quarta-feira, agosto 31

'Marcianos'

 


Os diferentes estilos

Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possíveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjetivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia e sofrimento e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujo arredores falta água há vários meses, sem falar nas freqüentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?

Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já não bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Exa., com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas apreciadas blagues.

Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos eram azuis, olhos para a festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte, este rio um pouco profundo caluniado de morte.

Estilo complexo de Édipo - Onde andará a mãezinha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?

Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a Estrela d´Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla sinuosa e murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata de bolinhas azuis e morreu!

Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento: Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever, mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste, ah, se eu soubesse escrever.

Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sach´s legalíssimo, e dormi tarde, com o Tony. Pois logo hoje minha filha que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Tereza, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que ia te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que tenho horror de gente morta.

Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo concretista - Dead dead man man mexe mexe Mensch Mensch MENSCHEIT.

Estilo didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; c) teológico. Policial: o homem em sociedade, o humano: homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma de Deus: epidenômeno. Muito simples, como os senhores veem.
Paulo Mendes Campos

terça-feira, agosto 30

Autênticos 'ratos' em ação

 


Censura na Bitínia

Já aludi em outro lugar à pálida vida cultural deste país, ainda baseada em mecenatismos e entregue ao interesse de pessoas endinheiradas — ou simplesmente a profissionais e artistas, especialistas e técnicos, todos muito bem pagos.

Particularmente interessante é a solução que foi proposta, ou melhor, que foi espontaneamente imposta ao problema da censura. No final da década passada, a “necessidade” de censura assistiu, por vários motivos, a um notável crescimento na Bitínia; em poucos anos os escritórios centrais existentes tiveram que dobrar seus organismos, estabelecendo filiais periféricas em todas ou quase todas as capitais de província. Havia ainda uma dificuldade crescente em recrutar o pessoal necessário: em primeiro lugar, porque o ofício de censor, como se sabe, é difícil e delicado, pois demanda uma preparação específica, difícil de ser encontrada até mesmo em pessoas altamente qualificadas noutras áreas; além disso, porque o exercício da censura, pelo que mostram estatísticas recentes, não é isento de perigos.

Não quero fazer referência aqui aos riscos de represálias imediatas, que a eficiente polícia bitinense reduziu a quase nada. Trata-se de outra coisa: acurados estudos de medicina do trabalho desenvolvidos na região lançaram luz sobre uma forma específica de deformidade profissional, bastante molesta e aparentemente irreversível, que foi denominada por seu descobridor de “distimia paroxística” ou “morbo de Gowelius”. Ela se manifesta por um quadro clínico inicialmente vago e mal definido; depois, com o passar dos anos, por vários distúrbios relacionados aos sentidos (diplopia, distúrbios do olfato e da audição, reatividade excessiva a, por exemplo, algumas cores ou sabores); e frequentemente resulta, após remissões e recaídas, em graves anomalias e perversões psíquicas.

Como consequência, não obstante os elevados salários que eram oferecidos, o número de candidatos aos concursos estatais decresceu rapidamente, e a carga de trabalho dos funcionários de carreira aumentou proporcionalmente até atingir patamares nunca vistos. As matérias pendentes (copiões, partituras, manuscritos, obras figurativas, esboços de manifestos) se acumularam a tal ponto nos escritórios da censura que literalmente bloquearam não só os arquivos destinados a esse fim, mas também os vestíbulos, os corredores, os locais reservados aos serviços de limpeza. Registrou-se o caso de um chefe de seção que foi sepultado por um desabamento e morreu sufocado antes que chegassem os socorros.

Num primeiro momento, remediou-se o caso com a mecanização. Cada sede foi dotada de modernos aparelhos eletrônicos: sendo eu um leigo na matéria, não poderia descrever com exatidão o seu funcionamento, mas me disseram que a memória magnética desses instrumentos continha três listas distintas de vocábulos — hints, plots, topics — e módulos de referência. Os da primeira lista, caso fossem encontrados, eram automaticamente eliminados da obra examinada, os da segunda implicavam a recusa integral da mesma; os da terceira, a prisão imediata e o enforcamento do autor e do editor.

Os resultados foram ótimos no que diz respeito à quantidade de trabalho que podia ser absorvida (em poucos dias os locais dos escritórios foram desocupados), mas muito inferiores quanto ao aspecto qualitativo. Houve casos de lapsos clamorosos: “passou”, foi publicado e vendido com sucesso estrepitoso o Diário de uma periquita, de Claire Efrern, obra de duvidoso valor literário e abertamente imoral, cuja autora, com artifícios absolutamente elementares e transparentes, havia mascarado, mediante alusões e perífrases, todos os pontos lesivos da moral comum do momento. Por outro lado, assistiu-se ao doloroso caso Tuttle: o coronel Tuttle, ilustre crítico e historiador militar, teve que subir ao patíbulo porque num dos seus volumes sobre a campanha no Cáucaso a palavra “regimento” foi alterada para “regipento”, devido a uma gralha banal, em que no entanto o centro de censura automatizada de Issarvan percebeu uma alusão obscena. Ao mesmo destino trágico escapou milagrosamente o autor de um modesto manual de criação de gado, que teve meios de fugir para o exterior e recorrer ao Conselho de Estado antes que a sentença fosse executada.

Esses três episódios, todos eles notórios, foram seguidos de numerosíssimos outros, noticiados de boca em boca, mas oficialmente ignorados porque (obviamente) sua divulgação veio a cair nas malhas da censura. Disso resultou uma situação de crise, com deserção quase total das forças culturais do país — situação que, apesar de algumas tímidas tentativas de ruptura, permanece até hoje.

Porém, nessas últimas semanas, correu uma notícia que promete alguma esperança. Um fisiologista, cujo nome foi mantido em segredo, revelou ao cabo de um amplo ciclo de experiências alguns novos aspectos da psicologia dos animais domésticos, desencadeando uma grande polêmica. Esses animais, se submetidos a um condicionamento específico, seriam capazes não só de aprender trabalhos fáceis de transporte e de organização, mas também de fazer autênticas escolhas.

Trata-se certamente de um campo vastíssimo e fascinante, de possibilidades praticamente ilimitadas; em suma, desde que foi publicado na imprensa bitinense até o momento em que escrevo, o trabalho de censura, que prejudica o cérebro humano — e que as máquinas despacham de maneira muito rígida —, poderia ser confiado com vantagens a animais devidamente adestrados. Bem observada, a desconcertante notícia não tem em si nada de absurdo — já que, em última análise, trata-se apenas de uma escolha.

É curioso que, para essa tarefa, os mamíferos mais próximos do homem tenham sido considerados menos aptos. Submetidos ao processo de condicionamento, cães, macacos e cavalos se demonstraram maus juízes, precisamente porque muito inteligentes e sensíveis; segundo o estudioso anônimo, eles se comportam de modo muito passional, reagem de maneira imprevisível a mínimos estímulos estranhos, mas inevitáveis em qualquer ambiente de trabalho; demonstram estranhas preferências, talvez congênitas e ainda inexplicáveis, por algumas categorias mentais; até sua memória é incontrolável e excessiva; enfim, eles revelam nessas circunstâncias um esprit de finesse que, para fins de censura, é sem dúvida pernicioso.

Todavia resultados surpreendentes foram obtidos com a galinha doméstica, tanto que quatro escritórios experimentais foram sabidamente confiados a equipes de galináceos, sob a supervisão e o controle de funcionários de comprovada experiência. Além de serem facilmente encontradas e de terem um custo moderado, tanto em investimento inicial quanto em manutenção, as galinhas são capazes de escolhas rápidas e seguras, limitam-se escrupulosamente aos esquemas mentais que lhes são impostos e, haja vista o seu caráter frio e tranquilo e a sua memória evanescente, não são sujeitas a perturbações.

É opinião comum nesses ambientes que, dentro de poucos anos, o método será estendido a todos os departamentos de censura do país.

