domingo, maio 31

Leitura em lótus

/Monica Barengo

Não aconselho envelhecer

Aos moços dou um conselho: não fiquem velhos. Verdade que as opções são poucas – ou morrer, ou lutar contra a velhice. E morrer não seria opção, mas entrega; e a luta? Bem, a luta resulta sempre numa batalha perdida e inglória.

Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel. Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas as moléstias mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras – a tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama "o arrasto". E mais a fiação arterial e venosa, e a coluna! E não falei na atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E então basta um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado.

Robert Doisneau
Os moços compadecidos, os quarentões assustados e os próprios velhos, apelando para tudo, inventaram ultimamente essas bobagens de "terceira idade", clubes e associações que trabalham contra o isolamento e as tristezas da velhice. Mas não se iluda, velho, meu amigo e colega. Ninguém está acreditando naquilo. Você já viu na TV um quadro de propaganda dessa falsa recuperação de terceira idade? Um velho e uma velha, vestidos à moda dos anos trinta, tentando dançar um tango argentino? É patético, embora a maioria dos moços apenas o considere docemente ridículo.

Diz-se que já se consegue muito na luta contra a velhice. Ginástica, dieta, malhação, corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, já pensaram no tormento de uma bela mulher, atriz, dama do soçaite, cortesã, que viva da e para a sua beleza, ao descobrir as primeiras rugas, a flacidez do mento, daquela sutil rede de outras pequenas rugas que rodeiam os lábios? O Dr. Pitanguy opera e os seus colegas de mérito variável também operam. Mas, por mais famosos, competentes e mágicos que sejam os cirurgiões plásticos, só fazem mágicas, não fazem milagres. Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem um "peeling", que é uma espécie de raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas, como toda mágica, não dura muito. E aí têm que começar tudo outra vez, as cicatrizes já não se escondem tão bem atrás das orelhas ou no couro cabeludo que, aparado, vai encurtando, deixando as pacientes com testas enormes, quase uma calvice. E nem falei em calvície que, mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres!

Você contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu pescoço, como se olhasse uma máscara que se desfaz. Vê bem, sabe como está velho, embora não "sinta"que está velho. Sua alma, seus sentimentos, sua cabeça, nada disso confirma a palavra ou a imagem do espelho. Mas os outros só veem de você o que o espelho vê.

E ao par disso as cãs, quer dizer, os cabelos brancos? Bem, os cabelos, pintam-se. Mas vocês já descobriram que, por mais excelentes sejam o cabeleireiro e as tinturas, o cabelo pintado fica sempre gritantemente diverso do natural? Pensei sobre isso e acabei descobrindo: o cabelo nosso, a natureza lhe dá cor de fio em fio, cada fio na sua tonalidade, uns mais claros, outros mais escuros: o conjunto toma esse colorido inimitável, que profissional nenhum pode obter, já que lhe é impossível tingir fio por fio. E, daí, essas senhoras de comas tão louras, tão ruivas, tão castanhas e negras, não iludirem nunca, darem mesmo a impressão de que usam perucas.

E, no final de tudo, vem o envelhecimento da cabeça, da inteligência, das ideias, da alma – da chamada psiquê. O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens, até mesmo excedê-las – mas a si próprio não se convence. Sabe que as suas ideias são as do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e isso pode ser camuflado, mas não pode ser modificado. Dizem que as células cerebrais não se renovam, como as demais células do corpo – será verdade? Até mesmo as ideias dos gênios mortos envelhecem; e diante das ideias de um Nietzsche, de um Freud, tem que se dar o desconto do tempo e das mudanças. Contudo, o pior mesmo é quando você, com honesta sinceridade, lamenta diante de alguém os estragos que lhe traz a velhice, e isso alguém protesta com veemência: "Eu queria, quando chegar à sua idade, ter essa sua lucidez!"

Lucidez? O que é que eu esperava? Que você já estivesse caduco?

Bola de cristal

Se um de nós dissesse ontem, quem creria
Que no mundo haveria caos igual
E que hoje a morte se transformaria
Num acontecimento tão trivial?

Raul Drewnick 

Escada para as nuvens


Assim começa o livro ....

— Ai que ma levam! ai que ma levam!

Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito, formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão, O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...

— Ai que ma levam!

É o único grito que irrompe do escuro, lúgubre, aflitivo, raspado. Depois o silêncio, a mudez concentrada da noite, a nuvem negra coalhada sobre as ruínas da vila toda lavada em lágrimas. Só aquele grito ressoa na praça solitária. A torre da Sé deformou-se: o granito aliado à névoa de mistura com a noite, abriram arcarias, alongaram as portas e fizeram dos restos da muralha antiga um tropel caótico. É uma amálgama de realidade e pesadelo, trapos de nuvens e palácios desmedidos. A escuridão remexe. Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal. Uma luzinha alumia um Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro arcos ogivais. Mas a luz treme à ventania, os arcos balouçam, a abóbada estremece, e, ao repelão do vento, grandes sombras esvoaçam, afundando-se no negrume. Há uma sufocação, um espanto, o terror de que a candeia se apague, e só fique o nada, a escuridão imensa e compacta e o grito raspado Lá a levam! Lá a levam!... É como a última claridade dum barco de náufragos, tragado sem remissão no redemoinho dum indefinido oceano polar. Adivinha-se a porta da igreja, uma golfada de tinta, e o telingue-telingue eterno duma fonte o choro baixinho daquela escuridão cerrada. A luz estrebucha. Se o vento a sumisse levaria consigo o último sinal de vida. Ficava apenas na noite infinita, impenetrável e revolta, o grito de angústia:

— Ai que ma levam!

As palavras saem duma casa incrustada na Sé. Dentro, numa sala, expõem num caixão o cadáver duma mulher magra, de cera, com flores baratas de papel na cabeça e no seio ressequido.

Agarrado ao esquife alguém berra, sacudido de desespero, como um farrapo ao vento. Em vão. A morta continua a sorrir, com os dentes arreganhados e um lenço apertado no queixo, numa imobilidade pétrea. Fora a noite, a invernia brava, dentro a morte e aquela dor suprema e inútil...

— Ai que ma levam! ai que ma levam!

Na sala pegada, de teto abaulado, um candeeiro de petróleo alumia outras figuras. São as visitas de enterro: velhas, dois homens, um padre, todos de negro, hirtos e solenes, em roda, nas cadeiras da sala e no canapé de palhinha. De vez em quando uma boca mastiga no escuro. A luz bate-lhes de chapa, ilumina-os como retratos: certos pedaços de fisionomia ressaltam, avançam, outros recuam na sombra. As figuras cerimoniosas são disformes, lembram caricaturas, e os traços exagerados exprimem egoísmo, avareza e secura. Ouve-se o raspar das unhas na seda preta dos vestidos. Uma voz soturna afirma: Deus lá sabe, na sua misericórdia infinita... E outra acode logo, num tom esganiçado e importante: Resignemo-nos perante os seus decretos...

São palavras da regra, que soam falso, sempre as mesmas. As outras mulheres ajeitam-se, suspiram e tomam a quedar-se num longo silêncio enfastiado. O homem no quarto ao lado, seguro ao esquife como um náufrago a uma tábua, soluça, e aquela dor que não cessa, indigna e exaspera as velhas. Não podem suportá-la. Todas trazem vestidos de aparato, com vidrilhos, e mitenes enfiados nos dedos ósseos.

A mobília da casa é uma embirrenta miscelânea de cacos doirados de casquinha, um canapé, arcas, cadeiras puídas, mesas de mogno com ignomínias expostas: cães de vidro e bordados de croché. No canapé as velhas empertigadas e os homens esperam, sem terem mais que dizer. Tudo aquilo, seres e coisas, exprime banalidade e secura e ao mesmo tempo certa grandeza. Pressente-se que as existências se fizeram de mil pequenos nadas acumulados. À luz do petróleo os olhos encovam-se-lhes, a dureza sobressai e aumenta. As mãos lívidas e secas, cheias de engelhas, deformadas pelas exostoses, são poemas de maldade e de astúcia. Parecem de mortos e tão afiadas como as da crueldade.

