domingo, fevereiro 28

Passeio imaginário (por enquanto)

 


O corpo como o derradeiro lugar da escrita

Há três dias, viajando entre a Ilha de Moçambique e Nampula, sob uma violenta tempestade, vi de relance uma mulher transportando uma árvore às costas. A imagem passou, num relâmpago, como se tivesse saltado de um sonho. Quando me voltei para confirmar, não distingui senão uma densa cortina de água caindo sobre o asfalto quente.

Nas horas seguintes, a imagem daquela mulher continuou a crescer dentro de mim. Vi-a carregando um vaso de barro, com uma mangueira pequena, porém frondosa, cheia de mangas maduras. A mulher caminhava pisando a sombra da mangueira. Fechando os olhos apaguei a chuva, e fui reconstruindo a paisagem. Vi primeiro uma outra estrada, não de asfalto, mas de terra batida, uma ferida vermelha abrindo-se por entre o fulgor cruel das espinheiras. Logo a seguir enxerguei os guerrilheiros esfarrapados, segurando com esforço o desalento das armas. E então, lá estava ela, uma figura frágil e firme, erguendo contra os soldados os largos olhos febris. Quando cheguei a Nampula já tinha um conto pronto.

José Saramago afirmava que a ideia para a escrita d’“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” surgiu a partir do título, e que este lhe ocorreu quando, ao atravessar uma rua, em Sevilha, leu a frase na confusão de manchetes de uma banca de jornais. Curioso, aproximou-se da banca, mas não encontrou a frase. Saramago convenceu-se de que se tratara de uma ilusão de ótica. Fato é que o romance se foi organizando, ao longo dos meses seguintes, em redor daquela ilusão milagrosa. 


Lamento ter deixado de escrever à mão — naquela época, ao reler os meus rápidos gatafunhos, era comum que uma frase me sugerisse outra melhor. Ou seja: eu lia errado, mas o erro acabava sendo muito mais interessante do que o acerto. Depois que comecei a sofrer de vista cansada, voltei a me beneficiar do erro, agora não só quando tento ler textos meus no computador, mas inclusive quando leio livros ou jornais. Surgem-me com frequência manchetes extraordinárias. O mundo, sempre que tento ler sem óculos, ganha contornos inusitados. Penso muito em José Saramago.

Por vezes tenho surpresas. Ontem mesmo li: “Descoberta frase que Anitta tatuou no ânus.” Ri, convencido de que o meu espírito perverso estava me iludindo, e fui à procura dos óculos. Passei meia hora abrindo e fechando gavetas até que ao passar diante de um espelho percebi que tinha os óculos no rosto. Voltei às páginas do jornal. Sim, lá estava: “Descoberta frase que Anitta tatuou no ânus.” Não sabia que era possível tatuar o ânus. Nunca imaginei que alguém o quisesse fazer. Nunca imaginei ler um dia uma manchete como aquela.

Fiquei um tempo pensando naqueles leitores tão exclusivos. Fiquei pensando se gostaria de ter uma frase minha tatuada no ânus de alguém. Fiquei pensando no corpo como o derradeiro lugar da escrita. Fiquei pensando se não deveria quebrar os meus óculos. Acho que prefiro viver na minha realidade inventada — tantas vezes estranha, tantas vezes incompreensível e misteriosa —, do que enfrentar aquela em que estamos mergulhados.

“Verás prodígios!”, assegurou-me a minha avó pouco antes de morrer. Provavelmente não se referia a isto.

Leitura déco

 


Um amor, uma cabana

Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas.

Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo da solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia.


Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno da Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como as abelhas fazem suas colméias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque.

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro.

A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão-de-obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau-a-pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás.

Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões. “A tomada de consciência ecológica, surgida como uma ponte de luz no extremo mais estreito do túnel da crise de energia, vai servindo para provar-nos que nem sempre o habitat humano está condenado a ser feito de concreto, aço e vidro. Assim, quando tudo em arquitetura parecia dirigir-se para uma negação sempre maior da natureza que volta a oferecer uma saída diante das agruras da crise. E o faz com aquilo que lhe é primeiro e essencial, a terra, o elemento mais fecundo de tudo o que nos cerca”, escreveu o arquiteto Roberto Pontual.

Quando, nos anos 1930, Lúcio Costa projetou uma vila operária, em Monlevade, toda em taipa de pau-a-pique, escreveu: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna, enquanto que o pseudomissões, ‘normando ou colonial’, ao lado, não passa de um arremedo sem compostura”. E aconselha: devia ser adotada para casas de verão e construções econômicas de um modo geral. É uma técnica muito mais barata, atende aqueles casais remediados que desejam uma casinha de campo. O projeto de Lúcio Costa, claro, não foi aceito pela Belgo Mineira.

O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos. Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida.
Ana Miranda

sábado, fevereiro 27

Para fugir da tolice

 


'Mozart está tristíssimo'

Edmund William Greacen
Em 1938, já a caminho da Segunda Guerra, que iria rebentar no ano seguinte, Hitler invadiu a Áustria. Também em 1938, o poeta Murilo Mendes concluía o seu livro "As metamorfoses". A página de rosto traz esta insólita dedicatória: "À memória de Wolfgang Amadeus Mozart". No dia que lhe chegou a notícia de que as tropas nazistas tinham entrado em Salzburgo, Murilo dirigiu-se à Praça XV, no Rio, sede dos correios, e passou um telegrama de protesto a Hitler.

Não sei se os anais da Segunda Guerra registram esse despacho em defesa do solo sagrado da cidade de Mozart. Poucos anos depois conheci Murilo e me tornei seu amigo para o resto da vida. Nos primeiros anos 40, ele morava na casa de duas senhoras russas, na rua Marquês de Abrantes, 64. Aos sábados à tarde, o poeta reunia lá uns amigos para conversar e ouvir música, sobretudo seu adorado Mozart. Era mais que um sarau. Era um culto religioso.

Ainda me lembro do cuidado com que o poeta pegava o disco, daqueles antigos, anterior ao "long-play", e o punha na vitrola. Além de sua obra já nacionalmente reconhecida, Murilo era um grande personagem. Uma figura legendária, com histórias que marcavam a linha de seu temperamento original. Por exemplo: em sinal de protesto contra uma execução musical medíocre, abriu o guarda-chuva no Theatro Municipal. Uma vez deitou-se na avenida Rio Branco para contemplar o céu. Lindíssimo!

Como o José Dias do Machado de Assis, o poeta adorava um superlativo. E não perdia ocasião de fazer uma piada. Mocinho, em Juiz de Fora, sua cidade, o poeta Carlos de Aguiar quis bancar o futurista e começou assim uma crônica: "O céu estava belíssimo de agosto". No dia seguinte, Murilo retrucou: "O Carlos estava burríssimo de Aguiar". Quando Pio XII veio ao Rio em 1934, ainda cardeal, Murilo abençoou-o na porta da Candelária.