Verificado pela censura:


Primo Levi, "71 contos de Primo Levi"

Operário da construção


 

Os livros

Em lugar de honra da minha casa, na sala de visitas, para que todos soubessem, estavam a Encyclopaedia, a Biblioteca Internacional de Obras Célebres, o atlas francês. Mais o mapa da Europa, coberto de alfinetes. Mas o pai encontrou recursos para fazer uma assinatura de uma coleção de livros que chegavam mensalmente. Eram brochuras horríveis, em papel jornal. As páginas vinham dobradas. A gente tinha de ir lendo com uma faca na mão, para abrir as páginas, o que me irritava. Eram os clássicos da literatura: Guy de Maupassant, Émile Zola, Flaubert, Camilo Castelo Branco, José de Alencar. Lembro-me do prazer que me deu a leitura de Tartarin de Tarascon (Alphonse Daudet, 1872), um tipo parecido com dom Quixote, aventureiro, que vivia se metendo com trapalhadas hilariantes. Lendo a correspondência de Albert Schweitzer, há alguns anos, encontrei uma carta em que ele se referia às risadas que dava quando uma tia lhe lia o dito livro.

Que doideira me fez ler todos aqueles livros? Li e esqueci. A única exceção é o Tartarin de Tarascon. Se me perguntarem qual é a estória do livro Amor de perdição de Camilo Castelo Branco, tenho de confessar: não sei. Será que os livros são como as pessoas que amamos sem entender? É possível.

Meu amor pelos livros começou com o Jeca Tatuzinho, que decorei. Depois foi a figura do Robinson Crusoé, olhando apavorado para as pegadas na areia. Depois foi “O melro”. Depois foram as figuras das locomotivas, na Encyclopaedia. Depois foi a Astolfina nos lendo Histórias do arco da velha. Depois foi o Livro de Lili. Foi nele que aprendi a ler, com a dona Clotilde. Decorei a primeira lição. No alto da página, a figura de uma menina, a Lili. “Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce. Vocês gostam de doce? Eu gosto tanto de doce.” Depois a estória da loja de brinquedos, as bonecas adormecidas nas caixas. Depois foram as aulas de leitura. Delícia pura. Aula que aguardávamos com ansiedade. A professora lia para nós. Viagem ao céu, As caçadas de Pedrinho, As reinações de Narizinho, O Saci, Heidi, Poliana... Ficávamos em silêncio absoluto. Não havia provas. A leitura era só prazer. Eu tinha inveja da professora, que sabia ler tão bem. Que bom seria se lêssemos como ela! Se lêssemos como ela, poderíamos levar o prazer da leitura para casa.

Havia uma coleção de livros que eu cobiçava: O tesouro da juventude. Quem tinha o tesouro da juventude era a dona Lilisa, aquela que ganhou 250 gramas de açúcar. Quando a visitávamos, eu deixava os adultos conversando na sala de visitas e ia ler o Tesouro. Era um tipo de enciclopédia onde se encontrava de tudo. Um bufê de prazeres. Em qualquer página que se abrisse lá se encontrava um assombro. Mas era muito caro. Meu pai não podia. Nunca tive o Tesouro. Como nunca tive nem velocípede nem bicicleta. Até hoje não sei andar de bicicleta.

Quem sabe, diz: “É só montar e sair pedalando”. Eu sei fazer isso. De qualquer forma, andar de bicicleta para mim é como montar um cavalo bravo. Nunca sei que ideias ela tem, nunca sei o que ela vai fazer comigo. Agora é tarde demais para aprender. Não posso tomar o risco de quebrar a bacia... Mas se eu encontrar um O tesouro da juventude num sebo eu compro, embora tudo o que está lá deva estar ultrapassado. Compro para realizar um desejo infantil. Mas, se encontrar uma bicicleta, eu não compro.
Rubem Alves, "O velho que acordou menino"

segunda-feira, agosto 29

Cidade dos sonhos

 


Um livro e sua lição

Gary Thomas Crump
Poucos livros são como este livro. Aparentemente, igual a muitos. Mas se o abrires em qualquer página, encontrarás de cada vez um texto diferente.


Ouvi que na Ásia há um livro com a mesma propriedade, e que nos Estados Unidos existiu outro, comprado a um dervixe, mas que, pelo manuseio constante, não apresenta a singularidade: ficou um livro como os demais, unívoco.

O exemplar que possuo, não deixo que ninguém o consulte. Zelo por sua integridade, e só de longe em longe me animo a folheá-lo. E é sempre um assombro.

Não o comprei. Achei-o no porão de uma casa onde só havia trastes abandonados e teias de aranha. Ao descobrir sua inacreditável raridade, fiquei trêmulo e guardei o segredo até dos mais íntimos.

Este livro extraordinário me explicou o sentido do mundo, que varia sempre e não se subordina a qualquer filosofia. Explicação que não explica, pois sendo infinitas as variações, qualquer delas só dura o tempo de leitura de uma página, ou meia.

Não posso continuar guardando o volume, e não sei o que fazer dele. Tenho medo de abri-lo; medo de rasgá-lo; medo de que o furtem; medo de ler nele uma sentença aniquiladora, a última sentença, depois da qual o mundo deixaria de ser vário e, portanto, de existir.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"

sábado, agosto 27

Se recolhendo para o fim de semana

 


O estrangeiro

 Alessandra Vitelli
— Quem mais amas, homem enigmático, responde: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?

— Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

— Teus amigos? — Você emprega uma palavra cujo sentido até hoje desconheço.

— Tua pátria? — Ignoro a que latitude está situada.

— A beleza? — Eu gostaria de amá-la, deusa e imortal.

— O ouro? — Odeio-o tanto quanto você a Deus.

— Que amas então, extraordinário estrangeiro? — Amo as nuvens... as nuvens que passam ao longe... as nuvens maravilhosas!

Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"

Os idiomas que sobreviveram ao colapso das civilizações

Há mais de 2.000 anos, em um templo na cidade de Borsippa, na antiga Mesopotâmia (onde hoje fica o Iraque), um estudante fazia sua lição de casa. Seu nome era Nabu-kusurshu e ele estava estudando para ser o cervejeiro do templo.

Suas atribuições incluíam não só a produção de cerveja para oferendas religiosas, mas também aprender a manter registros administrativos em tábuas de argila em escrita cuneiforme, além de preservar os hinos antigos fazendo cópias das tábuas já desgastadas.

Essas tarefas diárias, aliadas à sua devoção à produção de cerveja, à escrita e ao conhecimento, fizeram com que ele se tornasse parte de um legado literário extraordinariamente duradouro.

A escrita cuneiforme já existia há cerca de 3.000 anos quando Nabu-kusurshu empunhou pela primeira vez seu estilete de junco. Ela foi inventada pelos sumérios, que a usaram inicialmente para registrar as rações de alimentos — e também de cerveja — pagas aos trabalhadores ou fornecidas para os templos.

Tábua cuneiforme bilíngue, com palavras em idioma sumério e acadiano. Os escribas escreveram essas listas para garantir que as tábuas sumérias, mais antigas, pudessem ser sempre compreendidas

Ao longo do tempo, os textos sumérios ficaram mais complexos. Eles registravam belos mitos e canções, incluindo uma em celebração à deusa da cerveja, Ninkasi, e seu habilidoso uso do "barril de fermentação, que faz um som agradável".

Quando o idioma sumério começou a ser gradualmente abandonado e substituído pelo acadiano, mais moderno, os escribas inteligentemente escreveram longas listas de símbolos nos dois idiomas, criando essencialmente os primeiros dicionários, para garantir que a sabedoria das tábuas mais antigas fosse sempre compreendida.

A geração de Nabu-kusurshu — que teria falado acadiano ou talvez aramaico na sua vida diária — foi uma das últimas a usar a escrita cuneiforme. Mas ele provavelmente acreditava que era apenas um jovem escritor comum em uma longa linhagem de escritores, preservando a escrita cuneiforme para muitas outras gerações, sob o olhar benevolente de Nabu, o deus da escrita e "escriba do universo".

Ele copiava fielmente as tábuas antigas, anotando, por exemplo, que um sinal sumério pronunciado como "u" podia significar presente de casamento, ladrão ou nádegas. Ele escrevia nas tábuas que fazia as cópias "para seu próprio estudo", talvez como treino ou trabalho escolar, e as colocava no templo como oferenda.

