, debruçado sobre lombadas com malvas a aviar escrita e importância, notoriedade, sôfregos de eternidade.

Nunca me passou pela cabeça a canseira, a ansiedade que deve ser escolher a escrita por figurino, por catálogo, e continuo a escrever pelo puro prazer de escrever, sei lá se é poesia ou sei lá se é prosa, só sei que continuamos a brincar às escondidas, a curtir, quando não é uma urgência de fazer doer a alma a qualquer um.

E eu que o diga, a sério.

O vento é uma boa desculpa, podia ser um belíssimo pretexto se, entretanto, não me desse por contente com o que acabo de escrever e, precisamente por isso, vou mas é até lá fora sentar-me ao sol e deixar-me ficar só a ver o vento.

É que a escrita perde sempre piada quando a literatura começa a intrometer-se, quando permitimos que a literatura comece a meter o bedelho.»
Jorge Fallorca. "Blues para uma puta velha"

É o amor...

 


Banca de retalhos

Na história da poesia, a pedra de Drummond foi uma nova alquimia.

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Todo escritor minimamente honesto deve perguntar-se todo o tempo por que escreve e por que não para de escrever.

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Amigos, lamento, mas não deixo legado poético nem testamento.


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Os seios da condessa eram pequenos, mas atrevidos. Fosse qual fosse a blusa que os cobrisse, espetavam nela os bicos promissores.


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Quando tudo isso terminar, respiraremos aliviados, se conseguirmos respirar.

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Não relê o que escreve. Não por se presumir perfeito, mas pelo receio de ver abalada sua confiança de escritor.

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Sou um velho diletante. Dei-me sempre todo à literatura, porém nunca o bastante.

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O dia já não nos vê e o sol nos esquece. Estamos tão mortos como se estivéssemos.

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É o fantasma de um sindicalista. Por qualquer coisa se abespinha e por meses não aparece.

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Majestosa torre de Pisa, primor maior entre os primores, que Deus vos traga sempre a mais branda brisa e afaste de vós os Três Tenores.

***

Sim, estamos vivos, dizemos, mas baixinho, só para nós. Temos medo de ser desmentidos.
Raul Drewnick

domingo, junho 27

Uma editora alegre

Do meu ponto de vista estritamente pessoal, creio que a editora de Sabino, Braga e Acosta nasceu do concurso permanente que existia há muitos anos na revista Carioca: O leitor que escrevesse cada semana a melhor crônica sobre rádio ganharia cem mil réis, cinquenta para o segundo colocado, 25 para o terceiro (o melhor cigarro naquele tempo custava um mil réis). Pois bem: todas as semanas o mesmo leitor abiscoitava sempre o primeiro prêmio - "Pum! Ganhou cem mil réis". Quem ganhava cem mil réis todas as semanas era um menino de 12 anos, que morava em Belo Horizonte, bom nadador, locutor da Rádio Mineira, um menino, enfim, cheio de truques. Seu nome era Fernando Tavares Sabino; hoje é apenas Fernando Sabino.

Acho que nessa época se enraíza a Editora do Autor: Sabino, ainda tenro, acostumou-se a relacionar literatura e dinheiro, e jamais perdeu esse hábito salutar. Seu amigo de tantos anos, sempre o vi preocupado com a melhoria de pagamento, direitos autorais, e todos os pormenores, que defendem praticamente o ofício de escrever. Ele faz jornalismo e literatura: em ambas as atividades, foi sempre um exaltado batalhador da causa profissional.

Ultimamente, deu-lhe na telha que os dez por cento sobre preço de capa, que os editores cedem tradicionalmente aos autores, não compensavam em geral a pena de escrever um livro. Seu irmão Gerson lhe falou dum advogado que imprimira e distribuíra por conta própria um livro técnico, ganhando bastante dinheiro. Fernando procurou o advogado, foi conversar depois com um colega e, em poucos dias, estava formado o novo trio editorial: Sabino, Acosta e Braga. Ao primeiro tocou a parte propriamente editorial da firma; ao segundo, a gerência financeira; ao terceiro, promoções e relações públicas. Os quatro livros agora publicados deveriam constituir o primeiro lançamento, simultâneo, da editora. O Braga, no entanto, conhecendo Jean-Paul Sartre na Bahia, pediu-lhe prioridade para a edição de "Furacão sobre Cuba". Numa semana o livro foi traduzido, impresso e lançado, com a presença do próprio Sartre. A tiragem inicial, vendida rapidamente, deu para montar um escritório e respirar. Os três editores do autor mandaram a bola para a frente.

