terça-feira, outubro 31

Chuva de Verão

 


Amor

Uma vez há muito tempo encontrei numa fila qualquer um amigo e estávamos conversando quando ele se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi – da esquina para a gente – um homem vindo com o seu tranquilo cachorro puxado pela correia.

Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo, mas duro – é verdade que poderia ser apenas uma variação individual da raça. Pouco provável no entanto. Meu amigo levantou a hipótese de quati. Mas achei o bicho com muito mais andar de cachorro para ser quati. Ou seria o quati mais resignado e enganado que já vi.

Enquanto isso o homem calmamente se aproximando. Calmamente não. Havia certa tensão nele. Era uma calma de quem aceitou a luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco: era por coragem que andava em público com o seu estranho bicho. Meu amigo sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha: vinha de que aquele bicho ele próprio já não sabia o que era, e não podia portanto me transmitir uma imagem nítida.

Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo; não, nunca foi fácil ser julgado pela fila humana que exige mais e mais. Fingia prescindir de admiração ou piedade. Mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.

– Que bicho é esse? – perguntei-lhe e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele mas na pergunta o tom talvez incluísse: por que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com carinho demais. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras. Mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio. E é quebrando o silêncio que muitas vezes tenho matado o que compreendo. Se bem que – glória a Deus – sei mais silêncio que palavras.

O homem sem parar respondeu curto embora sem aspereza.

E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem meu amigo nem eu sorrimos. Este era o tom e esta era a intuição. Ficamos olhando.

Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes com seus gestos de cachorro retinha o passo para cheirar coisas – o que retesava a correia e retinha um pouco o dono na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando aquele quati que não sabia quem era. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: “Mas santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto e latem feroz para mim?” Imagino também que depois de um perfeito dia de cachorro o quati se diga melancólico olhando as estrelas: “Que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio e esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?” E o homem – o único a poder de livrá-lo da pergunta – este homem nunca lhe dirá quem ele é para não perdê-lo para sempre.

Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Estremeço ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati se deparar com outro quati, e neste reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei que ele teria direito quando soubesse de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser: adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho e tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo.
Clarice Lispector, "Toda as crônicas"

Sorte no dia final

Talvez, assim como aconteceu àquele aluno que estudou um ponto só e calhou de ser justamente esse o que lhe coube no exame final, tenhamos a sorte de, em nosso dia derradeiro, contar com a simpatia do anjo da morte. Ele nos perguntará se sabemos o que é morrer, e nós por nossa parte lhe perguntaremos se morrer é fechar os olhos. Ele nos dirá que sim, que morrer sempre foi somente isso, nos dará parabéns, e de olhos fechados seguiremos o caminho que ele nos apontar.

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Depois de uma época bela, vivemos esta, nefasta. Num dia vem a procela e no outro vem a borrasca.

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Quem hoje sonetos faz, por mais que eles tenham valia, maior sucesso faria se fossem como os fazia o incomparável Luiz Vaz.

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Não quero mais chorar educadamente, civilizadamente. Quero chorar desavergonhadamente, um choro de soluços e de ranho, um choro como aqueles choros torrenciais que choravam os homens de antigamente.

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Ter dedicado a vida inteira à literatura pode indicar que me falta justamente a principal qualidade de um escritor: a imaginação.

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Se você é um escritor de bom coração, não coloque na mesma oração um gato e um passarinho.

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Vive hoje metodicamente, gasta seus advérbios de modo economicamente. Um pouquinho de manhã, um tantinho à tarde, à noite mais um bocadinho e, livre das aspirações de glória de antigamente, dorme longa, despreocupada e gostosamente.

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O que mais lastimou o poeta parnasiano quando a mulher o deixou foi nunca mais poder contemplar a fluência e o ritmo de seus passos, perfeitos como um alexandrino.

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Esplêndido dia! Nós não merecemos tão completa alegria. O mar já nos chama e a vida convida o sol a brilhar.

Poetas tendem a preferir os gatos aos cães

Depois de alguns anos, quebrei, contrariado, uma promessa, e voltei a ter um gato em casa. Chegou já adulto, hóspede temporário, e foi ficando. É meu primeiro bichano de raça: um siamês, acolhido com os mesmos mimos reservados aos vira-latas que o destino pôs sob minha guarda ao longo da vida.

Devo a meus pais um amor incondicional pelos animais. A elurofilia, sinônimo besta de felinofilia que aprendi com o elurófilo Rubem Fonseca, peguei de minha mãe, que por mais de uma década cuidou de parte dos felinos do Aterro do Flamengo, com o mesmo afinco com que Paul Léautaud cuidava dos seus em Fontenay-aux-Roses.

Zé Rubem viveu 18 anos com a siamesa Betsy, a quem homenageou através da gata do detetive Mandrake, em A Grande Arte, e a quem dedicou a primeira, mais linda e curta narrativa da coletânea Histórias de Amor.

Otto Lara Resende também teve um siamês, que viveu pouco tempo como Zeno, pois logo a petizada da casa, ainda sem idade para conhecer o homônimo personagem de Italo Svevo, passou a chamar de Zano. Um belo dia, Zano sumiu. Otto dedicou ao susto e à busca duas crônicas, em abril de 1992, e numa delas até aludiu à minha elurofilia.

Por desconhecer como se chamavam os siameses de Marilyn Monroe, Jean Cocteau, James Dean, Andy Warhol e Radamés Gnatalli, rebatizei o meu de Pinduca, alcunha cuja eufonia me encanta tanto quanto a figura de seu xará dos quadrinhos, o sonso garoto carequinha criado há 90 anos por Carl Thomas Anderson, com o insípido nome de Henry.

Poderia ter recolhido alguma sugestão na esdrúxula onomástica felina de T.S. Eliot, mas não me imagino chamando um gato meu de “Jellylorum”, “Pettipaws”, “Rumple”, “Quaxo”, esquisitices ainda mais insossas que o apelido (“Xadrez”) com que chegou aqui em casa.

Poetas tendem a preferir os gatos aos cães – daí a crença de que cão é prosa e gato, poesia – e a melhor explicação para essa preferência nos deu Jean Cocteau: “Não existem gatos policiais”.

Que a lista de bardos elurófilos (Shakespeare, Petrarca, Poe, Neruda, Ferreira Gullar, entre tantos outros) talvez supere até a de ficcionistas é desconfiança que ninguém tem como provar nem desmentir. Mas nunca soube de um gato de poeta que tivesse o hábito de apagar a vela com a patinha, quando era hora de parar de escrever, como o de Charles Dickens.

O poeta modernista francês Paul Morand gostava tanto do seu siamês que se resignava a escrever em volta do espaço que ele deixava no papel sobre o qual costumava, felinamente, acomodar-se. Não sei se o gato de Maomé era siamês, mas li em mais de um lugar que ele sempre o trazia em seus braços, e de uma feita, convocado com urgência para um combate, entre desalojar o bichano e isolar a golpe de espada a parte do magnífico manto em que ele dormitava, fez o que era necessário e, sem um pedaço do manto, foi à luta.

domingo, outubro 29

Escalada

 


Da vocação

Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?

Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida/é luta renhida. Lutar com aquela expressão de criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma… O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor.