"Ele está aprendendo a escrever, aprendendo essas listas, entre outras coisas, e dedicando seu trabalho ao deus Nabu e ao templo", afirma Jay Crisostomo, professor de civilizações e idiomas do Oriente Próximo da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

Crisostomo estudou profundamente as tábuas de Nabu-kusurshu. E foram suas humildes listas, silenciosamente escritas na sombra de um enorme zigurate — um templo em forma de pirâmide com degraus —, que fizeram com que Nabu-kusurshu se tornasse imortal.

Muitos de nós sonhamos em escrever uma mensagem que possa ser lida daqui a milhares de anos, talvez para compartilhar poesia com as gerações futuras ou para avisá-los sobre os riscos escondidos nos resíduos nucleares.

Ocorre que este não é um mero exercício intelectual. Houve, no passado, pessoas que criaram mensagens imortais — ou pelo menos, que duraram por muito tempo — com sucesso. E algumas dessas pessoas, como Nabu-kusurshu, chegaram a nos deixar uma chave para civilizações inteiras.

No século 19, os estudiosos lutavam para decifrar um idioma misterioso encontrado em tábuas carbonizadas e rachadas, nas ruínas de templos e palácios da Mesopotâmia cobertos por areia: o sumério, completamente perdido e esquecido.

A maior dificuldade desse desafio foi o fato de que o sumério não tem relação com nenhum outro idioma conhecido. Mas os estudiosos haviam recentemente decifrado o acadiano, graças às suas similaridades com idiomas vivos, como o árabe e o hebraico. E também encontraram as listas de palavras em sumério e acadiano elaboradas em argila pelos antigos escribas, que podiam ser usadas como dicionário.

Entre elas, um conjunto de tábuas se destacou pela sua preservação impecável e "boa e distinta escrita": as tábuas de Nabu-kusurshu. Elas foram encontradas perto de tijolos e pilares quebrados quando os arqueólogos abriram os salões, há muito tempo enterrados, do templo de Borsippa, perto de 1880.

"Muito do que sabemos sobre os sumérios deve-se a esse homem, Nabu-kusurshu", afirma Crisostomo. Ele acredita que o jovem escriba, que teria cerca de 20 anos de idade, tenha produzido quase um quarto de todas as cópias conhecidas de uma lista de sinais bilíngues que foi fundamental para decifrar o idioma.

Para dar uma ideia da sua importância, suas listas ajudaram a decifrar registros de três milênios de história dos sumérios, incluindo seu uso pioneiro da roda e da hora com 60 minutos.

Ao todo, há mais de um milhão de textos em escrita cuneiforme do antigo Oriente Próximo em diferentes idiomas, que hoje podem ser lidos graças às indicações imortais deixadas por escribas comuns, como Nabu-kusurshu.

O que ajudou essas mensagens a sobreviver e preservar seu significado por tanto tempo? E como podemos usar esse conhecimento para preparar nossas próprias mensagens para os leitores do futuro?

A maior parte das ideias e dos pensamentos expressos pelos seres humanos raramente sobrevive ao momento presente. A história é repleta de referências ao que se perdeu — não apenas mensagens individuais, mas idiomas inteiros. E, com eles, foram-se as recordações das sociedades que os falavam.

Quem se lembra do gútio, um idioma do mundo antigo, por exemplo?

Milhares de anos atrás, alguém deu a um tradutor gútio um pagamento de cerveja, segundo um recibo sumério de argila. E isso é tudo o que sabemos sobre os gútios. Todos os sentimentos do povo gútio, tudo o que eles queriam contar para o mundo — tudo foi perdido. Permanecem apenas algumas descrições pouco elogiosas, feitas pelos sumérios.

Por outro lado, existem mensagens que resistiram a séculos de guerras, invasões e desastres naturais. Embora os espanhóis tenham destruído montanhas de livros dos maias, por exemplo, sua escrita sobreviveu em raros manuscritos em cascas de árvores e monumentos de pedra, mantendo vivos os mitos e as profecias antigas.

Qual o segredo dessa extraordinária longevidade literária? Fiz esta pergunta a três especialistas em alguns dos textos e idiomas mais antigos do mundo e também perguntei como eles escreveriam suas próprias mensagens para o futuro, com base nas suas percepções.

Todos eles mencionaram, é claro, certos aspectos materiais. A argila e a pedra são mais duráveis que o papel ou os métodos de gravação digital. O clima e o ambiente correto também ajudam na preservação: as tábuas em escrita cuneiforme, na verdade, eram muitas vezes cozidas e endurecidas pelo fogo de cidades sendo atacadas.

Mas as percepções mais fascinantes dos especialistas foram sobre os próprios escritores.

Quando falamos sobre os escritos de um passado distante, é tentador retratá-los como uma espécie de conjunto acidental de fragmentos históricos. O legado de Nabu-kusurshu, por exemplo, pode parecer um acaso da história — as tábuas do cervejeiro que se tornaram uma espécie de Pedra de Rosetta.

Mas os estudiosos indicam que nem tudo se deve à sorte e à coincidência. Existem certos hábitos, valores e decisões que podem não garantir exatamente a imortalidade literária, mas, pelo menos, aumentam as suas possibilidades.

É claro que a melhor forma de testar esses fatores seria realizar um experimento controlado, com diferentes escritos sendo expostos a desafios — como o colapso da civilização — para vermos qual deles sobrevive. Não temos nada parecido com isso na história, mas temos algo que se aproxima desta situação.

Imagine duas ilhas no mar Mediterrâneo, na Idade do Bronze, com ovelhas pastando pacificamente entre os olivais. Nas duas ilhas, há pessoas ocupadas, escrevendo em tábuas de argila.

Uma dessas ilhas é o Chipre, perto da costa do Oriente Próximo. A outra é Creta.

Na ilha de Creta e na Grécia continental, existe uma elite: são os micênicos. Eles escrevem em grego, usando uma escrita chamada Linear B.

Tudo vai bem até que, perto do ano 1400 a.C., um desastre atinge os micênicos. Primeiro, o seu palácio em Creta é destruído. E, cerca de 200 anos mais tarde, os palácios no continente têm o mesmo destino.

O Chipre também é atingido por uma catástrofe e os historiadores até hoje discutem exatamente o que aconteceu. A ilha sofre alguma espécie de colapso econômico, cidades são abandonadas e novos grupos de pessoas chegam do exterior.

No Chipre, mesmo com a vida se alterando dramaticamente, os moradores locais continuam a escrever e experimentar novas técnicas, tomadas emprestadas de diferentes culturas vizinhas que também praticam a escrita.

Mas, em Creta e na Grécia continental, agora sem os palácios, as pessoas param de escrever. A escrita morre. Não apenas a Linear B, mas também o conhecimento fundamental da escrita parece desaparecer. É como se toda uma sociedade esquecesse como se escreve.

Isso é particularmente surpreendente porque foi em Creta que surgiram os escritos mais antigos da Europa, datados de até pelo menos 1800 a.C. Mas todo aquele legado histórico é varrido com o colapso da elite micênica.

E, quando as pessoas começam a escrever de novo na Grécia, séculos depois, elas usam uma escrita totalmente diferente - o alfabeto, importado do exterior. Sua própria tradição mais antiga é perdida para sempre.

"Na Grécia, após a perda dos palácios micênicos, simplesmente parece não ter havido escrita nenhuma por algum tempo", afirma Philippa Steele, coordenadora de pesquisa em estudos clássicos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e especialista nos antigos escritos de Creta, Chipre e da Grécia.

"Entre 1200 [a.C.] e perto do século 8 [a.C.], não há nada, até onde sabemos. Enquanto isso, o Chipre seguiu escrevendo por todo aquele período", explica Steele. Mas o que causou a diferença?

É claro que não sabemos ao certo. Mas Steele acredita que pode ter a ver com a forma como as duas comunidades trataram a técnica da escrita.

No Chipre, existem muitas evidências arqueológicas do que Steele chama de "reflexos de escrita": rabiscos de pessoas comuns que adaptaram a escrita para seus próprios usos, como comerciantes para marcar suas vasilhas.