Por quê? O cardeal-legado abençoava todo o mundo e o poeta achou que era preciso retribuir. Nesse ano de 1934, Murilo se converteu ao catolicismo, com a morte de seu grande amigo Ismael Nery. À obra do poeta, está incorporada uma biografia cheia de lances excêntricos. Ele não precisava jurar que tinha visto Mozart uma tarde no seu quarto de Botafogo. Descrevia esse encontro com todos os detalhes. Eu nunca duvidei. Mozart no céu deve estar hoje tristíssimo por não terem associado o seu nome ao do seu amigo Murilo Monteiro Mendes.

Seja a diferença

 

Lütfü Çakın (Turquia)

Quando a biblioteca vai a casa

Com o aproximar das 10 da manhã, as duas carrinhas Peugeot brancas chegam ao estacionamento do Palácio Galveias, no Campo Pequeno, devidamente desinfetadas. Os motoristas da Câmara Municipal de Lisboa aguardam pela mercadoria, enquanto põem a conversa em dia, nesta manhã sem chuva.

Lá dentro, no bonito edifício do século XVII que serve de morada a esta biblioteca, há meia dúzia de pessoas que não param para dar vazão a ao projeto BLX à Sua Porta, que começou a 9 de fevereiro e já pode considerar-se um êxito. Na última semana, houve 200 leitores que fizeram pedidos e outros tantos novos subescritores do cartão de leitor (em tempo normal, esse número desce para os 150).

Quem pede este serviço, pode requisitar até cinco livros, por um período de um mês, extensível por mais 15 dias. Todas as segundas, quartas e sextas as duas carrinhas saem desta biblioteca para percorrer as moradas de quem está em casa à espera de novas leituras. Com os dois motoristas, seguem também dois funcionários da rede de 18 bibliotecas municipais – caso não houvesse este serviço, estariam em casa, em teletrabalho, talvez a dar forma aos projetos digitais.


“Sentimos que estamos a fazer verdadeiro serviço público, respondendo aos interesses dos nossos leitores. E vamos continuar no pós pandemia, levando livros a casa de pessoas com mobilidade reduzida ou de cuidadores, por exemplo”, garante Susana Silvestre, 46 anos, chefe de divisão da rede de bibliotecas de Lisboa. Também haverá, em breve, leituras ao telefone, ou em casa, porque, acredita, “ler é o melhor remédio para estar ativo”. Quanto mais esclarecidas se sentirem as pessoas, mais vontade terão de intervir enquanto cidadãos – eis o lema.

Mas vamos para a estrada, que se faz tarde e há oito paragens para cumprir nesta manhã cheia de sol. As juntas de freguesia do Lumiar, Alvalade e Avenidas Novas estão no topo da lista de pedidos. Mas os livros não escolhem bairros e podem vir de qualquer das 18 bibliotecas da rede – aliás, aproveita-se este serviço para que as obras retornem à sua casa. Na rota diária contemplam-se pausas para entregar e resgatar exemplares que andam de biblioteca em biblioteca para satisfazer os pedidos dos leitores caseiros. No nosso caso, batemos à porta dos Coruchéus, em Alvalade, Penha de França e Olivais. Há sempre um funcionário, apenas um, que abre a porta, recebe e entrega um saco verde cheio de livros e aproveita para dois dedos de conversa.

A vontade é que os pedidos sejam expedidos em 24 horas, mas como têm sido tantos, os leitores podem esperar até quatro dias para que os livros cheguem a suas casas. Além de, muitas vezes, ser preciso ir buscá-los a outras bibliotecas da rede, quando as obras são recolhidas em casa (às terças e quintas, mediante marcação, e em caixas de cartão seladas para não haver contaminações) têm de ficar 72 horas de quarentena na sala onde antes os mais novos se deliciavam a folhear as histórias infantis. Agora, este espaço está na penumbra, de portadas fechadas, mesas e cadeiras umas em cima das outras, repleto de livros espalhados, com a devida ficha por perto para se saber quando podem regressar a andar de mão em mão.

Ana Carolina, 47 anos, já está de bata descartável amarela vestida e máscara bem acondicionada, pronta para arrancar para mais uma volta. Na vida normal, é bibliotecária na Penha de França. Agarrou este projeto com garra, porque sente que faz realmente a diferença. Uma vez na carrinha, dá uma vista de olhos ao percurso que fará ao lado de Sérgio Marçal, 41 anos, que, não fora o confinamento, e estaria a guiar crianças até às escolas.

As paragens sucedem-se. Sérgio, igualmente vestido de bata amarela, quase sempre consegue lugar à porta, mas nem sai da carrinha. Ana Carolina pega então na encomenda, guardada num envelope de papel pardo, que está no porta-bagagens, e toca à campainha. Tanto pode ter de subir vários lances de escadas como vencê-los por elevador ou ainda ter a sorte de entregar os livros ao portão, caso se trate de uma vivenda. “Tenho andado por sítios da cidade que desconhecia por completo”, há de confessar, numa das suas entradas e saídas do veículo camarário. Também já aconteceu ninguém abrir a porta nem atender o telefone e, nesses casos raros, os livros regressam às Galveias para novo agendamento.

Numa dessas vezes em que paramos no bairro dos atores, é Henrique Oliveira, 27 anos, quem nos abre a porta, de roupa de andar por casa e roupão para o aquecer. Já era leitor das bibliotecas, mas decidiu aderir a este serviço porta a porta porque precisava de três livros para o seu doutoramento na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e não os encontrava em lado nenhum. Quando foi para o site das Bibliotecas de Lisboa ainda nem sabia se estariam a funcionar. “Foi ótimo e muito cómodo encontrar o que precisava”, diz-nos, antes de se recolher outra vez atrás da porta e mergulhar nas leituras técnicas.

De regresso à carrinha, a rádio continua a tocar na Comercial e o termómetro marca 18 graus. Ana Carolina dá uso ao álcool gel que está acomodado numa das reentrâncias do tabelier e seguimos cidade fora.

“Bom dia, Bibliotecas de Lisboa. Podemos entregar livros? Vamos subir.” Esta é a frase que Ana Carolina repete, mais palavra menos palavra, em cada porta aonde para. Nesta altura, já estamos nos Olivais e o pedido vem de um dos enormes prédios anexos ao shopping. Do outro lado da porta está Ana Paula Coimbra, 55 anos, de pantufas confortáveis nos pés. “Ia calçar uns sapatos, mas entretanto já estavam cá em cima. E nem sequer deu para pôr máscara”, desculpa-se, meio atrapalhada, como qualquer estreante num novo serviço que lhe cai no colo, sem ter de sair de casa.

Esta engenheira química, consultora numa farmacêutica, está em teletrabalho desde março, mas quando as bibliotecas estavam abertas era lá que ia abastecer-se de alguns livros. Ainda para mais, a BDteca dos Olivais fica a menos de cinco minutos a pé, num entorno aonde gosta muito de passear. Entretanto, a filha Sofia, 22 anos, aparece-lhe, sorridente, por cima do ombro. São para ela os livros de Samuel Beckett e Carlos Drummond de Andrade, que lhe servirão de apoio no curso de teatro que está a tirar, além do mestrado em Gestão de Informação e das aulas que dá na faculdade – tudo online, não há remédio. A mãe escolheu valter hugo mãe e José Luís Peixoto para a ajudar a passar os dias de confinamento, que tendem a ser todos iguais. Haja mais momentos destes, em que os mimos batem à porta, pois são, além do mais, ocasiões para se conversar sobre livros com rostos diferentes dos que nos acompanham diariamente, ainda que escondidos atrás de máscaras.

quinta-feira, fevereiro 25

Barco da leitura


 

Ulisses

Era uma vez... Era uma vez: eu!

