terça-feira, abril 30

Cardápio de bom dia


Gosto não se discute

Adam De Boer
Um amante de literatura sabe do seguinte: o livro te escolhe, não o contrário. Claro que o bibliófilo, amador que seja, pode ter um título em mente ao entrar em um lugar. No entanto, esta é uma ideia já plantava e, àquela altura, criava raízes e se fincava no solo consciente. Para alguns, como eu, entrar em uma livraria, olhar ao redor, e deparar-se com uma obra desconhecida, que, sabe-se lá, atraiu sua atenção, roubou-lhe uns minutos e, ao fim, lançou de sedução para conquistar seu interesse é irresistível. Por essas e outras, sou um amante inveterado de sebos. Nunca sei no que vou esbarrar, somente que conhecerei algo novo. Um bônus do livro usado é as alterações provocadas entre a(s) primeira(s) leitura(s). Grifos, rabiscos, dedicatórias, quaisquer acréscimos inesperados fornecem um sabor especial àquela edição. Às vezes, essas narrativas aleatórias têm o potencial de superar a principal em si. Ou, para ser modesto, ser uma equivalente.

Encontrei uma coletânea de crônicas de Cecília Meireles. “Escolha o seu sonho” é uma reunião de material lido em programas nas rádios do Ministério da Cultura e Educação e Roquette Pinto. O volume que devorei e, enquanto escrevo, descansa em meu colo, é a 3ª edição, impressa em 1968. Além de curiosidades como o logotipo antigo da editora, a cereja do bolo ficou uma “crítica” escrita por, provavelmente, um de seus primeiros usuários. Tirei uma foto e mostrei aos amigos. Porém, sou paranoico e sei da efemeridade das redes sociais. Assim, transcrevo-a de modo a que apreciem seu julgamento:

“Acabei de ler este livro. Não gostei, pois são crônicas e eu não estou acostumada a lê-las; gostei de algumas que aqui citarei:

Arte de ser feliz Camelô caprichado História do bem-te-vi Tarde de sábado O sino e o sono Brinquedos incendiados

O resto das crônicas eram chatas, algumas incompreensíveis e com um fim maluco. Em resumo só o li o livro por causa da prova de português senão nunca teria o lido.” Em seguida, apagado, mas ainda com a marcação legível: “Colegio Cruzeiro 10/ 6/ 69”.

A partir daí, uma trama paralela ganha forma: Quem será esta pessoa? Provavelmente, pela letra e o texto, deveria ser uma criança na época. Estaria ainda viva? Teria tido sua paixão pela leitura despertada por outra obra, ou abandonado de vez o hábito (exceto quando os estudos demandassem)? Será que a autora, essa Cecília, poderia ter conquistado sua hesitante leitora em outro trabalho? Ou teria essa mudado de ideia após algum tempo, relendo a obra e concluído que não era tão ruim quanto na primeira impressão?

Minha empatia, tal como minha curiosidade, se aguça por ela. Quando estudante do ensino médio, li obras de José de Alencar por obrigações escolares. Naqueles anos, sonhei com a ideia de criar um grêmio em repúdio aos livros deste autor. Anos passaram, aptidões se desenvolveram, encarei mais uma vez meu nêmesis romântico. Para minha surpresa, apreciei e seus livros passaram a constar no meu catálogo particular por mérito próprio. Claro que nem todos que redescobrirão um escrito irão rever suas posições. Talvez aquilo nunca fora da alçada. Inclusive, pode ter falhado no teste do tempo, que os mais velhos temem mais do que qualquer prova de português.

Enquanto isso, na contracapa, Cecília Meireles sorri, o que correspondo. Os mistérios da leitura e dos leitores… Sinto-me renovado ao perceber que, independentemente da forma, as histórias se multiplicam. Renovo numa partezinha íntima minha fé, porque ainda há esperança enquanto tivermos uma narrativa a ser escrita. Pois sei que não acabou. Tudo vive além do que imaginamos se mantivermos atentos. Da humanidade à uma resenha literária de meio século. (Aliás, parabéns!)

Sebo para passar o dia

Leakey’s, um sebo em Inverness (Escócia)

Assim começa o livro...

