quinta-feira, maio 16

Porta de livraria

 


Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias

Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo — quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto. Um amigo meu conta-me coisas terríveis do verão de Cuiabá, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administração pública. Tudo vai para as redes. Aqui não há rede, não há descanso, não há nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar conversações moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que se conhecem pouco e são obrigadas a 20 ou 30 minutos de bonde. Começa-se por uma exclamação e um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminiscências, e a declaração inevitável de que a pessoa passa bem de saúde, a despeito da temperatura.

— Custa-me a suportar o calor, mas de saúde passo maravilhosamente bem. Não sei se é isso que me diz todas as manhãs a tal cigarra. Seja o que for, é sempre a mesma coisa, e é notícia d’alma, porque é dita com um grau de sonoridade e tenacidade que excede os maiores exemplos de gargantas musicais, serviçais e rijas. A minha memória, que nunca perde essas ocasiões, recita logo a fábula de La Fontaine e reproduz a famosa gravura de Gustavo Doré, a bela moça da rabeca, que o inverno veio achar com a rabeca na mão, repelida por uma mulher trabalhadeira, como faz a formiga à outra. E o quadro e os versos misturam-se, prendem-se de tal maneira, que acabo recitando as figuras e contemplando os versos.

Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo, cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra um concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça, colijo os trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito o dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o mesmíssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela via Ápia, dobro a rua do Ouvidor, esbarro com Mecenas que me convida a cear com Augusto e um remanescente da companhia geral. Segue-se a vez de um passarinho, que me canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela.


Bom dia, belo sol. Já daqui vejo as guias torcidas dos teus magníficos bigodes de ouro. Morro verde e crestado, palmeiras que recortais o céu azul, e tu, locomotiva do Corcovado, que trazeis o sibilo da indústria humana ao concerto da natureza, bom dia! Pregão da indústria, tu, “duzentos contos, Paraná, último de resto!”, recebe também a minha saudação. Que és tu, senão a locomotiva da fortuna? Tempo houve em que a gente ia dos arrabaldes à casa do João Pedro da Veiga, rua da Quitanda, comprar o número da esperança. Agora és tu mesmo, número solícito, que vens cá ter aos arrabaldes, como os simples mascates de fazendas e os compradores de garrafas vazias. Progresso quer dizer concorrência e comodidade. Melhor é que eu compre a riqueza a duas pessoas, à porta de minha casa, do que vá comprar à casa de uma só, a dois tostões de distância.

Eis aí começam a deitar fumo as chaminés vizinhas; tratam do café ou do almoço. Na rua passa assobiando um moleque, que faz lembrar aquele chefe do Ministério austríaco, a que se referiu quinta-feira, na Gazeta de Notícias, Max Nordau. Ouço também uma cantiga, um choro de criança, um bonde, os prelúdios de alguma coisa ao piano, e outra vez e sempre a cigarra cantando todos os seus erres sem efes, enquanto o sol espalha as barbas louras pelo ar transparente.

Ir-me-á cantar, todo o verão, esta cigarra estrídula? Canta, e que eu te ouça, amiga minha; é sinal de que não haverei entrado no obituário do mesmo verão, que já sobe de 50 pessoas diárias. Disseram-mo; eu não me dou ao trabalho de contar os mortos. Percebo que morre mais gente, pela frequência dos carros de defuntos que encontro, quando volto para casa e eles voltam do cemitério, com o seu aspecto fúnebre e os seus cocheiros menos fúnebres. Não digo que os cocheiros voltem alegres; posso até admitir, para facilidade da discussão, que tornem tristes; mas há grande diferença entre a tristeza do veículo e a do automedonte. Este traz no rosto uma expressão de dever cumprido e consciência repousada, que inteiramente escapa às frias tábuas de um carro.

De mim, peço ao cocheiro que me levar, que já na ida para o cemitério vá francamente satisfeito, com uma pontinha de riso e outra de cigarro ao canto da boca. Pisque o olho às amas secas e frescas, e criaturas análogas que for encontrando na rua; creia que os meus manes não sofrerão no outro mundo; ao contrário, alegrar-se-ão de saber a cara ajustada ao coração, e a indiferença interior não desmentida pelo gesto. Imite as suas mulas, que levam com igual passo César e João Fernandes.

Ah! enquanto eu ia escrevendo essas melancolias aborrecidas, o sol foi enchendo tudo; entra-me pela janela, já tudo é mar; ao mar já faltam praias, dizia Ovídio por boca de Bocage. Aqui o dilúvio é de claridade; mas uma claridade cantante, porque a cigarra não cessa, continua a cigarrear no arvoredo, fundindo o som no espetáculo. Como há pouco, na cama, miro a cantiga e ouço o clarão. Se todos estes dias não fossem isto mesmo, eu diria que era a comemoração da chegada dos três reis.

Essa festa popular, não sei se perdurará no interior; aqui morreu há muitos anos. Cantar os reis era uma dessas usanças locais, como o presépio, que o tempo demoliu e em cujas ruínas brotou a árvore do Natal, produção do norte da Europa, que parece pedir os gelos do inverno. O nosso presépio era mais devoto, mas menos alegre. Durava, em alguns lugares, até o Dia de Reis. A cantiga da festa de ontem era a mesma em toda a parte,

Ó de casa nobre gente,
Acordai e ouvireis,


e o resto, que pode parecer simplório e velho, mas o velho foi moço e o simplório também é sinal de ingênuo.
Machado de Assis

No jardim

O pálido rosto à sombra, uma lagartixa que comeu mosca, José cochila ao sol. Os copos-de-leite estão quietos como túmulos brancos. Que sede!

Suor frio na testa, coça o queixo, puxa, é quase uma barba! A mãe surge à porta:
- Quer entrar, meu filho?

A vida escorre na ponta dos dedos. Um copo d'água, mãe. O cacto desfalece de calor.

Com mais sede ele morre mais um pouquinho. Brincam as sombras ao pé do muro que nem canteiro de gatos.

- Água, meu filho.

Bebe até a última gota e pisca o olho esquerdo para a mãe, que lhe afaga o cabelo.

- Está melhor?

A cigarra anuncia o incêndio de uma rosa encarnada. Nuvens brancas enxugam no arame do quintal. E o filho dorme, uma lágrima suspensa dos olhos, sem rolar pelo bigodinho grisalho de lagartixa.
Dalton Trevisan

A pessoa e sua biblioteca

Se o título fosse “A pessoa é sua biblioteca” também ficaria bem, porém aqueles que não possuem livros iriam alegar o fato de, ainda assim, continuarem a ser pessoas. E há muitos nessa condição, por ignorância, falta de recursos ou desapego.

No que me toca, a compulsão pelos livros surgiu ao ganhar do meu avô, aos seis anos, um exemplar do Atlas Geográfico Melhoramentos, de autoria do Padre Geraldo José Pauwels. Aquilo me pareceu um tesouro, porque ali aprendi sobre os continentes, os países do mundo, as capitais, os oceanos e as cordilheiras.

No Natal seguinte, o presente foi uma coleção das Mil e Uma Noites, em oito volumes, que me revelaram o esconderijo de Ali Babá e os feitos heroicos de Sinbad, o Marujo. Depois, vieram As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain e, então, resolvi ler a coleção integral das Seleções do Reader’s Digest, mantida por meu pai desde seu primeiro número em português, datado de fevereiro de 1942.

Com 10 anos devorei a História do Fluminense, escrita por Paulo Coelho Neto, filho do escritor – e tricolor – Coelho Neto, publicada em 1952 – também herança paterna, ainda hoje mantida entre meus livros.

Tempos mais tarde, fui consultado pelo velho Arino se teria interesse em uma coleção de uns 200 livros policiais norte-americanos, que um amigo seu, em dificuldades financeiras, queria passar nos cobres. Assim, durante uns dois anos li aquelas aventuras, de Raymond Chandler a Chester Himes, de Dashiel Hammet a Rex Stout. A coleção perdeu-se em uma das mudanças da família, embora mais tarde eu tenha recomprado quase todos os livros de Stout, para me deliciar com as façanhas do gordo e genial detetive Nero Wolfe.

Minha segunda biblioteca começou a ser montada a partir da juventude. Descobri os autores brasileiros, inclusive porque o vestibular de Direito exigia conhecimentos sobre literatura. Machado, Graciliano, José Cândido de Carvalho, Dyonélio Machado, José Américo, José Lins do Rego, me apaixonei por todos eles. Fui aos autores do hemisfério norte e trafeguei, entre muitos outros, por Faulkner, Hemingway, Stendhal, Dostoievski, Graham Greene, Dickens, Italo Calvino, passei por Eça e considerei Dom Quixote o maior livro de literatura.

Foi Cervantes quem influenciou os autores fantásticos da América Latina, como Borges, Garcia Márquez, Neruda, Vargas Llosa, Cortázar, Galeano, Carpentier – e deles recolhi toda a seiva possível.

Mas as pessoas se divorciam, resolvem procurar outros destinos e, naquelas incertezas, levam consigo umas mudas de roupa e deixam os livros. Assim, com uns 150 exemplares que então me couberam, comecei a terceira biblioteca.

Hoje, ali estão livros de literatura nacional e estrangeira, muitos de autores paranaenses, biografias, uns cem livros sobre esporte, outros tantos sobre aventuras e viagens, cinema, comunicação, direito, dezenas sobre espionagem, policiais de diversas origens, alguma poesia, política, ensaios, antologias e coletâneas, além de livros corporativos. Tudo me interessa, portanto, vou acumulando.

O quarto travestido de biblioteca há anos não comporta mais nada. O escritório da casa também dá sinais de esgotamento, o espaço livre não passa do fim do ano, a não ser que eu encontre interessados nos 500 exemplares dos livros que escrevi. De toda forma, será preciso arrumar novas estantes e, com elas, invadir outros cômodos.