A primeira iniciativa do chefe das relações públicas foi embarcar a jato para a doce França. O que foi fazer o Braga em Paris é mistério, mesmo para os outros dois sócios. Soube que foi visto nas "terraces" de Saint-Germain, nos castelos de Borgonha, não existindo nenhuma informação de que haja visitado qualquer organização relacionada à indústria gráfica. O Sabino ficou aqui telefonando, cercando o Vinicius, discutindo o preço do papel, fazendo por si mesmo um intensivo curso de composição tipográfica, correndo do escritório às oficinas de Benfica, de Benfica à casa dos editados, falando pelos cotovelos uma terminologia nova, cheia de bodonis, capitulares, garamonds, versaletes, romanos, cíceros, perangonar etc.

Rubem Braga, Fernando Sabino e Vinicius de Moraes no Marimbás

De tal maneira se entregava à tarefa, que um dia lhe cresceram as barbas: tive um acesso de riso quando o vi entrar pela minha casa barbudo como um herói de Sierra Maestra. O fato é que o romancista transformou-se em editor num tempo recorde. Além da prática na oficina, deu para procurar conhecidos editores desta praça, extraindo-lhes sem piedade, os segredos do comércio editorial e livreiro. Um dia, almoçando com Jorge Zahar e Ênio Silveira, disse-me este último: "O Sabino é implacável; ele arrancou em dez dias o que eu aprendi em dez anos."

O Braga voltou de Paris, arregaçou também as mangas, os livros ficaram prontos, o lançamento foi anunciado. Quatro autores tímidos chegaram à conclusão de que a publicidade era necessária. Só que ninguém desejava fazê-la, um empurrando o outro às iniciativas promocionais. Uma noite, de revólver moral em punho, Fernando obrigou a Vinicius e a mim de comparecer a um programa de televisão: ao meio de perguntas gratuitas, deveríamos transmitir o nosso comercialzinho, contando que os quatro autores estariam na segunda-feira no Marimbás, às horas tantas, franca sendo a entrada etc. Eu disse que só iria se o Vinicius fosse; o Vinicius disse que só iria se eu fosse. Quando, a fim de evitar defecções, marcamos um encontro prévio no Bar Zeppelin, o Braga botou a mão na cabeça: "Xi, já vi tudo." Para desmenti-lo, chegamos pontualmente na Urca e enfrentamos as perguntas do Jacinto de Thormes. Quando já estava em casa, o Fernando me telefonou: "Vocês são mesmo dois débeis mentais." Tínhamos esquecido do "comercial".

Uma das preocupações do Braga era vestir o Vinicius para a noite do Marimbás, temeroso que o poeta surgisse aos olhos do seu público com blusão esportivo demais. "Quero todo mundo de paletó e gravata" - dizia. O temor do Sabino era sobrevir uma crise de tédio ao Braga na hora H. O medo de Vinicius e meu era difuso e depressivo. Quando estivemos no clube pouco antes da festa, o poeta resmungou sorrindo: "Eu acabo mesmo é voltando a editar os meus livros com os dez por cento de sempre." Fernando dispôs as mesas e os balcões, Rubem Braga ficou encarregado do departamento de líquidos, tudo saiu certo. Às nove horas da noite, o Marimbás estava cheio de gente, alegrando sobretudo o Borsoi, impressor dos volumes, que aceitara o trabalho naquela base dos papagaios. Aquele povo todo comprando livros era a sua mais sólida esperança de pagamento em dia.

Aqui da casa, de Manchete, só faltou o Henrique Pongetti, que edita seus livros na firma de seu irmão. Apesar dessa ausência, outra pessoa contente com o movimento era Adolpho Bloch. E quando o Murilo Melo Filho disse para ele que não tínhamos descoberto o ovo de Colombo, a fim de vender livros, Adolpho replicou: "Não, eles descobriram foi o trabalho." Esta tese irônica me parece correta: a gente trabalha, e muito, escrevendo livros, mas, sem um certo esforço braçal, a venda é incerta.

Escrever é um gesto solitário, vender é um gesto público. Esta contradição explica a fadiga que tomou conta de nós quatro na noite de autógrafos; enquanto os amigos nos davam os parabéns pelo sucesso da festa, tínhamos um ar pálido de derrota. A gente editar a gente (a expressão é de Stanislaw Ponte Preta) é bom, porque se ganha um pouco mais de dinheirinho. Entretanto, a gente vender os livros da gente é um sacrifício. De qualquer modo, fecharemos os nossos olhos, e iremos vender livros em Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza e Belém do Pará. Fernando é quem manda.