Lygia Fagundes Telles, "A disciplina do amor"

Preguiça

Perguntaram à preguiça:
– Preguiça, você quer mingau?
Ela disse bem devagar:
– Queeeeero.
– Então vem buscar.
– Não quero mais nããão…


Num dia de chuva dá muita preguiça. Quase não posso escrever. Foi na viagem para um fim de semana em Friburgo. Chovia e na Parada Modelo vi as preguiças. Era demais para mim e me deu um sono daqueles. Vi as preguiças ensopadas mas ali imóveis, morrendo de preguiça. Um cheiro bom de bicho vinha delas. Elas têm cor de pedra, quase cor de nada.

Friburgo é uma coisa. E a granja onde ficamos tem de tudo: cavalos, galinhas, jabuticabeiras, margaridas, bananeiras, limões, rosas. Tem forno onde se fazia pão. É um verdadeiro sítio. E a cidade tem um ar fino. Fui à rodoviária onde comprei o Jornal do Brasil e li Drummond. Comi steak au poivre feito em casa. Só que em vez de steak era pernil de porco. Isso no sábado que é o meu dia. De sexta para sábado sonhei tão verdadeiro que me levantei e me vesti e me pintei. Quando descobri que era sonho voltei para a cama, antes comendo porque estava com fome brava. Mas era homem com que sonhei, mulher que sou. Sonhei que tinha encontro marcado e não queria me atrasar. Estou a ver que quase conto o sonho, mas não posso. É íntimo demais.

Já vi vacas e um frango. De manhã comi ovos 
com bacon. Friburgo me fascina. Tem casas cor-de-rosa e azul. A natureza fica tão tranquila quando chove! Lembro-me das preguiças que continuam no mesmo lugar, imóveis e ensopadas só para não terem trabalho de mudar. Eu também. Hoje é meu dia de preguiça. Mas não vou dormir: quero usufruir da granja e dos animais. O tempo aqui parou. Eu queria que o fogão ainda funcionasse e se fizesse pão. Vi um cafeeiro e por isso tomei café. O mundo está louco: isso eu vi no Jornal do Brasil. E a Feira da Providência perdi por Friburgo. Esqueci de dizer que na casa tinha cachorro: cruza de galgo com vira-lata, muito manso e alegre. Vou interromper para tomar outro café. Volto já.

Voltei. Meu rádio de pilha está ligado para Mozart que é alegre. Vi um cavalo branco inteiramente nu. Parou de chover. É hora de trabalhar. Mas nada tenho a dizer. O que dizer, meu Deus? Vou falar que colhi uma margarida e coloquei-a no meu casaco de couro preto: oh, fiquei linda. Estou com vontade de rever as preguiças e sentir o cheiro morno delas. É outubro, mês neutro. Setembro é mês alegre como maio. O cavalo só volve para dormir e eu também: resolvi que depois do almoço vou dormir. Dormir é bom – que o digam as preguiças. Meio-dia vou almoçar e ler o Complexo de Portnoy, livro corajoso. E no meio adormeço.

Quando acordar vou à cidade de novo. Eu queria visitar a Faculdade de Letras. Mas não parece ter jeito não. Estou ligada a essa faculdade e a Marly; grande poeta e pessoa das mais cultas que conheço. Quero ir à cidade e estou com sono. Quero Coca-Cola para tirar o sono. Quem me ensinou que Coca-Cola com café tira o sono foi João Henrique. Diz que é chofer de caminhão que toma: João Henrique me ensinou muita coisa. Sou grata a ele. Agora me lembro que Míriam Bloch também me disse.

Fui à cidade. Tinha um ajuntamento grande de pessoas. Perguntei o que era. Informaram-me que estavam à procura de um esfaqueador que matou seis mulheres e estava fugido no morro. Tive medo. Não quero morrer. Morrer é ruim.

Fui não sei para que para a Faculdade de Letras. Não quis visitar a biblioteca. Não sou culta. A freira que me atendeu não sabia de nada. Tinha uma aula de História de Arte. Não quis assistir: Chega de arte, embora eu seja artista. Tenho vergonha de ser escritora – não dá pé. Parece demais com coisa mental e não intuitiva.

É lindo o anoitecer em Friburgo. Ouço também um batuque que vem de uma vendinha que vende cachaça e alegra os homens. Aqui tudo é alegre, menos o esfaqueamento. Será que a polícia já prendeu o esfaqueador de mulheres? Só tomara.

.A natureza é tão preguiçosa. Os cavalos continuam comendo. Agora estão relinchando. Ouço também os grilos. Ouço flauta doce, não sei se Bach ou Vivaldi. São quatro horas da madrugada com silêncio. Só agora estou ouvindo os sapos coaxarem. Já tomei café. Estou fumando. Essa casa não tem quadros. Cabo Frio tinha: pudera: Scliar, João Henrique, José de Dome. Scliar gosta de ocre, João Henrique gosta de verde, José de Dome de amarelo. Mas aqui tem uma sopeira muito bonita. Faz-me falta a máquina de escrever. Tenho duas: uma Olivetti e uma Olympia. Prefiro a Olivetti que é mais dura e resiste aos dedos. Todos estão dormindo. Menos eu. Tem aqui uma ferradura para dar sorte. Os passarinhos com fome piando. Parece mentira de tão bom que está aqui. Tenho um livro de Simenon – sou doida por ele: o melhor é ler em francês, mas o que tenho aqui é português. Vou citar um trecho: “Um largo feixe de luz atravessava o quarto, iluminando uma fina poeira, como se de repente se descobrisse a vida íntima do ar.” Não é bom?

Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Sinha Vitória

Acocorada junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, Sinha Vitória soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinha Vitória limpou as lágrimas com as costas das mãos, encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no seio e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.

Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.

Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas Sinha Vitória não queria saber de elogios.

Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários.

Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhira: – “Hum! hum!” E amunhecara, porque realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha Vitória andara para cima e para baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia, dando-lhe um pontapé.

Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.

Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene. Sinha Vitória respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinha Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinha Vitória ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo. Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado.

Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às obrigações da casa. Foi a sala, passou por baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do caritó o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era capaz de se ter esquecido de curar a vaca laranja. Quis acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina.

Um mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se. Diligenciou afastar a recordação, temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma ave-maria, já tranquila, a atenção desviada para um buraco que havia na cerca do chiqueiro das cabras. Esfarelou a pele de fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o cachimbo de barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa atravessando o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.

– É capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.

Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se- e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia.

Aproximou-se do canto onde o pote se erguia numa forquilha de três pontas, bebeu um caneco de água. Água salobra.

– Iche!

Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava pensando? Olhou o chão, concentrada, procurando recordar-se, viu os pés chatos, largos, os dedos separados. De repente as duas ideias voltaram: o bebedouro secava, a panela não tinha sido temperada.

Foi levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada de vapor. Não é que ia deixando a comida esturrar? Pôs água nela e remexeu-a com a quenga preta de coco. Em seguida provou o caldo. Insosso, nem parecia boia de cristão. Chegou-se ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne, abriu a mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.

Agora pensava no bebedouro, onde havia um líquido escuro que bicho enjeitava. Só tinha medo da seca.

Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha à gente? Arreliava-se com a comparação.

Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: - “Meu louro.” Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois que chegara à fazenda. A referência aos sapatos abrira-lhe uma ferida – e a viagem reaparecera. As alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio. Fabiano era ruim.

– Mal-agradecido.

Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família. Naquele momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação? Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas meninas dos olhos. Repreendeu-os: – Safadinhos! porcos! sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.

Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do caritó, e Sinha Vitória voltou para junto da trempe, reacendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas de pucumã do teto; Baleia, sob o jirau, coçava-se com os dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas ideias de Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança.

Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.