Um homem é o que lê, já dizia Joseph Brodsky. Tenho e tive amigos admiráveis com bibliotecas tão admiráveis quanto. René Dotti, Eduardo Rocha Virmond, Fábio Campana são alguns exemplos. Paulo Venturelli possui um apartamento-biblioteca. Marcio Renato mantém a sua apenas com livros de boa literatura, ele que também é resenhista.

Em certos momentos, sentado na poltrona da biblioteca, trato de folhear uma ou outra obra, que me levam a outras e assim o tempo passa sem doer. Nessas horas me considero um sujeito bem-aventurado. Com profunda piedade de quem não pode apreciar essa invenção incomparável que é o livro.

Haikais

Sopra o vento de inverno:
os olhos do gato
pestanejam.

Admirável
aquele que diante do relâmpago
não diz: a vida foge.

Um doce ruído
interrompe meu sonho:
gotas de chuva sobre a folhagem.

A cada brisa
a borboleta muda de lugar
sobre o salgueiro.

De que árvore florida
chega? Não sei.
Mas é seu perfume...

O azeite de minha lâmpada
consumido. Na noite,
pela minha janela, a lua.

Trégua de vidro:
o canto da cigarra
perfura rochas.

Estas pimentas:
acrescentai-lhes asas
e serão libélulas.

Vamos embora ver
a neve caindo
de cansaço.

Agora é inverno
e no mundo uma só cor:
o som do vento.
Bashô, "Haikais"

quarta-feira, maio 15

Sempre bem provido

 


Chuva

Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.

Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas certezas:

– Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu fato?

– Mas, Tia Tristereza: não está chover de mais?

De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.

Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade de estio se seguirá a punição das cheias?

Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:

– Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água.

E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.

– Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram.

– Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?

Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:

– A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique ...

Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atracção de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é onde a casa sonha ser mundo?

A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo:

– Tristereza, tira o meu casaco.

Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

Mia.Couto, "Estórias abensonhadas"

Irmã Água

Laudato sii mio signore per suora acqua, la quale è molto utile et humilde et pretiosa, et casta.
São Francisco, Il Cantico del Sole


O tanque está vazando pelo lado esquerdo. O reboco de cimento descascou-se e caiu em farelos, e a argamassa entre os tijolos cedeu lentamente ao teimoso empuxo da água. Quando o nível da pequenina enchente coincide com as frinchas da parede, os filetes escorrem, brilhantes, para o chão, alastrando uma nódoa escura e úmida que cresce duas vezes por dia. Primeiro a mancha era menor e a areia sorvia o líquido não permitindo ampliação. Agora, com a sequência do aguamento regular, há um trecho vagamente arredondado, vezes um polígono estrelado, ressaltando no solo cinzento do quintal, com uma orla mais densa e o centro escavando-se devagar e mesmo conservando um brilho de água parada.

Água escorrendo criou um novo centro de interesse e de vida. Não é água do tanque com as folhas, o lodo verde-negro e na superfície o vagaroso perpassar de Dica, com as seis patas altas como andaimes, passeando sem molhar-se. Água correndo no chão, dando outra cor, modificando a paisagem rasteira, alargando-se constantemente com a contribuição serena das seis a quinze horas. Os fios, com a força de impulsão, escorregam descendo as ladeiras minúsculas, espalhando as tonalidades diversas, vencendo e dissolvendo os torrões de barro, rasgando canais de brinquedo, fazendo curvas como um rio, detendo-se ante pedrinhas inarredáveis mas ladeando, cercando-as de dois braços trêmulos e continuando a jornada enquanto recebem o reforço vindo das brechas imperceptíveis. Na outra hora já o terreno consente mais fácil passagem, disciplinado pela água anterior e os canais se afundam, em milímetros orgulhosos, sacudindo a cabeça de água para frente, conquistando polegadas no rumo da telha enterrada onde residem as baratas da rainha Blata. Já existe mesmo uma formação de lama que é a franja daquela força em proporção mínima. A absorção da terra limita a expansão do território úmido. Todo o processo erosivo deu um aspecto imprevisto de cordilheiras, planícies, banhados, caminhos íngremes mesmo um complicado sistema intercomunicativo de fiozinhos de água, que parece ter sido copiado dos postais do Tirol ou da Suíça. Mas todo este mundo medirá metro e meio e as altitudes assombrosas irão aos cinco centímetros. Mas é um mundo já respeitado pelas formigas pretas e as aves preferem esta região ao tanque oceânico para a alegria de molhar as patas.

Para fechar o círculo irregular as cores se tornam mais claras relativamente aos graus de secura, indo numa gradação de tonalidades até confundir-se como o solo comum do quintal.

Das seis às sete e das quinze às dezesseis lá vem água visitando seus novos domínios, ensopando-os, afundando as estradas, dizendo-se senhora daquele trecho que era jurisdição mansa e pacífica da rainha Blata, usado para banhos de sol ou vadiagem ginástica.

Deve ter sido um cataclismo para os moradores do subsolo. Transformação absurda, verdadeira revolução catastrófica, aquela inundação que ninguém havia previsto, obrigando mudança imediata. Às pressas, numa improvisação de todos os serviços de transporte e busca para afixação noutro pouso, com os incômodos de arranjo e colocação totais. Uma multidão de besourinhos, de cinco milímetros para baixo, emigrou desordenadamente, aos bandos dispersos, numa marcha divergente e tonta, salvando-se do dilúvio sem profecia. Mesmo a boca de um formigueiro de Ata desapareceu na avalancha e a continuidade da regação aterrou-o em definitivo. Creio que a rainha Ata deve ter castigado seu serviço de meteorologia que, desta vez, “dera água”, não anunciando em tempo útil o fenômeno alagador.

Quando água deixa de correr, minutos depois, a terra se ergue num e noutro ponto, elevada e fofa, demonstrando mais uma evasão pelo caminho que o relevo de areia frouxa denuncia. Ninguém podia calcular o número de formigueiros existentes nesta área inundada. Nem quantos besouros estavam domiciliados regularmente nos limites que a água dominou. Não havia sinal pelo exterior que as moradas estivessem instaladas ali e tantas vidas ligassem a rede dos hábitos àquele local de poucos palmos de extensão. Só depois da água banhar o terreno e torná-lo úmido e diverso do estado anterior é que o recenseamento evidenciou o número incontável dos habitantes tranquilos do recanto.

A água possibilitou uma situação favorável ao aparecimento de plantinhas humildes, vergônteas que surgiam tímidas como pedindo desculpas pelo seu atrevimento de nascer. Espécies de capim, com folhas duras e finas como pontas de lança. Depois um arremedo de bredo de palmas pequeninas e ásperas, bronzeadas. Espantosa força germinativa. A semente esperara anos e anos a sua ocasião favorável para romper a camada e pedir um pouco de sol.

Em 1946 os americanos fizeram saltar as usinas Krupp em Essen. Os edifícios imensos, salas infinitas, oficinas tentaculares onde escorria o aço fundido como prata líquida, os altos-fornos imponentes, os martelo-pilões poderosos, um conjunto de milhares de toneladas de cimento armado, ferro e aço mudou-se numa série de montões de ruínas precoces, símbolos duma atividade condenada pelo vencedor. Durante cem anos a maquinaria possante fizera estremecer o solo em quilômetros derredor, no estridor da tempestade em que se fundiam e calibravam os canhões temerosos. Derrubada a cidade Krupp, na primeira primavera subsequente os destroços cobriram-se de malvas azuis, brancas, lilases. No fundo da terra sacudida pelas máquinas de guerra e aquecida pela irradiação dos fornos sempre acesos estavam as malvas intactas em sua força, aguardando o minuto da ressurreição. Quando as usinas Krupp caíram, as malvas ressurgiram como eram antes, com as mesmas cores, formatos e dimensões, inalteradas.

Fiquei pensando que debaixo dos edifícios que governam o mundo há sempre uma semente adormecida, sonhando com sua libertação para reaparecer e espalhar as pétalas esquecidas dos olhos humanos. Os palácios jamais admitirão a possibilidade de existir uma planta, quarenta ou vinte metros depois do seu peso dominador, espreitando que a tonelada opressora desapareça para renascer e florir.

Naturalmente todos sabem que os insetos não bebem água. Não é bem assim. Não bebem água no tanque, porque alguns, pela sua pequenez, não conseguem romper a resistência da superfície que lhes deve parecer uma lâmina de marfim. Na terra molhada, no barro porejante e úmido, é possível sorver com a tromba solícita as gotículas. Somente agora vejo os bandos de borboletas, miúdas, amarelas com laivos azuis, paradas no pequenino charco, asas imóveis, desalterando-se.

A terra molhada tem revelado um mundo estranho. Besouros desenhados com um rigor geométrico e outros com intenções abstracionistas e perturbadoras, pequeninos, luzentes, apressados, de todas as cores, todos lindos, adejando as duas antenas inquietas sobre a cabecinha redonda e negra de obstinados. Uns de pernas invisíveis, altos outros, aranhas esquisitas, com andar aos saltos sobre presas que ninguém vê, insetos com as patas posteriores em eterno balanceio, como estabelecendo equilíbrio, coleópteros esguios, magros, rápidos, passando com um ar de quem deixou uma conferência internacional e vai escrever o relatório para o governo que o enviou, pulgões branquicentos, lesmas de dorso escuro como lama e o anverso parecendo âmbar, paquinhas, grilos-d’água, abrindo túneis com as patas fortes como braços de Sansão e, às vezes, num listrão alvadio, preguicento, escorregando de um orifício para reenterrar-se noutro, grandes minhocas de vida misteriosa e subterrânea. Há quase sempre um grupo de minhoquinhas ou vermes curvos como parênteses, agitando-se como se fizessem ginástica para rins, juntos, atrapalhados com os corpos como traje inusitado e novo, atraindo o voo imediato e fulgurante do bem-te-vi ou da lavadeira. Devem ser pitéus excepcionais porque, via de regra, as aves levam no bico, para os ninhos, comida inesperada para os filhos de bico aberto.