A pena verdadeiramente grande é não ser possível levar conosco as nossas lindas "vendeuses": Tônia Carrero, Lourdes de Oliveira, Edla van Steen e Elizete Cardoso. Sem elas, temo, com sérios motivos, pelo nosso prestígio.
Paulo Mendes Campos, Manchete 31/12/1960

Polinizadores

 


Velhas janelas do Recife e de Olinda


Velhas janelas do Recife e de Olinda
últimos olhos para as cidades que se transformam.

Da janela escancarada no nicho da Igreja do Livramento,
todas as noites desce sobre o bairro, sobre o Recife todo um
longo olhar de queixa; e outro olho de queixa é o do nicho
do Convento do Carmo, que às vezes também se escancara
e se ilumina.

Nas ruas napolitanas
do bairro de São José
com as roupas a secar
ainda se encntram antigas
janelas quadriculadas
os xadrezes dos postigos
que outrora amouriscavam
todo o Recife.

Em Olinda, na rua do Amparo,
existe o abalcoado levantino
que romantiza toda a rua, à noite.
Na varanda parece debruçar-se
doce figura de mulher que chama
o cauteloso amante em capa negra
para um encontro como nas estampas
do tempo de Romeu e Julieta.
Através do xadrez
dessas velhas janelas
as mulheres de outrora
de um saber quase árabe
gulosamente olhavam
o que ia lá fora.

Essas velhas janelas
tomavam ar de festa
apenas durante os
dias de procissão.
Botavam-lhe as sanefas
de damasco e de seda,
ou de veludo, orgulho
das arcas e baús
dessas casas fidalgas,
as mulheres então
olhavam nas varandas
ou ficavam de joelhos
sobre os abalcoados
benzendo-se e rezando
diante da procissão.

Imagens tristes de Nossos Senhores
e de Nossas Senhoras cujos olhos
eram de queixa e dor; santos, andores,
padres gordos de murças e de rendas;
frades com seus cordões, os irmãos de opas
e escapulários de variadas cores.

Ficavam na varanda
e no abalcoado, as mulheres
entre o pelo-sinal
e entre a rua e as sanefas.
Essas velhas janelas…
Gilberto Freyre

Arando a terra

 

Lido Contemori

Inaugurado o mundo

Acabaram de inaugurar o mundo, o sol faz luz, o mar é enorme e cheio de peixes, há montanhas, rios, lagos, há árvores, todas elas iguais e todas elas diferentes, há cores e sons, há bichos de todas as formas, às vezes chove, às vezes o ar fica azul, à noite aparecem estrelas e lua, de madrugada costuma soprar um vento frio, os pássaros cantam, os homens falam, e há machos e fêmeas e eles se amam...

Paulo Mendes Campos

sábado, junho 26

'Caça' do fim de semana

 


Onde?

Tem passagem pra Pasárgada? Só de ida, por favor.

Faz tempo que penso em ir embora daqui. Mas aí as raízes me enredam, a acomodação consola e acabo ficando. Antes, havia para onde ir, porque o mundo não estava tão igual em suas mazelas. Hoje, é aqui ou aqui, num planeta doente, corrupto, sem perspectiva. Quando não era tão descrente, ainda me apaixonava, fazia planos. Agora, sobrevivo a um dia de cada vez, pés no chão, horizonte curto, estrada esburacada.

Quando viver se torna insuportável, viajo para dentro. Folheio o álbum de retratos em que todos eram felizes, ouço discos empoeirados, visito a caixa de afetos onde guardo cartões postais, bilhetes, pequenos mimos que confirmam a importância da amizade.

Faz tempo que moro com a solidão e posso dizer que convivemos bem, só precisamos encontrar lugar melhor para ficar. Onde, como também queria Drummond, os jornais só publiquem boas notícias, existam sonhos para sonhar e o amor definitivo à nossa espera. Então, arrumaremos as malas com prazer e compraremos a passagem. Só de ida.

Madô Martins

sexta-feira, junho 25

Bom passeio

 

Edward B. Gordon
S


Você é um número

Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento – tudo é número.

Darren Thompson 
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube, tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras, tem o número da cadeira.

É por isso que vou tomar aulas particulares de matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.

Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.

Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência, também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio, recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações, também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico, recebe número de batismo. No registro civil ou religioso você é numerado. Se possui personalidade jurídica, tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.

Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número. Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao posto de saúde. E recebeu a ficha de número dez. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o número nove. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados.

Se há uma guerra, nós somos classificados por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica.

Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si-mesmo é apenas o si-mesmo.

E Deus não é número.