Atravesso ruas de terrenos baldios, o mato ressequido, sem cruzar vivalma, apenas um cavalo magro observa a tarde com olhos tristonhos. Ao longe, distingo a praça da Estação, a anarquia da cidade. Nos pontos de ônibus, mulheres se abanam com leques improvisados, a testa merejada, os corpos lassos. Dos paralelepípedos alastra uma caloria que escalda as pernas e empena a paisagem. Entro numa lanchonete, peço uma garrafa de água, destampo, bebo metade num único gole. Pergunto o preço, enfio a mão no bolso de trás da calça, tiro a carteira, vejo de relance a fotografia do Nico, pago, saio, as mãos tremem, meu corpo galeia, os pés afundam nas águas febris do brejo em Rodeiro, aparo o quadril numa banca abarrotada de cuecas, “Compre duas, leve três!”, grita o rapaz, quase o derrubo, me desculpo, continuo andando, sonâmbulo, esbarrando em coisas e pessoas, negaceado por uns, xingado por outros, e me vejo na avenida Astolfo Dutra, onde desabo num banco de cimento, à sombra dos oitis. Entorno o que resta da água na cabeça. Limpo os óculos nas fraldas da camisa. Dezesseis e vinte e sete no relógio digital. Trinta e um graus. Tiro a carteira do bolso de trás da calça, pego o retrato do Nicolau. Ele tem o quê, oito anos?, nove, talvez. Cabelos pretíssimos, olhão azul, impaciente para retomar a farra. Quem bateu a foto? Eu? A Marília? Na época, Marília tocava uma lojinha de quinquilharias na rua do Orfanato, mas, insatisfeita, pensava em mudar de ramo, prospectava oportunidades, como dizia. Acabou, tempos depois, gerente de um bufê de festas e eventos, e, mais tarde, abriu seu próprio negócio, um bufê infantil. Reponho o retrato na carteira, guardo no bolso de trás da calça. Marília já me traía? Provavelmente sim. Um palerma, ela disse, com desprezo, Mas a culpa é tua, acusou, transparecendo o sotaque que sobressaía quando nervosa, cheio de erres fracos e es fortes. Você me deixava sozinha a semana inteira, quando voltava, só reclamação, Estou cansado, Prefiro ficar em casa. E sempre amargurado, infeliz, nada pra você estava bom. Uma pessoa não sobrevive assim, na escuridão, precisa de luz, alegria, divertimento. No começo, me consumia, o remorso, a carolice, então me desdobrava pra agradar, até pierogi, que você gosta tanto, fazia, mas pouco a pouco a tua apatia me irritou, e passei a te cornear de raiva, de vingança por ter casado com um homem tão, tão estúpido, que não percebia nada à sua volta. Na verdade, primeiro, ela buscou me difamar, fingindo ciúmes, falando que eu devia patrocinar amantes pelas cidades por onde passava, e inventava enredos e imaginava tramas, infernizando os sábados e domingos. Mas as histórias, ela mesma enxergava, não prosperavam, porque eu nem prazo, nem oportunidade, nem desejo tinha de avolumar confusão já tamanha. As brigas, os bate-bocas, os desentendimentos, de tão constantes, me internavam cada vez mais no trabalho, e regressar para São Paulo, sexta-feira, tornou-se um sacrifício. Numa tarde, quente como essa, um sábado de dezembro, doze, Marília pediu para levá-la a um motel, coisa que nunca havíamos feito até então. Mesmo sem entender, pensei quem sabe uma boa ideia, um recomeço, o Natal andava perto, poderíamos nos reconciliar, acabar com aquela bobageira de discussões inúteis, desgastantes e infindáveis, que prejudicavam a razão do Nicolau, cada vez mais arredio e agressivo. Pegamos o carro e escolhemos aleatoriamente um lugar que pareceu limpo e discreto, na avenida Sapopemba. Inspecionei o quarto, televisão enorme, jacuzzi, cama imensa, lustre. Marília disse, Senta, Oséias, temos muito que conversar. Sem me olhar, ela confessou, calma e firme, a sua infidelidade, concluindo que nos últimos cinco anos possuía um amante fixo e que, apaixonados, haviam, enfim, decidido ambos se separar de seus cônjuges, palavra que ela usou, gaguejando, após uma ligeira pausa, cônjuges, para se casarem. Eu observava Marília refletida nos vários espelhos que forravam o cômodo, de tal forma que semelhava que ela, irreal, atuava em um palco ou num filme, e que meramente repetia palavras escritas por outra pessoa, e que encenávamos, ela e eu, o fim da relação de um casal que não éramos nós. Mas então ela levantou, pegou a bolsa. Perguntei, atônito, Por quê que você me trouxe aqui, Marília? Ela respondeu, Porque não sabia qual seria sua reação. E, antes de ir, batendo a porta, disse, Coloquei suas coisas no porta-mala, por favor, não ponha mais os pés lá em casa. Eu me joguei na cama e, nocauteado, dormi um sono sem sonhos. Acordei desorientado, tarde da noite, acertei a diária, peguei o carro, e o conduzi madrugada adentro pela Raposo Tavares, até que, fatigado, encostei no estacionamento de um posto de gasolina e o domingo me acordou batucando pingos de chuva no parabrisa. Encontrava-me perto de Ourinhos, uma mala cheia de roupas sujas e uma caixa de papelão com outras mudas, limpas, e alguns poucos objetos pessoais, catados às pressas. Nos encontramos pessoalmente uma única vez depois, no dia de assinar os papéis do divórcio. Ela me pareceu meio atarantada, como se arrependida... Saí sem nada, só com o carro que usava para trabalhar, pois abri mão do apartamento, único bem comum que possuíamos. Nunca mais vi nem ela, nem o Nicolau. Ele não me procurou, não o procurei. Ele não tinha uma boa relação comigo – e nem com a Marília, na verdade. Estava com quase vinte anos e nem o secundário completou. Vivia trancado em casa, mexendo com computador, fumando sem parar, e consumindo droga, acho. De vez em quando, desaparecia uma semana inteira. Regressava imundo, e, por mais que apertássemos, nada revelava sobre o sumiço. Eu passava dias fora, labutando, e, quando chegava, deparava com aquele pandemônio. De primeiro, ele baixava a cabeça, enfiava o rabo entre as pernas, quando eu o advertia. Mas, na medida em que encorpava, começou a me enfrentar. Uma vez, chegou a me empurrar e noutra a levantar a mão fechada, pronta para desferir um murro, e só não chegou às vias de fato porque virei as costas. Mas daí para a frente a coisa deteriorou. Fomos afastando um do outro, a ponto de na época que separamos, a Marília e eu, já não fazia ideia dos caminhos dele, que continuava alternando tempos se enclausurando na fedentina do quarto, caixas de pizza e garrafas de Coca-Cola espalhadas pelo chão, e tempos ausente, no mundo. O que terá acontecido com ele? Tanta esperança! Vencíamos noites em claro listando profissões que ele poderia trilhar, fantasiando momentos felizes juntos quando ele crescesse... Nicolau... Niquim... Nico... Para quê? Minha bexiga dói. Levanto. Cruzo a avenida e caminho pelo passeio, esbarrando em gentes suadas e esbaforidas. O sol machuca minha calva. Preciso comprar um boné. Entro na lanchonete em que estive ontem, na rua da Estação, dirijo-me ao banheiro, mas o rapaz por trás do balcão me intercepta, “Vai aonde?”. “Ao mictório”, respondo. “Tem que consumir alguma coisa”, ele diz. “Aqui não é banheiro público”, completa, melindrado. Não tenho fome, nem sede. Vasculho a estufa, esfirra, pão de queijo, empada, coxinha, quibe, rissole, croquete, enroladinho de salsicha... Sinto engulhos. “Um refresco e um... pastel... Tem pastel?”. “A gente frita na hora”. “Certo, um refresco e um pastel”. “Refresco de quê?”, ele pergunta. “Qualquer um... Pode ser... esse vermelho...”. “E o pastel? Carne ou queijo?”. “Queijo... pode ser de queijo...”. Corro para o banheiro fétido, evitando afundar os tênis na poça amarela que esparrama pelo piso caracachento. Prendo a respiração, urino. Da torneira da minúscula pia encardida não jorra uma gota sequer de água. Sento numa mesa. Barulhentos, os circuladores de ar instalados nos quatro ângulos espalham o mormaço.

Próximo da porta, o homem, o mesmo de ontem, tulipa de cerveja pela metade, observa entretido o movimento da rua. O rapaz me entrega o copo de plástico finíssimo e o pratinho de papelão com um pastel encharcado de gordura. Bebo um gole daquele líquido doce e aguado, que desce arranhando a garganta, tão gelado. Com guardanapos embolados nos dedos, tomo o pastel, mordo a beirada, o vapor queima meus lábios. Merda! O homem solitário vira o rosto, me cumprimenta, solene, toma mais um gole da cerveja que julgo agora morna, e volta a espiar o desfile monótono de carros e pessoas apressadas. Mordo o lado oposto do pastel, onde descubro um pedaço de queijo borrachento, sem gosto, e engulo um pouco mais daquele refresco açucarado. Mosquitos giram e giram e pousam sobre o plástico transparente, ensebado, que recobre as toalhas.

domingo, abril 28

Começa o dia

Sara Sánchez

O patrão Vasques

J. Seward Johnson, Jr. 
O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupação desconhecida em que não fala bem a alguém. Sim, mas por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?

O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a saudade que sei que hei-de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram génios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anónima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triunfos que não haveriam de ser meus.

O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo — estatura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável — chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão.

Será, talvez, porque não tenho próximo de mim figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas vezes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio ou quase creio que algures, em uma vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.
Fernando Pessoa, "Livro do desassossego"

sábado, abril 27

Café da manhã


Os livros que nunca lemos

Não é difícil imaginar que Umberto Eco tenha muitos livros. E que, se improvavelmente viver num T3, decerto terá, como muitos de nós, estantes no hall, nos corredores, nos quartos, na sala de jantar.

Já não me lembro onde conta Eco a história de uma senhora que o visitou e, surpresa com tanta “livralhada”, lhe perguntou: «O Sr. Professor já leu estes livros todos?». O Sr. Professor ter-lhe-á respondido (cito de cor): «Não, estes chegaram só ontem, são para ler até ao fim de semana. Na segunda-feira vem o camião da Faculdade para os levar e trazer novo carregamento.»