É muita imaginação pensar num rio subitamente atravessando um deserto.
Provocaria uma revolução em círculos concêntricos, cada vez maiores na proporção do afastamento do centro. Flora, fauna modificar-se-iam determinando a vinda e nascimento de novas espécies vegetais e animais. E a zona de conforto faria a movimentação de vidas e interesses sem conta, encadeadas no brusco aparecimento de alimento certo em ponto fixo. Se este filete de água de um tanque, vazando, trouxe tantos motivos para o ciclo destas existências, que será no macrocosmo o que neste microcosmo vive?

Curiosa foi a reação do mandarim Fu. Sapo terrestre, anfíbio mais honorário que efetivo, não resistiu à tentação da terra molhada que ele goza nas raras fugidas, capengando, para a lagoa distante. Ali perto a umidade seduziu-o e, ao anoitecer, Fu deixa a residência e vai, não aos saltos mas no seu andar arrastado, de trejeito custoso, atravessar o trecho que água corrente refrescou.

Põe as patas espalmadas e largas na areia molhada num sabor de divertimento difícil. Como a fugida infantil para um banho no rio ou na maré. A leve camada de lama gruda-se-lhe entre os dedos, valendo uma carícia. Atravessa os curtos dois palmos deliciosos. Para na outra margem. Volta-se com lentidão majestosa. Fica imóvel, olhos radiosos, batendo o papo, engolindo vento, vivendo sua vida. É um volúpia consciente a que dedica horas. Vezes abocanha no ar algum mosquito atrevido ou asas que trouxeram o dono para perto, interrompendo-lhe a cisma deleitosa. Não deixa facilmente o far-niente de meditação e alegria silenciosa. É talvez a concentração mais digna entre as homenagens à água eterna onde fora gerado e amou, roçando, comprimindo o peito e o ventre no frescor do solo ressumante.

Não discuto que a posição é cômoda para a caça e esta procura justamente o ponto novo. Os insetos miúdos que residem nos arredores são salteados ao sair da porta. Deduzo que existe uma atração em calcar terra úmida mesmo para os pesados e lentos coleópteros que, sem necessidade aparente, vão atravessando a faixa, deixando as linhas ponteadas de seus rastros. As baratas redondas, ásperas e escuronas, sem a quitina protetora e outras, grandes, levemente amareladas, de asas friccionantes e rumorosas, cabeça negra, rondam a mancha do futuro lameiro liliputiano. Devem encontrar a massa de mosquitos quase impalpáveis e esvoaçantes as lagartixas noturnas. Mas as baratas e baratonas que vão fazer no pequeníssimo banhado de bonecas? Só o mandarim Fu, em pose de cálculo especulativo, informará.

Curioso é constatar que unicamente as formigas evitam transpor o caminho molhado. Continuam teimando em reabrir a boca do formigueiro que, duas vezes por dia, era obstruído pela areia molhada. Depois desistiram e o caminho volteou pelo tanque, do lado direito onde o mandarim Fu possui sua mansão. Nunca as vi varando a estrada borrifada, isolada ou nas filas intermináveis em horas de serviço. Nas curtas horas em que água escorre há como uma fronteira intransponível, respeitada, indevassável.

As plantinhas nascidas não ficaram despovoadas. As de sua espécie possuem familiares que as procuram para sugar a seiva ou roer as folhinhas tenras. A seiva é diminuta e tênue mas as folhinhas tentaram umas lagartas esverdeadas, de cabeça roxa e pataria colorida de negro. Não demoraram muito tempo na vilegiatura porque o bem-te-vi e a lavadeira acabaram com o mostruário vivo.

Estas lagartas costumam acampar nas folhas mais baixas dos crótons mas sendo verdes confundem-se perfeitamente aos olhos técnicos dos pássaros. Nas plantinhas o verde era muito claro e vibrante, destacando o verde-escuro das lagartas, dando-lhe fundo que chamou as aves como uma isca irresistível.
Em certas horas há um inteiro corpo de baile e mosquitinhos, executando uma dança ascensional e descendente no mesmo eixo, quase batendo no chão, dão a impressão sugestiva de cada unidade ocupar uma dada posição no ar sem que deixe a simetria rígida da formatura vibrante e movimentada, arabesco de tapete persa. Este ballet justifica a assistência carinhosa de Vênia e toda uma corte de lagartixas, o mandarim Fu e intrusões súbitas do bem-te-vi, da lavadeira, dos canários e dos xexéus. Deve ser um bailado nupcial, um alarde festivo ao sexo, com a participação de damas e galantes que se candidatam não apenas à junção feliz mas às gargantas do público aplaudidor.

Debaixo da sombra fresca dos tinhorões, das taiobas com as folhas lembrando orelhas de elefante, há uma população que reside pendurada no caule, entre as folhas largas e no tronco. Estes pacatos moradores estavam mais ou menos livres das aranhas rendeiras. Com aquele espalhafatoso rodeio de mosquitos bailarinos, as aranhas aproveitaram imediatamente o mercado e uma série de teias espalhou-se nos arbustos e crótons próximos. Os mosquitos não são permanentes e a percentagem de vítimas é grande mas não diária. Quem ficou fornecendo contribuição forçosa às teias cavilosamente estendidas em situações estratégicas foi justamente o povo inocente e confiado dos tinhorões e das taiobas que, sem cuidar da maldade do mundo, cai nas malhas finas e resistentes das rendeiras esfaimadas. O mandarim Fu que jamais arriscara verificação por aquele quadrante começou uma viagem de inspeção com desastrosos efeitos locais. Até mesmo, sinistro, armado em guerra, audaz e bruto como um barão feudal, Titius fez-se notar, espalhando terror.

Água, depois de meses de insistente deslizar, atingiu o palácio funcional da rainha Blata, escavando um abismo de centímetros ao pé da telha e enchendo de água, subsequentemente, a buraqueira. Esta água parada forneceu moradia aos mosquitos indesejáveis do gênero tenoresco, cantores e divulgadores de moléstias que não interessavam ao canto de muro.

As frinchas do tanque alargaram-se e a irrigação ampliou sua área. O manto escuro e peguento alcançou o muro. Nasceram os “pega-pinto” (nictagináceas) fazendo, com o tempo, pequenos bosquezinhos frondosos. Hospedou um piolho que fez a delícia das aves e estas dedicaram horas na busca minuciosa e farta. Por causa desta busca outros vegetais apareceram, trazidos nos excrementos, utilizando a terra que se tornara fecunda. Pimenteira, goiabeira e mamão deram réplica ao renque que vivia no outro extremo. A pimenteira cobriu-se de frutinhas vermelhas como coral e, pela primeira vez, o canto de muro ouviu o sabiá cantar, beliscando as pimentas.

Também a constante aguação enrijou os tinhorões e a taioba orelha-de-elefante, tornando-os fortes e frondosos. A fauna cresceu sob sua proteção. Os filhos e vassalos de Quiró fizeram visitas noturnas a uma zona outrora deserta mas agora povoada e sonora. O velho tronco, estirado e morto, lavado pela água insistente apodreceu, arrastando os insetos diferentes, roedores de madeira, coleópteros imponentes que tentaram até Sofia que os enxergou numa noite de luar, embaçado e sentimental.

O fio de água esbarrou no muro e as raízes confusas das trepadeiras agradeceram o benefício. Um ramo baixou, nascido paralelo ao chão, coleando pelas pequenas elevações, e ligou-se ao tinhorão, abrindo a graça das flores em cacho, vermelhas e brancas. O beija-flor inaugurou-as com seu longo bico matutino. As folhas caindo cobriam o filete de água e eram cobertas por ele no dia imediato. Sensivelmente a terra adubava-se, sacudindo outras plantas, outras frutas reduzidas e que tinham expressão gustativa para os pássaros que as espalhavam. E porque ficavam comendo ao redor delas, outras espécies surgiam, sacudidas nas fezes, empurradas para o solo pela água singela e pelas folhas humildes que se tornavam negras e pesadas de umidade.

Quando os mosquitos repetiam seu bailado de morte feliz, já o número de assistentes era vultoso e eficiente. Fu já podia ocultar-se na sombra de folhas espalmadas e aproximar-se sem ser visto de besouros ornamentais. Licosa e Titius deram mesmo a honra de estender por ali seus territórios de caça noturna. Do tanque ao muro era a pista de corrida da lavadeira. O depósito de água ficou reservado para beber e banhar-se. Não tinha a dimensão em superfície daquela praia sem água mas convidativa e fácil.

Dica, aranha-d’água orgulhosa, foi a única a não deixar o velho domínio. Nunca pôs uma de suas seis patas compridas fora do tanque para visitar os melhoramentos do canto de muro.

A infiltração deve ter procedido a modificações curiosas no subsolo. Deverá existir outros moradores atraídos pela nova temperatura e a região será o caminho real de espécies que amem a umidade relativa. Mas tudo dentro de uma escala de valores de milímetros e centímetros, um pequenino mundo humilde que passaria despercebido para os olhos comuns, seduzidos por outras tentações sensíveis.
O rumor dos zumbidos, chilreios, sussurros abafados, estalidos de gravetos tombados, folhas secas, levava a doce sonoridade silenciosa do fio de água escorrendo na areia cinzenta. A solidão se enchera de asas, teias, ciladas, tocaias, armadilhas, ânsias, júbilos, decepções.