Outra vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro. Mas o sonho se ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o objeto de seu desejo.

Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas davam-lhe sensação de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles – e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que aperreava Sinha Vitória. Como já não se estazava em serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.

Nesse ponto as ideias de Sinha Vitória seguiram outro caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedrês? Logo a pedrês, a mais gorda. Decidiu armar um mundéu perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.

– Ladrona.

Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque não tinham removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não conseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão estirar os ossos.

Se vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.
Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça?

Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo – e ela franzia a testa, espantada; certa de que o marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Graciliano Ramos, "Vidas Secas"

sábado, outubro 28

Leitura encantada

 


Educação de príncipe

Os cronópios quase nunca têm filhos, mas quando os têm perdem a cabeça e acontecem coisas extraordinárias. Por exemplo, um cronópio tem um filho e logo o invade o deslumbramento, está certo de que seu filho é o pára-raios da beleza e que por suas veias corre a química completa, com, aqui e ali, ilhas cheias de belas artes e poesia e urbanismo. Então esse cronópio não pode ver seu filho sem se inclinar profundamente diante dele e dizer-lhe palavras de respeitosa homenagem. O filho, como é natural, odeia-o cuidadosamente. Quando chega à idade escolar, seu pai o matricula no primeiro ano e o menino fica satisfeito entre outros pequenos cronópios, famas e esperanças. Mas vai piorando à medida que o meio-dia se aproxima, porque sabe que seu pai o estará esperando na hora da saída, e que ao vê-lo levantará os braços e dirá diversas coisas, tais como:

— Boas salenas cronópio cronópio, o mais bonzinho e mais crescido e mais gordinho e mais arrumado e mais respeitoso e mais aplicado dos filhos!

Com o que os famas e as esperanças-juniores se dobram de tanto rir na beira da calçada, e o pequeno cronópio odeia obstinadamente seu pai e acabará sempre por pregar-lhe uma peça entre a primeira comunhão e o serviço militar. Mas os cronópios não sofrem demais por causa disso, porque também eles odiavam os pais, e até parece que esse ódio é o outro nome da liberdade ou do vasto mundo.

Julio Cortázar, "Histórias de Cronópios e de Famas"

Uma coisa só

Sou de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu pai era professor universitário e minha mãe era administradora. Tínhamos, como era comum, empregados domésticos que moravam em nossa casa e que, em geral, vinham de vilarejos rurais próximos. No ano em que fiz oito anos, um menino novo foi trabalhar lá em casa. O nome dele era Fide. A única coisa que minha mãe nos contou sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe mandava inhame, arroz e nossas roupas velhas para eles. Quando eu não comia todo o meu jantar, ela dizia: “Coma tudo! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não têm nada?”. E eu sentia uma pena enorme deles.
Certo sábado, fomos ao vilarejo de Fide fazer uma visita. Sua mãe nos mostrou um cesto de palha pintado com uns desenhos lindos que o irmão dele tinha feito. Fiquei espantada. Não havia me ocorrido que alguém naquela família pudesse fazer alguma coisa. Eu só tinha ouvido falar sobre como eram pobres, então ficou impossível para mim vê-los como qualquer coisa além de pobres. A pobreza era minha história única deles.

Anos depois, pensei nisso quando saí da Nigéria para fazer faculdade nos Estados Unidos. Eu tinha dezenove anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando respondi que a língua oficial da Nigéria era o inglês. Também perguntou se podia ouvir o que chamou de minha “música tribal”, e ficou muito decepcionada quando mostrei minha fita da Mariah Carey. Ela também presumiu que eu não sabia como usar um fogão.

O que me impressionou foi: ela já sentia pena de mim antes de me conhecer. Sua postura preestabelecida em relação a mim, como africana, era uma espécie de pena condescendente e bem-intencionada. Minha colega de quarto tinha uma história única da África: uma história única de catástrofe. Naquela história única não havia possibilidade de africanos serem parecidos com ela de nenhuma maneira; não havia possibilidade de qualquer sentimento mais complexo que pena; não havia possibilidade de uma conexão entre dois seres humanos iguais.

Devo dizer que, antes de ir para os Estados Unidos, eu não me reconhecia conscientemente como africana. Mas, naquele país, sempre que a África era mencionada, as pessoas se voltavam para mim. Não importava que eu não soubesse nada sobre lugares como a Namíbia. Passei a aceitar essa identidade e, de muitas formas, agora penso em mim como africana, embora ainda fique bastante irritada quando dizem que a África é um país. O exemplo mais recente disso foi num voo da Virgin, maravilhoso em todos os outros aspectos, que peguei em Lagos dois dias atrás, durante o qual falaram de obras de caridade feitas “na Índia, na África e em outros países”.

Depois que passei alguns anos nos Estados Unidos como africana, comecei a entender a reação da minha colega de quarto em relação a mim. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo o que eu soubesse sobre a África viesse das imagens populares, também ia achar que se tratava de um lugar com paisagens maravilhosas, animais lindos e pessoas incompreensíveis travando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e de aids, incapazes de falar por si mesmas e esperando para serem salvas por um estrangeiro branco e bondoso. Veria os africanos da mesma maneira como eu via a família de Fide quando era criança.

Acho que essa história única da África veio, no final das contas, da literatura ocidental. Aqui está uma citação de um mercador de Londres chamado John Lok, que velejou para a África ocidental em 1561 e fez um relato fascinante de sua viagem. Após se referir aos africanos negros como “animais que não têm casa”, ele escreveu: “Também é um povo sem cabeça, com a boca e os olhos no peito”.

Rio toda vez que leio isso. É preciso admirar a imaginação de John Lok. Mas o importante sobre o que ele escreveu é que representa o início de uma tradição de contar histórias sobre a África no Ocidente: uma tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta Rudyard Kipling, são “metade demônio, metade criança”.

Assim, comecei a me dar conta de que minha colega de quarto americana devia ter passado a vida inteira vendo e ouvindo versões diferentes dessa história única, assim como um professor universitário que certa vez me disse que meu romance não era “autenticamente africano”.

Eu estava bastante disposta a admitir que havia diversas coisas erradas com o romance e que ele fracassava em vários aspectos, mas não chegara a imaginar que fracassava em alcançar algo chamado “autenticidade africana”. Na verdade, eu não sabia o que era autenticidade africana. O professor me disse que meus personagens pareciam demais com ele próprio, um homem instruído de classe média: eles dirigiam carros, não estavam passando fome; portanto, não eram autenticamente africanos.

Mas preciso acrescentar depressa que sou tão culpada quanto essas pessoas na questão da história única. Alguns anos atrás, fui visitar o México. Na época, o clima político nos Estados Unidos, de onde eu vinha, estava tenso, e debatia-se muito a imigração. Como costuma acontecer nos Estados Unidos, imigração tinha se tornado sinônimo de mexicanos. Havia histórias infindáveis sobre pessoas que fraudavam o sistema de saúde, passavam clandestinamente pela fronteira ou eram presas ali, esse tipo de coisa. Eu me lembro de sair para passear no meu primeiro dia em Guadalajara e ver as pessoas indo para o trabalho, fazendo tortilhas no mercado, fumando, rindo. Primeiro senti uma leve surpresa, e então fui tomada pela vergonha. Percebi que tinha estado tão mergulhada na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma só coisa na minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha acreditado na história única dos mexicanos e fiquei morrendo de vergonha daquilo.