Mas aposto que você não sabe quem sou eu.

Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha.

Sabe quem sou eu? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice.

Eu fico latindo para Clarice e ela - que entende o significado de meus latidos - escreve o que eu lhe conto. Por exemplo, eu fiz uma viagem para o quintal de outra casa e contei a Clarice uma história bem latida, resultado de uma observação minha sobre essa casa.

Antes de tudo, vou me apresentar melhor.


Dizem que sou bonito e sabido. Bonito parece que sou. Tenho um pelo castanho, cor de guaraná. Mas, sobretudo, tenho olhos que todos admiram: são dourados.
Minha dona não quis cortar o meu rabo porque acha que cortar seria contra a natureza.

Dizem assim: "Ulisses tem um olhar de gente".

Gosto muito de me deitar de costas para coçarem minha barriga.

Mas, sabido, sou apenas na hora de latir palavras.

Sou um pouco malcriado, não obedeço sempre, gosto de fazer o que quero.
Fora disso, sou um cachorro quase normal. Ah, esqueci de dizer que sou um cachorro mágico: adivinho tudo pelo cheiro. Isto se chama ter faro. No quintal onde estive hospedado cheirei tudo, figueira, galo, galinha etc.

Se você chamar: "Ulisses, vem cá" - eu vou correndo e latindo para o seu lado, porque gosto muito de criança, e só mordo quando me batem.

Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade? Só é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu.
Clarice Lispector

quarta-feira, fevereiro 24

Aventura na floresta

 


Temas que morrem

Ayuko Tanaka
Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por que não? O que me impede? A exiguidade do tema, talvez, que faria com que este se esgotasse em uma palavra, em uma linha. Às vezes é o horror de tocar numa palavra que desencadeia milhares de outras, não desejadas, estas. No entanto, o impulso de escrever. O impulso puro – mesmo sem tema. Como se eu tivesse a tela, os pincéis e as cores – e me faltasse o grito de libertação, ou a mudez essencial que é necessária para que se digam essas coisas. Às vezes a minha mudez faz com que eu procure pessoas que, sem elas saberem, me darão a palavra-chave. Mas quem? quem me obriga a escrever? O mistério é esse: ninguém, e no entanto a força me impelindo.

Eu já quis escrever o que se esgotaria em uma linha. Por exemplo, sobre a experiência de ser desorganizada, e de repente a pequena febre de organização que me toma como a de uma antiga formiga. É como se o meu inconsciente coletivo fosse o de uma formiga.

Eu também queria escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando uma dor física passa. De como o corpo agradecido, ainda arfando, vê a que ponto a "alma" é também o corpo.

E é como se eu fosse escrever um livro sobre a sensação que tive uma vez que passei vários dias em casa muito gripada – e quando saí fraca pela primeira vez à rua, havia sol cálido e gente na rua. E de como me veio uma exclamação entre infantil e adulta: ah, como os outros são bonitos! É que eu vinha do escuro meu para o claro que também descobria que era meu, é que eu vinha de uma solidão de pessoas para o ser humano que movia pernas e braços e tinha expressões de rosto.

Também seria inesgotável escrever sobre beber mal. Bebo depressa demais, e não há alternativas: ou praticamente adormeço dentro de mim e fico morosa, pensativa sem que um pensamento se esclareça como descoberta, ou fico excitada dizendo tolices de maior brilho instantâneo. Mas – mas há um instante mínimo nesse estado em que simplesmente sei como é a vida, como eu sou, como os outros são, como a arte deveria ser, como o abstracionismo por mais abstrato não é abstrato. Esse instante só não vale a pena porque esqueço tudo depois, quase na hora. É como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada pelo saber.

E às vezes, por mais absurdo, acho lícito escrever assim: nunca se inventou nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um gozo natural, o de morrer, pois faz parte essencial da natureza humana, animal e vegetal, e também as coisas morrem. E, como "paraíso", morrer é que é o "paraíso".

A verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar. Porque eu poderia, sem finalidade nenhuma, desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas – e sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez chamassem de abstratas.

Eu também poderia escrever um verdadeiro tratado sobre comer, eu que gosto de comer e no entanto não como tanto. Terminaria sendo um tratado sobre sensualidade, não especificamente a de sexo, mas a sensualidade de “entrar em contato” íntimo com o que existe, pois comer é uma de suas modalidades – e é uma modalidade que engage de algum modo o ser inteiro.

Também escreveria sobre rir do absurdo de minha condição. E ao mesmo tempo mostrar como ela é "digna", e usar a palavra digna me faz rir de novo.

Eu falaria sobre frutas e frutos. Mas como quem pintasse com palavras. Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?

Ah, estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no entanto.
Clarice Lispector

terça-feira, fevereiro 23

Novos tempos

 

Ainara Azpiazu Aduriz

Vai quem quer e faz quem quer

Vai Quem Quer fica em Duque de Caxias, na Baixada. Faz Quem Quer, em Rocha Miranda, no subúrbio. O que as une aqui não é a semelhança no nome. São os livros, o fato de serem favelas e a Favelivro, ação que une favelas e livros.

Tudo começou quando Demézio Batista, livreiro, resolveu lançar um “movimento literário”, que consistia em distribuir livros e abrir bibliotecas em favelas e periferias. Batizou o projeto de “Favelivro”, sem medo da palavra condenada pelo politicamente correto (“Quem mora na favela não se importa”). Para levar adiante a iniciativa, convidou Verônica Marcílio, professora de literatura e contadora de histórias.

Isso em 2012. Ano passado, inauguraram a Biblioteca José Mauro de Vasconcelos na Vai Quem Quer. Daqui a alguns meses, a Faz Quem Quer vai ganhar a Biblioteca Fernanda Abreu. Entre uma e outra, colocaram para funcionar a Sérgio Buarque de Holanda, em São Gonçalo, e a Hélio de la Peña, no Complexo do Caju. Outras nove estão a caminho.

Não há patrocinador oficial ou dinheiro público. Tudo vem de doações. Parceiros, como a Afrotribo e a Biblioteca O Mundo da Lua, ajudam no recolhimento do que é conseguido. Bibliotecários fazem trabalho voluntário na organização do acervo, na condução das atividades.

São os moradores que pedem a instalação das bibliotecas — e são também eles que escolhem a personalidade homenageada. A coisa é simples, espontânea, sem cálculos políticos ou estratégias de marqueteiros. Foi José Mauro de Vasconcelos por causa do hoje esquecido “Meu pé de laranja-lima”, clássico da literatura infantojuvenil dos anos 60 e 70. Foi Hélio de la Peña por uma inusitada militância botafoguense no Caju. Será Fernanda Abreu porque seu funk tem muitos fãs em Rocha Miranda.