Steele indica que esses experimentos informais disseminados podem ter aumentado a resistência da escrita. Mesmo após convulsões, destruição e a chegada de novas pessoas, os moradores locais do Chipre continuaram a escrever sobre pequenas tábuas de argila que ofereciam aos seus deuses.

Mais tarde, eles também escreveram textos diferentes próximos uns aos outros — emparelhando, por exemplo, sua escrita silábica cipriota com a dos fenícios. Este processo acabaria ajudando a decifrar o idioma local.

Mas, em Creta e na Grécia continental, a escrita Linear B nunca se expandiu para o restante da sociedade, a julgar pelas descobertas arqueológicas, segundo Steele. Os escribas micênicos eram anônimos e sua arte não era particularmente valorizada.

"Não existe nenhuma ilustração de pessoas escrevendo, nem ilustrações de objetos envolvidos na escrita", explica ela.

Também não havia grandes textos em Linear B escritos nas fachadas rochosas, nem nas paredes dos palácios, que pudessem ter lembrado às pessoas que existia essa ferramenta valiosa chamada escrita.

Ao contrário, a escrita Linear B vivia escondida no interior dos palácios. E, quando os palácios caíram, ela não tinha onde pudesse sobreviver.

Para Steele, "quando ler e escrever é algo restrito, o sistema de escrita pode desaparecer mais facilmente se o seu contexto de uso deixar de existir".

Ela argumenta que estas percepções do passado podem nos ajudar a resolver problemas importantes no presente, como salvar os sistemas de escrita ameaçados dos dias atuais.

Mas o sistema Linear B teve uma sobrevida. Os estudiosos levaram um longo tempo para decifrá-lo, pois ele não foi escrito ao lado de nenhum texto remanescente. Mas eles acabaram conseguindo nos anos 1950. E, hoje, é possível ler grande parte desses textos.

Perguntei a Steele como ela escreveria uma mensagem para a eternidade. Ela me fornece não só uma resposta, mas uma mensagem real, na forma de uma tábua.

Ela é feita de argila, para maior durabilidade, "e, idealmente, deveria ser queimada", embora ela usasse argila de modelagem seca naturalmente.

A mensagem é multilíngue, "para que haja maior possibilidade de que pelo menos um dos idiomas ainda seja falado no futuro distante — e uma mensagem multilíngue oferece mais indicações para os decifradores do futuro que uma mensagem em um único idioma", explica Steele.

Quando falamos em multilíngue, queremos dizer que a mesma mensagem foi escrita em diversos idiomas lado a lado, como na Pedra de Rosetta e nas tábuas de Nabu-kusurshu.

A professora escolheu uma mensagem simples: "meu nome é Pippa Steele e escrevi isto em Cambridge no ano de 2022".

Com a ajuda de alguns amigos, Steele escreveu em inglês, espanhol, chinês e árabe, que são os idiomas mais falados no mundo e também são bem representados localmente. "É claro que eu poderia ter acrescentado vários outros", explica ela.

Uma possível lição das antigas civilizações de Creta e Chipre é que, para escrever uma mensagem que dure para sempre, uma boa ideia é começar garantindo que as pessoas possam entendê-la no presente.

Como ressaltam frequentemente as pessoas que trabalham em decifração, este foi o propósito original da maioria dos escribas: a comunicação. As civilizações antigas normalmente não pretendiam criar um código indecifrável, muito pelo contrário.

"Um código existe para que fique secreto e somente possa ser lido por alguns grupos", afirma Christian Prager, especialista em maia clássico da Universidade de Bonn, na Alemanha. Ele faz parte de uma equipe que está compilando um dicionário e banco de dados online sobre a escrita maia.

"Com a escrita maia, que era tão presente para o público nas estelas [grandes pilares de pedra com inscrições] e construções, acontece o contrário. Ela estava ali para ser compreendida", afirma ele.

A escrita maia foi usada por cerca de 2.000 anos. Os idiomas dos maias ainda são falados no México, Belize, Honduras e Guatemala.

Os primeiros hieróglifos maias datam de cerca de 250 a.C. As pessoas continuaram a escrever em segredo mesmo depois da conquista espanhola e até o final do século 17.

Atualmente, cerca de 60% dos hieróglifos foram decifrados — o suficiente para entender a essência de todos os textos, segundo Prager.

O processo para entender cada símbolo pode ser lento e trabalhoso, mas os estudiosos modernos são auxiliados por escribas maias mortos há séculos, que acrescentaram pequenos marcadores aos seus símbolos para oferecer uma indicação do seu significado.

Recentemente, um desses marcadores — o que significa "pedra" — ajudou Prager e seus colegas a descobrir o símbolo de "esculpir uma nova estela". A relação com os idiomas maias vivos também contribuiu muito para decifrar este símbolo.

Embora poucas pessoas no mundo maia soubessem escrever, Prager acredita que um número relativamente grande de pessoas conseguia entender mensagens básicas, como o retrato de um rei e seu nome exibidos em uma estela na praça do mercado.

"Tenho certeza de que eles conseguiam dizer 'este é o nome do rei'", afirma Prager. "Quando damos cursos sobre a escrita maia hoje em dia, em questão de três dias você consegue ler a escrita maia. Talvez não os detalhes linguísticos específicos, mas você consegue reconhecer sequências de símbolos."

Esculpir o seu nome em uma pedra grande, idealmente ao lado de um autorretrato, parece ser um formato realmente atemporal, com significado permanente, não apenas no mundo maia. Os nomes dos reis e a palavra "rei" são frequentemente as primeiras a serem descobertas em escritos não decifrados.

A escrita maia pode ser imortal, não apenas de forma figurativa, mas também literalmente. Para os maias, ela tinha vida própria.

"A escrita era um organismo próprio", explica Prager. "Você pode ver isso quando examina os hieróglifos, existe algo animado neles. Os maias clássicos consideravam animados muitos objetos do dia a dia, incluindo a escrita. As estelas recebiam nomes individuais. Isso diz muito sobre o valor que elas tinham e o quanto elas eram, e são, parte da cultura."

De fato, quando uma estela deixava de ser usada, ela recebia rituais funerários. E essas crenças mais profundas têm consequências práticas úteis com relação à leitura de textos maias clássicos hoje em dia.

Os escribas maias mantiveram as formas dos símbolos exatamente iguais, desde as primeiras inscrições em pedra até os últimos livros em cascas de árvores, por exemplo. Prager acredita que, provavelmente, era o desejo dos escribas "usar um sistema de escrita inalterado, como fizeram seus ancestrais".

"É impressionante, é algo que você encontra muito raramente [entre as escritas antigas]", afirma o especialista. E é conveniente, pois significa que, se você souber a escrita, poderá ler documentos maias de todos esses períodos.

Quando perguntei a Prager como ele escreveria uma mensagem para que pudesse ser lida daqui a milhares de anos, ele respondeu com uma escala e ambição em nível maia: "A mensagem teria que ser monumental e feita de pedra, para suportar o vento, o clima e os seres humanos!"

Para ele, o melhor exemplo de uma mensagem duradoura é a Grande Muralha da China. Mesmo na época da sua construção, ela mostrava aos inimigos as fronteiras do domínio chinês e o poderio político e econômico de quem a construiu.

Para sua própria mensagem, Prager imagina "construções monumentais espalhadas por um terreno e que não possam ser apagadas", com um texto inscrito em todos os idiomas modernos e antigos, gravado na megaconstrução a cada 100 metros. "Uma dessas mensagens sobreviverá às catástrofes futuras", conclui ele.

Na época em que Nabu-kusurshu, o jovem cervejeiro de Borsippa, estudava com suas listas perto de 450 a.C., muitos dos idiomas que dominaram o Oriente Próximo já haviam desaparecido, incluindo línguas antes poderosas, como o hurrita e o hitita.

Também o amorita, idioma falado pelos poderosos reis nômades da Síria antiga e mencionado em cartas antigas como tendo sido um idioma muito útil para se aprender, desapareceu sem deixar um traço de escrita.