O gordo, do lado da porta, todo sebo, que cabeceia e dormita, é o Belisário escrivão, finura e crápula vestidas de negro. Resfolga. Enriqueceu à custa de penhoras e desgraças. Há almas assim, sempre ocupadas por esta mira o oiro. Todo ele por dentro é papelada e ronha. Está tão habituado a processos, que, mesmo sem necessidade, cisma em tranquibérnias. Apertar alguém, esmagá-lo, reduzi-lo pouco e pouco à última angústia, à pior extremidade, é para ele um gozo estranho. Sente uma enorme satisfação em perder os que caem nas unhas, em os levar por complicadas fórmulas até à máxima pobreza, metido na sombra, rabiscando papel selado, e vendo, minuto a minuto, o seu sonho tornar-se realidade.

A seu lado está a Felícia, presidente honorário das servas de Deus, associação instituída para que ninguém possa morrer sem confissão. É uma velha magra, austera e ríspida. Remexe de contínuo a boca enorme. Tem a maxila inferior saliente e os seus gestos são decisivos. Quando fala ordena. Os passos rangem-lhe ao atravessar as salas. Põe e dispõe. Nas sacristias temem-na: nomeia e demite padres, e entra como uma rajada nas existências alheias, revolvendo tudo, derrubando tudo. Conversa baixinho com a Patrícia, viúva gorda e banal, que expõe no peito volumoso e mole, num medalhão do tamanho duma almofada, o retrato do marido morto e um caracol do seu cabelo tingido. Cheira a banha. Perto dela outra velha, inquieta e rancorosa, discute com o padre:

— Até a gente devia mostrar satisfação quando nos morre uma pessoa de família...

— Conforme... resmunga o sacerdote.

— Porque a dor é uma afronta a Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu para nos salvar.

E todas as velhas, ao santo nome de Deus, logo descolam à uma os traseiros do canapé.

— É contrariar-lhe os seus desígnios! conclui a Patrícia com importância e cólera.

— Mas, minha rica senhora observa o eclesiástico Deus é bom, Deus compreende que as criaturas são de frágil barro. Todos neste mundo estamos sujeitos a fraquezas.

— Pois, quanto a mim, é um escândalo! exclama, e volta-se para as outras bem alumiada pela luz.

É a amiga mais íntima da Felícia. Juntas são temíveis. Nenhum doente lhes escapa. Esperam, espiam, compram os criados, intrigam e caem-lhes em cima, à hora da morte, pregando-lhes Deus, o inferno e as labaredas eternas. Alguns protestam. Debalde: as servas de Deus não desanimam, nem os largam. Rezam extensas ladainhas em livros encapados de negro, sentam-se dia e noite à cabeceira dos leitos, pregam, choram, chamam em altos gritos pela misericórdia infinita e subjugam-nos afinal, aterram-nos, matam-nos às vezes mas sempre salvos.

A Felícia persegue até à última, com furioso rancor, os heréticos, seus inimigos pessoais. Chegara a odiar o filho por ser ateu e a expulsá-lo de casa. Nunca lhe perdoara, nem à hora da morte, a sua irreligião. Recusara-se a entrar no quarto onde ele agonizava e nem o próprio confessor conseguira arrancar à dureza daquele coração o perdão do desgraçado, que minutos antes da morte bradava em altos gritos pela mãe. Arrastara-se depois descalça nas procissões, deixando marcado a sangue nas lajes da vila o rasto de seus pés. Por orgulho não confessava nem a si mesma o remorso que crescia com os anos e com a aproximação da morte.

As velhas sabem tudo que se passa na vila. Farejam os escândalos clericais e correm logo à diocese a denunciá-los ao arcebispo, que as teme como à praga. Na casa da Adélia há uma contínua roda-viva: vão lá à tarde todas as criadas da vila rezar o terço. E ela indaga, rebusca, espiolha o que se passa nas casas de fora e nas consciências alheias. E suspira:

— Ai não morro sem ver outra vez a Santa Inquisição!

A um canto estão outras mulheres e alguns homens nulos, um empregado da Câmara muito meticuloso, sempre vestido de negro. Seu crânio pontiagudo reluz como um espelho.

Do céu barrado continua a desabar a fastidiosa chuva e a ventania abala as vidraças. A vida é um inferno de banalidade e toda aquela secura pesa sobre o pobre homem, que continua a gritar fincado no caixão:

— Lá a levam! lá a levam!...

— Então, então, meu amigo?... Vamos!

— Todos têm de passar por este transe!

— Está no Céu! Resigne-se! então!...

As velhas, imponentes nos seus vestidos de aparato, bocas somíticas e cuias de retrós dizem, só dos lábios para fora, as mesmas palavras vás. A luz do candeeiro quebra-se na careca reluzente do empregado camarário e a essa claridade as figuras parecem deformadas e monstruosas.

— Tudo tem limites intervém com indignação a Adélia até a dor. Resigne-se, seja cristão!

— Não há nada pior que não acatar os decretos do Altíssimo.

De vez em quando, uma velha ergue-se e vai em bicos de pés ver a morta. O caixão está no meio do quarto, com duas tochas ao lado e o crucifixo à cabeceira. Entram, espargem o cadáver de água benta e saem logo enojadas.

Ao lado do esquife a Candidinha vela, sentada e embrulhada no xale coçado, figura de túmulo de guarda ao cadáver. Não diz palavra. Às vezes do corredor escuro irrompe outra criatura, toda em lágrimas: é a criada, a Joana. Traz uma criança ao colo. Mas afastam-na logo, levam-na de rastos, e ela lá vai com a pequena nos braços, aos gritos:

— Minha menina! minha menina que fica sem mãe!...

O cadáver apodrece, murcha entre as rosas de papel: lembra um passarinho num esquife enorme. Os olhos são duas manchas na palidez da face ressequida; os dentes arreganham-se por entre os lábios roxos... E as velhas fogem com o lenço no nariz, exclamando sem convicção:

— Está no Céu!

Só a Candidinha, embrulhada no xale, sem bulir, espera.

— Está no Céu, senhor Anacleto e meu respeitável amigo consola o padre e conclui: O que não tem remédio, remediado está...

E ele, sem querer ouvir, abraçado ao caixão:

— Deixem-me! deixem-me!...

Então o padre, ferido no seu orgulho, diz-lhe com severidade:

— Basta! Homem, isso até lhe fica mal! É um pecado. Lembre-se do que Cristo sofreu para nos salvar! E aponta o céu. Arrancam-no enfim dali, numa explosão de lágrimas.

Ao pé daquela dor sincera toma maior relevo a secura e a banalidade dessas mulheres, que só temem a Religião e, sobretudo, o Inferno. Perto do cadáver entre os móveis doirados que parecem mais reles com a ventania imensa lá fora todas estas figuras banais avolumam como figuras de tragédia: os ventres inchados parecem mais inchados ainda, as máscaras mais cansadas, e mais negras as bocas sem dentes que remoem.

— Ai que ma levam!...

Tinha morrido na véspera. Nas últimas horas do dia nublado, ao sentir-se trespassada pelo pior frio, o da morte, chamara para junto de si a irmã, a Candidinha, uma mulher insignificante, envolta num xale gasto. Pelos vidros côa-se a luz baça do crepúsculo. Fora choram. A velha traça o xale, e a boca aumenta-lhe, avivam-se-lhe as rugas.

sábado, maio 30

Mala de viagem


Escalada

Tatsuya Tanaka
Devemos ir aos livros não como alunos tímidos que temessem aproximar-se de mestes frios e indiferentes; não como os ociosos que passam o tempo a beber. E, sim, como alpinistas a galgar as alturas; como guerreiros que acorrem ao quartel para buscar armas. E não como quem estivesse a fugir de si mesmo, sem vontade de viver
Hermann Hesse

Bom e velho guarda-chuva


O calo da velhice

Idoso é eufemismo de velho e é hoje palavra de uso corrente, pelo menos nos meios de comunicação. Se há necessidade de eufemismo, é porque velho é considerada uma palavra feia, ou desagradável. Na linguagem coloquial, não consigo imaginar alguém chamar um velho de idoso: "Está vendo aquele idoso ali? É meu avô". Dona Ika Fleury, que se dedica à causa dos velhos, acha, e o disse, que ser idoso é um castigo social e financeiro. Está certo.