Vamos ser gente, por favor. Nossa sociedade está nos deixando secos como um número seco, como um osso branco seco posto ao sol. Meu número íntimo é nove. Só. Oito. Só. Sete. Só. Sem somá-los nem transformá-los em 987. Estou me classificando com um número? Não, a intimidade não deixa. Vejam, tentei várias vezes na vida não ter número e não escapei. O que faz com que precisemos de muito carinho, de nome próprio, de genuinidade. Vamos amar que amor não tem número. Ou tem?
Clarice Lispector

Cuidando do jardim

 


O sol

Quando vim para esta casa o sol nascia lá; no alto da Cordilheira, bem defronte a minha janela ― e invadia-me o quarto muito cedo, com suas flechas de ouro. Depois, devagarinho, ele foi andando para o norte. Passou a nascer na altura da casa de telhado verde do outro lado da rua; cada dia surge um pouco mais longe de minha janela, e entra cada dia mais tarde, pálido, fraco, oblíquo. E durante muitos dias ― não nasceu.

Hoje fui obrigado a passar o dia em casa. Um dia feio, triste, nublado. Pelo meio-dia o sol conseguiu emitir um pouco de luz enfermiça, e logo se apagou. Brilhou um pouquinho mais tarde, antes de morrer nos fundos do quintal. Está fazendo sua viagem em um pedaço cada vez menor do céu, entre nordeste e noroeste. Não corta o céu pela metade, como seria de seu dever: cada dia se contenta com uma fatia menor. Faz frio. E como estou sozinho e triste, parece que o frio é mais frio. Olho as árvores de galhos nus e esse sol que agoniza quase sem luta, num laranja desmaiado, a um canto do céu cinzento. Escurece. E compreendo então o terror dos índios da Cordilheira, onde o frio é na verdade terrível ― o terror primitivo de que o sol um dia sumisse de uma vez para o norte, em um inverno definitivo que seria a escuridão eterna, o gelo, a morte...

Os incas sentiam isso e mandavam construir, no alto das montanhas, imensos relógios de sol. Dia a dia eles iam marcando a marcha do sol para o norte ― a projeção cada vez mais longa e mais breve de sua sombra para o sul. O frio na montanha era cada dia mais doloroso, os dias cada vez mais curtos. Mas um dia o sol cessava de marchar para o norte. Como que se fixava um pouco em um ponto certo do horizonte ― e depois, lentamente, fatalmente, vinha voltando. Os incas haviam "amarrado o sol" como quem amarra pelo rabo um leão velho. O astro, obediente, chegando a um certo ponto, voltava...

Os espanhóis, aonde chegavam em sua conquista, tratavam antes de mais nada de destruir essas pedras sagradas dos incas. Era um meio de atingir, no centro vital do medo, a religião que eles queriam matar. Não deixaram um só relógio de sol intacto por onde passaram.

Mas os espanhóis não chegaram a toda parte. Havia refúgios inacessíveis, cidades secretas, protegidas por abismos, entre os altos picos, aonde os índios se escondiam. Alguns desses lugares o homem branco só atingiu quatro séculos depois, em nosso século. Havia ali, intactos, um ou dois desses monumentos fabulosos aonde o inca todo poderoso amarrava a sombra do sol. Não os destruíram. E neste começo de noite fria e triste eu confio em que não o destruam nunca. O sol já está demasiado longe, tombando para o outro lado do mundo. E sinto um frio na alma, pensando que ele pode se ir para sempre e me deixar aqui ― um fantasma gelado e só entre árvores nuas e passarinhos petrificados, no cemitério de minha rua esquecida.

quinta-feira, junho 24

Contra as armas

 

Ali Divandari (Irã)

Gestalt

Mar Azabal
Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a Isaiah, e começou pensando spinosismos: “de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.” Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza citado aí de cima, acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me por quê. Nas quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos gorgulhantes, o porco de Isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas focinhou de Isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho mais fundo, de focinhez. Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal. Isaiah limpou dejetos do porco, muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste esfregando-se nos cantos, um aguado-ternura nos dois olhos, e por isso Isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente parece, sempre doente, é o que pai dizia na sua língua. E doença não é Hilde? Hilde sua mãe, sorria, Ach nem, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença Karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas,vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de Isaiah, Isaiah agachou-se, redondo de afago foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo. E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parênteses devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.
Hilda Hilst

Parada de descanso

 


O inventor da crônica carioca

Meu caro João do Rio, aqui quem fala é o Quinzinho da Vila da Penha e só estou tomando essas liberdades porque sou dos seus afilhados, repórter de rua, um sujeito que gasta sola de sapato e não escolhe buraco para se meter, tanto faz se o Buraco da Lacraia na Lapa, o Cabaré dos Bandidos em Caxias, a pérgula do Copa ou o caminho atapetado até a mesa forrada de trufas brancas no Fasano de Ipanema. Rio de Janeiro, eis a mesma pauta e devoção. Os afortunados, os malbaratados, tudo é do interesse e consideração.