E, enquanto isso, o sumério — considerado o menos prático de todos eles, já que havia caído em desuso no dia a dia - sobreviveu por muito mais tempo. A partir de cerca de 2000 a.C., "ninguém falava sumério, mas o idioma ainda era escrito. E isso é parte da minha extrema fascinação por ele", afirma Jay Crisostomo. "O que fez com que ele continuasse?"

A resposta pode estar naqueles primeiros sinais cuneiformes, pressionados na argila pelos sumérios. Crisostomo explica que, desde o princípio, a escrita foi associada aos sumérios. Ao longo do tempo, foi mantida sua associação a uma cultura antiga e seus deuses, cidades e lendas, além do poder decorrente dessa cultura.

Sucessivos reis usaram esta associação para legitimar seu próprio poder, mesmo se eles próprios não tivessem antepassados sumérios. Eles chegaram a compor canções em sumério prevendo que suas palavras seriam valorizadas por pessoas "no futuro distante".

E, colecionando tábuas, divulgando seu conhecimento sobre os sumérios, contratando escribas ou sendo retratados com um estilete no cinto, eles também se tornaram parte dessa linhagem imortal.

"A questão é de reivindicar a autoridade que remonta ao início da escrita e do conhecimento", afirma Crisostomo.

Essa herança literária estava presente em toda parte, incluindo hinos e profecias, mas também em canções populares muito antigas. Como no mundo maia, a relação entre a escrita e o poder era anunciada com inscrições monumentais. As tábuas de Nabu-kusurshu eram mantidas e protegidas por toda uma cultura.

Mas talvez houvesse também um elemento de escolha individual. Nabu-kusurshu parece ter sentido orgulho pela sua escrita e tido o cuidado de aperfeiçoá-la, pois ela era excepcionalmente clara.

Crisostomo está vasculhando os museus do mundo em busca de mais tábuas de Nabu-kusurshu. Já foram descobertas cerca de 24 delas.

Ele estudou todos os detalhes da escrita do cervejeiro, desde como ele modelava seus sinais até o espaçamento das linhas. "São coisas como estas que fazem você começar a se sentir como se conhecesse aquelas pessoas", segundo o professor.

Apesar do seu amor pela linguagem escrita, Crisostomo afirma que sua mensagem para o futuro provavelmente seria uma imagem, para que "pudesse transcender a necessidade do idioma" e evitar as armadilhas da decifração.

Parece, então, que uma boa regra é fazer sua mensagem para o futuro suficientemente gigantesca para que não possa ser ignorada - ou tão pequena que possa deslizar pela história quase sem ser notada, talvez protegida pela sua aparente pouca importância.

Uma indicação visual ou contextual parece ajudar, seja acrescentando uma imagem ou colocando-a em algum lugar relevante para o seu significado, como um templo ou monumento.

E os estudiosos parecem achar óbvio o uso de um idioma existente, sem tentar criar um idioma artificial "à prova de futuro". Afinal, os idiomas reais têm culturas que os amam e sustentam, fornecendo aos decifradores do futuro uma enorme quantidade de indicações e significados.

Nos dias atuais, a escrita cuneiforme vem experimentando um renascimento, com uma jovem geração de iraquianos aprendendo e experimentando essa escrita. E um sentimento similar vem dando nova vida aos hieróglifos maias. Falantes nativos dos idiomas maias usam os hieróglifos para fazer arte e construir novas estelas para celebrar eventos importantes.

Essa conexão e companheirismo entre seres humanos separados por longos períodos de tempo talvez seja a etapa final de uma mensagem criada para a eternidade. Não importa o quanto nos esforcemos, só podemos confiar que, no outro lado da linha, haverá no futuro outra pessoa, ouvindo nossa voz fraca e com disposição suficiente para prestar atenção no que estamos dizendo.

Crisostomo relembra frequentemente este ponto enquanto trabalha com as tábuas antigas, algumas marcadas pelas digitais dos escribas mortos milênios atrás.

"Às vezes, você se senta ali, coloca seu polegar exatamente no mesmo lugar e pensa 'talvez esta pessoa estivesse segurando esta tábua desta mesma forma, 4.000 anos atrás, segurando e escrevendo — e eu estou aqui sentado, lendo o que eles escreveram'."

sexta-feira, agosto 26

Voe

 

Omar Lafi

Por um pé de feijão

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

– Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

– Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:

– Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.

Antônio Torres, “Meninos, Eu Conto”

Vista cansada

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

 Ghazal Elahi
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Otto Lara Resende

quinta-feira, agosto 25

Salve-se dos tubarões

 


A vida no céu

(Voar: esforço de desmemória que consiste em extrair da mente todo o peso do real.)


Voar. Ah, voar!

Nascemos sem asas, mas com a capacidade de as sonhar. Existem tantas lendas antigas sobre homens voadores quantos balões há no céu. Sonhadores – pessoas com a cabeça nas nuvens, como se dizia antigamente, antes de andarmos todos realmente com a cabeça entre as nuvens – costumam ver melhor o que está para vir. Quanto mais alto estivermos, quanto mais sonharmos, mais longe vemos.
Os primeiros homens a voar num balão talvez tenham sido os índios Nazcas, do Peru, ainda antes do nascimento de Jesus Cristo. Sabe-se isto porque se encontrou um vaso antigo, em barro, representando um balão de ar quente com dois tripulantes. Em 1975, um grupo de pesquisadores baseou-se no referido objeto para construir um balão, confecionado a partir de fibras de plantas conhecidas dos Nazcas. O balão conseguiu erguer-se no ar. Os gigantescos desenhos de animais nos planaltos de Nazca, só visíveis do céu – antes do Dilúvio, claro –, teriam sido produzidos por estes índios voadores. Enquanto os índios de Nazca exploravam o céu, em balões de ar quente, os chineses voavam em enormes papagaios de papel. Foi o famoso general Han Xin, que serviu o imperador Gaozu, duzentos anos antes de Cristo, quem teve a ideia de prender soldados a papagaios de papel. Han Xin servia-se dos soldados voadores para observar o movimento dos exércitos. Estes soldados cantavam, enquanto sobrevoavam as tropas inimigas. Cantavam cantigas de escárnio. Troçavam, lá do alto, dos combatentes inimigos.


Han Xin tinha um filho com sete anos de idade, Han-Li, o qual era capaz de ficar horas, fascinado, a observar o voo dos pássaros. Han-Li ficou ainda mais fascinado com os soldados-papagaios. Durante meses importunou o pai para que o deixasse voar. Finalmente, Han Xin aquiesceu. O menino foi amarrado ao papagaio mais belo de todos, uma enorme libélula em tons de vermelho, e largado no ar. Um súbito golpe de vento rompeu o fio que o prendia ao chão, e o papagaio desapareceu no azul profundo. Han-Li voou durante dias e noites, sorvendo a água das nuvens e alimentando-se do que os pássaros lhe traziam. Atravessou muitos céus, sobrevoando terras estranhas e o abismo dos mares, até a libélula embater de encontro a uma nuvem, maior e mais sólida do que qualquer outra que Han-Li vira antes. Embater é como quem diz – o papagaio rasgou a nuvem, sem ruído, detendo-se ao fim de uns dez metros, meio de borco, com a quilha quebrada. O rapaz desamarrou-se e saltou para a nuvem. Os pés afundaram-se na fofa brancura incandescente. Experimentou dar alguns passos. Era como se caminhasse sobre flocos de algodão, o que não o espantou. Espantara-o, até àquele dia, isso sim, que as nuvens não tivessem a consistência do algodão. Caminhou a manhã inteira. Encontrou, finalmente, uma aldeia habitada por uma tribo de homens minúsculos, de cabeça grande, que comunicavam uns com os outros através de gargalhadas. Viveu naquela nuvem, com os nefelibatas, durante vinte e dois anos. Ao fim desse tempo, tendo aprendido o alegre idioma deles (ou seja, tendo aprendido a rir como eles), bem como muitos dos seus segredos, incluindo a navegação aérea, com recurso a asas feitas de nuvens prensadas, regressou à China. Ali descobriu, com horror, que toda a sua família fora assassinada por ordem da malvada imperatriz Lu Zhi. Han-Li viveu o resto dos seus dias na pele de um sábio vagabundo, circulando de aldeia em aldeia, aprendendo e ensinando. Alguns dos seus ensinamentos foram reunidos num tratado de alquimia, Segredos dos Nefelibatas. O original perdeu-se. Ao longo dos séculos, contudo, foram sendo produzidas diversas cópias, todas um pouco diferentes umas das outras. Sobrou uma única, guardada em Luanda, na nossa biblioteca, que fizemos traduzir para diversas línguas.