E, como quem tem padrinho não morre pagão, Fernanda Abreu se mobilizou para conseguir mobiliário, Hélio de la Peña chegou carregado de caixas. Ambos abraçaram a causa e têm se empenhado na arrecadação de bons livros (há quem doe apenas para se livrar do que não quer mais na estante, do que não fica bonito como fundo de laive; há quem doe por saber que quem leva livros para uma favela leva mais que material de leitura: abre perspectivas, muda histórias de vida). “Os livros me levaram aonde estou”, diz o Hélio — que é “de la Peña” por ter nascido no subúrbio da Vila da Penha. Aonde os livros poderão fazer chegar os meninos da Cidade de Deus, da Vila Kennedy, do Morro do Querosene?

Em dezembro, seguindo os protocolos de prevenção à Covid-19, a Favelivro distribuiu o kit “Vacina Literária”, com livros infantis, sabonetes, frasco de álcool em gel e máscaras de proteção. Em março, a ação será retomada, junto com a contação de histórias.

Uma bela história a contar seria esta: a de quem acredita na cultura como artigo de primeira necessidade; a de quem entende bibliotecas como pontos de encontro, de descoberta, de reinvenção. Um lugar aonde vai quem quer mais que sobreviver, que faz quem quer ir além ter uma chance de chegar lá.

Ir além do livro

 

 Romain Lubière

Geraldes, o futebolista que quer convencer os jovens a ler

Enquanto os companheiros de equipa se entretêm com videojogos, Francisco Geraldes prefere ler um livro. Desde as camadas jovens que o agora médio do Rio Ave, formado no Sporting, encontrou nos livros a melhor companhia para os tempos livros, destoando dos futebolistas com quem tem vindo a partilhar o balneário, nos dois clubes já referidos e também no Moreirense, nos gregos do AEK de Atenas e nas seleções nacionais jovens.

Agora, aos 25 anos, o Rio Ave desafiou-o a tornar-se embaixador de uma iniciativa promovida pelo clube de Vila do Conde que recebeu o apoio do Plano Nacional de Leitura: cativar os mais novos para as palavras escritas. Sem uma periodicidade rígida, mas que não fugirá muito a uma vez por mês, Geraldes vai protagonizar um pequeno vídeo com sugestões de leitura, “principalmente de livros simples e fáceis de ler”. A ideia é apresentar escolhas que possam seduzir o maior número de pessoas, porque “muita gente acha que ler é uma seca”.



Não é o caso deste jogador de futebol contracorrente, que não hesitou em dar corpo ao projeto “As Leituras do Francisco”, a nova rubrica que estará sempre disponível na página de internet do Rio Ave e nas plataformas de divulgação do Plano Nacional de Leitura. O primeiro episódio, filmado na Casa Museu José Régio, em Vila do Conde, já está “no ar”, e o principal destaque foi “O Principezinho”, famosa obra de Antoine de Saint-Exupéry. O próximo será “Ratos e Homens”, de John Steinbeck, e voltará a ser gravado, como todos os restantes, num espaço ligado às artes desta terra de pescadores.

O objetivo de “As Leituras do Francisco” passa por alimentar uma “consciência da importância da leitura”, bem expressa no tipo de relação que se estabelece com o livro e o seu autor. “Ainda que ele não saiba, é um momento em que estou só eu e ele e nada me é imposto”, reflete Geraldes. “Enquanto num filme as ideias e as imagens já estão criadas, com os livros sou eu que crio a minha visualização daquilo que está a acontecer. É um estímulo à criatividade. Quando fecho um livro, não sou a mesma pessoa que era quando o abri.”

Se as suas sugestões tiverem nos outros o efeito que teve nele “O Alquimista”, de Paulo Coelho, esse seria o epílogo perfeito. “Foi como que uma descoberta de um mundo novo e de coisas interiores que são difíceis de explicar mas que as levo para a vida”, enfatiza o futebolista, sobre a obra que lhe despertou o hábito de levar sempre um livro para os estágios de preparação dos jogos, ainda na adolescência. Quando se deslocava de transportes públicos em Lisboa, os livros acompanhavam-no também a caminho dos treinos. “Muita a gente ia a ouvir música, eu ia a ler.” Ficou célebre uma fotografia de Francisco Geraldes a ler de pé no metro de Lisboa, captada por um adepto após um Sporting-Boavista em Alvalade. Mais tarde, foi apanhado a ler “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago, no banco de suplentes, horas antes de um jogo.

O Nobel da Literatura está entre os seus escritores preferidos, ao lado de George Orwell, Henry David Thoreau, Valter Hugo-Mãe ou Fernando Pessoa, sobretudo no pseudónimo de Álvaro de Campos. Mas neste momento é Clarice Lispector, com o seu “Perto do Coração Selvagem”, que lhe dá a volta à cabeça. A ponto de ameaçar “1984”, de Orwell, e “Ensaio Sobre a Cegueira”, de Saramago, no topo do seu ranking pessoal. “Quando o acabar, acho que vai ser o meu preferido”, suspeita quem já perdeu a conta aos livros que leu.

E qual o que mais gosta sobre futebol? “Que me lembre não li nenhum”, responde, desarmante. O mais perto que esteve do desporto foram os livros sobre duas lendas do boxe, Muhammad Ali e Rubin Carter, mas porque são histórias que envolvem discriminação racial, um tema que lhe “interessa muito”, embora nos tempos mais recentes esteja mais propenso à filosofia e à poesia. “Já fui mais de policiais, agora leio mais coisas que me ponham em introspeção, que me façam questionar mais principalmente o sentido da vida.”

Não admira que os companheiros de equipa o tenham habituado, ao longo dos anos, a brincadeiras relacionadas com esta paixão pelas palavras. “Agora, no Rio Ave, o Pelé está sempre a meter-se comigo”, exemplifica, divertido: “Diz que eu não leio, que ando com os livros só para fingir.” É hora de começar a ver “As Leituras do Francisco”, Pelé…

segunda-feira, fevereiro 22

Aonde nada o pensamento

 


Perdoando Deus

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. A minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.

 Iman Maleki
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu senti-me a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca me tinham falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois factos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois factos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada.

Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

.. .mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.

É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa.

É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.

Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar.

Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
Clarice Lispector, “Felicidade clandestina”

domingo, fevereiro 21

Magia sob o luar

 


Você já esteve aqui

Claro que esteve. Com certeza. Eu nunca me esqueço de um rosto.

Venha aqui, aperte a minha mão! Tenho que lhe dizer uma coisa: eu te reconheci pelo jeito de andar antes mesmo de ver seu rosto direito. Você não poderia ter escolhido um dia melhor para voltar a Castle Rock. Não é uma cidade maravilhosa? A temporada de caça vai começar em breve, a floresta vai ficar cheia de cretinos atirando em tudo que se mexe e não usa laranja berrante, depois vêm a neve e a geada, mas tudo isso é depois. Agora estamos em outubro, e em Rock nós deixamos outubro ficar pelo tempo que quiser.

Na minha opinião, essa é a melhor época do ano. A primavera é boa aqui, mas sempre vou preferir outubro a maio. O oeste do Maine é uma parte do estado que fica bem esquecida quando o verão vai embora e todas aquelas pessoas que têm chalés perto do lago e em View voltam para Nova York e Massachusetts. As pessoas aqui as assistem vir e ir todos os anos: oi, oi, oi; tchau, tchau, tchau. É bom quando elas vêm porque trazem os dólares de suas cidades, mas é bom quando vão porque também levam as chateações de suas cidades.