O suave milagre fixador da vida e da batalha sem pausa fizera a Irmã Água humilde e útil, preciosa e casta, molhando a terra sem nome de um canto de muro tranquilo.

Luís da Câmara Cascudo, "Canto de Muro"

Papagaiadas

Quando o veterinário, depois de um cuidadoso exame, disse que não havia motivo para preocupação, porque os sintomas não indicavam senão uma mudança de hábito comum aos psitacídeos na idade adulta, o papagaio, vendo-se assim denominado, tomou-se da justa ira que caracterizara seus antepassados e declarou solenemente, com todos os pê-quê-pês, que psitacídeo era a vaca da mãe do veterinário.

***

Insuportáveis são os fantasmas de piratas. Chegam de madrugada, tomam todo o nosso rum e quando se vão, de manhã, esquecem na sala o papagaio.

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O tenor do condomínio e o papagaio do vizinho ensaiam um dueto: o sole mio.

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O papagaio de Flaubert papagueava bonjour mon chéri, bonsoir ma chère, bonne nuit, madame Bovary.

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Um papagaio pode até morrer, mas nunca sem antes pedir socorro e, se possível, um cafezinho.

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O homem morreu há um ano, mas o começo de sua música preferida ainda é cantado pelo papagaio: Fascination.

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Ninguém como um chato para contar a mesma piada uma noite inteira, sem trocar o papagaio nem os palavrões.

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O papagaio suburbano, assim que acorda, exige: patroa, esse café é pra hoje ou pra amanhã? Ô saco! Ninguém merece!

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Não, o papagaio de Flaubert não cantarolava a Marselhesa.

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Num leilão, quanto valeriam a machadinha de Raskolnikov, o papagaio de Flaubert e o capote de Gogol?

terça-feira, maio 14

Sempre à espera

 


Ruas

As vozes chegavam até mim, numa mistura de sons e de harmonia desconhecida. Parei. A rua enchia-se de magia. Havia qualquer coisa no ar que me impedia de respirar. Era algo que não queria perder, que me seduzia e me sufocava. Num momento, voava para paraísos novos e num outro, sentia-me no chão, embalada por mil e um tons de um cântico. Era a felicidade que chegava. Discreta e pujante, num ritmo que se confundia em vários andamentos. Um cântico que se transformava em hino . Estava ali. Bem perto. Naquelas vozes que me entonteciam e me faziam exultar. E a revelação fez-se. Era a música que se me descobria numa rua estreita e ignota. 

Maria José Vieira de Sousa, "Memórias de um tempo feliz"

O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
infantil de ter pequenas coragens.

Vínicius de Moraes, "Jardim Noturno - Poemas Inéditos"

Ficção climática: a nova safra de livros que reflete a crise ambiental

Cenário de “Água turva”, novo romance de Morgana Kretzmann, o Salto do Yucumã, maior queda d’água longitudinal do mundo, no noroeste gaúcho, despareceu da paisagem esta semana. No livro, é a construção de uma hidrelétrica que ameaça alagar o Parque do Turvo, reserva ambiental que abriga as cascatas e é o último reduto da onça-pintada no Sul do país. Na realidade, as chuvas que inundaram o estado nos últimos dias transbordaram o Rio Uruguai e submergiram o Salto do Yucumã.

— Hoje o Rio Grande do Sul inteiro é uma água turva, no sentido ambiental, político e social — lamenta Kretzmann, que nasceu em Três Passos, perto do Parque do Turvo.

“Água turva” tem três protagonistas: Olga, assessora parlamentar que denuncia o esquema de corrupção por trás da construção da hidrelétrica Gran Roncador; Chaya, guarda-florestal do Parque do Turvo; e Preta, líder de um bando de caçadores e contrabandistas que atua na fronteira argentina. Chaya e Preta são bisnetas de Serampião, curandeiro que zelava pela biodiversidade do Parque do Turvo (inclusive por uma onça mítica conhecida como Boca Braba). A região já sente o impacto das mudanças climáticas: Olga estranha o calor de 38 graus em outubro.

— Nesse livro, quis falar dos crimes ambientais e do contrabando que acontecem nessa fronteira quase esquecida do Brasil. E também sobre mulheres que se unem para proteger sua terra e têm fé não só naquilo que não veem, mas também naquilo que veem: o Turvo, o Rio Uruguai, o Yacumã — diz Kretzmann, que é formada em gestão ambiental.


As donas da história: Empregadas domésticas negras se tornam protagonistas de romances escritos por seus filhos, netos e sobrinhos

O romance será editado na França e na Alemanha e foi descrito por agentes literários europeus como um “thriller ecológico” — o mesmo rótulo colado em “Sobre os ossos dos mortos” (2017), da polonesa Olga Tokarczuk, Nobel de Literatura. “Água turva” se destaca em meio a uma safra de títulos recentes que abordam a crise ecológica, como “Contra fogo”, de Pablo L. C. Casella, protagonizado por uma brigada voluntária de combate a incêndios na Chapada Diamantina, e “Deslumbramento”, do americano Richard Powers, no qual Robin, um menino autista de 9 anos protesta em frente ao prédio do Poder Legislativo do estado de Wisconsin, nos EUA, com um cartaz onde se lê “Socorro estou morrendo”.

O garoto está bem. Ele se refere às espécies ameaçadas de extinção retratadas no cartaz. Robin se torna um militante após ver na TV que a menina suíça Inga Alder (inspirada na sueca Greta Thunberg) não vai mais à escola e convoca crianças para protestar contra a inação dos governos diante da emergência climática. Ele vende desenhos de animais em perigo para arrecadar dinheiro para a proteção da vida selvagem.

A onda de livros preocupados com a crise ecológica já tem nome: ficção climática. Inicialmente, a etiqueta parecia indicar mais um subgênero da literatura fantástica. Em 2017, no ensaio “O grande desatino” (lançado no Brasil pela Quina, em 2022), o escritor indiano Amitav Ghosh até reclamou que a chamada “alta literatura”, ainda presa às convenções do realismo, estava deixando para a ficção científica a tarefa de retratar o colapso ambiental. Depois, Ghosh identificou a proliferação de ficção climática não explicitamente filiada aos gêneros fantásticos a partir de 2018, ano da publicação de “The overstory”, romance de Richard Powers no qual as árvores têm tanta subjetividade quanto os humanos e que será lançado pela Todavia em 2025.

Pesquisador da Associação de Práticas e Pesquisas em Humanidades (APPH), André Araujo explica que a literatura realista se acostumou a tomar a natureza como um cenário estável onde se desenvolviam os dramas humanos. No entanto, o que antes era considerado excepcional e relegado ao fundo da cena (eventos extremos, por exemplo) vem ganhando cada vez mais protagonismo à medida que entramos no que o filósofo francês Bruno Latour chamou de “novo regime climático”.

— Precisamos agora de um novo regime narrativo, capaz de descrever a paisagem em transformação e que não esteja preso aos parâmetros de temporalidade, espacialidade e subjetividade da literatura realista tradicional — afirma o pesquisador. — Na literatura atual, há um impulso de tematizar a emergência climática, mas ainda está em desenvolvimento uma estética que dê conta do mundo em colapso, uma espécie de “realismo do Antropoceno”.

Para Araujo, a ficção climática está em alta no Brasil e na América Latina porque os países periféricos já estão sofrendo com mais intensidade as consequências do colapso ecológico. Bastam como exemplos os incêndios no Pantanal, em 2023, e a atual tragédia no Rio Grande do Sul.

De fato, a crise climática impacta primeiro gente como Deja, brigadista que combate incêndios na Chapada Diamantina em “Contra fogo”, o romance de Pablo L. C. Casella. “A gente não tá num tempo normal”, diz ele. “Cinco, seis incêndios acontecendo agora mesmo dentro do Parque?” Deja sente que os bichos, as plantas e ele são “quase a mesma coisa”. Até o fogo ele respeita. Demolir as hierarquias entre as espécies e falar sobre o não humano é uma das estratégias da literatura que reage à crise ambiental.

— Outro dia, aprendi o termo “biocracia”, que é uma tentativa humilde de nivelar todas as espécies. Os humanos não têm prerrogativas sobre as demais espécies, mas por muito tempo só nos importamos com a crise climática porque ela afeta a nossa sobrevivência, sem nos preocuparmos com o que fizemos com o restante da biodiversidade — diz Casella, que trabalhou no Parque Nacional da Chapada Diamantina.

O que o autor de “Contra fogo” chama de “ética da vida”, esse respeito por todos os seres vivos, também marca “Deslumbramento”, o romance de Richard Powers. Robin, o menino ativista, aprendeu com a mãe a seguinte oração: “Que todos os seres conscientes fiquem livres do sofrimento desnecessário.” Powers, que deu consciência até às árvores em sua ficção, acredita no poder da literatura de sensibilizar o público ao engajamento ecológico.

— Argumentos não mudam a opinião de ninguém. Às vezes, ver um gráfico até desmotiva uma pessoa. Já uma boa história pode mudar sua opinião, convencê-la da necessidade de reconstruir nossa relação com este mundo em vez de insistir na sua destruição — afirma o escritor. — Uma leitora, depois de terminar “Deslumbramento”, se engajou num grupo de proteção aos animais em risco de extinção e acabou presa em um protesto. Foi processada e condenada. Meu coração quase parou quando soube disso. Foi um momento de verdade para mim.

Desde que estudava gestão ambiental, Morgana Kretzmann já acreditava na capacidade de conscientização ecológica da literatura — esse foi o tema de seu trabalho de conclusão de curso.