Antes de ser social e financeiro, talvez seja um castigo biológico, de que ninguém escapa. Ou escapa, mas pela única alternativa – a morte. Quando um sujeito morre inteiro e sem sofrimento, dizem os franceses que morreu "en beauté". Morreu bonito, antes de ficar velho, ou idoso, o que sem eufemismo quer dizer decadente e feio. Um bagaço. Ou um museu, como diz a gíria da meninada carioca. Menino não tem eufemismo.

Pedro Nava, que era médico, encarava a velhice sem a menor piedade. Ainda agora, vejo em Letras & Artes o depoimento que deu pouco antes de morrer a Regina Maria Telles Vergara. Na casa do Hélio Pellegrino, em Belo Horizonte, eu ouvia a mãe dele, dona Assunta, dizer sempre: "Vecchiaia è bruta". Nós éramos uns garotos e a dona Assunta devia estar pelos quarenta e poucos anos. Um broto. Pois aqui está em português na boca do Nava o rifão da dona Assunta: "A velhice é feia".

Nava tinha então 81 anos e poucos meses depois morreu, como se sabe. Foi um inconformado com a própria velhice. Chegou ao ponto de condenar a aposentadoria por limite de idade. "O sujeito aposentado fica neurótico"; disse. Não estou longe de concordar. Grande escritor, Nava era um espírito radical. Ele próprio advertia que não era o caso de tomá-lo ao pé da letra. No outro extremo, também radical, está a atitude piegas com que hoje se trata o velho.

Os velhos sessentões, ou até cinquentões, estão sendo cumulados de favores legais, na linha de uma mentalidade que compartimenta cada segmento social, para lhe dar tratamento privilegiado. No fundo, não acreditamos no bom e saudável direito impessoal. Ou na simples cortesia que encara o velho com o respeito que merece. Desse jeito vamos acabar votando uma lei que proteja o sujeito que tem um calo no pé. E terá direito a um guichê especial. Quem sabe é melhor acabar com as filas?

Desbravador

O bicho da escrita

Joey Guidone
Todos os meus amigos escrevem. Excelente. Todos os meus amigos gostam de escrever. Formidável. Eu próprio não desgosto de escrever, embora já não o faça. Escrever é bom. Escrever as palavras. Escrever as coisas. Escrever o mundo. O mundo dentro de nós. E o mundo fora de nós. Todos os meus amigos escrevem. Todos os meus amigos são escritores. Todos os meus amigos fazem livros.

E o pior é que não são só os meus amigos. As outras pessoas também. Os meus vizinhos escrevem - poemas. O senhor que entregava as cartas também escreve - livros de viagens, acho. A empregada do café escreve romances policiais, o funcionário do banco escreve novelas de amor, o dono da mercearia escreve - romances históricos. A minha mãe escreve ficção científica, os meus irmãos escrevem banda desenhada, até os nossos primos mais afastados escrevem - acho que best-sellers, mas não tenho a certeza, podem ser apenas ensaios de hermenêutica neo-visigótica.

Só o meu pai não escreve, porque já morreu. Se estivesse vivo escrevia de certeza, e até sei o quê - novelas picarescas. No hospital, todos os doentes escrevem e os médicos que lhes prescrevem as receitas também escrevem. Da literatura inclusa à literatura médica, nem mesmos os enfermeiros, os maqueiros, os polícias de piquete ou os funcionários do balcão de atendimento deixam de escrever.

Esta situação é preocupante. O governo já anunciou que irá tomar medidas. Não é de excluir, admitiu o porta-voz do governo, que seja declarado o estado de emergência. O porta-voz do governo já não fala - ele próprio foi atingido pela doença. Eu por acaso li o que escreveu, mas não sei se ele estava a falar a sério - a escrever a sério - ou se era apenas mais um capítulo da sua nova (e interessantíssima) ficção política. Aliás, devo ter sido o único que o leu ou, vá lá, um dos poucos. Porque deve haver mais como eu, quero dizer, tenho de partir desse princípio, não? Convém não confundir o facto de não conhecer mais ninguém como eu com a assunção, quiçá precipitada, de não haver mais ninguém como eu.

A doença é altamente contagiante. Faz o Ebola parecer um vírus de brinquedo, tal a velocidade a que se reproduz e transmite. O período de incubação dura entre três a seis horas, findo o qual a vítima, até então uma pessoa normal, se torna abruptamente num escritor. Os hospitais estão a rebentar pelas costuras, a abarrotar de gente obcecada pela sua dose de papel e caneta. E cada vez têm de escrever mais, de aumentar a dose, porque cada vez têm mais e mais ideias, mais e mais amor à literatura, às belas palavras, à poesia secreta que se esconde por trás das belas palavras - mesmo das feias, dizem os casos terminais.

Os cientistas ainda não conseguiram isolar o vírus, ou encontrar um antídoto, ou mesmo simplesmente identificar a origem da doença, ou explicar-lhe a natureza, porque… pois, isso mesmo, estão todos ocupados a escrever. Há pessoas que já definharam e se consumiram por inanição. Nada de espantar, é até bastante lógico, embora escabroso: escrevem, não comem, morrem.

Acidentes ocorrem em massa. Os despistes são mais que muitos. Por toda a cidade se ouvem explosões. Os taxistas vão muito bem a meter a terceira, lembram-se de uma frase, põem-se a escrever, largam o volante e… É terrível.

Até as crianças se põem a escrever. As que ainda não sabem o alfabeto inventam um, ou garatujam bonecos simbólicos, e inventam histórias, histórias, histórias. Bebés de um ano, que digo?, de meses, pegam numa caneta, num lápis, e mexem as mãozitas fechadas para a frente e para trás, com uma habilidade inaudita. Claro que acabam por rasgar o papel e rabiscar o chão todo para além das esparsas fronteiras da folha branca, mas não se importam com isso, continuam sem parar a escrever os símbolos do mundo. E os pais também não ligam, porque eles próprios estão ocupados a escrever, e o que é um chão todo rabiscado em comparação com um brilhante conto infantil onde uma princesa ajuda um cavaleiro a não se perder na floresta negra onde vai combater um dragão maligno com a simples dádiva de um dos seus belos cabelos louros? Hum?

Nunca se viu nada assim. A situação é grave, toma proporções calamitosas e não há sinais de se vir a atenuar. Gostaria de o dizer de outra maneira, mas não há outra maneira de o dizer: o mundo corre o risco de sucumbir ao peso de tantos romances, contos, ensaios, novelas, poemas. Os poemas, esses então, são mais que as mães. Odes, elegias, éclogas, adágios, quadras, redondilhas, dísticos, ditirambos, alexandrinos, pastorais, quintanilhas, décimas, duodécimas, litotes, sonetos, sonetinos, sonatinas.

Não estou a ser alarmista. A Terra já saiu ligeiramente da órbita. E o número de escritores e poetas não pára de aumentar de dia para dia. E o número de palavras escritas. E de frases inovadoras: curtas, longas, frases de uma só palavra ("Ele. Disse. Para. Ela."), frases sem vírgulas durante duzentas páginas ("Não vale a pena dar aqui um exemplo teria de ocupar duzentas páginas mas esta pequena amostra talvez já sirva para dar uma ideia ou então o melhor ainda é pelo menos gastar mais meia linha com esta frase idiota de modo a que a ideia que estava a tentar ser dada seja mais clara e convincente e acho que agora já chega o exemplo já está dado acho"), torniquetes e arrebiotes de sintaxe que uma pessoa não julgaria possíveis ou razoáveis.

Uma pessoa pergunta-se sempre: "Que mais irão eles inventar?". Ou "Será que ainda há algo para inventar?" Pelo menos era o que me perguntava antes - antes da epidemia. Pois se há coisa que a doença veio provar é que as possibilidades de invenção - e as capacidades humanas de inventar - são inesgotáveis. É triste, mas é a dura realidade: a imaginação humana está em contínua expansão, como o universo. A imaginação humana é como um buraco negro, tudo consome, tudo devora. E a humanidade corre o risco de se extinguir por causa disso. Por excesso de imaginação, por excesso de talento, por excesso de criatividade.

Com franqueza, há um limite para tanta produção artística e cultural. Ou devia haver, porque, pelos vistos, não há.