É sobre as chateações que quero falar; você pode ficar um pouco comigo?

Aqui, nos degraus do coreto está ótimo. O sol está quente e daqui, do meio da praça da cidade, dá para ver todo o centro. Só tome cuidado com as farpas, só isso. Os degraus precisam ser lixados e pintados. Isso é trabalho do Hugh Priest, mas Hugh ainda não chegou a cuidar disso. Ele bebe, sabe. Não é segredo. Segredos podem e são guardados em Castle Rock, mas você tem que se esforçar muito para isso, e a maioria de nós sabe que tem muito tempo que Hugh Priest e o trabalho árduo não andam de mãos dadas.

O que você disse?

Ah! Isso! Ora, garoto… não é uma pérola? Os folhetos estão por toda a cidade! Acho que Wanda Hemphill (o marido dela, Don, é dono do Mercado Hemphill) distribuiu a maioria sozinha. Tire ali do pilar e me dê aqui. Não seja tímido, ninguém tem que prender folhetos no coreto da praça da cidade, para começar.

Caramba! Olha só essa coisa! os dados e o diabo impresso bem no alto.

Com letras grandes e vermelhas saindo fumaça, como se essas coisas tivessem sido enviadas como uma entrega especial lá de Tofete! Rá! Alguém que não soubesse o lugarzinho sonolento que esta cidade é acharia que estamos indo para o buraco, imagino. Mas você sabe como as coisas acabam ficando fora de proporção numa cidade deste tamanho. E o reverendo Willie está com alguma coisa na cabeça desta vez, com certeza. Sem dúvida nenhuma. As igrejas nas cidades pequenas… bom, acho que não preciso dizer como isso funciona. Elas se dão bem, mais ou menos, mas nunca estão verdadeiramente felizes umas com as outras.

Tudo fica tranquilo por um tempo e de repente acontece uma briga.

Mas foi uma briga bem grande agora, e com muitos ressentimentos. Os católicos, sabe, estão planejando uma coisa que estão chamando de Noite do Cassino no Salão dos Cavaleiros de Colombo, do outro lado da cidade. Na última quinta-feira do mês, pelo que sei, com a renda sendo usada para ajudar a pagar o conserto do telhado da igreja. Essa é a Nossa Senhora das Águas Serenas; você deve ter passado por ela ao entrar na cidade, se veio por Castle View. Uma igrejinha linda, não é?

A Noite do Cassino foi ideia do padre Brigham, mas foram as Filhas de Isabella que realmente pegaram a bola e correram com ela. Mais especificamente, Betsy Vigue. Acho que ela gosta da ideia de colocar o vestido preto mais grudado que tem e dar as cartas no blackjack ou girar a roleta e dizer “Façam suas apostas, senhoras e senhores, façam suas apostas”. Ah, mas até que todos gostaram da ideia, eu acho. São só apostas de valor baixo, inofensivas, mas parece um pouquinho pecaminoso para eles mesmo assim.

Só que o reverendo Willie não acha inofensivo e parece bem mais do que um pouquinho pecaminoso para ele e sua congregação. Ele é, na verdade, o reverendo William Rose, e ele nunca gostou muito do padre Brigham, nem o padre gosta dele. (Na verdade, foi o padre Brigham que começou a chamar o reverendo Rose de “Steamboat Willie” e o reverendo Willie sabe disso.)

Esses dois feiticeiros sempre soltam umas faíscas, mas essa história da Noite do Cassino é um pouco mais do que faíscas; acho que está mais para um incêndio. Quando Willie soube que os católicos pretendiam passar uma noite jogando no Salão, ele pulou tão alto de raiva que quase furou o teto com a cabecinha pontuda. Ele pagou por esses folhetos dizendo os dados e o diabo do próprio bolso e Wanda Hemphill e suas amigas do grupo de costura espalharam por toda a cidade. Desde então, o único lugar onde os católicos e os batistas se falam é na coluna de cartas do jornalzinho semanal, onde resmungam e reclamam e dizem que o outro vai para o inferno.
Stephen King

sábado, fevereiro 20

Leitura em equilíbrio

 

 Paola Castelló

A Cila já não mora aqui

Continua quase tudo igual na praceta, ainda que o mundo tenha mudado tanto à sua volta. O novo milénio leva já duas décadas e a praceta mantém-se imperturbável nos anos 80 do século passado, moradias com telhados de várias águas, pátios feitos com pedaços de pedra que formam puzzles caóticos, quintais apertados, indecisos entre horta e jardim, ecos de cães a ladrarem acorrentados e de galinheiros abandonados. Tendo a serra, à espreita a norte, e o mar, escondido a sul, o pouco harmonioso conjunto das oito casas assistiu impávido às vicissitudes das vidas dos seus moradores, pequenos empresários, taxistas, empregados de alpaca, que escolheram viver afastados do centro das cidades em troca de um pedaço de terra. Viu-os casar os filhos e batizar os netos, mudar de carro, remodelar as casas, um acrescento aqui, um arrebique acolá, adoecer, morrer, casamentos e divórcios levaram alguns, trouxeram outros, baralhando gerações. No longo muro, à direita de quem entra, os grafites gravaram as letras dos miúdos que se mascaravam em carnavais de arromba, os mesmos que anos antes ou depois davam tombos ao aprenderem a andar de bicicleta ou de skate, os mesmos que anos antes ou depois se sentavam nos passeios a namorar e a fumar os primeiros cigarros. Os serviços camarários atribuíram números novos às casas e renomearam a praceta, inaugurou-se o CascaiShopping, fez-se a marina, implodiu-se o Estoril-Sol, as empresas de telecomunicações foram riscando as fachadas com fios e mais fios, mas nunca nenhuma família desertou por completo da praceta.

Houve, portanto, um triste e indignado espanto quando, no início de 2020, a Cila decidiu pôr a sua casa à venda, a segunda quando se vem lá de baixo. Mesmo sem placa a anunciar, levantou-se logo um sururu, Haverá sítio melhor para viver do que a nossa praceta?, perguntava incrédula a d. Emília, se queremos um ovo ou um cibo de sal é só bater a uma porta, podemos sempre contar uns com os outros numa aflição.

Semanas depois, o Volkswagen cinzento metalizado deixou de estar estacionado à entrada da praceta. A Cila ligou passado um tempo a despedir-se.

A mudança trazia também a Natália, da casa da esquina, preocupada, Quem virá para cá?, sempre fomos os mesmos, os seus pais foram os últimos a chegar, parece que foi ontem e já passaram mais de 30 anos, a menina ainda se lembra?