Eco pretende ilustrar o óbvio: que os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que nunca chegará. Sugere, a propósito, uma irónica e bizarra teoria mágica: tocando os nossos livros que não lemos, ao procurar outros ou a arrumá-los, algo da sua natureza parece “passar” para nós… através dos dedos. E quem sabe se não estará certo? Como ele, também eu conheço confusamente cada um dos livros que nunca li, mas acho que a coisa tem mais que ver com o coração do que com os dedos.

Nicolas Francescon
Há uns meses mandei pintar a casa. Ora, para pintar as paredes com estantes, os pintores retiraram delas todos os livros (todos não, pois quando, em pânico, descobri o que acontecera, instruí-os para que, a partir daí, pintassem apenas as paredes sem estantes) voltando, depois, a colocá-los no lugar. Eu disse “no lugar”? Deveria ter dito apenas “voltando a colocá-los” pois o lugar perdeu-se para sempre. Agora, quando procuro um livro, onde antes o encontrava de olhos fechados, dou sempre com outro.

É assim que venho assustadamente descobrindo a imensa quantidade de livros que tenho em casa, alguns deles desde a juventude, e que nunca li nem provavelmente lerei. Assim, quando um dia destes, fui ao sítio onde sempre estiveram as Poesias Completas de Frei Luis de Léon, dei com O Capital de Karl Marx; e quando procurava as Gramáticas da Criação, encontrei um pouco de tudo, lido e não lido, das Folhas Caídas a Godel, Escher e Bach e de A Cantora Careca ao Memorial do Convento. Menos o livro de Steiner, que tive de voltar a comprar.

Quando um dia, numa entrevista, perguntaram a Borges quem era ele, respondeu que era todos os livros que lera. Eu quero crer que somos não só os livros que lemos mas igualmente os que não lemos. Cavaco Silva, por exemplo, é certamente não só os livros de economia que leu mas também o provável facto, dedutível de umas célebres declarações suas, de nunca ter lido Os Lusíadas. Já o caso de Passos Coelho é mais complexo, pois, além de ser os livros que terá lido e os que não leu, é igualmente os livros, como A Fenomenologia do Ser, de Sartre, que leu mas que o seu autor nunca escreveu.

E do mesmo modo, eu serei tanto a Ilíada, Os Cantos, The Waste Land, ou até o Joanica- Puff, que li vezes sem conta, como o facto de nunca ter lido O Capitalou de só ter lido menos de metade do Ulysses; a Viagem ao Fim da Noite e não A Montanha Mágica; a Torah, boa parte do Zohar, o Tao-te-King, a Bíblia e não o Corão; Assim falava Zaratrustra e A Gaia Ciência e não (infeliz de mim que já o comecei inutilmente várias vezes) o Tratactus; Borges praticamente todo e Beckett (deveria ter vergonha de confessá-lo) muito pouco; Jules Laforgue e Charles Cros mais do que (outra confissão vergonhosa) Rimbaud; e por aí fora que a biblioteca é vasta e a vida é breve.

Às vezes pergunto-me quem raio seria eu se, em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li. Provavelmente cruzar-me-ia comigo e não me reconheceria.
Manuel António Pina

Livraria de camping


Assim começa o livro...

No início de julho, ao entardecer, sob um calor intenso, um jovem saiu do cubículo que sublocava na travessa S. e, lentamente, como se estivesse indeciso, seguiu pela rua na direção da ponte K.

Por sorte, escapou de encontrar sua senhoria na escada. Seu cubículo ficava logo abaixo do telhado de um prédio alto de cinco andares e mais parecia um armário do que um apartamento. A senhoria de quem ele alugava o cubículo, com direito a almoço e arrumadeira, morava um andar abaixo, num apartamento individual, e, toda vez que ele descia para a rua, não podia deixar de passar na frente da porta da cozinha da senhoria, quase sempre aberta para os degraus da escada. E, toda vez que passava ali, o jovem experimentava uma espécie de sensação mórbida e acovardada, que lhe dava vergonha e deixava seu rosto contraído. Ele estava atolado em dívidas com a senhoria e temia encontrá-la.

Não que fosse tão covarde e intimidado: muito pelo contrário; porém já fazia algum tempo que andava num estado de tensão e irritabilidade semelhante à hipocondria. Mergulhava em si mesmo e se isolava de todos a tal ponto que temia encontrar qualquer pessoa, não só a senhoria. Vivia esmagado pela pobreza; mas ultimamente até a situação de penúria tinha deixado de ser um peso. Não cuidava mais das questões do dia a dia e não queria estudar. No fundo, não tinha medo de senhoria nenhuma, muito menos do que ela pudesse estar tramando contra ele. Mas parar na escada, escutar uma porção de absurdos sobre todas aquelas futilidades vergonhosas, com as quais ele nada tinha a ver, todas aquelas impertinências sobre pagamentos, ameaças, reclamações, e ainda ter, ele mesmo, de desconversar, se esquivar, se desculpar, mentir — não, isso não, era melhor esgueirar-se pela escada como um gato e escapulir sorrateiro, para que ninguém o visse.

No entanto, dessa vez, ao sair para a rua, até ele ficou espantado com seu medo de encontrar a credora.

“Estou querendo me meter numa história dessas e, ao mesmo tempo, tenho medo de bobagens assim!”, pensou, com um sorriso estranho. — “Hum… sim… tudo está ao alcance das mãos do homem, mas ele deixa tudo escapar debaixo de seu nariz, pura e simplesmente por covardia… isso já é um axioma… Curioso, o que é que as pessoas mais temem? Um novo passo, uma palavra nova e própria, é isso que elas temem acima de tudo… De resto, já estou tagarelando demais. É porque fico tagarelando que não faço nada. Aliás, pode ser também assim: é porque não faço nada que fico tagarelando. Foi no último mês que aprendi a tagarelar, deitado dias inteiros no meu canto, pensando… com a cabeça nas nuvens. E então, agora, eu estou andando para fazer o quê? Será que sou capaz disso? Será que isso é a sério? Não tem nada de sério. É uma fantasia que eu mesmo inventei; uma brincadeira! Sim, na certa não passa de uma brincadeira!”

Na rua, fazia um calor tremendo, além do clima abafado, da multidão e, por todo lado, havia a cal, a madeira, os tijolos, a poeira e aquele mau cheiro peculiar do verão, tão conhecido de todos os moradores de Petersburgo que não têm condições de alugar uma casa de veraneio — tudo isso junto, e tudo ao mesmo tempo, afetava de modo detestável os nervos do jovem, já tão abalados desde antes. O mau cheiro insuportável das tabernas, que naquela parte da cidade são especialmente numerosas, e os bêbados, que passavam toda hora, apesar de ser dia útil, rematavam o colorido triste e repulsivo do quadro. O sentimento da mais profunda repugnância faiscou por um instante nas feições finas do jovem. Aliás, ele era extraordinariamente bonito, com lindos olhos escuros, cabelo castanho-escuro, estatura acima da mediana, magro e esbelto. No entanto, logo caiu numa compenetração profunda, ou, melhor dizendo, numa espécie de alheamento, caminhava já sem perceber aquilo que o rodeava e chegava até a não ter vontade de perceber nada. Apenas de vez em quando murmurava alguma coisa para si, por força de seu costume de falar em monólogos, costume que agora, no íntimo, ele admitia existir. No mesmo instante, tomou consciência de que seus pensamentos às vezes se embaralhavam e de que ele estava muito fraco: fazia dois dias que não comia quase nada.