Na Europa, os primeiros balões de ar quente a erguerem-se no ar, na presença de testemunhas, terão sido os do padre brasileiro Bartolomeu de Gusmão, em 1709. Os modelos desenvolvidos por Bartolomeu de Gusmão eram demasiado pequenos para carregarem um homem. Alguns incendiaram-se logo. Outros conseguiram cumprir um curto voo. O rei português D. João V, que assistiu às primeiras experiências, em Lisboa, não ficou entusiasmado. O invento pareceu-lhe imprestável e perigoso. Se o monarca português fosse um sonhador – se tivesse a capacidade de ver ao longe – investindo no desbravamento do céu, tanto quanto investiu na paixão por freirinhas ou na colonização do Brasil, a história da aviação teria sido outra. Foi necessário aguardar até 1783 para que dois irmãos franceses, Joseph e Etienne Montgolfier, se erguessem num balão até quase dois quilômetros de altura. Vieram depois os balões dirigíveis, ou seja, balões cujo voo podia ser controlado, avançando nesta ou naquela direção, inclusive contra o vento, graças ao poder dos seus motores.

Em 1928, surgiu o primeiro dos grandes dirigíveis, o LZ 127 Graf Zeppelin, com duzentos e treze metros de comprimento, cinco motores, e capaz de transportar vinte e quatro passageiros e trinta e seis tripulantes. Foi a primeira aeronave a circundar a terra, percorrendo trinta e três mil quilômetros em sete etapas. Ao longo da sua carreira, até 1937, o Graf Zeppelin atravessou mais de quinhentos mil quilômetros de céu, transportando um total de dezassete mil passageiros. O seu irmão mais novo, o LZ 129 Hindenburg era, para a época, um elegante milagre de luxo e de tecnologia. Media duzentos e quarenta e cinco metros de comprimento, quarenta e um metros e meio de diâmetro, e era capaz de percorrer catorze mil quilômetros, sem repouso, a uma velocidade de cento e trinta e cinco quilômetros por hora. Podia transportar até cinquenta passageiros e sessenta e um tripulantes, tudo isto sustentado por duzentos mil metros cúbicos de hidrogénio. A sala de jantar tinha janelas oblíquas, de forma que os passageiros pudessem apreciar a paisagem, lá em baixo, enquanto comiam, bebiam e conversavam.

Na noite de seis de maio de 1937, quando se preparava para atracar na base naval de Lakehurst, em Nova Jérsia, nos Estados Unidos, um enorme incêndio deflagrou de repente, lançando toda a estrutura ao solo e matando trinta e seis pessoas, entre passageiros, técnicos e tripulantes. A tragédia interrompeu, durante longos anos, o reinado dos grandes dirigíveis. Decorreu quase um século até que as empresas de aviação se voltassem a interessar pelos aeróstatos, como uma alternativa mais barata, e infinitamente mais encantadora, às rápidas e impessoais viagens de avião.

No início da década de vinte do nosso século, o designer francês Jean-Marie Massaud apresentou o projeto de um hotel flutuante, o Manned Cloud, que se revelou um enorme sucesso. O primeiro Manned Cloud, com o formato de uma enorme baleia branca, incluía uma biblioteca e um spa e tinha capacidade para receber quarenta hóspedes. Hoje, a Manned Cloud é a maior rede de hotéis do céu, com mais de cinquenta unidades. Estes hotéis são utilizados pelos habitantes ricos das grandes cidades, que ali vão relaxar – “mudar de céu”, como dizem –, mas servem também para albergar convenções de dirigentes políticos e eventos comerciais.

Quando aconteceu o Dilúvio já pairavam no céu todo o tipo de balões e dirigíveis. Mais importante, a humanidade dispunha de tecnologia para a construção de aparelhos muitíssimo maiores. O Paris, por exemplo, mede dez vezes mais do que o LZ 129 Hindenburg. Não é tão rápido, claro, nem precisa. As cidades aéreas não foram construídas para competirem umas com as outras em velocidade, e sim para transportarem o maior número possível de pessoas com comodidade. Elas competem umas com as outras em luxo e população.

Houve tempo, à medida que o mar galgava a terra, de construir alguns milhares de arcas voadoras, dezenas de enormes fábricas flutuantes de hélio e de hidrogênio, e plataformas para a exploração de petróleo. Centenas de pessoas trabalham para assegurar o funcionamento e a manutenção dessas fábricas e plataformas, lá em baixo, em condições bastante difíceis. São empregos perigosos, mas muito bem pagos.
José Eduardo Agualusa, "A Vida no Céu"

Nosso 'sol'

 


Biscoitos e pirâmides

Um dia, pouco antes de sua morte, Guimarães Rosa me telefonou para conversar, como acontecia de vez em quando, e bisbilhotou:

– Que é que você está fazendo?

Contei-lhe que estava no momento tentando transformar um conto numa pequena peça de teatro. O grande romancista, conforme já contei mais de uma vez e outros por mim, me advertiu então com ar blandicioso:

– Não faça biscoitos: faça pirâmides...

Na hora julguei entender o sentido lógico desta metáfora. A primeira conotação que ela sugeria era de dimensão, a segunda de duração – de ambas decorrendo um critério de qualidade: um biscoito é pequeno, portanto desprezível – uma pirâmide é monumental, portanto grandiosa; um biscoito é consumível, logo efêmero – uma pirâmide é permanente, logo eterna.

Não só a tal peça de teatro não saiu, como a partir de então me senti esmagado pelo conselho do autor de Grande sertão: veredas e Corpo de baile – duas pirâmides, sem dúvida alguma. Que diabo eu podia pretender com meus livros? Um crítico mais realista chegou, mesmo, a me expulsar da literatura, afirmando numa revista que eu era inventor de um gênero composto de pequenos escritos sem qualquer dimensão literária. Ou seja: de biscoitos.

Passei a sonhar então com um romance de no mínimo oitocentas páginas – ou vários romances em série, dez, quinze, que fossem uma espécie de painel da vida contemporânea, apresentado através da minha experiência vital – qualquer coisa assim, gigantesca, piramidal – a minha pirâmide. Enquanto isso, ia produzindo os meus biscoitos, sem aspirar para eles uma condição de grandeza e perenidade.

Com o tempo, todavia, a coisa se complicou um pouco: não apenas minha pirâmide não saía, esfacelando-se em sucessivos biscoitos, como tomei consciência de que nem só de pirâmides vive a literatura. A própria cultura universal, desde a antiguidade clássica, se compôs de grandes monumentos erguidos por Platão, Aristóteles e outros gigantes, mas entre eles encontramos também os escassos fragmentos de Heráclito, meros biscoitos e nem por isso menos preciosos.

Para ficarmos na prosa da ficção: se na Rússia Tolstói, Dostoiévski e Gógol ergueram pirâmides, outros grandes escritores fizeram seus biscoitos com igual sucesso, como Púchkin, Tchekhov, Andreiev. Na França, se temos de um lado Balzac, Proust, Stendhal, Rousseau, Victor Hugo, não sei se incluiria Flaubert entre eles, ou de preferência na categoria de Montaigne, La Fontaine, Voltaire, Maupassant, Merimée, Molière, e tantos outros fazedores de biscoito. (Para não falar em pipoqueiros, como Jules Renard.)

Sartre podia pretender estar entre os primeiros, mas sem dúvida Gide e Camus se alinharam entre os segundos. Na Inglaterra, a tradição das pirâmides foi seguida por Dickens, Fielding, Thackeray, Charlotte Brontë, Jane Austen, mas dificilmente uma Emily Brontë poderia ser mencionada entre eles. No nosso tempo, Grahan Greene, por exemplo, veio produzindo seguidos biscoitos com grande sucesso.
Se Joyce partiu para a pirâmide, Kafka contribuiu para revolucionar a literatura moderna com os seus biscoitos de absurdo.