(em mais lado algum sou ainda a menina que fui)



A casa da Cila foi vendida a um investidor, disse-me a Sónia do Dionísio, Vão mudá-la toda, se calhar até lhe sobem um piso, parece que anda tudo a querer chegar ao céu. E, de facto, em julho, no lugar do Volkswagen cinzento metalizado, ali estava um contentor para o entulho, onde ao som de ensurdecedores martelos e berbequins iam sendo despejadas golfadas do interior despedaçado da casa que aconchegara a Cila e os seus três filhos. O ímpeto destrutivo prosseguiu para o exterior, quebraram o hexágono de vitrais e as outras janelas, arrancaram-lhes as ombreiras, as portas desapareceram. Quando o barulho parou, a casa era um corpo esventrado, uma carcaça cega e escancarada. Nuas, as paredes guardavam ainda as marcas das estantes e dos armários feitos à medida, das molduras dos quadros e das fotografias de família.

(ao espreitar lá para dentro, dei-me conta de que nunca entrara na casa. estivera, várias vezes, ao portão por causa disto e daquilo, mas não passara dali. o mesmo acontece em relação a todas as outras casas dos vizinhos da praceta)

O enorme e compacto canteiro de estrelícias escapara à destruição. O investidor talvez não se comovesse com a beleza das flores, flechas laranjas e azuis trasvestidas de aves do paraíso, mas por certo teria interesse em manter aquele massivo arbustáceo que, interpondo-se entre a sala e a rua, permitia àquela maior privacidade. Estava enganada. No final de uma quentíssima tarde de agosto, dei com as estrelícias estraçalhadas no passeio. Folhas, talos, longas raízes formavam um monte de lixo verde que agonizava ao sol. Sob o olhar incrédulo dos operários, a cimentarem a cova que ficara aberta na terra, arrastei praceta acima as estrelícias mutiladas. Foram precisas várias viagens para levá-las todas até ao quintal da casa da minha mãe. O Shugi, o gato semivadio da Isabel, o verdadeiro dono da praceta, veio vigiar-me intrigado, enquanto eu dava de beber às raízes, cortava as folhas secas, abria buracos na terra dura, tentando replantar as estrelícias. Não vai dar nada, foram arrancadas sem qualquer cuidado, estiveram demasiado tempo ao sol e já estavam maltratadas pelas obras, disseram-me vozes avisadas, incluindo a do sr. Manuel, o jardineiro que de quando em quando vem ajudar-me. Apesar da minha vigilância diária, as folhas continuavam a secar e as hastes quebravam-se com o vento. Estão mortas, disse o Pedro. E abraçou-me como se eu fosse uma alma sensível.

(talvez só se morra mesmo quando todos desistem de nós)

Setembro acabou e as obras na casa da Cila também, as grades foram pintadas de um preto armado em moderno, as janelas são agora vidros sem graça nenhuma e aposto que lá dentro há uma ilha na cozinha e armários brancos iguais aos de todas as casas recentemente remodeladas, os investidores não se interessam pelo passado nem antecipam o futuro, servem-se apenas do nada que o presente é. E as estrelícias continuavam mortas.

Felizmente a vida não é literatura e permite-se desfechos previsivelmente redentores. Perto do Natal, num dos curtos dias de frio e chuva, surgiu desembestada da terra uma haste com tanto vigor que me levou a acreditar que havia uma música heroica a acompanhá-la. Depois vieram as flores, Onde é que arranjaste tantas estrelícias tão bonitas?, perguntou-me a minha mãe.

(talvez não tenham importância os princípios das histórias e sejamos mais felizes estando sempre a esquecê-los)

A antiga casa da Cila continua tristemente condecorada com um cartaz, Vende-se. No sítio onde ainda sobrarão raízes das estrelícias, uma enorme poça de água parada enegrece o cimento que as abafa.

(sem o fluido atrevimento do Shugi nem a apegado esforço das estrelícias, passo pelo lado de fora da vida dos que me rodeiam)

sexta-feira, fevereiro 19

Preparação para o sono

 


Meu amor pela leitura

Os anos da Rua Paraíba, 214 marcam um período intenso na minha vida. Meu amor pela leitura era tal que chegava a descurar dos estudos para me dedicar aos romances. Burlava com a maior facilidade a fiscalização de mamãe, que nesse ponto era bastante severa. Assim que me apanhei lendo em francês, nem ela nem meus irmãos (que só vieram a ler nessa língua algum tempo depois), puderam controlar minhas leituras. Após as aulas, aos domingos e feriados, passava inteiramente entregue à minha paixão: lia tudo que me caía sob os olhos, não havendo nada que me interessasse tanto, nem cinema, nem festas, nada. Os meus estudos de inglês, muito me serviam nesse particular. Tinha um professor que preferia conversar com mamãe sobre jardinagem e galinhas, sendo suas aulas de meia hora, no máximo, com exceção de quando papai se achava em casa. Para mamãe, entretanto, inglês era a matéria de que eu mais gostava e à qual mais me dedicava, isto não só porque o professor nos ajudava a tapeá-la, falando conosco na sua presença, aquelas frases de principiantes:”What is this?“, “Where is the door?”, “How are you?“, “What is the matter with you?” e outras da mesma categoria, como também entre os compêndios adotados por ele havia um, o Inglês sem Mestre, que me auxiliava a mistificá-la. Era um livro de tamanho bem maior do que o comum de estudo, capa dura, marrom. Metia dentro o romance que lia no momento e passava o dia com ele aberto ostensivamente, fingindo que preparava as lições para o dia seguinte. À noite, enquanto ela conversava com as irmãs, sentadas ao redor da mesa da sala de jantar, lá estava eu, absorta no estudo, pensava ela. De vez em quando, porém, reclamava:


— Helena, não sei que estudo é esse seu, ouvindo conversa ao mesmo tempo, assim não pode aprender.

Não respondia nada, mergulhada que estava na leitura apaixonante, de onde nem um tiro de canhão me arrancaria. Quando, porém, as reclamações se amiudavam muito, abandonava a sala, indo para o meu quarto.

Dias havia, entretanto, em que, receosa de que acabasse desconfiando da minha grande dedicação ao estudo de inglês, mudava de tática. Despedia-me dizendo que ia à casa de vovó, trancava a porta do meu quarto (cada um de nós tinha o seu naquele casarão), saindo pela porta da frente. Assim que transpunha o portão de ferro, parava uns passos adiante e, depois de alguns minutos de espera, voltava de manso, inspecionando o corredor da entrada para ver se tinha alguém e, se não, entrava rápida, pulava a janela do meu quarto, que deixara aberta de propósito. Metia-me debaixo da cama e ali passava o dia lendo romances, na maior felicidade, apesar dos sobressaltos e a despeito da posição incômoda, deitada de costas. De vez em quando, mamãe, na sua faina de dona de casa caprichosa, vinha varrer e catar as folhas secas que poderiam ter caído nos vasos de begônia que se alinhavam ao longo da entrada.

Ouvia, com o coração batendo, o ruído dos seus chinelos, pra lá pra cá, a vassoura de palha varrendo, louca de medo que me descobrisse. Mas nunca acontecia: continuava seu trabalho, longe de suspeitar que me achava ali bem perto. As horas passavam na maior rapidez e eu lia, lia, completamente esquecida do mundo e da realidade, vivendo apenas aquilo que o livro contava.