Eu faço fé na lição máxima de sua obra genial, as ruas têm alma, algumas são guerreiras, outras mequetrefes, e gosto de submetê-las ao inquérito de minhas caminhadas. É vício e profissão. Depois, uma vírgula de asfalto aqui, um parágrafo de vitrine mais adiante, as aspas de uma tabuleta colada no poste, e as ruas vão servindo de passarela para o leitor também flanar ao redor da idiossincrasia delas. Euclides da Cunha já tinha inventado o repórter épico, você inventou o repórter das esquinas. Não dá manchete, mas dá sabor ao jornal.

Obrigado por ter saído todos os dias da redação de O País, A Pátria, e eternizado a fanfarronice da Ouvidor sabichã, e obrigado também por ter subido o morro de Santo Antônio com os sambistas calibrados de parati. O francês e o malandrês, você falou todas as línguas de seu tempo e eis aqui um aluno dedicado de seu curso. Rio, há muitos, João.

Você ensinou que dentro de uma cidade tem outra cidade, algumas perfumadas, outras esgoto puro, e sem preconceito lobrigou todas elas. A civilização europeia do Pereira Passos na Avenida Central, os batuques africanos de tia Ciata na Praça Onze – e espremido entre essas culturas, deslumbrado por todas as possibilidades de vivência, sem hierarquizar superioridades, você traduziu a alma encantadora das ruas do Rio de Janeiro.

Cem anos adiante de sua morte, infartado no meio da rua onde sempre viveu, eu quero dizer, meu caro João de Tantos Rios, que a espanhola voltou piorada, agora com o nome pouco poético de coronavírus. Somos 500 mil mortos, 212 milhões de quase mortos. A Ouvidor das redações dos jornais, a Lavradio dos chopes musicais, nenhum desses territórios de cidadania da nossa felicidade podem hoje ficar na mesma frase que “encantadora”.

Os repórteres, os cronistas, por mais que dediquem a existência ao culto de suas lições (“Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?”), foram avisados para fazer o contrário delas. Ficar em casa. Gastar sola de sapato virou sanitariamente perigoso. As notícias que chegam de fora das nossas janelas são do desaparecimento da deliciosa multidão de cocheiros de tílburis, músicos ambulantes, modern girl, chineses bêbados de ópio, ladrões sem pousada, poetas nefelibatas e feiticeiras ululando canções sinistras. Na alma desoladora das ruas do Rio de 2021 restou solitário o estressado entregador de iFood com o caixote vermelho às costas. No lugar das ruas ambíguas, das ruas nobres, das ruas trágicas e honestas, ficaram só as ruas desertas.

Os cronistas, então, mudaram de assunto. No momento, esperam que o tempo passe, a vacina faça efeito e eles possam novamente sair em campo e responder às questões que você, divino mestre da vida carioca, estabeleceu para a profissão. “Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua?”
Joaquim Ferreira dos Santos

quarta-feira, junho 23

Em retiro

 

 Lidia Steiner

Hoje

Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se
Cecília Meireles

Livraria sob novo olhar

 


O Alentejo

No Alentejo, em fins de Julho ou princípios de Agosto, o olhar atinge o seu zénite. No horizonte raso e limpo tudo parece pegado à terra: muros, árvores, medas de palha, montes, quando se avistam distantes. Um delírio de luz sobe à cabeça, como a música das cigarras, e faz doer. As coisas todas estalam como romãs maduras, e ficam cheias de brilhos. Mesmo dentro de casa, com portas e janelas trancadas, a luz entra pelas frestas, entorna-se pelas tijoleiras e reflecte-se, tenuamente rosada, na brancura das paredes. No pátio, uma oculta água ergue-se num repuxo exíguo – e é pura delícia. Cheira a barro e a cal, cheira a coentros e a queijo seco. Cheira ao que é da terra e regressa à terra. Um som de guizos, o trote miúdo das mulas, o grito de uma criança, custam a distinguir, de tão longe vêm. Neste longo, ardente Verão do Sul, apenas as cigarras têm modulações amplas. À roda tudo é silêncio e secura. Os próprios homens quase não têm fala, mas os seus olhos queimam como duas pedras expostas ao sol durante milhares de dias. Só eles afirmam que nem tudo no Alentejo nasce e morre acachapado à terra. Eles, e uns pombos bravos que subitamente rasgam o céu, como quem foge ao áspero, ardido, amargo coração do meu país.