Estava tão malvestido que qualquer outra pessoa, mesmo habituada a roupas ruins, se envergonharia de sair à rua, de dia, em tais andrajos. No entanto, aquele bairro era do tipo em que é difícil encontrar alguém de terno. A proximidade da praça Sennaia, a abundância de certos estabelecimentos afamados e a população formada sobretudo de artesãos e operários, que se comprimiam naquelas ruas e travessas centrais de Petersburgo, de vez em quando coloriam o panorama geral com tais personagens que seria até estranho alguém se admirar de encontrar ali uma pessoa fora do comum. Porém na alma do jovem já se havia acumulado um desprezo tão cruel que, apesar de toda sua delicadeza, às vezes muito juvenil, aquilo que lhe dava menos vergonha era andar na rua em andrajos. Ao encontrar certos conhecidos ou antigos camaradas que ele não gostava nem um pouco de ver, a história era outra… Porém, quando um bêbado, que naquele momento estava sendo levado pela rua numa carroça enorme, não se sabia por que nem para onde, puxada por um imenso cavalo de tração, gritou para ele de repente, ao passar: “Ei, você aí, seu chapeleiro alemão!” — e berrou com toda a força, apontando para ele com a mão erguida —, o jovem parou de repente e, num gesto convulsivo, agarrou o chapéu. Era um chapéu alto, redondo, da marca Zimmerman [1], mas já muito surrado, todo encardido, cheio de buracos e manchas, sem abas, com o canto mais nojento caído para o lado. Porém o que o dominou não foi a vergonha e sim outro sentimento, semelhante a um susto.

“Eu já sabia!”, murmurou, confuso. “Eu bem que tinha pensado! Isso é que é pior! Porque aí vem uma bobagem qualquer, a besteira mais tola, e pode estragar o plano todo! Sim, o chapéu chama muito a atenção… É ridículo e por isso chama a atenção… Meus andrajos precisam mesmo é de um boné, nem que seja velho e igual a uma panqueca, e não esta aberração. Ninguém pode andar com isto, veem logo a uma versta [2] de distância, vão lembrar… isso é o principal, depois vão lembrar e pronto, é uma prova. Aqui, é preciso ser o mais discreto possível… Os detalhes, os detalhes são o principal!… São detalhes assim que podem estragar tudo, e de uma vez por todas…”

Ele não tinha de andar muito; sabia até quantos passos eram, do portão da sua casa até lá: exatamente setecentos e trinta. Certa vez, ele contou, muito perdido em devaneios. Naquela ocasião, ele mesmo ainda não acreditava naqueles sonhos e apenas se irritava com sua audácia hedionda, mas sedutora. Agora, um mês depois, estava começando a encarar a questão de outro modo e, apesar de todos os monólogos exasperantes sobre sua própria impotência e hesitação, de alguma forma, e até a contragosto, ele se habituou a considerar o sonho “hediondo” como um empreendimento, embora ele mesmo ainda não acreditasse naquilo. Agora, ele estava indo fazer um ensaio de seu empreendimento e, a cada passo, sua inquietação aumentava, se tornava mais forte.

terça-feira, abril 23

Dica para passear


Cotidiano


Tornar habituais as formas de cultura, como acontece com os livros que se leem, se releem, e entram no quotidiano da nossa vida
Miguel Torga,. "Diário V"

Uso múltiplo


Eles publicaram os próprios livros e descobriram não precisar de editoras

John Kennedy Toole ganhou o prêmio Pulitzer de ficção de 1981 por A Confederacy of Dunces (Uma confraria de tolos), mas não pôde celebrar. Doze anos antes, o autor do livro que se tornaria uma referência de Nova Orleans tinha tirado a própria vida, sem conseguir lidar com a rejeição do editor Robert Gottlieb a sua obra. A trágica história de Toole, conhecida porque sua mãe persistiu anos depois no projeto de publicar o livro, soa distante numa época em que é possível publicar livros por conta própria sem qualquer custo — e quando fazê-lo pode ser até melhor (e mais rentável) do que aguardar por editoras que possivelmente não teriam tempo ou dinheiro para sequer avaliá-los.

Lisa Falzon
A economista Eliana Cardoso, já com dois livros de ficção publicados pela Companhia das Letras, chegou a buscar uma editora para publicar o terceiro, Dama de paus. Diante da negativa, partiu para o Kindle Direct Publishing (KDP), plataforma de autopublicação da Amazon que chegou ao Brasil em 2012. Meses depois, a escritora recebeu a notícia de que tinha ganhado o concurso anual promovido pela gigante do varejo desde 2016 no Brasil. "É um luxo ter o livro revisto e editado por uma grande editora. Por outro lado, a autopublicação através do KDP é uma saída espetacular", celebra Cardoso, que embolsou o prêmio de 30.000 reais e verá seu livro impresso pela editora Nova Fronteira. Ela conta que o aplicativo de edição disponibilizado pela Amazon é muito fácil de usar, que o processo não apresenta nenhum custo para o autor e que cabe a ele definir o valor a ser cobrando, do qual ele pode ficar com até 70% do preço de capa — as editoras costumam repassar cerca de 10% para seus autores por livros físicos e 25% pelos digitais.

O negócio é tão bom que até escritores de grande sucesso, como Paulo Coelho, publicam seus livros pela plataforma. Enquanto a Companhia das Letras distribui seus livros físicos no Brasil, os e-books são vendidos diretamente pela Amazon em todo o mundo (com exceção dos EUA), o que lhe permite ficar com 35% do valor de cada volume, já que a venda não é exclusiva da Amazon. Gerente para o KDP da Amazon no Brasil, Talita Taliberti destaca que outros sucessos literários, como Mário Sergio Cortella e Augusto Cury, também já publicaram pela ferramenta, e diz que da lista dos 100 livros mais vendidos pela empresa no Brasil, em torno de 30 costumam ser de autopublicação.

Entre eles dificilmente não estará um livro de Nana Pauvolih, uma professora que trocou as aulas de história pelo sucesso literário (e financeiro) em 2013. Em seu segundo mês de KDP, a autora de literatura erótica já ganhava mais do que nos seus dois empregos como professora, nas redes pública e privada do Rio de Janeiro. O sucesso de livros como A coleira e de séries como Redenção acabou chamando a atenção da agente literária Luciana Villas-Boas, que fez a ponte da autora com editoras como Rocco e Planeta, que hoje publicam suas obras. Sete anos depois de começar a publicar suas histórias em blogs, Pauvolih conta 29 livros, 25 deles autopublicados, e mais de 100.000 e-books vendidos — além disso, a mencionada série Redenção está para virar minissérie da Rede Globo.

Autores de sucesso como Nana Pauvolih podem ganhar até 20.000 reais mensais, com picos de 50.000 reais em um bom mês de lançamento, mas precisam se empenhar na divulgação das próprias obras, ressalva Janice Diniz, outra autora independente de sucesso. Ex-professora de português, a autora de livros sobre histórias com cowboys como Casamento sem amor calcula em cerca de 48 os seus títulos publicados. "Publico mês sim, mês não. Só no último ano [2018], quando tive de escrever para a Happer Collins, que eu fiquei três meses sem publicar", conta.