É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna.
Chimamanda Ngozi Adichie, "O perigo de uma história única"

Segredo no cair da tarde

Ele chegou a galope, num alazão que eu não conhecia. Depois o alazão ergueu-se em duas patas e desapareceu e meu irmão também desapareceu. Fazia tempo que eu o chamava e ele não vinha. Chamava e não o encontrava. E ontem fui para o monte e ele veio e me falou como antes, só que no ouvido.

Eu cuido, para ele, das coisas que ele deixou. Escondi as coisas para que ninguém mexa nelas. A atiradeira, a vara de pescar, o tambor, o revólver de madeira, os preguinhos de fazer anzol. Tenho tudo isso escondido e, quando ele vem, sempre me pergunta pelas suas coisas. Eu tenho medo da gente que passa e prefiro não sair. Volto da roça ou de carpir a horta e fico aqui trancado, no escuro, cuidando das coisas para ele. Quando acendem a lâmpada de querosene fecho os olhos, mas deixo eles um pouquinho abertos e a lâmpada vira uma linha brilhante e toda peluda de luz. E às vezes converso com meu amigo que não sabe falar porque é o cachorro. Converso, para não dormir. Sempre que durmo, morro.

Já vão para cinco longos anos que em cima do Mingo veio aquele caminhão na estrada. Estava cuidando das duas vacas que nós tínhamos. Eu teria defendido meu irmão, se estivesse lá com minha espada amarela. E foi nesse dia que fiquei sem vontade de brincar, e para nunca mais. Fiquei sem vontade de nada. Porque eu e o Mingo sempre andávamos ao meio-dia como lagartos, e íamos pescar e caçar passarinhos. Mas, depois, não brinquei mais. Perdeu a graça.

Para mim, o que aconteceu com ele foi mau-olhado. Alguém chegou e pôs um mau-olhado nele, justo quando ele estava com a barriga vazia e depois veio o caminhão e o esmagou. Nos gringos, nunca pega o mau-olhado, me contaram. É que a gente daqui, de Pueblo Escondido, a gente grande, tem a vista muito forte demais. Aqui, toda a gente grande é má. Os grandes batem. Me batem quando digo que posso conversar com o Mingo sempre que quero, até hoje. Não deixam nem eu falar o nome dele.

Por isso, nunca falo dele. Aqui em Pueblo Escondido, eu não falo. Quando aconteceu aquilo, eu peguei e meti na cara a máscara que o Mingo tinha feito para mim no carnaval, que era um diabo com chifres de trapo e a barba de verdade, e meti a máscara na cara para que ninguém soubesse que era eu, e me atirei com a bicicleta do Ivan turco a toda velocidade contra a barranqueira, me atirei barranqueira abaixo, para me arrebentar lá embaixo contra o lixo. Mas deu tudo errado porque eu caí certo e não aconteceu nada. E aí me bateram. E eu fiquei a noite inteira tremendo e de manhã acordei todo mijado e me enfiaram num barril de água gelada. Me deixaram na água gelada e eu não chorei nem pedi que me tirassem. E, na primeira vez que meu irmão apareceu, eu peguei e contei tudo para ele.

Eu contava tudo para ele. Contei que andávamos comendo laranjas verdes porque não havia outra coisa. E então mamãe vendeu as vacas e um dia me deu dinheiro para ir comprar açúcar para enchermos bem a barriga, porque quando se come pouco a barriga se fecha e fica pequenininha e então a gente tem que enchê-la para depois pôr comida. E eu meti o dinheiro no bolso de trás, que estava furado, e essa vez também me bateram.

Quando vou para o morro esperar o Mingo, tenho medo que as pessoas me descubram. E tenho medo dos urubus. Tenho medo também dos buracos, porque há muitas armadilhas no morro e o diabo tem sua casa no fundo da terra. É preciso tomar cuidado para não cair no fundo do mundo. E também tenho medo da tempestade. Começam a cair em cima as primeiras gotas gordas de chuva, e já saio em disparada. Tenho medo das tempestades porque são muito brancas.
Estando meu irmão, é diferente. Estando ele, não tenho medo de nada.

Ontem subi num braço de árvore e fiquei fumando e esperando. Eu estava certo que ele não ia falhar. E o Mingo apareceu a galope, bem no meio da imensa nuvem de pó, quando só restava um pouco de sol no céu. Ele me pediu para chegar mais perto, me fez sinais com o braço, e eu desci e embaixo de um espinheiro ele me contou um segredo. O ar do morro tinha cheiro de laranjas maduras. Não desceu do alazão. Abaixou o corpo, e só. E me disse que eu vou ter dinheiro e vou pegar e comprar um caminhão para mim e encher o caminhão de palha e barba de milho para ter o que fumar para sempre. E vou embora. E vou para o mar.

O Mingo me disse que passando o horizonte fica o mar e que eu nasci para ir embora. Para ir, para isso nasci. Pega o caminhão e vai embora, ele me disse. E aqueles que não gostem disso, você passa por cima com o caminhão. Quer dizer que eu vou embora. Para o mar. E levo todas as coisas do meu irmão. Monto no caminhão e antes do mar eu não paro. Do mar sim, eu não tenho medo. O mar estava me esperando e eu não sabia. Como será? Como será o mar? – perguntei ao meu irmão. Como será muita água junta? E o mar respira? E responde quando lhe perguntam? Tanta água no mar! E não escapa, essa água do mar?

Eduardo Galeano, "Vagamundo"

quinta-feira, outubro 26

Balanço de leitura

 


Como ele domou o gigante

Foram muitas as aventuras da juventude de meu pai, e as histórias que contam até hoje são inumeráveis. Mas talvez sua tarefa mais formidável tenha sido enfrentar Karl, o gigante, pois ao fazer isso ele estava arriscando a própria vida. Karl tinha a altura de dois homens, a largura de três e a força de dez. Seu rosto e braços estampavam as cicatrizes de uma vida selvagem, uma vida mais próxima à dos bichos do que à dos homens. Assim como seu comportamento. Dizem que Karl nasceu de uma mulher como qualquer mortal, mas logo ficou claro que um erro havia sido cometido. Ele era simplesmente enorme. Sua mãe comprava uma roupa para ele de manhã e de tarde as costuras arrebentavam, de tão rápido que seu corpo crescia. De noite ele ia dormir numa cama feita para o tamanho dele por um carpinteiro e de manhã seus pés estavam pendurados para fora. E ele comia sem parar! Não importava quanta comida ela comprasse ou produzisse em suas próprias plantações: seus armários estavam sempre vazios ao anoitecer, e ele se queixava de estômago vazio. Ele batia com o punho enorme na mesa, pedindo mais comida. “Agora!”, ele berrava. “Mãe, agora!” Depois de catorze anos aturando isso, ela não aguentava mais, e um dia, enquanto Karl estava com a cara enterrada num lombo de veado, ela fez as malas e saiu pela porta dos fundos, e nunca mais voltou. Sua ausência só foi notada quando a comida acabou. Então ele ficou magoado, furioso e — acima de tudo — faminto.

Foi quando ele veio para Ashland. À noite, enquanto os habitantes dormiam, Karl percorria os quintais e jardins em busca de comida. No início, ele só pegava o que crescia ali. De manhã, o povo de Ashland encontrava plantações inteiras de milho saqueadas, as macieiras vazias, a caixa-d’água seca. Ninguém sabia o que fazer. Karl, que se tornara grande demais para morar em sua casa, tinha se mudado para as montanhas que rodeavam a cidade. Quem ousava enfrentá-lo em tal terreno? E o que fariam aquelas pessoas diante do monstro terrível em que Karl havia se transformado?