Falei da luz do Alentejo, mas não é ela que verdadeiramente me liga e religa a esta terra: é demasiado ácida, falta-lhe uma doçura última, mediterrânea, que só encontraremos mais a sul. O que me fascina aqui é uma conquista do espírito sem paralelo no resto do país, numa palavra: um estilo. O melhor do Alentejo é uma liberdade que escolheu a ordem, o equilíbrio. Estas formas puras, sóbrias de linha e de cor, que vão da paisagem à arquitectura, da arquitectura ao vestuário, do vestuário ao cante, são a expressão de um espírito terreno cioso de limpidez, capaz da suprema elegância de ser simples. Povertà é talvez a palavra ajustada a uma estética alheia ao excesso, ao desmedido, ao espectacular. Ao luxo prefere-se a modéstia; à anarquia, o rigor; à paixão, um concentrado amor. O Alentejo é inimigo do barroco em nome da claridade. Mundo cerrado (quase apetecia escrever: encarcerado), sem dúvida; mas dos seus limites tira o alentejano a força. O seu olhar, na impossibilidade de ir mais longe, irá cada vez mais fundo, e o que lhe sai das mãos é fruto de uma paisagem enxuta, quase hirta, de uma magreza reduzida ao osso. Uma paisagem essencial, de que pode orgulhar-se um homem, quando lhe reflecte o rosto ou a alma.
Eugénio de Andrade

terça-feira, junho 22

Hora do café

 




Memoráveis

 Vin Ganapathy
Então foi assim, meus amigos. Éramos cem. Saímos pela porta lateral, passámos por um tapume, encaminhámo-nos para a Rua Garrett, Chiado acima, depois atingimos as duas igrejas, já seriam umas três horas da madrugada, e no Largo Camões não havia vivalma. Não havia rumor, não havia estrondos, não havia sirenes, não havia polícia, e nós pensámos. Teremos mesmo nós cem colocado a gravação no ar? Foi mesmo verdade, ou foi um sonho, que à meia-noite e vinte o som dos passos começou a rolar pelo país fora, e depois dos passos do coro veio a voz do Zeca? A canção do Zeca? O cante dele? A sua voz alternando com a voz dos companheiros? Meu Deus! Tanto silêncio, tamanha calma, pensámos, nós cem, quando parámos entre as duas igrejas. Possivelmente terá sido uma fantasia das nossas cabeças, nós cem não teremos colocado a fita no ar, a canção não terá passado, ninguém neste país a terá escutado, nenhum civil, nenhum militar em nenhum quartel, em nenhum regimento, e era por isso que nada iria acontecer. Pensámos nós, os cem. E nenhuma árvore se agitou, nenhuma ave se moveu. Quando julgávamos que todos os rios subterrâneos corriam para o mesmo lado, afinal todas as águas tinham ficado paradas no fundo dos seus abismos. Pensámos nós dois, quando, ambos, perdão, nós cem, caminhávamos em passeios diferentes, devidamente afastados uns dos outros, como se não nos conhecêssemos. Os nossos cem corações batiam de medo debaixo das cem camisas. Foi assim, naquela madrugada...
Lídia Jorge, "Os Memoráveis"

segunda-feira, junho 21

Começando o dia


 

Houve um tempo

Robert Panitzsch
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
Cecília Meireles

Passeio premiado

 


Imortais

12 de junho


Os livros não morrem. Abandonamos a cidade onde não circulam mais e vão residir nos bairros afastados, nos recantos longínquos, ausentes dos roteiros do tráfego literário. Quem possuiu palacete, vive numa cainha de porta-e-janela, distante mas real. De rato em raro, vencendo o acesso escarpado das buscas, aparece um visitante-leitor, surpreendido com a resistência ou coexistência das ideias, comuns ou antagônicas. Às vezes a cidade cresce e o arrabalde inclui-se nas áreas transitadas, na misteriosa dinâmica das compensações, olvidos e regressos. Homens do século XV passam a contemporâneos e alguns desses desaparecem da convivência mental. Vão para fora do perímetro urano. Mas estão vivos, esperando as visitas fortuitas.