Hoje, Diniz publica pelo selo Harlequin da editora, com quem tem contrato até 2020, mas diz que vive bem desde 2015 apenas com os rendimentos da autopublicação. “Peguei todas as fases do preconceitos. De autora independente, em relação à literatura erótica e ao livro digital”, lembra a autora, que começou sua carreira literária pagando para imprimir seus livros. "Era inviável. Não tinha lucros, só gastos. E eu ainda comecei com uma trilogia. Tinha de manter um estoque dos dois primeiros e ainda pagar pela impressão do terceiro", conta. Ela estava quase desistindo de se tornar escritora quando surgiu a possibilidade de publicar em meio digital.

Hoje, Janice Diniz conta com o auxílio de três amigas para administrar os cerca de 100 grupos de Facebook utilizados para divulgar sua obra, que, para ela, está acomodada confortavelmente na plataforma de publicação da Amazon. A escritora diz que até tentou utilizar outra opção, a Kobo Writing Life, mas o fato de os valores das vendas serem repassados aos autores apenas duas vezes por ano a afastou — já o KDP repassa os valores mensalmente e ainda remunera os autores por página lida, a partir de um fundo global que hoje gira em torno de 88 milhões de reais. A eficiência da Amazon, cujo serviço de venda direta chegou ao Brasil neste ano, contrasta com a crise do mercado editorial brasileiro.

No ano passado, Saraiva e Livraria Cultura, duas da maiores redes de varejo de livros do país pediram recuperação judicial — a Cultura, aliás, é a representante da plataforma Kobo no Brasil. O mesmo ocorreu com a distribuidora BookPartners. Além disso, a rede de livrarias Laselva, que tinha pedido recuperação judicial em 2013, enfim decretou falência em 2018. A crise obviamente reverbera nas editoras, que não recebem os pagamentos devidos. Quando pediu recuperação judicial, a Saraiva informou à Justiça ter uma dívida de 675 milhões de reais.

Foi nesse contexto que a editora Cosac Naify fechou as portas melancolicamente em 2015. Um ano depois, em mais uma demonstração de força, a Amazon comprou parte do passivo, de 230.000 livros, e poupou a falida editora do fardo de estocá-los, mas não do desconforto de lidar com as notícias de que a outra parte do acervo teria de ser destruída e transformada em aparas.

Ao lamentar em seu blog os "dias mais difíceis" para os livros no Brasil, o presidente do Grupo Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, escreveu em novembro do ano passado que "as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos" por conta da crise nas redes de livrarias. "Passei por um dos piores momentos da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive que demitir seis funcionários que faziam parte da Companhia há tempos", escreveu o editor, acrescentando linhas depois: "Numa reunião para prestar esclarecimentos sobre aquele triste e inédito acontecimento, uma funcionária me perguntou se as demissões se limitariam àquelas seis. Com sinceridade e a voz embargada, disse que não tinha como garantir".

Numa situação dessas, não é de se espantar que um autor estreante como J. L. Amaral tenha buscado refúgio na autopublicação. Após trabalhar 20 anos como bancário, esse publicitário por formação resolveu parar tudo para tentar uma carreira literária. Em janeiro de 2017, enviou seu Entre pontos para cinco editoras. Em setembro daquele ano, como não tinha recebido nenhuma resposta, resolveu publicar o livro por conta própria, no KDP. Três meses depois, estava entre os finalistas do Prêmio Kindle daquele ano. “Enquanto o mercado não se estabilizar, vai ser difícil ter um espaço à sombra”, constata o autor, que publicou Borboletas azuis pela mesma plataforma no ano passado e, enquanto escreve o terceiro livro, tenta aprimorar sua formação como escritor e roteirista.

Em contraste com as redes físicas de livros, os ambientes virtuais têm celebrado crescimento. A Amazon não revela seus números, mas só no prêmio promovido neste ano foram 1.500 livros inscritos. O Clube de Leitores, que permite publicar livros digitais e físicos, diz lançar 40 obras por dia em sua plataforma e celebrou no ano passado um crescimento de 30%, como registra o portal Publishnews. A Bibliomundi, outra plataforma digital, publicou 931 livros no ano passado e diz que dobrou seus registros de autores independentes. São poucos, contudo, os que conseguem andar com as próprias pernas no mundo da literatura. Eliana Cardoso, que ganhou o último Prêmio Kindle, confessa expectativa quando à relação que pode vir a desenvolver com a Nova Fronteira após a publicação de Dama de paus, mas seu próximo projeto literário, um livro infantil, já tem destino certo: o Kindle Direct Publishing. “A Nova Fronteira não está trabalhando nesta área, e o KDP oferece um aplicativo só para livros infantis”.

segunda-feira, abril 22

Mais luz!


Quando Yeats, Philip K. Dick e Borges usaram o tarô para escrever seus livros

Philip K. Dick escreveu O homem do castelo alto, sua ucronia sobre uma versão nazista dos Estados Unidos, jogando moedas na mesa. Na época, andava entusiasmado com o I-Ching, jogo divinatório chinês baseado na sorte. O que o desesperado escritor em busca de respostas para sua necessária e constante tomada de decisões — na época Dick ainda escrevia mais de um romance, às vezes três ou quatro, por ano — fazia era lançar moedas ao ar e verificar depois se tinham saído duas ou três caras (o que equivalia a um sim para o que tivesse em mente) ou duas ou três coroas (o que equivalia a um não). Sabe-se que estava obcecado pelo assunto porque até os personagens do romance — todos eles — não fazem outra coisa além de consultar suas moedas antes de tomar qualquer decisão. E o escritor que o representa como recurso narrativo também.

O último livro de Sheila Heti, o fascinante ensaio-crônica Maternidade (Companhia das Letras), começa com uma conversa da própria autora com suas três moedas. Ela lhe faz perguntas, as moedas respondem: “Este livro é uma boa ideia?”/”Sim”/“Estou com dor de cabeça. Estou muito cansada. Deveria ter dormido a siesta. Mas se tivesse deitado estaria de pior humor, não é?”/”Não”.

“Com o I-Ching você só dialoga, com o tarô, além disso, consegue encontrar um relato em meio a toda a confusão”, diz Jessa Crispin (Lincoln, Kansas, 1978), escritora, viajante e taróloga, diante das cartas sobre a mesa de seu baralho pessoal, especialmente desenhadas para acabar um dia nas mãos de Trent Reznor (Nine Inch Nails). “Aconteceu no meu caso e continua acontecendo. Não é só que oferecem o como, o quê, o quando e o onde, no caso de você ir buscar orientação artística, mas ajudam a dar sentido ao caos. Quando comecei a usá-las, de fato, me contaram uma história nova sobre minha vida”, diz.

Para Leonora Carrington, pintora surrealista, as cartas agiam como espelhos. Mostravam algo que você não tinha sido capaz de ver. Sylvia Plath as usou para compor pelo menos os três primeiros poemas de Ariel, estabelecendo por meio deles o que os iniciados chamam de jogada inacabada, e William Butler Yeats usou várias vezes o imaginário do tarô em sua obra — deem uma olhada em Blood and the moon —, porque sempre foi atraído pelo lado oculto: foi inclusive membro de uma ordem secreta. Pamela Lynson Travers expõe em seu livro Mary Poppins, infinitamente mais obscuro que a versão cinematográfica, boa parte de sua paixão pelo inexplicável. O tarô para Travers, porém, nunca foi algo criativo: consultava tarólogas toda vez que tinha que tomar uma decisão importante — adotou seu filho porque assim lhe disseram as cartas. Para não falar de Shirley Jackson e Jorge Luis Borges. A lista de escritores —e não só escritores, Brian Eno desenhou seu próprio baralho — que flertaram com o tarô é infinita. Por quê?