Nos Estados Unidos, Melville ergue uma pirâmide do tamanho de uma baleia, enquanto Poe e Mark Twain fabricam seus biscoitos, uns de terror, outros de humor. John dos Passos erige seu monumento à civilização americana, enquanto Hemingway passa a vida tentando o seu sobre a guerra, para acabar conquistando o prêmio Nobel depois de produzir sua obra-prima, um biscoito: O velho e o mar.

E tem também o grande biscoiteiro Jorge Luis Borges.

No Brasil, destaca-se a pirâmide erguida por Euclides da Cunha. Em compensação, o maior de nossos ficcionistas, Machado de Assis foi a vida inteira um emérito fabricante de biscoitos – embora a sua obra, em conjunto, venha a ser piramidal. Uma sucessão de pirâmides se prolongou até nossos dias, com o próprio Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Octavio de Faria, Erico Verissimo, Pedro Nava e suas memórias, Jorge Amado e a sua obra regional, culminando com o excelente Tocaia grande.

Sem querer puxar a brasa para a minha sardinha, no caso para os meus biscoitos: tão importantes como expressão do romance moderno entre nós são também, por exemplo, um Oswaldo França Júnior ou uma Clarice Lispector com os seus. Não se falando nesses dois mestres do biscoito, um na crônica e outro no conto, que vêm a ser Rubem Braga e Dalton Trevisan.

(Tudo considerado, não adianta sofismar – aqui muito entre nós, Guimarães Rosa tinha razão: biscoito pode ser muito gostoso, principalmente ao café pela manhã, mas bem que deve ser glorioso subir numa pirâmide, para que, do alto, quarenta séculos nos contemplem.)
Fernando Sabino

quarta-feira, agosto 24

'Oásis'


 

Nós, imperadores sem baleias

Foi em agosto de 1858 que correu na cidade o boato de que havia duas baleias imensas em Copacabana. Todo mundo se mandou para essa praia remota, muita gente dormiu lá em barracas, entre fogueiras acesas, e Pedro II também foi com gente de sua imperial família ver as baleias. O maior encanto da história é que não havia baleia nenhuma. Esse imperador saindo de seus paços, viajando em carruagem, subindo o morro a cavalo para ver as baleias, que eram boato, é uma coisa tão cândida, é um Brasil tão bobo e tão bom!

Pois bem. No começo da última guerra havia uns rapazes que se juntavam no Bar Vermelhinho, para beber umas coisas, ver as moças, bater-papo. Ah! — como dizia o Eça —, éramos rapazes! E entre nós havia um poeta que uma tarde chegou com os olhos verdes muito abertos, atrás dos óculos, falando baixo, portador de uma notícia extraordinária: a esquadra inglesa estava ancorada na lagoa Rodrigo de Freitas!

Ah!, éramos rapazes! Visualizamos num instante aquela beleza, a esquadra amiga, democrática, evoluindo perante o Jockey Club, abençoada pelo Cristo do Corcovado entre as montanhas e o mar. Eu me ri e disse: poeta, que brincadeira, como é que a esquadra ia passar por aquele canal? Ele respondeu: pois é, isto é que é espantoso!

Em volta, as moças acreditavam. Em que as moças não acreditam? Elas não sabem geografia nem navegação, são vagas a respeito de canais, e se não acreditarem nos poetas, como poderão viver? Mas houve protestos prosaicos: não era possível! O poeta tornou-se discreto, falava cada vez mais baixo: está lá. E como as dúvidas fossem crescendo, grosseiras, ele confidenciou: quem viu foi Dona Heloísa Alberto Torres!

Ficamos um instante em silêncio. O nome de uma senhora ilustre, culta, séria e responsável era colocado no mastro real da capitania da esquadra do Almirante Nelson pelas mãos do poeta. E o poeta sussurrou: eu vou para lá. Então as moças também quiseram ir, e como é bom que rapazes e moças andem juntos, nós partimos todos alegremente — ah!, éramos rapazes! —, mesmo porque lá havia outro bar, no Sacopã.

Já havia o Corte do Cantagalo? Não havia o Corte do Cantagalo?

A tarde era fresca e bela, não me lembro mais de nosso caminho, lembro da viagem, as moças rindo. Tudo sobre nossas cabeças de jovens era pardo, o governo era nazista, a gente lutava entre a cadeia e o medo, com fome de liberdade — e de repente a esquadra inglesa, tangida pelo poeta, na lagoa Rodrigo de Freitas! Fomos, meio bebidos, nosso carro desembocou numa rua, noutra, grande emoção — a lagoa!

Estava mais bela do que nunca, levemente crespa na brisa da tarde, debaixo do céu azul de raras nuvens brancas perante as montanhas imensas.

Não havia navios. Rimos, rimos, rimos, mas o poeta, de súbito, sério, apontou: olhem lá. Céus! Na distância das águas havia um mastro, nele uma flâmula que a brisa do Brasil beijava e balançava, antes te houvessem roto na batalha que servires a um povo de mortalha! O encantamento durou um instante, e nesse instante caiu o Estado Novo, morreram Hitler e Mussolini, as prisões se abriram, raiou o sol da liberdade — mas um desalmado restaurou a negra, assassina, ladravaz ditadura com quatro palavras: é o Clube Piraquê de mastro novo! Aquilo é o Clube, não é navio nenhum!

Então bebemos, o entardecer era lindo na beira da lagoa, as moças ficaram meigas, eu consolei a todos com a história do imperador sem baleias. O poeta Vinícius disse: nós somos imperadores sem baleias! Ah!, éramos rapazes!
Rubem Braga, "A traição das elegantes"

Os livros que nunca lemos

Não é difícil imaginar que Umberto Eco tenha muitos livros. E que, se improvavelmente viver num T3, decerto terá, como muitos de nós, estantes no hall, nos corredores, nos quartos, na sala de jantar.

Já não me lembro onde conta Eco a história de uma senhora que o visitou e, surpresa com tanta “livralhada”, lhe perguntou: «O Sr. Professor já leu estes livros todos?». O Sr. Professor ter-lhe-á respondido (cito de cor): «Não, estes chegaram só ontem, são para ler até ao fim de semana. Na segunda-feira vem o camião da Faculdade para os levar e trazer novo carregamento.»

Eco pretende ilustrar o óbvio: que os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que nunca chegará. Sugere, a propósito, uma irónica e bizarra teoria mágica: tocando os nossos livros que não lemos, ao procurar outros ou a arrumá-los, algo da sua natureza parece “passar” para nós… através dos dedos. E quem sabe se não estará certo? Como ele, também eu conheço confusamente cada um dos livros que nunca li, mas acho que a coisa tem mais que ver com o coração do que com os dedos.

Há uns meses mandei pintar a casa. Ora, para pintar as paredes com estantes, os pintores retiraram delas todos os livros (todos não, pois quando, em pânico, descobri o que acontecera, instruí-os para que, a partir daí, pintassem apenas as paredes sem estantes) voltando, depois, a colocá-los no lugar. Eu disse “no lugar”? Deveria ter dito apenas “voltando a colocá-los” pois o lugar perdeu-se para sempre. Agora, quando procuro um livro, onde antes o encontrava de olhos fechados, dou sempre com outro.

É assim que venho assustadamente descobrindo a imensa quantidade de livros que tenho em casa, alguns deles desde a juventude, e que nunca li nem provavelmente lerei. Assim, quando um dia destes, fui ao sítio onde sempre estiveram as Poesias Completas de Frei Luis de Léon, dei com O Capital de Karl Marx; e quando procurava as Gramáticas da Criação, encontrei um pouco de tudo, lido e não lido, das Folhas Caídas a Godel, Escher e Bach e de A Cantora Careca ao Memorial do Convento. Menos o livro de Steiner, que tive de voltar a comprar.