Luís da Câmara Cascudo, "Na ronda do tempo"

domingo, junho 20

Leitura encantada

 


Talismã

Eu não teria seguido o homem pelas ruas nem presenciado as coisas que fez acontecer à sua passagem se ele não levasse sua flor – uma só, de longo caule, três folhas viçosas, vermelha: cravo –, se não a levasse com extremo cuidado, como coisa mais preciosa do que flor. Logo percebi que a estranheza do próprio homem contaminava a cena toda. Na cabeça, chapéu, cavanhaque, suíças, bigodes. Vestia um paletó justo de casimira cinza escura, colete de seda creme, jabô em vez de gravata, calças listradas de cós muito alto. Calçava borzeguins e polainas. Parecia ter saído de uma fotografia antiga e não tinha como voltar.

As duas coisas juntas, a figura e o jeito como levava sua flor, não pareciam perturbar as outras pessoas, que passavam por elas como se aquilo acontecesse todos os dias às cinco horas da tarde de suas vidas. Indiferente por sua vez às pessoas, ele atravessava a avenida central com aquele seu jeito de não saber como se leva uma flor. O que o fazia diferente das outras pessoas que levavam flores era a concentração: ele mais tomava conta do que levava. Segurava-a na metade do caule com três dedos da mão esquerda; a mão direita, um pouco em concha, protegia-a. Como se fosse uma vela acesa! – era isso. O homem levava a flor como habitualmente se leva uma vela acesa: defendendo, prestando atenção, olhando a chama.

Se fosse um buquê de rosas, uma corbelha, não parecesse estranho, pode ser que eu não o tivesse percebido, ou que o considerasse apenas um desses atores sem emprego que hoje em dia levam mensagens vivas a um aniversariante. Se levasse uma rosa frágil, despetalável, talvez parecesse natural protege-la com tanto cuidado. Mas um cravo vermelho, taludo, viçoso… um só…

Sem perceber, fui sendo envolvido, fui-me entrosando num curso de vida que não era o meu, não era o das coisas que me diziam respeito. Coisa feita: estava espreitando um homem que surpreendera num momento de exceção, invadia um outro mundo. Se ele fizesse um gesto banal, se cheirasse a flor, por exemplo, eu me libertaria: ah, é um homem qualquer com uma flor qualquer. Mas não: ele se movimentava com um encanto calculado, como um ator, e era eu a plateia. Ninguém mais parecia interessado. Diabos e anjos sabem para quem aparecem.

Na tentativa de incluí-lo no mundo corriqueiro, costurei hipóteses. Enterro. Impossível: flor vermelha, uma só, um sorriso invisível. Namorada. Ia leva-la para uma namorada. Improvável: um homem com seu estilo mandaria um buquê, por mensageiro. Presente para a namorada. Possível, mas… um homem de uns sessenta anos, com aquelas roupas, parecia ridículo ou fora do papel se estivesse protegendo como preciosidade uma simples flor de namorada. Nada, nele, parecia ridículo. Bizarro, mas não ridículo. Levava-a para a esposa. Hipótese inadequada: maridos sabem que esposas não se contentam com um cravo único, querem buquê, e de rosas.

Pode ser que à sua passagem já estivessem acontecendo pequenas mudanças de ordem, antes que eu percebesse, alterações imperceptíveis a olhos descuidados, como os meus até então, atentos mais à figura do que às suas circunstâncias. Quando me dei conta de que o sinal de trânsito abrira para ele e para os outros pedestres em tempo rapidíssimo, e que um segundo antes o homem como que erguera rapidamente o cravo e deixara de protege-lo por um momento, senti um arrepio e suspeitei que ele tinha feito aquilo acontecer, tinha apressado o sinal de pedestres. Suspeitei mais: que coisas como aquelas já vinham acontecendo e eu tinha me recusado a ver.

Entrou em uma confeitaria. Lotada. Pude ver seus olhos a percorrer a vitrina, a lambiscar tortinhas, sequilhos, docinhos, à procura. Olhos cinzentos, como os de um cão siberiano. Mal encontrou – com um ah! – o que queria, materializou-se uma balconista solícita e saiu levando uma sacolinha pendurada no dedo, antes dos que já estavam lá há mais tempo. Na calçada, por onde eu tinha de avançar aos encontrões, davam-lhe caminho, gentis. Rostos preocupados desanuviavam-se à sua passagem. Parou aparentemente para prender as presilhas da polaina próxima a uma mendiga que amamentava um bebê mulato raquítico. O ritmo dos passantes, a pressa, o rumo, aparentemente não se alteravam, mas algo inusitado começou a acontecer naquele momento: atarefadas como abelhas, e com naturalidade como se fizessem aquilo todos os dias, as pessoas encheram em alguns instantes a cuia da mulher de moedas, anéis, notas altas. O homem da flor seguiu seu caminho depois de arrumar os sapatos, aparentemente alheio àquilo tudo. Andava com agilidade e graça diferentes da pressa cansada dos citadinos vesperais em fim de jornada. Novos eventos inesperados aconteciam no seu caminho. Um ônibus que atropelou um rapazinho e ia passando por cima dele parou de repente, travou, quebrou. A buzina do carro de um gorducho irritado com o trânsito que parou atrás do ônibus emudeceu contra a vontade dele. Desprovido da sua arma, o gorducho passou a dar socos no miolo do volante. Não aconteceu só com ele: nenhuma buzina soava. O rapazinho se levantou, reanimado, e tudo voltou a andar, junto. Ninguém parecia perceber que não havia acaso nesses acontecimentos. Sem dar na vista, o homem da flor com certeza se divertia pelo lado de dentro.