À hora do jantar saía de debaixo da cama, pulava de novo a janela e entrava pela porta da frente como se estivesse chegando naquele momento da casa de vovó. Deitada debaixo da cama, com luz insuficiente, os braços cansados de manter o livro à altura dos olhos, lia toda uma enfiada de livros a mais disparatada possível: Capitain, Pardaillan, Fausta Vencida de Miguel Zevacco, O Piano de Clara, O Violino do Diabo, Anjos da Terra, de Perez Escrich, Memórias de um Médico, Visconde de Bragelone, Vinte Anos Depois, Conde de Montecristo, de Alexandre Dumas, quase tudo de Júlio Verne, todos os fascículos de Sherlock Holmes, Nick Carter e Arsène Lupin e os primeiros romances de Paul Bourget, em grande moda da Bibliotèque de Ma Fille, a Filha do Diretor do Circo, que me pôs triste muitos dias, tudo misturado com Recordações da Casa dos Mortos, Le Crime de Sylvestre Bonnard, Le Lys Rouge, Crime e Castigo e muita coisa de que não me lembro. Mas não havia livro que chegasse para a minha enorme sede. Como não tinha dinheiro para comprar, recorria às colegas do colégio, lia escondido os do meu tio e o vendeiro vizinho nos emprestava alguns: O Judeu Errante, de Eugênio Sue e vários fascículos dos Dramas do Novo Mundo de Gustavo Aymard, além de alguns de Escrich. Siô Mané e Siô Chico, além de nossos fornecedores de gêneros, contribuíam também para o nosso desenvolvimento intelectual. Quando não havia outra fonte onde buscar, lá ia atrás deles , que sempre desencavavam algum velho romance de Escrich o façanhas de índios americanos. Outro meio de arranjar eram os amigos de Dauto, sendo necessário, porém, que lhe pagasse quatrocentos réis para comprar cocada baiana na venda de Zé Miliano, botequineiro da esquina da rua. Como pagamento era sempre adiantado, passava antes pela venda, comprava as cocadas e depois então ia em busca de Caio Líbano ou outro que tivesse livros. Em casa, esperava impaciente, chegando à calçada de minuto em minuto para ver se ele aparecia na esquina. Mas, qual, as horas passavam e nada. Já sabia, era só procurá-lo no quintal e encontrava-o trepado no mais alto galho do , pois abacateiro. Tinha conseguido entrar num dos momentos em que estava no interior e subira na árvore para se livrar de mim. Não podia atingi-lo, pois não tinha coragem de subir tão alto. Embaixo, pedia, chorava, ameaçava e ele, nada.

Só descia depois que tinha acabado de ler o livro que eu tinha pago para que buscasse pra mim. Mas não me corrigia: era só faltar leitura e me deixava seduzir pelas suas promessas de que daque vez procederia diferente.
Maria Helena Cardoso, "Por onde andou meu coração: memórias"

quinta-feira, fevereiro 18

Ler muda o ambiente

 

 Macus Romero

Aghwii, o monstro celeste

Katsushika Hokusai
Quando estou a sós em meu quarto, costumo aplicar sobre o meu olho direito uma venda preta do tipo usado por piratas. Embora não pareça, sou na verdade quase cego desse olho. Quase, mas não totalmente. Por conseguinte, se tento ver com ambos os olhos, surgem-me dois mundos perfeitamente sobrepostos: um, luminoso e nítido, e outro, sombrio e indistinto. Eis por que, andando por vias perfeitamente pavimentadas, sou às vezes assaltado por súbita sensação de perigo e insegurança que me prega ao chão, assim como a um rato que acabou de sair do esgoto; em outras, sou capaz de detectar sombras de cansaço e infortúnio nas feições alegres de um amigo e arruinar nosso diálogo até então fácil e inconsequente com o veneno de meu aflito tartamudear. Creio, porém, que me habituarei à situação com o tempo. Caso isso não aconteça, pretendo usar o tapa-olho preto não só em meu quarto, como também na rua e na presença de amigos. Estranhos poderão até achar que me dedico a um tipo de brincadeira antiquada e voltar-se com sorriso compassivo, mas já passei da idade de me incomodar com picuinhas.

Pretendo agora contar-lhes como foi a experiência de ganhar meu próprio dinheiro pela primeira vez, e se lhes falei antes do meu pobre olho direito é porque, no instante em que o feri num acidente violento, lembrei-me, de maneira súbita e totalmente desprovida de lógica, dessa experiência acontecida há dez anos. E, lembrando, libertei-me do ódio ardente que me dominava por completo naquele momento. Quanto ao acidente, pretendo falar-lhes disso por último.

Dez anos atrás eu possuía visão vinte em ambos os olhos. Agora, um deles está arruinado. O tempo passou, o tempo fez de trampolim o olho ferido por uma pedrada e saltou. Na época em que conheci esse homem, um louco sentimental, eu ainda via o tempo por um prisma infantil. Nunca até então experimentara a sensação brutal de ter um tempo a me contemplar pelas costas e outro tempo a me tocaiar mais adiante.

Dez anos atrás eu tinha dezoito anos, um metro e setenta de altura e pesava cinquenta quilos. Acabara de entrar na faculdade e procurava um biscate.

***

Recém-ingressado na faculdade, eu ainda não me havia inscrito no centro mediador de empregos para estudantes, de modo que bati à porta de conhecidos em busca de trabalhos temporários. E assim, apresentado por meu tio, cheguei a certo banqueiro que me indicou o emprego. O referido banqueiro me perguntou:

— Você já assistiu ao filme Harvey? — Assisti — respondi, tentando trazer aos lábios um sorriso de devoção que contivesse a dose certa de reserva, como convém a qualquer indivíduo em vias de obter seu primeiro emprego. O filme tinha James Stewart no papel do homem que vive na companhia de um coelho imaginário do tamanho de um urso. Quase morri de tanto rir ao assistir a ele.

— Pois ultimamente meu filho anda desse mesmo jeito, assombrado por um monstro. Até largou o emprego e se enclausurou em casa. Eu gostaria que ele saísse um pouco, mas alguém teria de acompanhá-lo. Você faria isso para mim? — indagou o banqueiro sem me devolver o sorriso.

***

Quando me apresentei ao compositor na semana seguinte, ele fixou em mim os olhos castanho-escuros encovados e me atordoou ao comentar em tom desprovido de censura:

— Soube que andou emboscando a enfermeira para perguntar a respeito do meu visitante que desce do céu. Como você leva a sério o seu trabalho!

Nesse dia, tomamos o trem e viajamos cerca de trinta minutos na direção oposta, rumo aos arrabaldes, para visitar um parque de diversões montado à margem do rio Tama. Lá chegando, nós dois andamos nos mais variados tipos de brinquedo. Para minha sorte, no momento em que o bebê do tamanho de um canguru desceu do céu para perto de D, ele andava sozinho numa roda-gigante.

Preso a uma estrutura gigantesca semelhante a um catavento, o assento de madeira em forma de barco afastava-se lentamente do chão e ganhava o céu.

Sentado num banco em terra firme, eu via o meu patrão voltado para o lado e conversando com o interlocutor imaginário lá no alto. D me fez correr diversas vezes à bilheteria para renovar os tíquetes da roda-gigante e só se apeou quando o ente que o visitava retornou ao céu.