“Talvez seja a necessidade de narrativa, ou que todos estão abertos ao intuitivo”, responde Crispin. Pois diante da tomada de qualquer decisão, pode-se dizer que o artista utiliza a sorte não só para ganhar confiança ou segurança —“é como se dissesse: Estou fazendo o que é certo”, declara a escritora — mas também para encontrar um sentido. “A ideia não é usar as cartas para predizer o futuro, mas para deslocar a atenção de certa parte de nossa vida para tentar compreender o que acontece conosco e por quê”, explica. Vejamos um exemplo: a própria Crispin.

Ela está prestes a publicar um ensaio, El tarot creativo (Alpha Decay), transformado em espetáculo em La Casa Encendida, que aborda o assunto e que é ao mesmo tempo uma confissão de até que ponto sua vida está sujeita, diariamente, ao que dizem as cartas. Crispin é impulsiva. Há alguns meses conheceu um cara em Chicago. Ia só passar dois dias na cidade e não queria sair com ninguém, mas as cartas disseram que saísse. Duas semanas depois, tinham se casado. Mostra a mão, aponta o anel. E tudo porque toda vez que saía com ele a carta que o baralho lhe mostrava era O Louco. E isso queria dizer que podia perder a cabeça, que tudo daria certo se perdesse a cabeça. Então perdeu.

Crispin, autora do também brilhante Why I am not a feminist (sem tradução para o português), começou a brincar com o tarô ainda adolescente, mas só depois de completar 28 anos é que começou a dominá-lo. Foi quando o transformou em algo como seu melhor amigo, alguém com quem dialoga — ela pergunta, as cartas, como as moedas, respondem, e não com um sim ou com um não mas com uma imagem que em cada caso pode significar algo diferente— e cujo diálogo lhe dá sentido ao que acontece e ao que faz.

“Todo dia tiro uma carta que explica em parte o que vai me acontecer”, diz. Mas não condiciona o fato de saber que pode ser um fiasco — vamos imaginar que a carta seja O Diabo — a que acabe sendo? “Sim, claro, mas acredito que é isso mesmo”. O Carro, por exemplo, diz, é a carta mais “cabal” de todas. “Se um dia sai O carro, quer dizer que vou estar focada”. Você sempre leva em consideração? Ri. “Não é fácil”, diz. Digamos que leva em consideração quando o que dizem se encaixa em seu próprio relato em andamento. “O importante é sempre seguir seu instinto”, conclui, não sem antes recordar que continua não sendo a única escritora hoje em dia que se orienta pelo tarô, pois “quase todos os meus clientes são artistas”.

domingo, abril 21

Leitor esportista

Elena Feliu

Como cultivar um hábito de leitura diário

Em fevereiro de 2018, quando o foguete Falcon Heavy do bilionário americano Elon Musk deixou a Terra, carregava algo inusitado.

No lugar de equipamentos ou astronautas, o empresário dono da SpaceX enviou seu carro - um Tesla Roadster vermelho-cereja - ao espaço, com um boneco vestido em traje espacial sentado no banco do motorista.

Mas a verdadeira surpresa estava no porta-luvas. Ali, imortalizado em vidro gravado, havia uma cópia da série de livros da Fundação Isaac Asimov.

A saga de ficção científica se passa em um império galáctico em ruínas, 50 mil anos no futuro. Foi ela que instigou o interesse de Musk por viagens espaciais quando ainda era adolescente. Agora, flutuará pelo nosso Sistema Solar pelos próximos 10 milhões de anos.

Kiezzahn
Esse é o poder dos livros. Do software fictício "Terra", descrito no romance Snow Crash, de Neal Stephenson, que inspiraria o Google Earth, até um conto sobre telefones inteligentes que pode ter levado à criação da internet, a leitura plantou sementes nas cabeças de inúmeros inovadores.

O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama disse que a leitura o ensinou a ser quem ele é e no que acredita.

Mesmo que você não tenha ambições tão grandes, ler livros pode dar um impulso à sua carreira. Foi comprovado que o hábito pode reduzir o estresse, impulsionar o funcionamento do cérebro e até mesmo melhorar a empatia.

Isso sem mencionar os benefícios óbvios que todas as informações contidas em suas páginas podem trazer.

Confira abaixo um guia com os benefícios comprovados da leitura de livros - e saiba como se juntar ao clube de pessoas que fazem isso por pelo menos uma hora todos os dias.

Seja empático. Embora o mundo dos negócios normalmente deixe de lado a inteligência emocional em detrimento de características como autoconfiança e capacidade de tomar decisões importantes, nos últimos anos a empatia tem sido amplamente considerada como uma habilidade importante.

De acordo com um estudo de 2016 da consultoria de recursos humanos Development Dimensions International, líderes mais empáticos tendem a ser 40% mais eficientes.

Em 2013, o psicólogo social David Kidd debruçou-se sobre quais atividades poderiam levar a uma maior empatia. "Como leitor de longa data, ocorreu-me que a ficção é um meio em que tradicionalmente nos envolvemos com as experiências únicas de outras pessoas", diz ele.

Junto com um colega da New School for Social Research em Nova York, Kidd decidiu investigar se a leitura pode melhorar a chamada teoria da mente - a capacidade de entender que temos pensamentos e desejos diferentes. Não é o mesmo que a empatia, mas acredita-se que as duas habilidades estejam intimamente ligadas.

Para isso, pediram aos participantes do estudo que lessem trechos de livros renomados da "ficção literária" - como Grandes Esperanças de Charles Dickens - ou ficção popular, como thrillers policiais e romances. Outros foram convidados a ler um livro de não-ficção ou não lerem nada. Posteriormente, os pesquisadores analisaram se a teoria da mente dos participantes havia melhorado.

A ideia era de que a escrita realmente "boa", como a de obras premiadas, tende a apresentar um mundo de personagens mais realistas, que facilita a imersão do leitor - uma espécie de campo de treinamento para aprimorar sua compreensão sobre outras pessoas.

Por outro lado, a dita ficção popular foi tirada de uma antologia, sem o mesmo endosso dos críticos. Os pesquisadores imaginavam que essa escrita provavelmente seria de baixa qualidade e talvez com personagens unidimensionais que agem de maneira mais previsível.

Os resultados foram impressionantes: os leitores da ficção literária endossada pelos críticos obtiveram as maiores pontuações em todos os testes comparados com aqueles que leram ficção popular, não-ficção ou nada.

E, embora os pesquisadores não tenham medido diretamente o impacto da teoria da mente no mundo real, Kidd diz ser praticamente certo chegar à conclusão de que os leitores regulares experimentam um crescimento de empatia. "A maioria das pessoas, se souber como os outros estão se sentindo, usará essa informação de maneira positiva."