Ainda por cima de qualidade. Sim, porque, quem sou eu para o negar?, as pessoas não só escrevem como ainda por cima o que escrevem é bom, é interessante, é válido, merece ser lido, tem estilo pessoal, vem ocupar um espaço no espaço da literatura que estava por ocupar porque não sabia, antes de ser ocupado, que esse espaço existia e era ocupável. Cada pessoa cria o seu nicho com a mesma avidez e a mesma precisão milimétrica com que a andorinha constrói o seu ninho. E, se é certo que uma andorinha não faz a primavera nem um escritor chega para fazer a literatura, muitas andorinhas juntas, milhares, milhões, biliões de andorinhas juntas chegam e sobram para fazer à vontade uma caterva inteira de primaveras: sobretudo daquelas que trazem como brinde gratuito uma senhora porção de verões, outonos e, claro, invernos. Esse é que é o busílis.

E esse é também o génio do vírus. Põe as pessoas a escrever - e a escrever bem. Se lhes desse a vontade, mas não o talento, ainda era como o outro. Um médico que descobre, ao fim de centenas de páginas, que se limitou a parodiar Fernando Namora, pode ainda voltar a exercer medicina, a fazer aquilo para que tem realmente jeito. Uma advogada que se dê conta de que nem todas podemos ser Agatha Christie ainda pode ser útil aos seus clientes. Mas que fazer com um obstetra que faz páginas belíssimas? E com uma causídica que nos faz ficar na dúvida sobre quem é o criminoso até ao derradeiro parágrafo? Hum? É triste. É trágico. É insuportável. Histórias bem arquitectadas, com indiscutível mestria, personagens credíveis, textos que compreendem a essência da coisa literária: que não é nas palavras, mas para além das palavras, que se encontra a beleza do texto.

*

A princípio até houve uma euforia colectiva, os jornais falavam de um "novo nascimento", os críticos de um "momento ímpar" da nossa literatura, os poderes públicos da pujança de uma "nova geração de criadores". Só depois começaram os pequenos indícios de que poderia haver algo de errado neste surto de talento, mas ninguém conseguiu - ou quis - ver o que estava a acontecer. E, verdade seja dita, por essa altura também já muita gente estava contaminada e começara a escrever, primeiro com alguma hesitação e sentido de responsabilidade, depois cada vez mais furiosamente - até ao romance final.

Agora?Agora o mundo é um lugar lúgubre, são tempos enegrecidos, estes. E o pior é quando chegar o inverno. No verão ninguém dá por falta das formigas, apenas das cigarras. Mas quando chega o inverno… Os mercados estão vazios, a distribuição de pão e outros alimentos básicos não é feita, o próprio pão não é feito. As lojas estão vazias, abertas, escancaradas para a rua, mas vazias. Sem ninguém a guardá-las, sem ninguém nas caixas, sem ninguém para acender ou apagar as luzes. Nos hipermercados, uma pessoa pode levar para casa tudo o que quiser nos carrinhos metálicos. Mas, se não tiver uma moeda, não pode levar nem um carrinho porque não há onde trocar a moeda.

Há, claro, coisa boas. As televisões deixaram de funcionar. Acabaram-se as telenovelas, as "novelas da vida real", e a ironia é que se acabaram precisamente na altura em que se multiplicou por mil o número de autores de telenovelas. Só que já não há ninguém para as filmar: actores, operadores de câmara, maquilhadoras, realizadores, produtoras, assistentes de realização, equipas de luminotecnia, guarda-roupa, pós-produção e montagem, estão todos cada um para seu lado a escrever o livro das suas vidas. Também, seria preciso dizê-lo?, já não há boletim meteorológico. Receio que aconteça o pior se os barcos forem para o mar sem saber que mau tempo os espera. Mas imediatamente me dou conta da parvoíce que acabo de dizer. Já não há niguém para se fazer ao mar, os pescadores abandonaram as redes, os arpões, os convés, os iscos, e estão todos de papel e caneta a descrever relatos de naufrágios, aventuras com peixes de nome impronunciáveis, palimpsestos de Moby Dick, versões melhoradas e adaptadas aos tempos modernos da noveleta de Hemingway, O Velho e o Mar.

Há bocado disse que eu devia ser o único a ter lido o último comunicado do governo. Depois corrigi e disse que não, talvez não seja o único. Talvez não seja, de facto, mas até agora não sei onde estarão os outros, esses outros que ainda não foram atingidos por esta loucura colectiva, nem se serão como eu ou se terão eles mesmos sofrido alguma mutação. Não sei por que motivo fiquei imune ao vírus. Terá a ver com o meu AND, o meu código genético, com o meu tipo de sangue, com a insuficiência (ou o excesso) de melanina nos meus poros? Faltam-me os conhecimentos científicos para o poder dizer sem correr o risco, impróprio sobretudo nesta ocasião, de cair na ficção científica ou no delirio fantasista disfarçado de saber objectivado.

Se não sou a única pessoa no mundo que, neste momento, neste talvez derradeiro momento da humanidade, lê o que os outros escrevem, onde estão os meus camaradas de armas? Será possível reunirmo-nos e criar um bastião de resistência, uma organização underground que lute contra a epidemia e, através do estudo, da leitura, da experimentação teórico-prática, encontre uma solução para devolver a saúde aos homens e pôr de novo o mundo a funcionar? Não sei. Confesso que não tenho muita esperança.

Eu sou um leitor. Sei o que sou: leio o que outros escrevem. Faço-o até compulsivamente. De manhã, ao pequeno-almoço, mesmo que não tenha um jornal pela frente, as páginas com a tinta ainda fresca aflorando a chávena de café, os meus olhos percorrem instintivamente a mesa, à procura de palavras, letras, frases para ler: "Corn Flakes", "rico em vitaminas e minerais", "Loja 18 - Rua Camilo Castelo Branco, 15-A", "Planta - margarina vegetal, 250 gramas"… Depois, à medida que o dia avança, vou lendo tudo: todos os jornais, todos os anúncios, todos os números de todas as portas, todos os nomes de todos os médicos na placa da policlínica que fica na rua pela qual perpasso todos os dias. Leio todos os romances que me passam pela frente, leio todos os ensaios que consigo ler, todos os poemas que me passam para a mão quando, à hora do almoço, vou comer um mini-prato ao balcão da pastelaria do bairro onde fica o meu emprego, no qual tenho por função ler todos os documentos que colocam em cima da minha secretária para esse mesmo devido efeito, que é eu lê-los.

É verdade, não sei por que milagre fiquei imune ao vírus. E o engraçado é que nem sempre fui assim. Em jovem, eu próprio tentei escrever. Pode-se lá viver sem ter tentado escrever! Embora nessa altura, devo dizê-lo, houvesse muito menos gente a escrever. Eram outros tempos, havia muito analfabetismo, era uma vida de trabalho. Depois, descobri que preferia ler. Mas antes, confesso, eu próprio tinha a mania de escrever. Nada especial, acho: uns poemetos, um ou outro conto, dois ou três esboços de diálogos para teatro. Mas não vale a pena escondê-lo, eu tinha a mania de que sabia escrever.

Talvez por isso eu tenha ficado imune, se calhar o meu pecadilho de juventude - queria ser escritor! - funcionou como vacina. Isso protegeu-me, até à data, admito, mas não sei até que ponto isto é uma bênção ou uma maldição. Sou um leitor num mundo de escritores, e isso faz-me sentir muito sozinho. Porque todos escrevem - mas ninguém lê o que os outros escrevem. Ninguém senão eu. Não têm tempo. Estão tão absortos a contar a sua história, a conceber o seu monumento de imaginação e arte, que não têm tempo para ler. Nem é uma questão de ter tempo, é que, simplesmente, já não conseguem. Não conseguem ler. E, qualquer dia, já não sabem ler. As línguas assim vão acabar, ainda antes mesmo do mundo, porque cada um vai cada vez mais e mais escrever na sua própria língua, no seu código muito pessoal, esquecendo-se de que a comunicação tem dois sentidos e que, para se ser compreendido, é preciso partilhar os elementos para essa compreensão. Não lêem. Só escrevem. Morrem. Tal é a potência, a perversão demente do vírus.