***

— Neste momento, eu mesmo não estou vivendo, ao menos de modo consciente, dentro do tempo presente. Você conhece as regras das viagens ao passado realizadas em máquinas do tempo? Um indivíduo que viajou para um mundo que existiu há dez mil anos, por exemplo, não pode fazer nesse mundo nada que deixe rastros. Caso faça, provocará distorções, ainda que mínimas, na história mundial dos últimos dez mil anos, pois ele não existiu realmente naquele tempo. E como eu já não vivo no tempo presente, não posso fazer nada que deixe rastros da minha passagem por ele.

— E por que o senhor deixou de viver no tempo presente? — perguntei.

No mesmo instante meu patrão fechou-se em si e, transformado em dura bola de golfe impenetrável, ignorou-me. Arrependi-me em seguida da minha indiscrição. Eu fora levado a ultrapassar os limites convencionais e a fazer esse tipo de pergunta porque o problema que afetava D despertara em mim um interesse exagerado. A enfermeira tinha razão: eu não devia tomar conhecimento dos seus problemas, ou simplesmente manter-me indiferente. Naquele instante, decidi que não me meteria mais, ao menos voluntariamente, nos assuntos particulares de meu patrão.

A nova linha de conduta mostrou-se um sucesso nas diversas vezes em que andei por Tóquio em companhia do compositor. Mas apesar da minha decisão de não me meter mais nos assuntos de meu patrão, ocasiões havia em que, inversamente, seus assuntos se precipitavam ao meu encontro. Certo dia, meu patrão me forneceu um endereço ainda desconhecido para mim, e para lá nos dirigimos de táxi. O endereço era o de um apartamento luxuoso, com estrutura de hotel, situado para os lados de Daikan-y ama. Lá chegando, meu patrão me mandou pegar o elevador e subir sozinho para apanhar um pacote cuja entrega havia sido combinada previamente. Ele mesmo ficou à espera numa cafeteria do andar térreo. A pessoa encarregada de me entregar o referido pacote morava sozinha no apartamento e era a mulher de quem D havia se divorciado.

***

Afinal, ela acabou me perguntando:

— D ainda vê o espectro? — Sim, senhora. Diz que é um bebê do tamanho de um canguru, usa roupinha branca de algodão e se chama Aghwii. Foi o que a enfermeira me contou. Normalmente, ele flutua no espaço e desce de vez em quando para ficar perto do senhor D — respondi entusiasmado à primeira questão sobre um assunto de meu conhecimento.

— Ah..., Aghwii. É o fantasma do nosso bebê morto, não é? Sabe por que ele se chama Aghwii? Porque a única coisa que esse bebê disse nos poucos dias que viveu foi: aghwii. A própria ideia de dar esse nome, Aghwii, ao espectro do bebê que o atormenta, mostra como D é complacente consigo mesmo, não acha? — disse a mulher, com um sorriso frio oculto na voz. Da sua boca, chegou-me um odor acre e desagradável.

— Nosso bebê nasceu com uma protuberância enorme na área posterior do crânio, grande a ponto de parecer que tinha duas cabeças, sabe? E o médico diagnosticou erroneamente uma hérnia cerebral. Ao saber disso, D conversou com esse médico e matou o bebê para proteger-nos, a ele e a mim, dessa terrível infelicidade. Creio que, por mais que o bebê chorasse, eles só lhe deram água com açúcar. Acho que D agiu com extremo egoísmo, pois o matou apenas por não querer assumir a criação de um ente com funções compatíveis às de um vegetal (a previsão foi do médico). Contudo, durante a necropsia, descobriram que a protuberância era apenas um abscesso benigno, sabe? O choque foi tão violento que D começou a ter essas visões. A noção do próprio egoísmo tornou-se insuportável para ele. E do mesmo jeito que ele a princípio negou ao bebê o direito de viver, passou depois a negar categoricamente a si próprio o mesmo direito. Mas não se suicidou. Apenas fugiu da realidade e abrigou-se num mundo imaginário. Mas ainda que fuja da realidade, ele não será nunca capaz de limpar o sangue dessa mão que matou o bebê, não é mesmo? E por isso, eu digo: andar por aí com as mãos sujas de sangue a chamar o espectro de “Aghwii” é ser complacente demais consigo mesmo.

***

E então, chegou o último dia da minha relação com D. Era véspera de Natal. Lembro-me disso muito bem, porque D me deu um relógio e se escusou por estar me entregando o presente um dia antes da data certa. Além disso, nevou durante cerca de trinta minutos no começo daquela tarde. Eu e o meu patrão tínhamos ido a Ginza, mas, como o tráfego já andava intenso, resolvemos sair daquela área e ir ao porto de Tóquio. D queria ver o cargueiro chileno que devia ter aportado naquele dia. Imaginei o espetáculo da neve acumulando-se sobre o navio e também me entusiasmei. Resolvemos então ir andando de Ginza rumo ao porto. No momento em que passávamos diante do teatro Kabukiza, D ergueu o olhar para o céu escuro e sujo que prenunciava nova nevasca. Nesse momento, Aghwii desceu para o lado dele e eu, como sempre, caminhei a alguns passos de distância de meu patrão e de seu espectro. Logo, tínhamos de atravessar um amplo cruzamento. Mas o sinal mudou no instante em que D, acompanhado de seu espectro, pôs o pé para fora da calçada. D parou.

Caminhões abarrotados com encomendas de final de ano passaram a toda a velocidade como uma manada de elefantes. Foi nesse exato instante que D, com um grito repentino, saltou diante dos caminhões com as duas mãos estendidas, como se pretendesse acudir alguém, e foi instantaneamente jogado longe. Eu apenas fiquei olhando, aturdido.

— Foi suicídio! Ele se matou! — disse um desconhecido ao meu lado, com voz trêmula.

Eu, porém, não tive tempo de ficar cogitando se tinha ou não sido suicídio.

***

E então, nesta primavera, eu passava por uma rua quando, subitamente e sem motivo algum, fui atacado a pedradas por um bando de crianças espavoridas. Não sei o que as assustou daquele jeito, mas o fato é que uma pedra do tamanho de um punho, lançada por uma das crianças que o medo tornara extremamente agressiva, acertou-me o olho direito. Com o impacto, dei com um joelho em terra e senti o peso de um naco de carne na mão que levei ao olho ferido. Com o olho são, vi que gotas de sangue caíam sobre o asfalto e, como ímãs, atraíam a poeira próxima. Nesse exato instante, senti às minhas costas certa presença saudosa e enternecedora do tamanho de um canguru alçar voo rumo ao céu de tocante pureza azulada, onde ainda demoravam os rigores do inverno. Adeus, Aghwii!, gritei em meu íntimo, surpreendendo-me a mim mesmo. Dei-me conta então de que o ódio por meus pequenos e apavorados algozes se dissipava e que, no decorrer destes últimos dez anos, o tempo se encarregara de encher meu céu de inúmeras coisas de brancura ebúrnea, nem todas a brilhar candidamente. Ao ser ferido pelas crianças e pagar um tributo realmente gratuito, eu conquistara, ainda que por um momento fugaz, a capacidade de sentir junto a mim um ser descido do meu céu.
Kenzaburo Oe