Além de melhorar sua capacidade de se relacionar com colegas e subordinados, a empatia pode levar a reuniões e colaborações mais produtivas. "Existem pesquisas que mostram que pessoas tendem a ser mais produtivas em grupos nos quais se sentem livres para expressar discordância - especialmente em se tratando de tarefas criativas", diz Kidd. "Acho que é um exemplo de que uma maior sensibilidade e interesse nas experiências de outras pessoas podem ser úteis no local de trabalho."

Agora que você talvez esteja mais convencido dos benefícios da leitura, lembre-se disso: de acordo com uma pesquisa de 2017 com 1.875 pessoas realizada pelo Ofcom, órgão regulador de mídia do Reino Unido, o adulto britânico gasta em média duas horas e 49 minutos no celular todos os dias. Para atingir a meta diária de uma hora com livros, a maioria das pessoas teria de reduzir o tempo de tela em um terço.

Assim, seja você um colecionador natural - o tipo de pessoa que gosta de acumular conhecimento em sua estante de livros na esperança de que um dia esse conteúdo se infiltre organicamente no seu cérebro - ou um exagerador presunçoso - o tipo de leitor que gosta de evangelizar sobre seus livros favoritos por horas, tendo apenas terminado a primeira página -, conheça algumas dicas de pessoas que podem se chamar orgulhosamente de leitores ávidos.

Clifford Harper
1 - Leia por querer, não por obrigação

Cristina Chipurici aprendeu a ler sozinha quando tinha quatro anos de idade. Quando foi tomada por sua nova paixão, ela diz ter devorado todos os livros na casa de seus pais. Mas, então, algo aconteceu. "Quando entrei para a escola primária e a leitura tornou-se obrigatória, desenvolvi uma repulsa por causa de um professor que tínhamos, e isso me fez não querer ler nunca mais", diz.

Além de melhorar sua capacidade de se relacionar com colegas e funcionários, a empatia pode levar a reuniões e colaborações mais produtivas.

Essa aversão aos livros durou até os 20 anos, quando Chipurici começou a se dar conta lentamente do que estava perdendo - aonde as pessoas que liam tinham chegado e todas as informações disponíveis nos livros que poderiam ter feito diferença em sua carreira.

Ela reaprendeu a amar a leitura e acabou criando o The CEO Library, um site sobre os livros que moldaram as carreiras das pessoas mais bem-sucedidas do mundo, de autores a políticos, passando por magnatas do investimento.

"Diversos fatores causaram essa mudança. Desde mentores, passando pela decisão de investir em um curso online no qual descobri um sistema educacional diferente, até ler os artigos do blog de Ryan Holiday (ele é autor de vários livros sobre a cultura de marketing e foi diretor de marketing da marca de moda American Apparel), em que sempre fala sobre como os livros o ajudaram, e provavelmente muitos outros fatores de que nem eu mesmo sei", diz Chipurici.

Se há uma moral nessa história, é ler porque você quer - e nunca permitir que isso se torne uma obrigação.

2 - Encontre um formato de leitura que funcione para você

Embora o estereótipo de um bibliófilo seja alguém que ande por aí com dezenas de livros de papel e cuide de suas cópias de primeira edição como se fossem preciosos artefatos antigos, não precisa ser sempre assim.

"Demoro duas horas para chegar ao trabalho", diz Kidd. "Não é o ideal, mas tenho muito tempo para ler." Quando está indo e voltando para o trabalho - não dirigindo! - ele descobriu ser muito mais conveniente ler em uma tela, como a de um celular, em vez de carregar um livro o tempo todo. Ao mesmo tempo, quando está lendo não-ficção, que tende a ser uma leitura mais desafiadora, diz preferir audiolivros.

3 - Não defina metas irreais

Acompanhar os hábitos dos CEOs pode ser uma tarefa intimidadora. Dois nomes proeminentes que foram entrevistados pela The CEO Library são Fabrice Grinda, um empreendedor de tecnologia francês que começou com US$ 100 mil (R$ 384 mil) de dívida de cartão de crédito e já ganhou mais de US$ 300 milhões vendendo sua participação em investimentos bem-sucedidos, e Naveen Jain, um empreendedor e filantropo indiano que fundou a Moon Express - uma startup do Vale do Silício que pretende explorar recursos naturais na Lua. O primeiro lê 100 livros por ano; o segundo gosta de acordar às quatro da manhã para ler livros por três horas.

Mas não precisa ser assim. Andra Zaharia é freelancer e trabalha com produção de conteúdo, tem um podcast e se define como uma leitora apaixonada. Sua principal dica é evitar expectativas irreais e metas impossíveis.

"Incorporar a leitura ao seu dia a dia, acho, é uma questão de começar de baixo", diz ela. Zaharia sugere começar perguntando aos amigos por recomendações de livros e lendo apenas uma ou duas páginas. "Você não precisa definir uma meta de 60 livros por ano. Os livros digitais, como no Kindle, podem ser mais fáceis na verdade, pois você não consegue ver o número de páginas restantes."
4 - Se você está realmente tendo dificuldade, tente a 'Regra de 50'

Essa regra geral vai ajudá-lo a decidir quando desistir de um livro. Se você está propenso a abandonar impiedosamente uma leitura na página quatro ou preso com volumes gigantes que aprendeu a odiar, a ideia é ler 50 páginas e depois decidir se o livro traz - nas palavras de Marie Kondo - "faíscas de alegria". Se isso não acontecer, desista.

A estratégia foi inventada pela autora, bibliotecária e crítica literária Nancy Pearl e explicada em seu livro Book Lust (Desejo de Livro, em tradução livre). A regra é a seguinte: se você tiver até 50 anos, leia as primeiras 50 páginas para decidir se vale a pena ou não continuar a leitura. Se você tiver mais do que 50, subtraia a sua idade de 100: o resultado será o número de páginas que você deve ler antes de desistir de um livro. Por exemplo: se você tiver 70 anos, foque nas 30 primeiras páginas.

A lógica de Pearl é de que, na medida em que envelhecemos, a vida se torna curta demais para ler livros ruins.

Deixar seu celular de lado por apenas uma hora por dia e substituir suas mensagens de texto por um livro podem aumentar seus níveis de empatia e torná-lo mais produtivo. Se as pessoas mais ocupadas e bem-sucedidas do mundo conseguem, você também pode.

Quem sabe o que você fará com todo esse conhecimento e inspiração extra? Você pode até acabar fundando sua própria empresa aeroespacial e enviando seu carro ao espaço.

sábado, abril 20

O que ler?


Pequeno príncipe

Não se pode ainda estimar a extensão do mal que causou à sociedade carioca a edição brasileira de "Le petit prince". Faz dez anos, ou mais, entretanto, pode-se dizer, como se diz após as tragédias, que é impossível fazer-se uma avaliação dos males provocados.

Esse cronista viveu a época e área em que o livro foi lançado. Viu e ouviu tudo. Pode, portanto, comunicar, que aquela sociedade não estava preparada para o "petit prince". Ao menos, no quilômetro compreendido entre o Vogue e o Copacabana Palace, não estava. Entendam-me. Nem todos eram especialmente incultos ou, de um modo geral, retardados. Apenas, não estavam preparados física e emocionalmente, para aquele livrinho tão fácil de ler e de portar. Tão Fácil (aí a hecatombe) de citar.