*

E você? Não sei se existe, caro/a colega de sobrevivência neste mundo em colapso. Se ler isto, é porque ainda existe, e então fica a saber que, algures no planeta, talvez mesmo na sua cidade, há alguém que partilha os seus medos, angústias, mas também as suas esperanças. E talvez possamos encontrar-nos, era mesmo bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, para unir esforços, e procurar outros como nós: leitores imunes ao bicho da escrita. Bem sei que a sua primeira reacção talvez seja pensar: "Este tipo está a tentar enrolar-me. Ele próprio é um escritor, não um leitor de verdade. Ele próprio foi contaminado e está a tentar fazer-me crer que não, provavelmente com algum fim pouco honesto."

Está no seu inteiro direito de pensar isso, eu também o pensaria se me aparecesse pela frente uma história assim. Nós não somos desconfiados por natureza, mas por cultura - e nunca ninguém perdeu em desconfiar do vizinho. Razão tinha Kissinger, quando dizia que até os paranóicos têm inimigos. Peço-lhe apenas o benefício da dúvida. Peço-lhe? Imploro-lhe. Aqui onde me vê, estou de joelhos, implorando-lhe que acredite em mim. Isto não é uma história, isto não é ficção. Estou apenas, genuinamente, a tentar estabelecer contacto com alguém que exista do outro lado da página.

Estou a estender-lhe a mão. Por favor, considere a possibilidade de me estender a sua.

Só mais uma palavra. Não escreva a responder. Bem sei que se calhar está imune, mas nunca se sabe. Apareça, apenas. Eu saberei reconhecê-lo/a, e você também me reconhecerá com facilidade. Seremos os únicos - na praça, no jardim, na rua, no café, onde quer que nos encontremos - sentados pacatamente, com um sorriso nos lábios e um livro, aberto, na mão.
Rui Zink

quinta-feira, maio 28

Em casa


A velhice do bebê

Deve ser coisa de americano, a geriatria. Até a palavra cheira a laboratório. A mesma raiz está em gerontocracia, governo dos velhos. A gerocomia ficava pelos hábitos de higiene. Pensar, sempre se pensou. A perspectiva vai de um extremo a outro. Dou de barato que na simples exaltação se esconde uma ponte de horror. A sabedoria e tal e coisa, como está no Cícero. Mas senectus, morbus. É doença.

Será? Leia Italo Svevo, "Senilidade". Compreensível, essa obsessão, dada a onipresente promoção da juventude. Palavras e metáforas evitam encarar a realidade. Idoso. Terceira idade. A quarta qual será ? Universal, não livra a cara de ninguém. Não pede certidão de nascimento. Não quer saber se está verde, ou maduro. Soou a hora, ninguém escapa. Justiça se lhe faça, a Indesejada é democrática. Nenhuma exceção.

Por antinomia, os valores jovens, obsessivos, tiram do armário o esqueleto. O assustador fantasma. A mocinha, mal soprou 20 velas, já está interrogando o espelho. Mente duas vezes, o espelho. Mente por dentro e por fora. Responde o que você quer ouvir. Você pergunta e responde. Melhor prevenir do que remediar. Aí aparece a pré-geriatria. Não espere. Insidiosa, evite a velhice a partir de agora. É ao nascer que o sol começa a morrer.

Beleza, juventude, mas para sempre. A rosa não é boa conselheira. "L'espace d'un matin". Ouça o encantado o que me conta a jovem senhora. O espantoso progresso. Mil exames, diagnosticou uma levíssima mioquimia. Involuntário tremor na pálpebra esquerda. À musculação, à ginástica, à dieta, ao tênis, ao "cooper", à natação, à bicicleta, juntou conselhos e práticas. Se ri ou sorri, caladinha se promete aquela ginástica facial. Ninguém pode ser feliz sozinho, penso. Trancada no banheiro, ela tenta.

A vida é uma sucessão de ciladas. O casamento, o parto, tudo conspira contra. Lindo bebê, mas mama! Nem à maior amiga dirá que entreviu no canto do olho direito a fimbria de um pé-de-galinha. Só faltava esta: ruga. Multiplica os tapinhas na futura papada. Fulana lhe aconselhou toalha quente. Esparadrapo, fita colante, prendedor. Ela topa tudo. Narinas frementes, bochechas assustadas, afinal se decide: o bebê vai para o pré-geriatra é já. Antes que seja tarde.

De manhã


Não sabia que nos amávamos tanto

Françoise Collandre
Oitenta anos essa noite. Oitenta. E ainda estou no planeta. Na última e decisiva instância. O último movimento do tempo. Não tenho certeza de coisa alguma, apenas que estou viva. E pensar que quando minha mãe fez quarenta anos eu tive pena dela. Passei o dia observando- -a, aguardando o pranto. E ela, impassível. Um cisne. Já a perdi há tantos anos e mamãe continua inteira na lembrança. Mãe é imperdível. Continua aqui, lá, além, no céu dos sonhos — nos antigos gritos. Queria tanto encontrá-la numa esquina, mesmo que estivesse apressada para um ensaio. Mamãe!, eu diria, que saudades, há quanto tempo não nos vemos... Você está tão bonita... (tanta vontade de perguntar se ainda se lembrava de mim...) E ela diria que estava atrasada para o ensaio com a orquestra, e eu a veria caminhando de costas, em seu vestido leve, seus passos apressados, levando partituras no braço, sua bolsa ventava, e ela sumiria por entre nuvens. Outra vez. Na verdade, tenho pensado muito neles, na minha família de origem. Há vinte e cinco anos sem a presença plena de meu pai. Há dez anos sem ouvir o som da harpa de minha mãe. Há dezenove anos sem o silêncio de meu irmão. É muito. Às vezes, é tudo. No entanto a vida prossegue. Em frente.

Perder demanda um grande esforço. Vida sem chance de regresso, de respiro, de reparo, quando súbito cessa o torvelinho e há calma no infinito. Quando meu pai dizia que a vida era curta, e mamãe, que era um sopro, e minha avó, Salve-nos, Senhor!, eu só pensava na minha infância, farta e bela. Hoje, sinto medo dessa urgência, dessa presteza infinita, dessa fúria que nos ameaça com a carência dos dias. Nisso tudo, estou fazendo oitenta anos. Uma coisa muito forte para uma pessoa da minha idade. Vou interromper um momento para tomar providências. É bom pôr o Prosecco na parte de cima da geladeira. Pra ficar bem geladinho. Não sei onde coloquei o batom novo... A cor que havia tempos eu procurava. Estava aqui na minha frente: forte, terrosa, acabada. Acabada não é uma boa palavra para essa noite. Espero amigos. Farei uma reunião íntima com os que puderem vir, naturalmente. Há pouco tivemos um raio de sol na sala. Já era tarde. Que tarde. Vou subir as persianas e abrir as janelas. Deixar entrar a brisa fresca. As folhas da amendoeira em frente se agitam. Janela é uma palavra linda, quando se abre nos dá o mundo.
Livia Garcia-Roza, trecho do romance memorialístico "Não Sabia que Nos Amávamos Tanto" (título provisório) ainda sem data de publicação definida 

Passeando pelo mundo


Quadriculado

Um vestidinho rosa quadriculado, que parecia um aventalzinho. Babados brancos nas mangas regatas, na barra, e na minha mão uma lancheira que eu escolhi a dedo, uma parte de mim coração, a outra ardência. O cheiro de novo. De estojo ainda cheio, canetas ainda tampadas, de chão de pátio meio-molhado antes do recreio, fomos das primeiras a chegar, eu sorria chorando pro primeiro dia. Naquela época eu não sabia falar saudades, mas meus olhos sim.

O chão de caquinhos cerâmicos daquele quintal, você também esteve lá, e isso é uma das coisas que nos une. Eu achei que abrindo a porta, no escuro, estaria nos arriscando. Demorei muito para abrir, porque imaginei todas as hipóteses mais mirabolantes, pensei em relâmpagos, janelas enroladas em cortinas infinitas, bruxas e danças incompreensíveis, e tive muito medo, sem saber que anos depois eu gostaria de tudo isso. Metade vontade, metade consequência, e assim experimentei o meu primeiro erro. A minha primeira poesia. O meu primeiro fim. O meu primeiro recomeço. Lembro de piscinas de plástico estampadas e flores encaixadas entre os fios de cabelo para uma Polaroid, a data laranja nesta foto que, hoje, nem data tem. Pakalolo estampado na minha coxa, e um menino que olhou minha roupa nova, mas nunca gostou de mim. O sinal da cruz a cada decolagem, e voar é encontrar um eu tão autêntico, que dá medo de ser feliz assim pra sempre. Aterrissar parece mais seguro, o bom da vida entre o que é certo e o que arrepia.