Parou numa esquina, olhou para os três lados, não sei se escolhendo milagres ou rumo. Seus olhos siberianos cruzaram com os meus tropicais e os prenderam por um breve momento. Vamos?, ele disse. Obrigado, eu disse. No tempo entre essas duas falas algo que me escapa se passou. Tive a impressão de estar de volta quando disse obrigado. Só uma impressão. Não havia nada nada nada de que eu lembrasse ou que o indicasse. Como se voltasse de uma distração. Depois desse momento, algo mudou em mim. Não tenho mais medo do destino ou do futuro, não sinto mais a angústia que irmana os homens. Nada de ruim acontece realmente com bilhões e bilhões de pessoas, nada que piore verdadeiramente suas vidas ou as faça sofrer mais do que estão habituadas a suportar, mas elas não sabem que é assim que vai ser. A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.

Naquela esquina, às cinco horas da tarde do centro da cidade de São Paulo, o homem sorriu para mim discretamente e levantou a mão com a flor. Um táxi parou, como se produzido por aquele gesto. Antes de entrar no táxi, despediu-se com um aceno de cabeça e, num exagero de mágico, última graça antes de deixar o picadeiro, jogou para o ar sua flor, que se transformou em pássaro e desapareceu no céu, em gracioso voo.
Ivan Ângelo

sábado, junho 19

Paisagem de leitura

 


Assim começa...

Cannery Row, em Monterey, na Califórnia, é um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, um som, um vício, uma nostalgia, um sonho. Cannery Row é acumulação e desperdício; lata ferro, ferrugem e gravetos; pavimentos escavados, terrenos de ortigas e amontoados de cordame; fábricas de enlatar sardinhas de chapa ondulada, dancings, restaurantes, bordéis e pequenas mercearias atravancadas; laboratórios e albergues. Os seus habitantes são, como disse o homem certa vez, piegas, alcoviteiras, batoteiros e filhos da mãe, com o que pretendia dizer toda a gente. Tivesse o homem espreitado por outra frincha e talvez dissesse: santos e anjos, mártires e homens bons, e significaria a mesma coisa.

Pela manhã, quando a frota da sardinha fez boa safra, entram as barcaças na baía a apitar, balouçando pesadamente. Cheios a deitar por fora, os barcos acostam ali, onde o rabinho das fábricas mergulha na baía.

A imagem é de avisada escolha, porque se as fábricas mergulhassem a boca na baía as sardinhas enlatadas que emergem do extremo oposto seriam, metaforicamente pelo menos, ainda mais repugnantes. Depois estridulam as sereias das fábricas, e em toda a vila homens e mulheres enfiam as suas andainas e correm direito ao Bairro para dar começo à faina.

Automóveis reluzentes levam as classes superiores, os superintendentes, os guarda-livros, os patrões, que logo desaparecem nos escritórios. Da vila surgem italianos, chineses e polacos em torrente, homens e mulheres de calças, casacos de borracha e aventais de oleado. Chegam correndo para limpar, cortar, lotar, cozinhar e enlatar o peixe. A rua toda rumoreja, geme, guincha, trepida, enquanto os prateados rios de peixe se escoam dos barcos, os quais vão alteando mais e mais até ficarem vazios. As fábricas rumorejam, trepidam e guincham até o último peixe estar limpo, cortado, cozinhado e enlatado; e então estridulam de novo as sereias, e os italianos, os chineses, os polacos, homens e mulheres a pingar, estafados, fedorentos, arrastam-se derreados pelo monte acima a caminho da vila, e Cannery Row volta a ser ele mesmo — tranquilo e encantado. A sua vida normal restabelece-se.
John Steinbeck, "Bairro de lata"