Esta pilhagem continuou por algum tempo, até que um dia doze cachorros desapareceram. Parecia que a própria vida da cidade estava ameaçada. Algo tinha que ser feito — mas o quê?

Meu pai concebeu um plano. Era perigoso, mas não parecia haver mais nada a fazer, e com a bênção de toda a cidade, numa bela manhã de verão, papai se pôs a caminho. Ele se dirigiu para as montanhas, onde sabia que havia uma caverna. Era lá que ele achava que Karl morava.

A caverna ficava escondida atrás de um conjunto de pinheiros e de uma grande pilha de rochas, e meu pai sabia da existência dela por ter resgatado uma menina que havia se perdido nela muitos anos antes. Ele parou diante da caverna e gritou:

— Karl!

Ele ouviu o eco da própria voz.

— Apareça! Eu sei que você está aí. Eu trouxe uma mensagem da nossa cidade.
Passaram-se alguns momentos no silêncio da floresta antes de meu pai ouvir um ruído e sentir um tremor que pareceu mover a própria terra. Então, da escuridão da caverna surgiu Karl. Ele era maior do que meu pai tinha ousado sonhar. E como seu rosto era assustador! Coberto de cortes e escoriações decorrentes daquela vida selvagem — e por vezes com tanta fome que não esperava que sua comida morresse, e às vezes a comida resistia. Seu cabelo negro era comprido e coberto de gordura, sua barba espessa e emaranhada cheia de comida e de insetos que se alimentavam das migalhas.

Quando viu meu pai, ele começou a rir.

— O que você quer, pessoinha? — disse com um sorriso tenebroso.

— Você precisa parar de vir a Ashland em busca de comida — meu pai falou. — Nossos fazendeiros estão perdendo suas colheitas, e as crianças sentem falta de seus cachorros.

— O quê? E você pretende me impedir? — Sua voz retumbava ao longo dos vales, sem dúvida chegando até Ashland. — Ora, eu posso quebrar você com minhas mãos como se fosse um galho de árvore!

Para demonstrar isso, ele agarrou um galho de pinheiro e o transformou em pó entre os dedos.

— Ora — continuou —, posso comer você num instante! Eu posso!

— E foi para isso que eu vim até aqui — meu pai disse.

A face de Karl contorceu-se então, ou de perplexidade ou porque um dos insetos tinha rastejado para fora da sua barba e subido por seu rosto.

— O que você quer dizer com isso?

— Quero dizer que vim aqui para você me comer. Sou o primeiro sacrifício.

— O primeiro... sacrifício?

— Em sua honra, ó grande Karl! Nós nos submetemos ao seu poder. A fim de salvar muitos, compreendemos que precisamos sacrificar alguns. Isso me torna... o quê?... almoço?

Karl pareceu confuso com as palavras de meu pai. Sacudiu a cabeça para clareá-la, e uma dúzia de insetos voaram de sua barba e caíram no chão. Seu corpo começou a tremer e, por um momento, pareceu que ele ia cair. Ele teve que se encostar na montanha para recuperar o equilíbrio.

Foi como se tivesse sido atingido por uma arma. Como se tivesse sido ferido em combate.

— Eu... — ele disse baixinho, até com tristeza. — Eu não quero comer você.

— Não quer? — meu pai disse, bastante aliviado.

— Não. Eu não quero comer ninguém. — E uma lágrima gigantesca rolou pelo seu rosto machucado. — É que eu tenho tanta fome — ele disse. — Minha mãe costumava preparar refeições deliciosas, mas aí ela foi embora, e eu não sabia o que fazer. Os cachorros... sinto muito pelos cachorros. Sinto muito por tudo.

— Eu entendo — meu pai disse.

— Não sei o que fazer agora. Olhe para mim... eu sou enorme! Tenho que comer para viver. Mas estou sozinho agora, e não sei...

— Cozinhar — meu pai disse. — Plantar alimentos. Criar animais.

— Exatamente. Acho que eu devia ir para o fundo desta caverna e nunca mais sair. Já causei muitos problemas.

— Nós podemos ensinar — meu pai disse.

Karl levou alguns instantes para compreender as palavras de meu pai.

— Ensinar-me o quê?

— A cozinhar, cultivar alimentos. Há muitos acres de terra aqui.

— Você quer dizer que eu poderia tornar-me um fazendeiro?

— Sim — meu pai disse. — Poderia.

E foi exatamente isso que aconteceu. Karl tornou-se o maior fazendeiro de Ashland, mas a fama de meu pai tornou-se ainda maior. Diziam que ele era capaz de conquistar qualquer um, simplesmente atravessando uma sala. Diziam que ele tinha sido abençoado com um poder especial. Mas meu pai era humilde, e dizia que não era nada disso. Ele simplesmente gostava das pessoas, e as pessoas gostavam dele. Era simplesmente isso, dizia.
Daniel Wallace, "Peixe Grande"

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há,estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.

Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
Miguel Esteves Cardoso

Jikininki

Certa vez, quando o monge zen-budista Musō Kokushi viajava sozinho pela província de Mino, ele se perdeu num distrito nas montanhas e não havia ninguém para orientá-lo. Por muito tempo ele vagou, desamparado; estava prestes a perder as esperanças de encontrar um local para passar a noite quando notou, no alto de um morro onde se refletiam os últimos raios de sol, um pequeno eremitério, um anjitsu, do tipo construído para monges solitários. Parecia em ruínas, mas ele correu até lá, ansioso, e viu que era habitado por um velho monge, a quem implorou que o abrigasse aquela noite, embora não pudesse oferecer nada em troca. O velho foi inflexível em sua recusa, mas indicou a Musō o caminho até uma aldeia vizinha, onde ele poderia encontrar comida e hospedagem.

Musō conseguiu encontrar a aldeia, constituída de menos de doze casinhas de campo, e foi gentilmente acolhido pelo chefe do lugar. Quando chegou à casa dele, havia quarenta ou cinquenta pessoas reunidas no aposento principal, e o monge foi conduzido a um pequeno quarto ao lado, onde logo lhe providenciaram comida e cama. Estava muito cansado, então ainda cedo deitou para descansar; pouco antes da meia-noite, porém, foi acordado pelo som de um choro copioso no aposento vizinho. Na mesma hora, alguém deslizou com suavidade as portas entre os cômodos; e um rapaz jovem, segurando uma lanterna acesa, entrou e, respeitoso, saudou o hóspede dizendo:

— Venerável senhor, é com pesar que devo lhe dizer que agora sou o responsável por esta casa. Ainda ontem, eu era apenas o primogênito. Mas ao ver o senhor chegar tão cansado, não quisemos lhe provocar um constrangimento, portanto não contamos ao senhor que meu pai tinha morrido havia apenas poucas horas. As pessoas que o senhor viu são os habitantes do povoado: se reuniram para prestar as últimas homenagens ao morto e agora seguem rumo a outra aldeia, a cerca de cinco quilômetros daqui, pois, pelos nossos costumes, nenhum de nós deve permanecer na aldeia na noite em que alguém tenha morrido. Fazemos as oferendas e preces apropriadas, e então partimos, deixando o cadáver sozinho. Coisas estranhas sempre acontecem na casa em que um cadáver é abandonado, por isso pensamos que seria melhor o senhor nos acompanhar. Podemos lhe encontrar uma boa hospedagem em outra aldeia. Talvez, porém, o senhor não tema os demônios ou maus espíritos, já que é um monge; se por acaso não tiver medo de permanecer a sós com o cadáver, pode ficar à vontade para dispor desta pobre casa. No entanto, devo lhe dizer que ninguém, a não ser um monge, ousaria permanecer aqui esta noite.