Mãos muito enrugadas, veias à mostra, unhas tão cansadas, mas não menos bem feitas, a mais linda vida entrelaçada nos meus dedos. Setenta anos nos separam, mas as mãos transformam números em um livro fechado, coberto de tempo, ninguém nunca abriu. Não temos idade, somos amigas.

Uma vida que nunca viu tanto rosto atrás de pano, ruas meio-encolhidas, pessoas-bicho, o mundo, que as deu vida, ameaça a morte. O outro lado da história.

Sonhei com tanta gente, mas não sei se é o que eu fui ou o que nunca fomos.

Eu já cheguei a gostar da textura do portão, das ondas das calçadas, do cheiro de cidade, de tocar nas frutas da quitanda, e tentar adivinhar se elas estavam prontas.

Porque, nós, nunca estaremos.

Drica Muscat

quarta-feira, maio 27

Abrigo & Café


O direito de escrever

 Coco de Paris
Quem mais sofre desse mal é o artista de cinema em Hollywood. A padronização do público, a opinião do público, a pressão do público. Deanna Durbin fracassou por quê? Porque o público gostava da menina Deanna Durbin, magrinha e adolescente, cantando coisas ingênuas, por exemplo "Noite feliz", no telefone, para o papai ouvir. Mas Deanna ficou mulher, quis ser cantora adulta, o público achou que estava sendo desconsiderado, refugou Deanna. Nós, que jamais gostamos de Deanna, menina moça ou velha, não ligamos para a sentença do público; e por causa disso não percebemos a tragédia da rapariga. Mas tragédia houve, e dessas, por lá, estão acontecendo todo dia. O público gosta de receber aquilo a que está acostumado. E detesta que um camarada a quem ele se acostumou, mude de cara ou de sistema. 

O sujeito escreve uma coisa de determinada maneira, ou apresenta certo tipo no palco, ou compõe uma música para ser cantada de madrugada, entre bêbedos. O público gostou, aplaudiu. Nas águas do primeiro êxito o sujeito em questão – escritor, poeta, ator ou músico – prepara nova obrinha parecida com a primeira. O público torna a aplaudir. Pronto, aí o pobre sujeito está perdido. Porque passou a pertencer ao seu êxito, fica escravo daquele sucesso (sei que é galicismo, obrigada; digo porque acho bonito, que é que tem?) – fica pois escravo daquele sucesso, e do trilho inicial não pode mais se afastar. Pode lhe vir inspiração em qualquer outro sentido. Pode ser ele tentado a seguir caminhos novos – mas é arriscadíssimo deixar-se cair em tentação. É quase certo que o seu público não gostará. O público provavelmente achará péssimo. 

Se o cronista Rubem Braga, um dos amados do público, deixar de repente de fazer suas crônicas e passar a escrever poemas lindíssimos, tão lindíssimos quanto às crônicas, o público que até hoje o amou lerá os poemas com a sensação de que está sendo furtado; sim, furtado de todas aquelas que ele estava esperando e que, sub-repticiamente, às suas costas, sem o seu consentimento, foram viradas em poemas. E reclamará, e não comprará o livro de poesias como comprava o livro de crônicas, embora um seja tão bom quanto o outro; mas acontece que, com poemas, ele não está acostumado.

Outro ponto a debater é a experiência de imparcialidade que ousam fazer à gente. Por que ser imparcial? Todo artista produz para externar suas paixões, seus recalques, seus conflitos íntimos. Então como é que pode ser imparcial? Por uma comparação: se eu faço uma crônica a favor do Flamengo, todo o mundo cai em cima de mim dizendo: "Ela só escreve isso e aquilo porque é F1amengo". Ora, meu Deus do Céu, e haverá motivo mais legítimo para se escrever pró-Flamengo do que ser Flamengo? (que eu, aliás, sou Vasco, com muita honra!). 

Pessoas que escrevem, como as que pintam ou representam, são pessoas complicadas, parciais, cheias de personalismo, preferências, tais como as demais pessoas do mundo. E o público gosta da gente justamente quando lhe lisonjeamos as preferências e os personalismos. Aquele de nós que tem mais êxito é precisamente aquele cujas referidas paixões, personalismos etc., melhor coincidem com os da maioria. 

De onde se conclui que além de impraticável, é ingênua essa exigência de imparcialidade. Imparciais, impassíveis e frios são os compêndios de geometria. E quem é que paga para ler um compêndio de geometria? Não, a exigência da imparcialidade só aparece quando a gente está contrariando a opinião do leitor. Ele então, pensando que se mostra muito justo (mas está é danado da vida) vem logo com a história da imparcialidade. O que ele quer dizer porém é isto: "Já que você não concorda comigo, pelo menos não dê opinião – que eu assim tiro as conclusões que mais me agradem."
 
Pois eu me recuso. O distinto público desculpe, mas recuso. Não abro mão do direito de opinar, e opinar errado, inclusive. Se o distinto público acha ruim, paciência. Sei que, como escribas assalariados, nós todos, para viver, dependemos do dinheiro do distinto público. Mas como é que dizia aquele boticário que vendeu o veneno a Romeu, no quinto ato da tragédia? "Tu compras a minha pobreza, mas não compras o meu consentimento". A tradução é livre, mas a ideia é essa. O distinto público compra os nossos escritinhos. Paga às vezes mal, às vezes generosamente. Mas compra só o direito de ler. O resto é nosso. Goste ou jogue fora, não nos obrigue a cortejar as suas opiniões. Se eu sou Vasco, continuo Vasco, até o dia do Juízo. Falo bem de quem quero, falo mal se acho que devo. Amo, detesto, prezo e admiro, zombo de quem meu coração pede. E já que começamos com citações, citemos Marion de Lorme, sim aquela moça heroína do drama de Victor Hugo – outro colega que também sofria da mania de ter opiniões próprias e pagou o diabo por isso. Sim, citemos Marion, logo no primeiro ato: "Je fais ce que je veux, et je veux ce que je dois. Je suis libre, monsieur".
Rachel de Queiroz

Sem amigos para ver todo o dia

Viveremos em Marte

Em quarentena, a noção de espaço muda, se é que o próprio espaço não mude. Vamos com calma: a noção de espaço muda. Acostumado a caminhar — às vezes sozinho, noutras com os amigos Marco Antonio e Fernando — dez quilômetros pelo Aterro, nesta época de confinamento, às 16h, vou do quarto ao banheiro, do banheiro, passando pela sala e pela cozinha, à área de serviço e, de lá, volto ao quarto e recomeço. É uma caminhada bem menor que aquela sob o sol, margeando, como disse Lévi-Strauss, segundo Caetano Veloso, a boca banguela da praia de Botafogo — ando dez minutos e não dez quilômetros. De manhã, tomo quinze minutos de sol.

Rotina. Rotina e disciplina. Resignação com um tempero de desobediência. Se o presindecente nos quer em vida normal, estar confinado é desobediência civil. Portanto desobedeço. Mas, neste instante, quero escrever sobre o confinamento, a política em nazi menor sustenido deixo um pouco de lado, na entrelinha, sob o tapete.

Se não me organizo, nem sei o que pode acontecer. Chutar o medo, descer à rua, dançar pela calçada, entrar no mercado apenas para ver o preço do óleo da soja colhida no oeste do oeste do Centro-Oeste? Seria lindo, não fosse estúpido. Fico em casa e, à distância, participo de reuniões de trabalho em plataformas impressionantes, mas incapazes de fazer da reunião uma reunião de fato. Quando vejo, em miniaturas, todos os colegas, deparo-me com pessoas pouco preocupadas em olhar o outro ou para o outro. Ao contratempo, a solução possível. O virtual é o novo aqui, um menos aqui que o aqui de sempre, pois falta-lhe sutileza.