— Pode parecer utópico, mas acredito na literatura como ferramenta de mudança de pensamento. Na comunhão entre quem escreve e quem lê, pode surgir um novo afeto pelo planeta — diz ela. — Paulo Freire disse que precisávamos de uma “educação planetária” (que contribui para a compreensão do mundo atual e discute alternativas para o futuro), e eu acredito em uma literatura planetária, portadora de consciência ecológica. O alarme já está soando há muito tempo, precisamos escutar.

sexta-feira, maio 10

Sexta de passeio


 

Estupidez é a montanha

Nós passamos as nossas vidas a lutar para conseguir que pessoas ligeiramente mais estúpidas que nós aceitem as verdades que os grandes homens conheceram desde sempre. Já há milhares de anos que eles sabiam que fechar uma pessoa doente num ambiente solitário torna-a ainda pior. Já há milhares de anos que eles sabiam que um homem pobre que é assustado, pelo seu patrão, e pela polícia, é um escravo. Eles sabiam. Nós sabemos. Mas será que a grande massa iluminada dos britânicos o sabem? Não. É o nosso dever, Ella, o teu e o meu, de lhes dizer. Porque os grandes homens são demasiado grandes para serem incomodados. Estão já a descobrir como colonizar Vênus e como irrigar a Lua. Isso é que é o mais importante para o nosso tempo. Tu e eu somos os empurradores da pedra. Todas as nossas vidas, tu e eu, temos que empregar as nossas energias, e todo o nosso talento, a empurrar uma enorme pedra por uma montanha acima. A pedra é a verdade que os grandes homens sabem por instinto, e a montanha é a estupidez da humanidade.

Doris Lessing, "O carnê dourado"

Os livros 'perigosos demais' para serem lidos

Segundo a lenda dos Livros Sibilinos, em uma cidade antiga, uma mulher ofereceu para venda aos moradores 12 livros contendo todo o conhecimento e sabedoria do mundo, por um alto preço.

As pessoas se recusaram a comprá-los, achando a proposta ridícula. A mulher então queimou ali mesmo a metade dos livros e ofereceu os seis restantes pelo dobro do preço.

Os moradores da cidade riram-se dela, desta vez um pouco constrangidos. Ela então queimou três e ofereceu o restante, dobrando novamente o preço. E, um pouco relutantes - eram tempos difíceis, seus problemas pareciam estar se multiplicando -, eles recusaram novamente a oferta.

Por fim, quando havia sobrado apenas um livro, os cidadãos pagaram o preço extraordinário que a mulher estava pedindo e ela foi embora, deixando que eles tentassem usar da melhor forma possível 1/12 de todo o conhecimento e sabedoria do mundo.

Os livros transmitem o conhecimento. Eles agem como polinizadores da mente, espalhando ideias que se autorreproduzem no tempo e no espaço.


Nós esquecemos o milagre que é ver as letras exibidas em uma página ou na tela de vidro, permitindo a comunicação de um cérebro para outro, no outro lado do mundo, ou a um século de distância no tempo.

Como diz o escritor americano Stephen King, os livros são "uma magia portátil única". E essa parte portátil é tão importante quanto a magia.

Um livro pode ser levado embora, escondido e ser sua própria fonte particular de conhecimento. O diário pessoal do meu filho, por exemplo, tem um acessório que não funciona, mas é simbolicamente importante: um cadeado.

O poder das palavras dentro dos livros é tão grande que há muito tempo é costume omitir alguns termos, como palavrões em romances do século 19; ou palavras poderosas demais para serem escritas, como o nome de Deus em alguns textos religiosos.

Os livros transmitem conhecimento e conhecimento é poder. Por isso, eles são uma ameaça para as autoridades - tanto para governos estabelecidos quanto para líderes autonomeados - que querem ter o monopólio do conhecimento e controlar o que seus cidadãos pensam. E a forma mais eficiente de exercer esse poder sobre os livros é proibi-los.

A história da proibição de livros é longa e ignóbil, mas não está morta. Ela segue sendo um expediente muito utilizado.

E o mês de setembro marcou o 40º aniversário da Semana dos Livros Proibidos, um evento anual que "celebra a liberdade da leitura".

A Semana dos Livros Proibidos foi lançada nos Estados Unidos em 1982, em resposta ao aumento dos questionamentos sobre determinados livros nas escolas, bibliotecas e livrarias.

É preciso admirar, de certa forma, a energia e a vigilância das pessoas que querem proibir livros hoje em dia, uma prática que costumava ser muito mais simples no passado.

Séculos atrás, quando a maioria da população não sabia ler e os livros não eram facilmente disponíveis, era possível restringir o conhecimento na fonte.

A Igreja Católica, por exemplo, por muito tempo dissuadiu as pessoas de terem suas próprias cópias da Bíblia, aprovando apenas uma tradução em latim que poucas pessoas comuns conseguiam ler.

A justificativa era evitar que os leigos fizessem má interpretação da palavra de Deus, mas também os impedia de desafiar a autoridade dos líderes da igreja.

Mesmo quando as taxas de alfabetização aumentaram, como ocorreu quando o Reino Unido introduziu leis sobre a educação no final do século 19, os livros continuaram sendo caros, particularmente as obras literárias de ponta, cujas palavras e ideias eram mais duradouras (e, potencialmente, mais poderosas).

Foi somente nos anos 1930, com as editoras Albatross Books e Penguin Books, que o novo público que ansiava por livros acessíveis de qualidade teve seu apetite satisfeito.

E, simultaneamente, a proibição de livros passou a assumir nova forma, com os censores tentando acompanhar desesperadamente a proliferação de novos títulos que abriam os leitores para novas e perturbadoras ideias.

Mas a surpresa sobre a expansão da proibição dos livros no século 20 foi observar como é abrangente esse desejo de "proteção".

O governo da China, por exemplo, continua a emitir até hoje decretos contra livros nas escolas que "não estejam alinhados com os valores centrais socialistas [do país]; que tenham visões de mundo, da vida e valores distorcidos".

Estas são palavras flexíveis que podem ser aplicadas a qualquer livro que as autoridades desaprovem, por qualquer razão - mesmo que "os alunos, na verdade, não olhem mesmo para eles", como observou um professor em 2020 ao retirar das prateleiras da biblioteca da escola os clássicos de George Orwell: A Revolução dos Bichos e 1984.

Na Rússia, a proibição de livros sempre foi uma atividade notadamente pública, considerando a quantidade de grandes escritores que o país exportou, querendo ou não, para o restante do mundo.

Na era soviética, por exemplo, o governo tentou exercer o máximo de controle possível sobre os hábitos de leitura dos seus cidadãos, da mesma forma que sobre os demais aspectos das suas vidas.

Em 1958, o escritor russo Boris Pasternak recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo seu romance Doutor Jivago, que havia sido publicado na Itália no ano anterior, mas não no seu país.

O prêmio despertou tanto a ira das autoridades soviéticas (a imprensa controlada pelo Estado chamava o livro de "obra maliciosa e artisticamente esquálida") que Pasternak foi obrigado a recusá-lo.

O governo repudiava o livro não só pelo que ele deixou de incluir - a obra não enaltece a Revolução Russa) -, mas também pelo que havia nele: enfoques religiosos e celebração do valor do indivíduo.

E, observando o "grande valor de propaganda" de Doutor Jivago, a CIA fez com que o livro fosse impresso na União Soviética.

A proibição de livros na URSS levou ao desenvolvimento da literatura samizdat (autopublicada). A ela devemos, por exemplo, a preservação da obra do poeta russo Osip Mandelstam (1891-1931).

O escritor dissidente Vladimir Bukovsky foi quem resumiu a samizdat: "Eu mesmo escrevo, edito, censuro, publico, distribuo e cumpro a pena de prisão".

Mas o Ocidente se engana ao acreditar que o mesmo não acontece por aqui. Quando livros são proibidos ou existem tentativas de proibição, o argumento é o mesmo de qualquer outra parte do mundo: o objetivo é proteger o cidadão comum, que aparentemente é tacanho demais para julgar as obras por si próprio, contra a exposição a ideias degradantes.

No Reino Unido, a proibição de livros muitas vezes tem sido uma ferramenta contra a percepção de obscenidade sexual.

Ela é tipicamente uma tentativa de usar a força bruta da lei para impedir mudanças sociais - uma tática que sempre falha, mas, mesmo assim, é irresistível para as autoridades que só pensam no curto prazo.

Muitos escritores viram sua reputação melhorar graças às leis britânicas sobre a obscenidade. James Joyce teve essa percepção ao afirmar, enquanto escrevia seu livro Ulysses que, "apesar da polícia, gostaria de incluir tudo no meu romance".

Ulysses foi proibido no Reino Unido entre 1922 e 1936, embora o censor responsável pela proibição tivesse lido apenas 42 das 732 páginas da obra. "Tudo", conforme mencionado por Joyce, incluiu masturbação, palavrões, sexo e idas ao banheiro.

Já o poeta e romancista D. H. Lawrence foi um caso especial. Suas obras, que frequentemente continham atos sexuais que Lawrence observava com reverência espiritual, foram o alvo de uma campanha da procuradoria pública britânica por anos.

Seu romance O Arco-Íris foi queimado, sua correspondência foi interceptada para apreender sua coletânea de poemas Pansies ("Amores-perfeitos", em tradução livre) e houve uma batida policial em uma exposição da sua arte.

E a vingança prosseguiu até mesmo depois da morte do escritor, quando a Penguin Books foi processada por publicar a obra O Amante de Lady Chatterley, em 1960.

O julgamento é famoso: a editora convocou dezenas de escritores e acadêmicos para confirmar as qualidades literárias do romance - embora a escritora de livros infantis Enid Blyton o tenha rechaçado.