Musō respondeu:

— Sou profundamente grato por sua boa intenção e generosa hospitalidade. Sinto muito, no entanto, que não tenham me informado antes da morte de seu pai; ainda que estivesse um pouco cansado, com certeza não teria dificuldade em exercer meus deveres de monge. Se tivesse me contado, eu poderia ter efetuado a cerimônia antes da partida de vocês. Agora irei realizá-la depois que saírem; e permanecerei ao lado do corpo até o amanhecer. Não entendo o que você quer dizer quanto aos perigos de ficar aqui; mas não tenho medo de fantasmas nem demônios, portanto, por favor não se aflija por minha pessoa.


O jovem rapaz pareceu satisfeito com essas palavras confiantes e exprimiu sua gratidão de modo adequado. Então os membros da família e todas as pessoas reunidas na casa, ao saber das gentis promessas do monge, vieram lhe agradecer — e, em seguida, o mestre da casa falou:

— Agora, venerável senhor, embora seja com grande pesar que o deixamos sozinho, precisamos nos despedir. Pela lei de nossa aldeia, nenhum de nós pode permanecer aqui depois da meia-noite. Imploramos, gentil senhor, que tome todos os cuidados com sua honrosa presença, nesse momento em que não podemos auxiliá-lo. E, se acaso escutar ou vir algo de estranho em nossa ausência, por favor nos relate quando voltarmos pela manhã.

E assim todos saíram da casa, com exceção do monge, que seguiu para o quarto onde estava o corpo. Todas as oferendas habituais haviam sido dispostas diante do morto; e uma pequena lamparina budista, tōmyō, estava acesa. O monge fez a recitação ritual, cumpriu com as cerimônias funerárias e, em seguida, entrou em meditação. Permaneceu assim, meditando por muitas horas silenciosas; e toda a aldeia estava deserta e tudo era silêncio. Mas na mais profunda noite e no quieto absoluto, uma Forma vaga e vasta apareceu, sem se fazer ouvir; e no mesmo instante Musō percebeu que não conseguia mais se mexer nem falar. Viu que a Forma levantou o cadáver, como se tivesse mãos, e o devorou, mais rápido do que um gato devora um rato — começou pela cabeça e continuou até comer tudo: cabelo, ossos e até a mortalha. E a Coisa monstruosa, tendo então consumido o corpo, voltou-se para as oferendas e também as engoliu. E então se foi, tão misteriosamente como havia vindo.

Quando os habitantes da aldeia voltaram na manhã seguinte, encontraram o monge na entrada da casa do chefe. Cada um deles o cumprimentou; e, quando entraram e olharam em volta, ninguém demonstrou surpresa com o desaparecimento do corpo e das oferendas. Mas o mestre da casa disse a Musō:

— Venerável monge, o senhor decerto viu coisas desagradáveis na noite passada: todos nós estávamos aflitos por sua pessoa. Mas agora estamos muito contentes de ver que sobreviveu ileso. Se não fosse impossível, nós o teríamos acompanhado com prazer. Mas a lei de nossa aldeia, como lhe disse ontem à noite, nos obriga a abandonar nossas casas quando alguém morre, e a deixar o cadáver a sós. Todas as vezes em que essa lei foi quebrada, seguiu-se uma grande desgraça. Toda vez em que ela é obedecida, o cadáver e as oferendas desaparecem em nossa ausência. Talvez o senhor tenha visto a causa disso.

Então Musō falou da Forma terrível e escura que havia entrado na sala mortuária para devorar o corpo e as oferendas. Ninguém pareceu estranhar a história, e o mestre da casa observou:

— Isso que nos conta, venerável senhor, está de acordo com o que já se falou a esse respeito em tempos ancestrais.

Musō então perguntou:

— O monge que vive na montanha às vezes não vem aqui realizar os rituais funerários para os mortos?

— Qual monge? — perguntou o jovem.

— O que me indicou o caminho para cá ontem à noite — respondeu Musō. — Bati à porta de seu anjitsu, no morro logo ali. Ele me negou hospedagem, mas indicou o caminho até aqui.

Os ouvintes se entreolharam, espantados; depois de um instante de silêncio, o mestre da casa falou:

— Venerável senhor, não há monge nem anjitsu na montanha. Há muitas gerações não temos um sacerdote residente na região.

Musō não disse mais nada; tinha ficado claro que seus gentis hóspedes supunham que ele havia sido iludido por um goblin. Depois de se despedir, e tendo obtido todas as informações acerca de qual caminho seguir, ele decidiu procurar de novo o eremitério na montanha, para averiguar se de fato havia sido enganado. Sem dificuldade encontrou o anjitsu, e agora seu velho habitante o convidou a entrar. Uma vez dentro, o ermitão curvou-se humilde, em reverência, dizendo:

— Ah, que vergonha! Estou muito envergonhado! Estou profundamente envergonhado!

— Não precisa sentir vergonha por ter me recusado hospedagem — disse Musō. — Você me indicou o caminho para a aldeia, onde fui muito bem tratado; e eu o agradeço por isso.

— Não posso oferecer hospedagem a quem quer que seja — respondeu o recluso —, e não é isso o que me vexa. Sinto vergonha apenas por você ter me visto em minha forma verdadeira, pois fui eu que engoli o cadáver e as oferendas ontem à noite, diante de seus olhos... Saiba, venerável senhor, que sou um jikininki * e como carne humana. Tenha piedade de mim e aceite escutar a confissão do mal secreto que me reduziu a esse estado.

“Há muito tempo, eu era o monge desta região abandonada. Não havia outro senão eu, por muitas e muitas léguas. Naquela época, os corpos da gente que morria nas montanhas costumavam ser trazidos até aqui — às vezes, vinham de grandes distâncias — para que eu lhes pudesse recitar os rituais sagrados. Mas eu recitava e concluía os rituais apenas como uma obrigação — só pensava na comida e nas roupas que poderia angariar às custas de minha profissão sagrada. E por causa de meu egoísmo impiedoso, assim que morri renasci na condição de jikininki. Desde então, vejo-me obrigado a me alimentar dos cadáveres d
as pessoas que morrem neste distrito: preciso devorar cada um da maneira como me viu fazer ontem... Agora, venerável senhor, permita que eu lhe peça para realizar um ritual de Segaki por mim: me ajude com suas preces, eu lhe imploro, para que eu possa escapar logo dessa terrível existência...”

Tão logo o eremita fez o pedido, ele desapareceu e o eremitério sumiu junto. E Musō Kokushi se viu sozinho, ajoelhado em meio ao capim alto, ao lado de um antigo túmulo coberto de musgo, no formato go-rin-ishi; aparentemente, o túmulo de um monge.
Lafcadio Hearn, "Kwaidan: contos fantásticos do Japão antigo"

quarta-feira, outubro 25

No futuro...

 


A árvore de Natal da casa de Cristo

Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por tédio, soprava esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esfumar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde, num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. “Faz muito frio aqui”, refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava ali, e o menino já ganhava a rua.

Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas narinas dos cavalos que galopam; através da neve gelada o ferro dos cascos tine contra a calçada; todos se apressam e se acotovelam, e, meu Deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não a vê.

Eis uma rua ainda: como é larga! Vão esmagá-lo, certamente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam, comem e bebem alguma coisa. Ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos que não podem se dobrar, nem mesmo se mover.