Estranho mundo. Criticávamos as redes sociais por nos darem a falsa sensação de proximidade, e agora é tudo que temos. Então, reescrevo a frase anterior: as redes sociais são a única forma de encontro. Me dê um emoticon ou um like e, de curtida em curtida, superemos a morte diária. De curtida em curtida, cantemos. De curtida em curtida, falemos daquele meme, daquele vídeo, daquele verso.

Depois que o espaço desmilinguiu-se e perdeu o sentido, construímos a vizinhança afetiva. Nela, o Whatsapp, o Facebook e o Instagram são as janelas abertas de onde bate-se papo com primos na Suíça, com a quase irmã na cidade natal, com um ex-colega de trabalho. Trocam-se receitas, poemas, chistes. Treta-se. Alguns vizinhos trocam de roupa sem se preocupar com o olhar curioso lançado de outra janela. Muitos, frágeis, desmoronam sem se preocupar com a própria vaidade. Por precisão, por sufocamento, escancaram-se as janelas e as portas. Os homens são ou estão ou parecem bons.

Sem querer quebrar o encanto, não continuaremos bons depois de tudo. Crucificamos Cristo, beijamos a mão de Torquemada, dizimamos autóctones em todos os hemisférios, passamos por inúmeras guerras, duas chamadas de mundiais, e, até hoje e diariamente, matamos crianças na Síria e nas favelas brasileiras. Então, me desculpem, sairemos os mesmos da quarentena, usando máscaras, é verdade e igualmente simbólico. E não apertando a mão dos amigos. E não beijando a torto e a direito. E temendo dar ao corpo o alimento do corpo alheio.

É possível salvar-se do pessimismo pensando que em breve viveremos em Marte, em breve não contaremos mais a idade em anos, mas em séculos: veja aquela criatura, um século e já está pensando em deixar a casa dos pais. Em breve, a inteligência artificial nos livrará do mal, amém. Fiquem tranquilos, eis a gota de otimismo, a espécie humana estará salva a despeito dos muitos que não têm resistido à atual ação ostensiva da morte.

Os dias são, mas não sabermos como são de fato. Esta crônica é, mas não sabemos quão crônica é. Eu, o último fio desse novelo, dessa novela, acordo e durmo varado de interrogações. Só me resta então, de minha janela pan-óptica, recitar, em tom de até logo, um verso meio de improviso e sarcástico até sob chuva de canivírus.

Se pedir o seu amor, meu amor,
manda-me-lô, criptografado
e higienizado em álcool em gel, safra 2020,
pela deep web,
mas não envie nudes, meu amor,
já me esqueci como ser happy.
Alexandre Brandão

terça-feira, maio 26

Apenas prazer

A literatura é um ato de prazer, que não deve ter segundas intenções
Sérgio Sant'anna

Trampolim

Quint Buchholz

Novo soneto do corona

Vivíamos sem planos, lentamente,
Pensávamos que assim devia ser.
Por que buscar um modo mais urgente?
Tínhamos ainda muito por viver.

Vivíamos no agora, no presente,
O que mais poderíamos querer?
Vivíamos à toa, tolamente,
Nosso tempo se escoava sem nos doer.

Hoje, vendo que, lento ou devagar,
O tempo acaba sempre por passar
E já do nosso muito pouco temos,

O que nos resta é lastimar cada hora
Que nós vivemos sem viver. Agora,
Morrer é tudo quanto nós fazemos.

Na caverna

Christophe Blain

Canção de homens e mulheres lamentáveis

A única vantagem de viver-se na companhia de uma mulher é a mulher. Aponte outra.
Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

– Eu estou me sentindo assim, assim, assim...

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas, não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.

Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome?

− Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não, o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a Polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o Ódio do Amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não me achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

– Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

– O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos...

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: Contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva – e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas, isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"

segunda-feira, maio 25

Cidade


Exercícios de desconfinamento

Assim que as livrarias abriram em Lisboa, fiz uma ronda por aquelas de que gosto mais, subindo pela Rua do Poço dos Negros, desde a Madragoa até ao Chiado. Não foi, infelizmente, uma experiência tão agradável quanto havia previsto.

Como tantos outros leitores, não entro numa livraria com o objetivo de comprar livros — entro para namorar os livros. É muito diferente de entrar, por exemplo, numa padaria. Quando entro numa padaria é para comprar pão, e saio de lá com pães. Quando entro numa livraria, posso sair de mãos vazias, mas sempre um pouco mais rico e mais feliz do que quando entrei. Folheio as novidades, detenho-me nos autores que já conheço ou em algum título particularmente intrigante. Por vezes sento-me — quando há poltronas disponíveis para o efeito, algo que, aliás, deveria ser obrigatório em qualquer livraria —, e leio lentamente as primeiras páginas. Se o livro me interessar volto a colocá-lo na banca, na intenção de comprá-lo numa próxima visita. Raramente compro um livro ao primeiro olhar. Paixões assim acontecem, sim, mas não são muito frequentes.


Comecei a minha jornada na “Palavra de Viajante”, que, como o nome sugere, é uma livraria especializada em literatura de viagens. Logo à entrada tive de desinfetar as mãos com álcool gel. Até aí tudo bem. A máscara no rosto é que não ajuda. Assim que coloquei os óculos de leitura estes embaçaram. Fiquei dez minutos a lutar com os óculos — limpa, embaça, limpa, embaça — até que desisti, guardei os óculos no bolso do casaco e optei pelos livros com um tipo de letra maior. Logo compreendi que os únicos livros que ainda consigo ler sem óculos estão na seção infantil. Nas restantes livrarias tive de cumprir um ritual idêntico. A máscara — mesmo para quem não precisa de óculos — depressa se revela um pequeno tormento. Fica difícil ler e respirar ao mesmo tempo. É como se alguém nos estivesse sufocando enquanto tentamos ler. O que deveria ser um prazer transforma-se numa luta desesperada. Finalmente, só queremos sair da livraria, arrancar a máscara e respirar livremente o ar perigoso destes novos dias.

Nos restaurantes o incômodo é menor. Pelo menos não nos forçam a comer com a máscara posta. Em alguns, porém, a nova etiqueta social é tão complexa que leva mais tempo a ler do que o menu. Todos os restaurantes exigem a máscara posta à entrada. Em alguns podemos tirar a máscara enquanto aguardamos pela comida. Noutros não. Nestes últimos, somos forçados a conversar mascarados, e a afastar a máscara de cada vez que queremos tomar um gole de água ou de vinho. Agora sei como se sentem as mulheres que vestem burca, e por que nunca encontrei nenhuma num restaurante.

As praias reabrem a 6 de junho, e, poucos dias depois, recomeçam os concertos. A mais famosa sala de Lisboa, o Coliseu dos Recreios, anuncia para 13 de junho um show do cantor e compositor carioca Pierre Aderne, à frente do seu projeto Rua das Pretas. Gostaria de ir mas confesso que tenho medo. Do vírus, sim, mas sobretudo das novas regras. Não consigo nem me imaginar num show, de máscara,  durante hora e meia, tentando manter-me a rigorosos dois metros de distância de todos os outros mascarados. Acho que prefiro esperar que o vírus volte para os morcegos
José Eduardo Agualusa

Atravesse o portal


Ler em um formato diferente é ler pior?

O circuito neural que nos dá a capacidade cerebral para ler está mudando rapidamente para todos. Tablets, computadores, laptops, Kindles e celulares estão substituindo os antigos livros, promovendo uma transformação silenciosa em cada um de nós. O ser humano não nasceu para ler. A aquisição da alfabetização é uma das conquistas mais importantes do Homo sapiens. O ato de ler reorganizou completamente um circuito de nosso cérebro. Mudou a própria estrutura das conexões neurais e isso transformou a natureza do pensamento humano. Em 6.000 anos, a leitura deu impulso ao nosso desenvolvimento intelectual. A qualidade de nossa leitura não é apenas um indicador de nosso pensamento, é a melhor maneira que conhecemos para desenvolver novos caminhos na evolução cerebral de nossa espécie. Mas, como mudou a qualidade de nossa atenção à medida que lemos mais e mais em telas e dispositivos digitais? Este processo vem sendo reforçado durante o confinamento. Nossa capacidade de percepção estará, como afirmou o filósofo Josef Pieper, diminuindo ao nos depararmos com um excesso de estímulos e informações?