E o juiz exemplificou a desconfiança do Estado sobre os leitores comuns ao aconselhar o júri a não confiar nos especialistas em literatura: "É assim que as meninas que trabalham na fábrica irão ler este livro?"

Mas o júri decidiu a favor da Penguin por unanimidade, o que foi coroado por uma deliciosa ironia. Três anos atrás, seis décadas depois da tentativa de proibir o livro, o governo britânico evitou que a cópia de O Amante de Lady Chatterley usada pelo juiz fosse vendida para o exterior, para que "possa ser encontrado um comprador para manter no Reino Unido esta parte importante da história do nosso país".

Já nos Estados Unidos, é uma espécie de tributo para o poder duradouro dos livros observar que proibi-los continua sendo algo tão comum num mundo em que cada nova onda de tecnologia, da TV ao vídeo game e às redes sociais, atrai temores sobre seu conteúdo "inadequado".

As escolas são um nicho específico de tentativa de censura, em parte porque dirigir a mente maleável das crianças parece ser uma forma eficiente de eliminar possíveis riscos, mas também porque (ao contrário das livrarias) as diretorias das escolas são vistas com algum grau de influência pela comunidade.

Em 1982, ano do lançamento da Semana dos Livros Proibidos, chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos um caso de tentativa de censura na escola (no Distrito Escolar Island Trees, no Estado de Nova York, EUA).

O conselho escolar argumentava que "é nossa obrigação moral proteger as crianças das nossas escolas contra este perigo moral, além certamente dos riscos médicos e físicos".

Os riscos a que eles se referiam eram livros "antiamericanos, anticristãos, antissemíticos e puramente indecentes". A acusação de antissemitismo referia-se ao romance O Faz-Tudo (Ed. Record, 2006), do romancista judeu Bernard Malamud (1914-1986).

Mas o tribunal concluiu, com base na Primeira Emenda à Constituição americana, que os "conselhos escolares locais não podem retirar livros das bibliotecas escolares simplesmente porque eles não gostam das ideias contidas nesses livros". Mas isso não impediu as tentativas de proibição.

Um dos principais temas que causam proibições de livros nas escolas e bibliotecas americanas é o sexo. "Os Estados Unidos parecem ter muita preocupação com sexo", segundo o escritor James LaRue, quando era diretor do Escritório de Liberdade Intelectual da Associação Americana de Bibliotecas, em 2017.

Tradicionalmente, sexo significava obscenidade. Isso levou o juiz americano Potter Stewart a lançar sua famosa definição do que é "pornografia explícita" em um processo judicial em 1964: "Eu sei quando a vejo".

Mas, hoje em dia, "sexo" em proibições de livros significa mais frequentemente sexualidade e identidade de gênero. Os três livros mais contestados de 2021 nos Estados Unidos foram questionados devido ao seu conteúdo LGBTQIA+.

Isso traz à discussão a ideia de que certos livros são proibidos para proteger os jovens, não como tentativa de purga ideológica. E demonstra a falta de imaginação dos censores, que defendem que a exibição (por exemplo, de pessoas transgêneros) é que causa o fenômeno e não o contrário.

Esta concepção está ligada à crença de que as coisas de que não gostamos podem ser ignoradas com segurança - basta não as vermos impressas. Um livro que é presença constante entre os 10 mais citados na lista de livros proibidos nos Estados Unidos é o clássico moderno O Olho Mais Azul (Ed. Companhia das Letras, 2019), da escritora americana Toni Morrison (1931-2019), devido à sua descrição de abuso sexual infantil.

Mas a censura literária nos Estados Unidos tem uma longa história. Sua primeira vítima famosa foi o romance antiescravagista A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, publicado em 1852.

Em 1857, um homem negro de Ohio (EUA), Sam Green, foi "julgado, condenado e sentenciado a 10 anos de prisão na penitenciária" por "estar de posse de A Cabana do Pai Tomás". O fato de que a obra atualmente é criticada com mais frequência pelo lado progressista do espectro político, por retratar os personagens negros de forma estereotipada, é uma reviravolta da história.

Quanto mais importante for um livro, maior a probabilidade de que ele atraia a atenção dos censores. Um livro que vem sendo questionado regularmente nos Estados Unidos é O Apanhador no Campo de Centeio (Ed. Todavia, 2019), do escritor americano J. D. Salinger (1919-2010).

Um professor foi demitido em 1960 por ensinar sobre a obra, que depois foi retirada das escolas nos Estados de Wyoming, Dakota do Norte e Califórnia, nos anos 1980.

O argumento para a proibição do romance de Salinger é tipicamente por profanidade e linguagem obscena, embora sua frase de abertura, com tudo aquilo "meio David Copperfield", possa parecer antiquada hoje em dia.

A proibição de livros é uma atividade ampla, que reúne livros que normalmente não andam juntos. Ela engloba um pouco de tudo, desde ficção popular (como Peter Benchley, Sidney Sheldon e Jodi Picoult) até clássicos consagrados (Kurt Vonnegut, Harper Lee e Kate Chopin).

Ela tem mais alvos que um torneio de arco e flecha, que vão desde acusações de veneração do ocultismo (a série Harry Potter) até o ateísmo (O Estranho Caso do Cachorro Morto, de Mark Haddon - Ed. Record, 2004).

Mas, evidentemente, há esperança. A publicidade trazida pela Semana dos Livros Proibidos, por exemplo, leva esses livros e a questão da censura para os holofotes.

E existe o chamado "Efeito Streisand" - tentar proibir livros faz com que mais pessoas tomem conhecimento da sua existência. Nos Estados Unidos, algumas livrarias Barnes and Noble mantêm mesas de livros proibidos e seu website tem uma categoria separada para eles.

No Reino Unido, uma feira de livros raros na Galeria Saatchi, em Londres, exibiu e colocou à venda edições raras de livros proibidos, desde um raríssimo exemplar autografado de O Apanhador no Campo de Centeio (ao preço de 225 mil libras, ou cerca de R$ 1,34 milhão) até o clássico Das Revoluções das Esferas Celestes, de Nicolau Copérnico, que escandalizou a Igreja Católica em 1543, ao sugerir que a Terra não era o centro do sistema solar (cotado em 2 milhões de libras, ou cerca de R$ 11,9 milhões).

Mas a eterna vigilância, não só da Associação Americana de Bibliotecas, mas de todos os leitores, em todas as partes do mundo, é o preço de manter nossas ideias vivas. Como nos conta a história dos Livros Sibilinos, livros podem ser queimados, seu conhecimento pode ser perdido e nada dura para sempre.

Lá Vem ou lá Foi, eis a questão

Não sei se alguém já disse isto, mas tudo neste mundo é relativo. Por exemplo, não escondo ou diminuo minha idade, embora não censure quem o faça, mas tampouco a aumento, como já foi minha prática corriqueira. Ao matutar agora, neste fim de ano, que como sempre nos traz um estado de espírito diferente, lembro o tempo comoventemente patético em que, na companhia de amigos corajosos, dispensava a carteira de estudante que, em troca da meia-entrada, me denunciava a idade, para enfrentar com a bravura possível a severidade do porteiro do cinema, quando estava passando “filme impróprio”. Entregava meu ingresso e me embarafustava pela passagem, antes que meu rosto imberbe e cheio de espinhas chamasse a atenção do porteiro. A maioria deles era simpática, mas havia um (não esqueço a cara dele, baixinho de bigode, hoje certamente falecido e Deus o tenha, embora eu não faça tanta questão), no antigo Cine Glória em Salvador, que me pegava sempre e que quase me fez perder a cena em que aparecia um peito de Françoise Arnoul, num filme em que ela era amante de Fernandel.

Sim, só a turma de meu tope se lembra, se é que se lembra, de Françoise Arnoul e Fernandel, mas não tem importância. Basta imaginar a espera palpitante na fila, o suspense da passagem pelo porteiro e a ansiedade terminal de quem ia ver pela terceira ou quarta vez, ou quantas lhe coubessem no esquálido orçamento, um peito de Françoise Arnoul. Se bem me lembro, a cena era trivial e podia ter acontecido de forma imprevista, mantida mais tarde pelo diretor, tamanha era a casualidade com que acontecia. Discutindo com Fernandel, Françoise Arnoul, de combinação e sem sutiã (e isto, distinta jovem, amável rapaz, num tempo em que as atrizes americanas dormiam maquiladas e de sutiã e ficavam grávidas sem que a barriga aumentasse), vai pegar algo, uma alça da combinação escorrega e — aaaaai! — aparece um peito durante meio segundo, que ela logo esconde outra vez, com uma puxada distraída na alça. Barato indescritível, insubstituível, irrevivível.

Aumentei muito a idade por causa dos filmes impróprios. Cheguei a ser uma autoridade no assunto, talvez o rapaz de minha idade que a mais filmes impróprios assistiu. Devo dividir com mais uns dois ou três gatos-pingados a lembrança, há muito levada pelo vendaval do tempo, das deusas que ninguém mais celebra. Não me refiro a Martine Carol, Silvana Pampanini e outras ainda saudosamente cultuadas, num eventual momento de solidão nostálgica, pelos quirômanos d’antanho (domingo, dia de levantar dicionário, precisamos fazer alguma coisa quanto à barriga — pelo menos eu preciso), ainda hoje na ativa. Eles não esqueceram, por exemplo, da lourinha Mylène Demongeot, que tanto sucesso fez no Rio de Janeiro e que hoje estará sabe-se lá onde. Tentei uma enquete, ninguém se lembrava de Mylène Demongeot. Eu me lembro de Mylène Demongeot. E também tem outro coroa, de quem muitos de vocês já devem ter ouvido falar, que se lembra de Mylène Demongeot, só que com muito mais profundidade do que eu, mas não lhe posso revelar o nome porque a mulher dele pega pesado.