De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e sentadas estão quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou.

Hu! com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não pôde fechar os dedinhos para segurá-la.

O menino apertou o passo para ir mais longe — nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar — de verdade — e, se não se ouve nada, é por causa da vidraça.

O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. “Aqui, pelo menos”, refletiu ele, “não me acharão: está muito escuro.”

Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como perto de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e dormiria! Como seria bom dormir nesse lugar! “Mais um instante e vou ver outra vez os bonecos”, pensou o menino, que sorriu à lembrança: “Podia jurar que eram vivos!”

... E de repente pareceu-lhe que a mãe lhe cantava uma canção. “Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!”

— Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino — murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.

Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos — mas não, são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu voo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.

— Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! — exclamava a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça...

— Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? — pergunta ele, sorrindo e mandando-lhes beijos.

— Isto... é a árvore de Natal de Cristo — respondem-lhe. — Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...

E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...

E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.
Fiodor Dostoiévski, "Antologia de Contos"

Forasteiros em Turim

Turineses por adoção - no campo da literatura -, acredito que não sejamos muitos. Milaneses por adoção, eu conheço muitos - grande coisa: são a quase totalidade dos literatos de Milão! -; os romanos por adoção continuam aumentando; os florentinos por adoção, menos do que noutros tempos, mas ainda assim existem; em Turim, ao contrário, pode-se dizer que é preciso ter nascido ali, ou ter chegado ali pelos vales do Piemonte com o movimento natural dos rios que deságuam no Pó. Para mim, no entanto, Turim foi realmente objeto de uma escolha. Sou de uma terra, a Ligúria, que de tradição literária só tem fragmentos ou ensaios, de forma que cada qual pode - grande sorte! - descobrir ou inventar uma tradição por conta própria; de uma terra que não tem uma capital literária bem definida, de modo que o literato liguriano - avis rara, na verdade - também é ave migratória.

Turim tinha, a me atrair, certas virtudes nada dessemelhantes daquelas de minha gente, e minhas favoritas: a ausência de escumas românticas, o fiar-se sobretudo no próprio trabalho, uma arredia desconfiança nativa, além do sentido firme de participar do vasto mundo que se move e não da província fechada, o prazer de viver temperado de ironia, a inteligência clarificadora e racional. Foi, portanto, uma imagem moral e civil, e não literária, o que me atraiu em Turim. Era o chamado daquela cidade de trinta anos antes, que outro turinês "adotivo", o sardo Gramsci, identificara e suscitara, e que um turinês de límpida tradição, Gobetti, definira, em certas páginas suas ainda hoje muito estimulantes. A Turim dos operários revolucionários que no final da Primeira Grande Guerra já se organizavam como classe dirigente, a Turim dos intelectuais antifascistas que não haviam feito nenhuma concessão. Ainda existe essa Turim? Faz ouvir sua voz na realidade italiana de hoje? Eu acredito que ela tenha a virtude de guardar sua força como o fogo sob as cinzas, e que continue viva mesmo quando quase não aparece. Minha Turim literária se identificou sobretudo com uma pessoa que tive a sorte de ter por perto durante alguns anos e que cedo demais veio a faltar: um homem sobre o qual agora se escreve muito, e freqüentemente de forma que mal se consegue reconhecê-lo. É verdade que não bastam seus livros para dar uma imagem completa dele: porque dele era fundamental o exemplo de trabalho, ver como a cultura do literato e a sensibilidade do poeta se transformavam em trabalho produtivo, em valores postos à disposição do próximo, em organização e comércio de idéias, em prática e escola de todas as técnicas em que uma civilização cultural moderna consiste.

Refiro-me a Cesare Pavese. E posso dizer que para mim, como para outros que o conheceram e o freqüentaram, o ensinamento de Turim coincidiu em boa parte com o ensinamento de Pavese. Toda minha vida turinesa carrega a sua marca; toda página que eu escrevia era ele o primeiro a ler; foi ele quem me deu um ofício, ao me iniciar na atividade editorial devido à qual Turim, ainda hoje, é um centro de cultura de importância mais do que nacional; foi ele, enfim, quem me ensinou a ver sua cidade, a apreciar suas belezas sutis, passeando pelas avenidas e colinas.

Nesta altura seria preciso mudar de assunto e dizer como, com essa paisagem, um forasteiro como eu pode conseguir se harmonizar; como eu me sinto aqui, peixe de escolho e pássaro selvagem transportado até esses pórticos, a farejar as neblinas e os intensos frios subalpinos. Mas seria uma longa conversa. Seria preciso procurar definir um jogo secreto de motivos unindo a desnuda geometria dessas ruas quadradas à desnuda geometria dos muros de pedra sem argamassa de meus campos. E a relação especial entre civilização e natureza em Turim: ela é tal que um reverdecer de folhas nas avenidas, um brilhar sobre o rio Pó, a cordial vizinhança da colina bastam para de repente reabrir o coração a paisagens nunca esquecidas, para recolocar o homem em contraste com o mundo natural mais vasto, para devolver - enfim - o gosto de estarmos vivos.
Italo Calvino, "Eremita em Paris"

Até o lume parece encantado

Nas caladas noites de Inverno, quando despego o olhar dos papéis, encontro sempre os teus que me envolvem de ternura . Isto é quase nada - e revolve o mundo. É saudade , e a vida que passa e a morte que se aproxima, enquanto o tronco arde no lume , o pinheiro estala ou o carvalho amorroa. De fora, vem o hálito da floresta e das águas. Mais silêncio… Surpreendo-me então a repetir o meu pensamento, ou é o teu que me acode ao mesmo tempo. Não fales! Outra figura transparece atrás da tua figura. Nesse momento até o lume parece encantado e ficas tão linda que antevejo a vida misteriosa que me fascina e deslumbra. Isto só dura um segundo. Mas basta às vezes que sorrias e é a tua alma que sorri, basta ás vezes que não fales e é a tua alma que me fala! Nesse momento somos um ser: eu sou tu , tu és eu, tu sorris, eu sorrio… Então cai sobre nós o silêncio - e eu descubro o que só nos é dado ver depois da morte, a amplidão das almas, seu poder mágico e, num deslumbramento, ao lado da existência pueril, a imensidade do universo e o infinito que nos rodeia e de que perdemos a sensação pelo hábito. A casa que tem raízes de granito, voga no éter arrastada num turbilhão que me mete medo… Alguém nos vai bater à porta … Alguém se aproxima pouco e pouco num cerco que se aperta e em passos tão leves que mal se ouvem.

Rodeia -nos o silêncio vivo, alma do mundo, o silêncio que é talvez o que mais amo na aldeia, este silêncio perfumado que envolve a nossa casa na solidão tremenda da noite: mais perto de mim arfa alguma coisa de religioso e profundo: - sinto a Vida e a Morte. Sinto—as enquanto a última brasa se apaga e as tuas mãos se agarram às minhas mãos de velho. 
Raul Brandão, "Se tivesse de recomeçar a vida"

segunda-feira, outubro 23

Gabinete de leitura

 


Uma imagem da infância

Um dos nossos vizinhos era ríspido e até bruto com seu filho, mas nunca com seu cão. Na ingenuidade dos meus dez anos, me perguntava como um pai — qualquer pai — podia ser mais afetuoso com um bicho do que com o próprio filho.
Hoje, quando vejo crianças abandonadas e em total desgraça, e cães serem tratados com regalias de príncipes ou de políticos, minha descrença na humanidade tende ao infinito. Mas essa não é uma crônica sobre o niilismo, e sim sobre um vira-lata que assombrou minha infância.