Em seu livro O Cérebro no Mundo Digital - Os Desafios da Leitura na Nossa Era (Editora Contexto), a neurocientista Maryanne Wolf, diretora do Centro para a Dislexia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, observa que no cérebro impera uma máxima: "Use essa capacidade ou perca-a". Assim, cada meio de leitura beneficia alguns processos cognitivos em detrimento de outros. Wolf lança uma pergunta: a mistura de estímulos que distraem continuamente nossa atenção e o acesso imediato a várias fontes de informação dá ao leitor menos incentivo para construir suas próprias reservas de conhecimento e pensar criticamente por si mesmo?

A plasticidade do nosso cérebro nos permite formar circuitos cada vez mais extensos e sofisticados, dependendo do que lemos e em que plataforma o fazemos. Como sugeriu o psicólogo cognitivo Keith Stanovich, aqueles que não leram muito e bem terão menos bases para a inferência, a dedução e o pensamento analógico, ficando propensos a serem vítimas de informações falsas ou não comprovadas. Wolf acredita que não vemos mais nem ouvimos com a mesma qualidade de atenção porque vemos e ouvimos muito e, além disso, também queremos mais.

Ela mesma vivenciou a mudança. Teve que se esforçar para reler O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, um dos livros que a marcaram em sua juventude e que lembrava que não era especialmente leve. Depois de um primeiro fracasso, teve que definir períodos de leitura de 20 minutos para terminar o livro, o que lhe tomou duas semanas. “O ritmo vertiginoso com que eu costumara ler meus gigabytes diários de informações não me permitia parar o tempo suficiente para entender o que Hesse estava transmitindo”, escreve ela em O Cérebro no Mundo Digital.

A linguista Naomi Baron é, com Wolf, a ponta de lança dessa questão nos Estados Unidos. Baron comenta que os jovens trocam de mídia 27 vezes por hora e, em média, consultam o celular entre 150 e 190 vezes por dia. Por sua plasticidade, afirma o neurocientista argentino Facundo Manes, o cérebro se adapta às mudanças ambientais e a atenção que dedicamos aos avanços possíveis graças às novas tecnologias nos faz enfrentar uma nova maneira de processar informações. O cérebro tem que se adaptar a essas mudanças, e as crianças e os jovens que estão crescendo entregues às novas tecnologias possivelmente desenvolvam e potencializem a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo "em detrimento de outras habilidades”.

Nem todos os especialistas concordam com essa tese ou acreditam que nossa leitura seja afetada pelo formato escolhido. A Comissão Europeia quis fomentar o debate, por isso, apoiou entre 2014 e 2018 (com um milhão de euros no total, cerca de 6 milhões de reais) o projeto E-Read, que financiou 200 professores universitários de toda a Europa para estudar o assunto e se reunirem regularmente. Anne Mangen, do Centro de Leitura da Universidade de Stavanger, na Noruega, foi uma das coordenadoras do grupo. Vários estudos merecem destaque nessa experiência, dois deles da própria Mangen: ela comparou o entendimento impresso e no Kindle de um conto apimentado e de outro de mistério de 28 páginas (o mais longo estudado até o momento) entre um grupo de alunos do ensino médio. Concluiu que os alunos que leram o livro impresso entenderam melhor as duas histórias, principalmente na hora de ordená-las cronologicamente.

Ladislao Salmerón, professor de Psicologia Evolutiva e Educação da Universidade de Valência, foi com seu então estagiário, Pablo Delgado, o autor do estudo mais relevante da equipe conhecida como Grupo Stavanger. Eles realizaram um metaestudo de 54 estudos realizados entre 2000 e 2017, com um total de 170.000 participantes de diferentes idades, que demonstra que a compreensão de textos expositivos e informativos (não narrativos) é maior quando são lidos em papel do que em mídia digital, especialmente se o leitor está com um tempo de leitura limitado. “O que descobrimos é que, em igualdade de condições, sistematicamente se entende melhor o que é lido em papel”, diz Salmerón. E o que mais o surpreendeu: quanto mais jovens as pessoas, maior a diferença de compreensão entre os dois formatos.

Durante a década passada, houve um importante esforço para aproximar as telas das escolas. O projeto One Toplap per Child, planejado para reduzir o fosso digital, levou minicomputadores para crianças do Uruguai a Ruanda. Outros projetos os levaram a Glasgow ou ao Estado do Kansas. Também na Espanha houve esforços para aproximar a tecnologia dos pequenos. O Governo da Andaluzia entregou um minicomputador a 390.000 estudantes. Salmerón, que está em contato com a comunidade educacional, diz que recebe cada vez mais pedidos para falar sobre os possíveis efeitos negativos da leitura excessiva nas telas. "A tecnologia entrou nas escolas levada por esperança e fé", diz Anna Mangen, "e muita gente tem vergonha de se tornar antiquada vetando a tecnologia". Ladislao não se esquecer da reação de um alto funcionário dinamarquês que participou de uma das apresentações do Grupo Stavanger: "Mas o que fizemos?”.

Um dos assuntos que preocupam os especialistas em ensino é o efeito que essa nova maneira de ler pode ter nas universidades. Uma pesquisa realizada por Baron e Mangen com professores universitários dos Estados Unidos e da Noruega, que será divulgada no próximo ano, revelou que 40% dos 150 entrevistados pedem aos alunos menos leituras que antes e um terço deles respondeu que fazia isso porque diretamente não liam o que lhes pediam que lessem. No total, 81% afirmaram que em sua opinião a tecnologia digital está levando os alunos a leituras mais superficiais.

Antes de decretar o estado de alarme, Salmerón preparava um estudo com cerca de 100 estudantes universitários para detectar, por meio de um eletroencefalograma, o nível de atenção durante a leitura em formato impresso e digital (o financiamento era do BBVA). Atualmente, ele está computando os resultados de uma pesquisa com 4.000 espanhóis sobre as mudanças nos hábitos de leitura durante o confinamento. O professor acredita que, embora o aumento da leitura digital ajude a se chegar a alunos que, de outra forma, não teriam acesso às leituras em papel, é urgente encontrar soluções para limitar os efeitos negativos que o formato digital tem na compreensão da leitura. Ele vê um contraste importante no interesse por essa questão em relação ao norte da Europa. Diz que, para fazer um estudo sobre o benefício da leitura nas telas, encontra inúmeros candidatos. Por outro lado, para estudar seu lado negativo, é difícil encontrar participantes e patrocinadores. Cita André Schueller-Zwierlein, responsável pela biblioteca da Universidade de Regensburg (Alemanha), por seu esforço na promoção da leitura profunda. Schueller-Zwierlein considera que as bibliotecas têm a responsabilidade de criar salas diferentes para diferentes tipos de leitura (em sua biblioteca há 13 salas diferentes) e promover o ensino das habilidades de leitura.

Há pouco mais de um ano, o Grupo Stavanger divulgou uma declaração resumindo os resultados obtidos pelos pesquisadores participantes. Um dos responsáveis ​​pela redação, Paul van den Broek, especialista holandês e membro do grupo de profissionais que prepara o relatório PISA, destaca que não se opõe à leitura digital, mas ressalta que cada formato tem um público para o qual é adequado e que o assunto precisa ser aprofundado. A declaração defende a relevância do texto impresso para a leitura de textos longos, especialmente quando se trata de compreender em profundidade e reter informações.

Dentre as recomendações incluídas, três se destacam: 1) ampliar a pesquisa sobre as condições em que o aprendizado e a compreensão em textos impressos e digitais aumentam ou diminuem, 2) o ensino aos estudantes de estratégias de domínio da leitura em profundidade no ambiente digital e que as instituições educacionais motivem os alunos a ler livros impressos em sua grade curricular e 3) que os professores estejam cientes de que intercambiar o aprendido mediante papel e lápis não é indiferente à mudança para o digital.

Ler nem sempre é divertido. Implica esforço, diz Anna Mangen. “Devemos pedir evidências de que a leitura digital melhora a leitura”, diz a especialista norueguesa, que enfatiza: “É importante, pois é uma questão de saúde mental”. Como disse o visionário tecnológico Edward Tenner, seria uma pena se uma tecnologia tão genial acabasse ameaçando o tipo de intelecto que a tornou possível.