E também levo vantagem pela minha condição de itaparicano. Hoje em dia não tem cinema em Itaparica, mas já teve. Teve dois, aliás, sendo que um, o de Waldemar, no Alto de Santo Antônio, era com poltrona estofada, coisa finíssima. Já o de Nélson era no Campo Formoso, mais ou menos perto lá de casa e, quando a bilheteria fraquejava, Nélson contratava uma série policial (não vou explicar o que era o perigo da série às novas gerações, quem tem seu neto que se vire) e um filme impróprio. Comparecimento infanto-juvenil garantido, e ninguém era besta de negar entrada aos meninos, não só por consideração a Nélson como porque do contrário os pais iriam reclamar, era pelo menos uma folguinha que eles tinham. O que eu vi de peito europeu, modéstia à parte, merecia um certo reconhecimento cultural.

Mas não era sobre peitos, hoje mais à mostra que feijão na feira, que eu queria escrever, à beira deste ano que vai entrar. Queria apenas referir-me à ironia com que a vida nos trata o tempo todo. Aumentei a idade para ver peitos no cinema. Aumentei a idade para não ser considerado pirralho pelas moças (mas mesmo assim era). E cada réveillon me deixava ansioso que passassem logo os dias até meu aniversário, que é no mesmo mês. Era um ano começando, era eu ficando mais homem, eram perspectivas se abrindo — era, enfim, uma boa sensação ver um ano esvoaçando para nunca mais voltar e outro se abrindo em promessas, esperanças ou certezas, pois naquele tempo havia certezas, hoje finadas.
Bem, o futuro chegou, é isto aqui onde estou. De início, pensei que a vaga melancolia que me tem acometido era causada pelo que temo do que talvez venha pela frente. Pode ser isso, mas meu temor é misturado irracionalmente com esperança. Não, não era somente isso. Talvez já estivesse notando o que vou dizer e ocultando-o de mim mesmo, mas este ano foi que me pegou. Foi o primeiro ano que não sinto chegar, mas sinto passar. Daí ter pensado nesse título bobo. Para uns é mais um ano que vai, para outros é mais um ano que chega. 
Para mim, verdade, pois não cuspo no prato nem me queixo, também é um ano que chega. Mas é principalmente, sinto que doravante cada vez mais, um ano que vai. Claro que, para todos vocês, além de um ano que chega, é um ano que vai. Mas alcancei claramente um ponto em que decididamente o ano não chega, vai. E o próximo também irá. É bom saber disso, é bom para a humildade que deve acompanhar a condição humana. Boas entradas e, para os encalacrados, boas saídas.
João Ubaldo Ribeiro, "O rei da noite"

quinta-feira, maio 9

De volta ao aconchego

 


Filósofos e escritores que acreditavam que a literatura podia 'curar a alma'

Há obras literárias sobre as quais se pode afirmar que existe um consenso (quase) universal a respeito de sua relevância histórica. Elas oferecem uma visão profunda da complexa realidade humana, independentemente da época ou cultura em que foram escritas.

Nessa categoria podemos encontrar a Bíblia Sagrada, A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, os romances e contos de Dostoiévski, Tolstoi, Charles Dickens, Thomas Mann, Kafka e Borges, as obras de Shakespeare e Sófocles, Ilíada e Odisseia, de Homero, Eneida, de Virgílio, e por aí vai.

Nesses livros, e em centenas de outras obras, são exploradas as profundezas do coração humano, que não mudou essencialmente ao longo da história.

Neles, estão gravadas a sabedoria e a experiência humana acumuladas ao longo de milênios, o consenso sobre o que é essencialmente humano, com sua carga de verdade e mistério.

E justamente porque contribuem para revelar essa verdade atemporal do ser humno, estas obras literárias oferecem um efeito curativo para quem as lê.

Uma capacidade que não passou despercebida por povos antigos.

Mas, afinal, até onde podem chegar os efeitos benéficos, inclusive terapêuticos, da grande literatura?

A função da catarse na tragédia grega não era diferente: com a “palavra bela” (logos kalós) se buscava purificar o espectador de suas próprias concupiscências.

Vê-las projetadas nos personagens da peça ajudaria a aliviar tensões e moderar a hybris (termo grego que remete a um excesso de ambição, orgulho, que levaria em última análise à ruína do transgressor), ou seja, colocaria os sentimentos mais elementares em seu lugar.

No diálogo platônico Crátilo, é dito que belos discursos, palavras bonitas e apropriadas, são capazes de causar sophrosyne (isto é, serenidade) na alma do doente.

Assim, ele pode permanecer katharòs katá ten psykhen, com a alma purificada.

Algumas décadas depois, Aristóteles ensinava que o espetáculo da tragédia é capaz de produzir essa operação catártica na alma do espectador, esse efeito purificador dos belos discursos.

Os pitagóricos, que consideravam que a música elevava e purificava a alma, estabeleceram assim “uma espécie de farmacopeia musical” para os diferentes tipos de paixões e momentos do dia.

E, dando um salto até a época contemporânea, o poeta espanhol José Hierro via na atividade poética "a tarefa de cicatrizar / de curar com palavras novas / as feridas antigas".

Para fins terapêuticos, o gênero pelo qual tem havido maior interesse é o narrativo.

À medida em que a doença revela um bloqueio interior, o filósofo alemão Walter Benjamin se pergunta "se toda doença não seria curável desde que se deixasse levar suficientemente longe pela corrente da narrativa... até a foz".

Os românticos chegaram à conclusão de que o ser humano não pode viver em um mundo totalmente “desiludido”, sem palavras no sentido da natureza e dos fatos, em um clima completamente imanente, sem lugar para as “narrativas” que oferecem consolo, como a religião, os rituais, a conexão com o todo, com o cosmos.

Neste sentido, o filósofo alemão Martin Heidegger também intuía que a natureza e o potencial da linguagem, especificamente da poesia, sustentam o seu poder de reconexão com o todo, com o sobre-humano, com o cosmos.

Alinhado com o que acreditava a geração romântica do final do século 18, se trataria de dar “voz aos desejos perenes do coração do homem”.

E apelavam à poesia, às emoções que ela provocava, porque a razão por si só é incapaz de acessar a totalidade da pessoa, abrangendo-a e compreendendo-a.

O poeta italiano Giacomo Leopardi acreditava que a razão tende a ocupar toda a alma. Baseada em qualquer princípio, leva-a às últimas consequências, mesmo quando contradiz a natureza: “A razão é muitas vezes uma fonte de barbárie e, em excesso, sempre é”.

A razão destrói as ilusões. Sem elas, os seres humanos não podem viver, e isso nos leva ao seu inverso, a barbárie. Para Leopardi, a razão deveria lançar luz, mas não causar um incêndio.

O poeta alemão Novalis já havia advertido que “a poesia cura as feridas que a razão inflige”.

Muitos poetas contemporâneos também manifestaram a mesma opinião sobre a função integradora das diferentes facetas do ser humano que a poesia tem. Assim se expressou Paul Claudel em sua carta a Alexandre Cingria:

“A poesia sente que cabe a ela recompor tudo, (…) encontrar mais uma vez o homem inteiro na unidade integral e indissolúvel da sua dupla natureza”.

E também o poeta espanhol Jaime Gil de Biedma:

“A poesia consiste em integrar fatos e objetos de um lado e significados do outro, e integrá-los em uma identidade que é ao mesmo tempo o fato, o objeto e o significado.”

Da mesma forma, os teóricos da expressão poética manifestaram seu consenso sobre a capacidade reconciliadora da poesia:

“O aspecto poético de uma poesia consiste em um modo coerente de sentimento e em um modo valioso de intuição. […] A intuição consiste em uma visão penetrante da realidade, na descoberta de um sentido mais profundo das coisas do que o sentido prático que nosso intelecto oferece."

As pesquisas realizadas sobre a leitura como psicoterapia são relativamente escassas — e acabam sendo bastante genéricas. Além disso, a colaboração interdisciplinar entre a literatura e a psicoterapia é relativamente recente.

Por outro lado, vale a pena olhar para trás, ler e reler essas obras-primas da linguagem humana, para captar a sua virtude curativa da alma, uma virtude que, sem ter sido comprovada cientificamente, foi experimentada por muitos ao longo da história, devido aos seus efeitos físicos, psicológicos e emocionais.

Vale lembrar que o que chamamos de poético não é exclusivo do gênero literário conhecido como poesia.

A intuição poética é encontrada em romances, ensaios, obras filosóficas e históricas. Para o poeta inglês Percy B. Shelley, por exemplo, “Platão foi essencialmente um poeta” — e “os grandes historiadores, Heródoto, Plutarco, Tito Lívio” também foram poetas.

O poeta, na visão de muitos autores, é um grande terapeuta, porque todos estamos feridos — e é ele quem consegue apontar onde está a ferida, algo essencial para poder remediá-la. E diferentemente dos medicamentos, a poesia não tem data de validade.

Como escreveu Adam Zagajewski, “a poesia — naturalmente, apenas a grande, a excelente — é uma das artes que menos ficam amareladas”.

Quão improdutivo será então o prazer improdutivo de ler poesia, como diria a polonesa vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, Wisława Szymborska?

A alma perdida

Sigefredo botou anúncio classificado, dizendo que perdera sua alma, com promessa de gratificar quem a encontrasse. Não explicou – nem podia – como a tinha perdido.

Apareceram algumas pessoas trazendo pacotes com almas, e nenhuma era a dele. Não se ajustavam a seu corpo, e, mesmo que ele quisesse fazer experiência, era evidente que não combinavam com o jeito de Sigefredo. E ele era muito ocupado. Não tinha tempo a perder.