Eu não sentia um apego especial por esse bicho, nem pelos macacos e araras do quintal do meu vizinho, preferia brincar no porão da casa dele, onde havia brinquedos fabulosos; um deles era o exército em miniatura de dois países que participaram da Primeira Guerra Mundial, um exército com soldadinhos de papel machê e toda a parafernália bélica. O pai do meu amigo conhecia muita coisa sobre essa guerra, tão distante no tempo e no espaço que parecia irreal. Aos sábados eu brincava com esse pai, que venerava o Exército prussiano e sua disciplina férrea; eu venerava o guaraná Tuchaua e a tapioquinha com queijo coalho da merenda da tarde. Às vezes, quando eu e o pai combatíamos em exércitos antagônicos, um uivo lamentoso interrompia nossa guerra, selando uma espécie de armistício. O dono ia atrás do seu cão, e assim terminava nossa brincadeira bélica.

Quando isso acontecia, eu me juntava ao meu amigo, que jogava baralho com sua mãe na varanda do andar de cima, de onde víamos o pai e o cão passeando no quintal. Mais de uma vez, entre um blefe e uma batida do carteado, ouvi a mãe dizer: “Detesto esse animal”.

Fly era o nome do vira-lata: um bicho feio, a orelha direita estropiada em alguma batalha de rua, o focinho grande demais na cabecinha achatada, pernas finas e tortas, e no traseiro um rabo tão atrofiado que parecia um toco. Mas Fly me cativava com seu olhar terno; não poucas vezes, quando ele ficava sozinho no quintal, à espera de seu dono que demorava a chegar, me olhava com uma expressão aflitiva de quem pede socorro. Isso é o que Fly tinha de mais humano, ou de menos bestial.

Numa noite de dezembro de 1962, o pai do meu amigo morreu subitamente. No meio da agitação dos festejos natalinos na minha casa e do luto na casa vizinha, não vi o cão. Pouco tempo depois da missa de sétimo dia, meu amigo e sua mãe foram de vez para o Rio. A casa mobiliada, mas trancada, ficou silenciosa.
Mais de um mês depois, na tarde triste da Quarta-feira de Cinzas, minha mãe me disse: “Tens que ver uma coisa”.

Entramos no jardim da casa abandonada e descemos uma estreita rampa de pedra que terminava no quintal dos fundos. O cubo de arame dos macacos, vazio; e as árvores, sem as araras, estavam quietas. Antes que minha mãe apontasse para o porão, vi Fly encostado na grade de ferro. O cão, que a mãe do meu amigo abandonara longe da casa, tinha voltado para rever seu dono. Agora Fly era uma carcaça, a ossada do focinho enganchada na grade. Um formigueiro da cor de fogo crescia na pelagem preta.

“Esse bichinho morreu de tanta saudade”, lamentou minha mãe.

Mais de quarenta anos depois, quando ela leu as primeiras frases de um romance que eu acabara de publicar, perguntou: “Esse cão do Cinzas do Norte não é o Fly, do nosso vizinho?”

“Ele mesmo”, respondi. “Mas com outro nome, outra vida e outro dono.”

“Conta outra”, ela disse. E, olhando para mim, sentenciou: “Tu podes enganar teus leitores, mas não tua mãe”.

Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"

Lição para pentear pensamentos matinais

Pensamentos, como cabelos, também acordam despenteados. Naquela faixa-zumbi que vai em slow motion, desde sair da cama, abrir janelas, avaliar o tempo e calçar chinelos até o primeiro jato da torneira — feito fios fora de lugar emaranham-se, encrespam-se, tomam direções inesperadas. Com água, mão, pente, você disciplina cabelos. E pensamentos? Que nem são exatamente pensamentos, mas memórias, farrapos de sonho, um rosto, premonições, fantasias, um nome. E às vezes também não há água, mão, nem pente, gel ou xampu capazes de domá-los. Acumulando-se cotidianas, as brutalidades nossas de cada dia fazem pouco a pouco alguns recuar — acuados, rejeitados — para as remotas regiões de onde chegaram. Outros, como cabelos rebeldes, renegam-se a voltar ao lugar que (com que direito?) determinamos para eles. Feito certas crianças, não se deixam engambelar assim por doce nem figurinha.


Pensamentos matinais, desgrenhados, são frágeis como cabelos finos demais que começam a cair. Você passa a mão, e ele já não está mais ali — o fio. No travesseiro sempre restam alguns, melhor não olhar para trás: vira-se estátua de cinza. Compacta, mas cinza. Basta um sopro. Pensamentos matinais, cuidado, são alterados feito um organismo mudando de fuso horário. Não deveria estar ali naquela hora, mas está. Não deveria sentir fome às três da tarde, mas sente. Não deveria sentir sono ao meio-dia, mas. Pensamentos matinais são um abrupto mas com ponto-final a seguir. Perigosíssimos. A tal ponto que há o risco de não continuar depois do que deveria ser curva amena, mas tornou-se abismo.

E só vamos em frente porque começam a acontecer as urgências. Enquanto a manhã dispara e o telefone toca e a campainha soa e as crianças precisam sair para a escola e o relógio de ponto ou qualquer coisa assim — incluindo os outros, sobretudo os outros — não esperam. Nada espera, ninguém. Você lava o rosto, finge não ter visto coisa alguma. É possível também ligar o rádio. Um banho frio, o café feito uma bofetada. Há pensamentos-matinais-despenteados que põem o rabo entre as pernas e dão o fora, mas outros — mulheres de Nelson Rodrigues — adoram apanhar.

Quanto mais você bate, mais ele arreganha os dentes e intica para apanhar mais. Isso magnetiza e atrai outros pensamentos, ainda mais descabelados e até então escondidos. Se era nome, vem um sobrenome. Se era rosto, vem a textura da pele, um cheiro, um jeito de olhar. Se fantasia, ganha cor, e assim por diante. Pensamentos desse tipo são quase sempre proustianos: loucos pelo velho e bom tempo perdido.

Soluções mais grosseiras, há. Como papel higiênico, amarrotá-los, jogá-los na privada, dar a descarga. Acontece que descargas, não quero parecer alarmista, às vezes entopem. E devolvem justamente aquilo que deveriam levar embora, num comportamento que é o avesso daquele para o qual foram programadas. Ah o avesso, esse o problema. Pensamentos assim são um sintoma do avesso. E o avesso é a superfície correspondente, igual em tamanho e forma, a tudo aquilo que você considera o direito. Conhecer de-cor-e-salteado o direito absolutamente não dá direito a conhecer também o outro lado. Sinto muito, mas ele sempre está lá. Incógnito, invisível, inviável. In, enfim.

Por ser assim, desordena-se. Pelas manhãs, mesmo que o de-manhã de alguns aconteça às seis da tarde. Mesmo nos calvos, a cabeleira abstrata pode amanhecer tão eriçada quanto a da Medusa. E se em vez de veneno as cobras tiverem mel? Tudo depende não me pergunte de quê. Só sei que deve-se olhar direito nos olhos deles, tocar sem nojo nem medo suas mãos cobertas de musgo, teias de aranha. Passar num susto a mão pelos cabelos, reais ou não. Deve-se sempre com a doçura e paciência possíveis nestas situações, mudar rápido de assunto. Ou cair no poço.

Caio Fernando Abreu, "Pequenas epifanias"