O cronista que vos escreve viveu os dias e a terra do evento "Pequeno príncipe". Ouviu as citações, todas as noites, nas bocas de mil mulheres. Mil, não. Umas cento e tantas. Pobres senhoras, estarrecidas, perplexas, pois achavam de comprovar que as raposas falavam. La Fontaine estava coberto de razão. E a raposa de Exupéry dizia coisas lindas.

O cronista que vos escreve sentiu o hálito e viu, nas réstias de luz, a saliva das citações noturnas de Exupéry. Era no Vogue. Sempre a raposa. A raposa, que falava e dizia muito, que era preciso, antes, cativar. Aquelas cento e tantas mulheres desamparadas, a dizer que era preciso cativar. Cento e tantas mulheres sem pai e sem mãe, o verbo infinitivo, degradando minhas intenções, dilacerando meus nervos. Cativar. Cativar. Cativar. Cativar.

– Você precisa me cativar.

Mas decorar os aposentos de seus filhos, com os desenhos de Exupéry. Isto durou, em clamor crescente, até 1955, quando o Vogue pegou fogo. Foram três anos de delírio coletivo, dos quais o cronista foi testemunha... As mulheres dizendo muito:

– Se você chegar às quatro, desde às três e meia, eu me preparo etc.

Todos os males humanos se moderam ou se retiram. Todavia, a angústia, a insegurança e a febre terçã, hoje estampadas em certos rostos antigos e fatigados, tristes e mendigos, são decorrências do lançamento, no Brasil, há cerca de dez anos, de "O pequeno príncipe". Degenerescente, como um estrôncio. Mas, Saint-Exupéry nada tem a ver com isto.
Antônio Maria

Para começar bem o dia


O vergalho


Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – "Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!


– Meu senhor! gemia o outro.

– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque
Prudêncio – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

– E, sim, nhonhô.


– Fez-te alguma coisa?

– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

– Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a cavar cá dentro uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera.
Vejam as sutilezas do maroto! Machado de Assis, "Memórias póstumas de Brás Cubas"

sexta-feira, abril 19

O construtor


Muda de vida ou muda de poema

Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço. A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar. E a poesia não entra nesse material único - a vida de uma pessoa - como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal. 

Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema.

Gonçalo M. Tavares, "A Perna Esquerda de Paris"'

quinta-feira, abril 18

Diversão garantida

 David Pintor

Gaibéus

Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.

O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso.
Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão. Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.

A ceifa, porém, não parava, e ainda bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também.

E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.

Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.

Vencidos pelo torpor os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.

Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.

Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atulhados de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.

Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.

Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!

-Auga!... Auga!... - Gritam os rapazes aguadeiros.

Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.

Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.

Talvez por isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes recordassem a sua condição de alugadas.

quarta-feira, abril 17

Mesa posta

Eugenia Antipova

O pastel e a crise

Quando a crise convida ao pessimismo ou ameaça descambar na depressão, está na hora de ler. Poesia ou prosa, tanto faz.

Verdadeiro sábio era o Rubem Braga. Tinha com a vida uma relação direta, sem intermediação intelectual. Houvesse o que houvesse, trazia no coração uma medida de equilíbrio que era um dom de nascença, mas era também fruto do aprendizado que só a experiência dá. No pequeno mundo do cotidiano, sabia como ninguém identificar as boas coisas da vida. E assim viveu até o último instante.


Certa vez, no auge de uma crise, crivada de discursos e de diagnósticos, o Rubem estava de olho nas frutas da estação. Madrugador, cedinho já sabia das coisas. Quando o largo horizonte nacional andava borrascoso, ele se punha a par das nuvens negras, mas não mantinha o olhar fixo no pé-direito alto da crise. Baixava o olhar ao rodapé, pois o sabor do Brasil está também no rés do chão. Num dia de greve geral, inquietações no ar, tudo fechado, o Rubem me telefonou: "Vamos ao Bar Luiz, na rua da Carioca? Vamos ver a crise de perto".

E lá fomos. O bar estava aberto e o chope, esplêndido. Começamos por um preto duplo, que a sede era forte. Depois mais um, agora louro. E outro. Claro que não faltou o salsichão com bastante mostarda. Calados, mas vorazes, cumpríamos um rito. Alguém por perto disse que a Vila Militar tinha descido com os tanques. Saímos dali e fomos a um sebo. O Rubem comprou Xanã, do Carlos Lacerda, com dedicatória. Depois pegamos o carro e voltamos pelo aterro, onde se pode exercer o direito da livre eructação. Tinha sido um perfeito programa cultural. E sem nenhum incentivo do governo.

Vi agora na televisão que o maracujá está em baixa e me lembrei do velho Braga. Nem tudo está perdido. Fui à feira e comprei também dois suculentos abacaxis. Caem bem nesta hora de atribulação nacional. Só falta agora descobrir um bom pastel de palmito na zona norte. Se o Rubem estivesse aí, lá iríamos nós atrás da deleitosa descoberta. Depois, de cabeça erguida, enfrentaríamos a crise e até o caos.
Otto Lara Resende

terça-feira, abril 16

Mundo encantado

O conto pode ser uma forma de, diariamente, se ter acesso ao que a literatura faz: um transporte para outro mundo e um encontro com a individualidade
Lídia Jorge

Uma das entradas do Paraíso


Ouvir histórias

Ora, direis, ouvir histórias... mas é o que proponho neste mês que celebra o livro infantil. Internacionalmente, pelo aniversário de Andersen dia 2. No Brasil, porque Monteiro Lobato nasceu a 18 de abril.

Narrativas falsas criam fake news, espalhando mentiras como se fossem reais. Mas o que vale é o contrário: a ficção que finge ser mentira para revelar a verdade.

Há poucos dias, um deputado leitor disse que a prioridade do MEC vinha sendo lutar contra moinhos de vento. Outro viu que o ministro estava no bico do corvo.
Amy Huntington 

Os bons livros lidos desde cedo abrem o pensamento para julgar melhor. Sejam originais ou recontos de clássicos. Sobretudo se chegam pelas mãos de adultos capazes de orientar uma leitura crítica e fecunda. Referências para toda a vida. Ajudam a se mover entre mentirosos como Alexandre, o Barão de Münchausen ou Pinóquio, sabendo em cada caso do que se deve rir ou ter pena. E aquilo que não dá para engolir, como faz o menino que anuncia que o rei está nu, e espertalhões querem enganar todo o reino.

O convívio com a leitura de ficção deixa marcas. Indaga “Para que essa boca tão grande?” Mostra que um dia mudará a resposta do espelho à pergunta de quem é a mais bela de todas. Ensina que há um limite além do qual a carruagem suntuosa volta a ser abóbora cercada de ratos. E que quem finge ser Robin Hood pode apenas estar deslumbrado com as riquezas da caverna de Ali Babá.

Leitores de histórias sabem que há tesouros a descobrir num texto, mais camadas do que as exigidas pela simples reação imediata de um clique . Já encontraram Alice sem rumo, sem saber para onde ir, mas capaz de enfrentar uma Rainha de Copas que insistia em mandar cortar cabeças a torto e a direito, dando primeiro a sentença e só depois levando a julgamento. Entre os contemporâneos, deliciam-se com Ruth Rocha, seu “Reizinho mandão” e seu “Rei que não sabia de nada” — para não falar em sua “História de rabos presos”.

Nada como boas histórias para expor fábulas, mitos e lendas.