Já se resignara a viver mesmo sem alma quando uma noite encontrou a desaparecida, à porta de um bar, com aparência de pobreza, mas tranquila.

Seu primeiro impulso foi recolhê-la, mas pensando melhor achou que não valia a pena. A alma de Sigefredo também não manifestou interesse em voltar para ele. Dir-se-ia que aprendera a viver por conta própria, e mesmo naquele estado era independente.

Sigefredo passou por sua alma sem cumprimentá-la, entrou no bar e pediu o drinque habitual. Ao sair, viu a alma, a pequena distância, dar alguns passos e lhe saírem dos ombros duas asas, com que ela se alteou, voando para a Zona Norte.
Carlos Drummond de Andrade, “Contos Plausíveis”

Barcos de papel

Quando a chuva cessava e um vento fino
Franzia a tarde tímida e lavada,
Eu saía a brincar, pela calçada,
Nos meus tempos felizes de menino.

Fazia, de papel, toda uma armada;
E, estendendo o meu braço pequenino,
Eu soltava os barquinhos, sem destino,
Ao longo das sarjetas, na enxurrada…

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
Que não são barcos de ouro os meus ideais:
São feitos de papel, são como aqueles,

Perfeitamente, exatamente iguais…
– Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais! 
Guilherme de Almeida

quarta-feira, maio 8

Na rota do porto

 


Felicidade da memória

As vozes chegavam até mim, numa mistura de sons e de harmonia desconhecida. Parei. A rua enchia-se de magia. Havia qualquer coisa no ar que me impedia de respirar. Era algo que não queria perder, que me seduzia e me sufocava. Num momento, voava para paraísos novos e num outro, sentia-me no chão, embalada por mil e um tons de um cântico. Era a felicidade que chegava. Discreta e pujante, num ritmo que se confundia em vários andamentos. Um cântico que se transformava em hino . Estava ali. Bem perto. Naquelas vozes que me entonteciam e me faziam exultar. E a revelação fez-se. Era a música que se me descobria numa rua estreita e ignota.

Maria José Vieira de Sousa, "Memórias de um tempo feliz"

A falsa eternidade

O verbo prorrogar entrou em pleno vigor, e não só se prorrogaram os mandatos como o vencimento das dívidas e dos compromissos de toda sorte. Tudo passou a existir além do tempo estabelecido. Em consequência não havia mais tempo.

Então suprimiram-se os relógios, as agendas e os calendários. Foi eliminado o ensino de História. Para que História? Se tudo era a mesma coisa, sem perspectiva de mudança.


A duração normal da vida também foi prorrogada e, porque a morte deixasse de existir, proclamou-se que tudo entrava no regime da eternidade. Aí começou a chover, e a eternidade se mostrou encharcada e lúgubre. E o seria para sempre, mas não foi. Um mecânico que se entediava em demasia com a eternidade aquática inventou um dispositivo para não se molhar. Causou a maior admiração e começou a recolher inúmeras encomendas. A chuva foi neutralizada e, por falta de objectivo, cessou. Todas as outras formas de duração infinita foram cessando igualmente.

Certa manhã, tornou-se irrefutável que a vida voltara ao signo do provisório e do contingente. Eram observados outra vez prazos, limites. Tudo refloresceu. O filósofo concluiu que não se deve plagiar a eternidade.
Carlos Drummond de Andrade, “Contos Plausíveis”

Tempo de aprendizagem


Leio por prazer e esse é o momento em que mais aprendo
Margaret Atwood

Livros russos raros, do século XIX, desparecem de bibliotecas de toda a Europa

Em abril de 2022, logo após a Rússia invadir a Ucrânia, dois homens chegaram à biblioteca da Universidade de Tartu, na Estônia. Eles disseram aos bibliotecários que eram ucranianos fugindo da guerra e pediram para consultar edições do século XIX de obras de Alexander Púchkin (1799-1837), o poeta nacional da Rússia, e Nikolai Gogol (1809-1852), pois queriam se candidatar a uma bolsa de estudos nos EUA. Ansiosos para ajudar, os funcionários concordaram. Os homens passaram dez dias estudando os livros.

Quatro meses depois, durante uma checagem anual do acervo, a biblioteca descobriu que oito livros que os homens haviam consultado haviam desaparecido, substituídos por fac-símiles tão fiéis que só olhos experientes poderiam diferenciá-los.

— Foi terrível — disse Krista Aru, diretora da biblioteca. — Eles tinham uma história muito boa.

A princípio, parecia um caso isolado. Mas não foi. A Europol está agora investigando o que acredita ser uma série vasta e coordenada de roubos de livros russos raros do século XIX — principalmente primeiras edições de Púchkin — de bibliotecas em toda a Europa.

Reprodução da 1ª edição (1822) do livro de Alexander Pushkin
na biblioteca da universidade de Warsaw, na Polônia


Desde 2022, mais de 170 livros avaliados em mais de US$ 2,6 milhões (R$ 13,2 milhões), de acordo com a Europol, desapareceram de bibliotecas em Letônia, Lituânia, Alemanha, Finlândia, França, Suíça e República Tcheca. A biblioteca da Universidade de Varsóvia, na Polônia, foi a mais atingida, com 78 livros surrupiados.

Os livros valem de dezenas a centenas de milhares de dólares cada. Na maioria dos casos, os originais foram substituídos por cópias de alta qualidade que imitavam até mesmo as manchas — sinal de uma operação sofisticada.

O desaparecimento de tantos livros do mesmo tipo em tantos países em um período relativamente curto não tem precedentes, disseram os especialistas. Os roubos levaram as bibliotecas a aumentar a segurança e colocaram os comerciantes em alerta máximo sobre a procedência dos livros russos.

De acordo com a Europol, as autoridades prenderam nove pessoas em conexão com os roubos. Quatro delas foram detidas na Geórgia no final de abril, juntamente com mais de 150 livros. Em novembro, a polícia francesa colocou três suspeitos sob custódia. Outro homem foi condenado na Estônia e um quinto suspeito está preso na Lituânia.

As autoridades por trás da Operação Púchkin pintam um quadro de uma rede de associados, alguns parentes de sangue, viajando pela Europa de ônibus com cartões de biblioteca, às vezes sob nomes falsos, para procurar livros russos raros, fazer cópias de alta qualidade e depois trocá-las pelos originais, conforme revelam os arquivos do caso analisados pelo New York Times.

Os preços dos livros publicados durante a vida da Santíssima Trindade dos escritores românticos russos — Púchkin, Gógol e Mikhail Lérmontov — aumentaram drasticamente nos últimos 20 anos, acompanhando o aumento da riqueza dos colecionadores russos. É um mercado pequeno, com relativamente poucos livros e colecionadores que geralmente têm uma lista das obras que desejam, dizem os negociantes.

As sanções ocidentais impostas após a invasão da Ucrânia pela Rússia proíbem os comerciantes do Ocidente de vender para residentes da Rússia, alimentando um mercado paralelo existente para livros raros. Nesse mercado, as vendas geralmente são conduzidas de forma privada por intermediários, com transações em dinheiro que são difíceis de rastrear, dizem os negociantes. As bibliotecas são alvos fáceis para os ladrões porque têm o objetivo de servir ao público; muitas vezes, elas não têm a mesma segurança que os museus e outras instituições com obras valiosas.

— É fácil saber quais livros as pessoas querem, seus valores e, sim, obtê-los — disse Pierre-Yves Guillemet, negociante em Londres especializado em livros raros russos.

Guillemet e outros negociantes disseram que seria improvável que os livros russos roubados de bibliotecas europeias aparecessem em leilões oficiais no Ocidente. A Liga Internacional de Livreiros Antiquários, uma organização comercial, listou muitos dos recentes roubos de bibliotecas em uma lista em seu site.

Angus O’Neill, vice-presidente e diretor de segurança do grupo, disse que a organização estava em contato regular com a Europol para informar seus membros sobre os roubos.

“Os livreiros são aconselhados a serem cautelosos”, escreveu a Biblioteca Estadual de Berlim no Registro de Livros Perdidos, listando os cinco livros russos que haviam sido surrupiados, com um valor total de seis dígitos.

Absorver tantos volumes roubados no mercado relativamente pequeno de livros russos pode ser difícil.

— Mas esses são os livros mais famosos da Rússia — disse Guillemet. — São atraentes não apenas para colecionadores experientes, mas também para ricos que os veem como troféus.

A Europol disse que alguns dos livros roubados já haviam sido vendidos por casas de leilão em Moscou e São Petersburgo, na Rússia, “tornando-os efetivamente irrecuperáveis”. A agência não revelou quais livros, citando a investigação em andamento.

Atualmente, solicitar uma edição antiga de Púchkin do século XIX na sala de livros raros da Biblioteca Nacional da França atrai olhares nervosos dos bibliotecários e pedidos rápidos de mais informações sobre os motivos do leitor. No ano passado, ladrões roubaram oito livros do autor e um de Lermontov, com um valor total estimado em US$ 696.500 (R$ 3,5 milhões), um dos maiores roubos da biblioteca na era moderna.

O padrão era mesmo dos outros roubos. Um homem apareceu durante meses para consultar livros russos raros. Quando os bibliotecários perguntaram a natureza de sua pesquisa, ele alegou não falar francês ou inglês. Os bibliotecários duvidaram, mas acabaram lhe dando acesso. O homem supostamente roubou os livros, possivelmente escondendo-os na tipoia de um braço enfaixado. Ele os substituiu por cópias de tão alta qualidade que os bibliotecários não descobriram o furto por meses.

A biblioteca agora mantém seus livros russos da Era de Ouro em seu setor mais protegido, juntamente com seus títulos mais raros — incluindo uma Bíblia de Gutenberg.