Quando um dia, numa entrevista, perguntaram a Borges quem era ele, respondeu que era todos os livros que lera. Eu quero crer que somos não só os livros que lemos mas igualmente os que não lemos. Cavaco Silva, por exemplo, é certamente não só os livros de economia que leu mas também o provável facto, dedutível de umas célebres declarações suas, de nunca ter lido Os Lusíadas. Já o caso de Passos Coelho é mais complexo, pois, além de ser os livros que terá lido e os que não leu, é igualmente os livros, como A Fenomenologia do Ser, de Sartre, que leu mas que o seu autor nunca escreveu.

E do mesmo modo, eu serei tanto a Ilíada, Os Cantos, The Waste Land, ou até o Joanica- Puff, que li vezes sem conta, como o facto de nunca ter lido O Capital ou de só ter lido menos de metade do Ulysses; a Viagem ao Fim da Noite e não A Montanha Mágica; a Torah, boa parte do Zohar, o Tao-te-King, a Bíblia e não o Corão; Assim falava Zaratrustra e A Gaia Ciência e não (infeliz de mim que já o comecei inutilmente várias vezes) o Tratactus; Borges praticamente todo e Beckett (deveria ter vergonha de confessá-lo) muito pouco; Jules Laforgue e Charles Cros mais do que (outra confissão vergonhosa) Rimbaud; e por aí fora que a biblioteca é vasta e a vida é breve.

Às vezes pergunto-me quem raio seria eu se, em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li. Provavelmente cruzar-me-ia comigo e não me reconheceria.
Manuel António Pina

terça-feira, agosto 23

Reciclagem

 


Mistério de bola

“Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao belicoso Pinga. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Atrida enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas — investe contra o desprevenido Naranjo e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os velozes Torres, Madri e Avellan quedam paralisados, tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal…”

Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero. Mas o estilo atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos. Mesmo assim, quando o cronista especializado informa que o Botafogo “não estava numa tarde de grande inspiração” ou que Zizinho “se desempenhou com o seu habitual talento”, fico imaginando que há no futebol valores transcendentes, que nós, simples curiosos, não captamos, mas que o bom torcedor vai intuindo com a argúcia apurada em uma longa educação da vista.

Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar até o seu mistério. Entretanto, a criança menos informada o possui. Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas. Contudo, essa é uma paixão individual mais que todas.

Cada um tem sua maneira própria de avaliar as coisas do gramado, e onde este vê a arte mais fina, outro apenas denuncia a barbeiragem ou talvez um golpe ignominioso. Pelo nosso clube fazemos o possível, e principalmente o impossível. O jogador nos importa menos que suas cores, e se muda de camisa pode baixar em nossa estima, à revelia de toda justiça.

A estética do torcedor é inconsciente; ele ama o belo através de movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos fluminenses ou vascos pela necessidade de optar, como somos liberais, socialistas ou reacionários. Apenas, se não é rara a mudança do indivíduo de um para outro partido, nunca se viu, que eu saiba, torcedor de um clube abandoná-lo em favor de outro.

Finalmente, a grande ilusão do gol confere alta dignidade à paixão popular, que não visa a um resultado positivo e duradouro no plano real, mas se satisfaz com uma abstração: vinte e dois homens se atiram uns contra outros, e era de esperar que os mais combativos ou engenhosos, saindo triunfantes, deixassem os demais no campo, arrebentados. Não. O objeto de couro transpõe uma linha convencional, e o que se chama de vitória aparece aos olhos de todos com uma evidência corporal que dispensa a imolação física. Não podemos acusar de primitivismo aos que se satisfazem com este resultado ideal.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"

Jogador generoso

Ontem, no meio da multidão da avenida, senti-me tocar por um Ser misterioso que eu sempre desejara conhecer e que logo reconheci, embora nunca o tivesse visto. Ele tinha, sem dúvida, relativamente a mim, um desejo análogo, porque, ao passar, piscou-me o olho num sinal significativo, ao qual me apressei a obedecer. Segui-o atentamente e em breve desci, atrás dela, a uma habitação subterrânea, deslumbrante, onde esplendia um luxo de que nenhuma das residências superiores de Paris poderia fornecer um exemplo aproximado.

Pareceu-me singular que eu tivesse podido passar tantas vezes ao lado daquele prestigioso covil sem descobrir-lhe a entrada. Reinava ali uma atmosfera esquisita, capitosa, que fazia esquecer quase instantaneamente todos os fastidiosos horrores da vida. Respirava-se uma beatitude sombria, análoga à que deveriam experimentar os comedores de lótus quando, desembarcando numa ilha encantada, iluminada pelos clarões de uma tarde eterna, experimentavam intimamente, aos sons embaladores das melodiosas cascatas, o desejo de jamais rever os seus penates, as suas mulheres, os seus filhos, e de jamais remontar sobre as altas vagas do mar.

Havia ali rostos estranhos de homens e mulheres, marcados por uma beleza fatal, que eu tinha a impressão de já ter visto em épocas e em países dos quais não podia lembrar-me exatamente, e que me inspiravam antes uma simpatia fraternal do que o medo que ordinariamente inspira a visão do desconhecido. Se eu quisesse tentar definir de algum modo a expressão singular dos seus olhares, diria que jamais vi olhos que brilhassem mais energicamente pelo horror do tédio e pelo desejo imortal pela liberdade.

Quando nos sentamos, meu hospedeiro e eu já éramos velhos e perfeitos amigos.

Comemos, bebemos à farta de todas as qualidades de vinhos extraordinários, e, coisa não menos extraordinária, parecia-me, depois de várias horas, que eu não estava mais embriagado do que ele. O jogo, esse prazer sobre-humano, cortara em diversos intervalos as nossas frequentes libações, e devo dizer que jogara e perdera minha alma, em parte ligada, com uma despreocupação e uma intrepidez heroicas. A alma é uma coisa tão imponderável, tão inútil às vezes, e outras vezes tão enfadonha, que eu só experimentei, quanto à sua perda, um pouco menos de emoção do que se tivesse perdido, num passeio, o meu cartão de visitas.

Fumamos longamente alguns charutos, cujo sabor e perfume incomparáveis davam à alma a nostalgia de regiões e felicidades desconhecidas. Foi embriagado por todas essas delícias que, num acesso de familiaridade que não me pareceu desagradar-lhe, ousei exclamar, apoderando-me de uma taça cheia até a borda:
 — À sua imortal saúde, velho Bode! Conversamos também sobre o universo, sua criação e sua destruição futura; sobre a grande ideia do século, isto é, o progresso e a perfectibilidade, e, em geral, sobre todas as formas de enfatuamento humano. A esse respeito, Sua Alteza de detinha em pilhérias ligeiras e irrefutáveis, mas exprimia-se com uma suavidade de dicção e uma tranquilidade de humor que eu não encontrei em nenhum dos mais célebres conversadores da humanidade. Explicou-me o absurdo das diferentes filosofias que até então se haviam apoderado do cérebro humano, e dignou-se mesmo de me fazer confidência de alguns princípios fundamentais cujos benefícios e propriedade não me convém partilhar com quem quer que seja. Não se lastimou de modo algum da má reputação que possui em todas as partes do mundo, assegurou-me que era a pessoa mais interessada na destruição da superstição e me confessou que, relativamente ao seu poder, só tivera medo uma vez, no dia em que ouvira um pregador, mais sutil do que os seus confrades, exclamar do púlpito: — Meus caros irmãos, quando ouvirdes gabar o progresso das luzes, nunca vos esqueçais de que o mais belo ardil do diabo consiste em persuadir-vos de que ele não existe! A lembrança desse célebre orador levou-nos naturalmente a falar das academias, e o meu estranho conviva afirmou-me que não desdenhava, em muitos casos, de inspirar a pena, e palavra e a consciência dos pedagogos, e que quase sempre assistia em pessoa, embora invisível, a todas as sessões acadêmicas.

Encorajado por tantas bondades, pedi-lhe notícias de Deus e perguntei-lhe se o vira recentemente. E ele me respondeu com uma despreocupação laivada de certa tristeza: — Nós nos cumprimentamos quando nos encontramos, mas como dois fidalgos em que uma polidez inata não poderia extinguir completamente a recordação de antigos ressentimentos.

É duvidoso que Sua Alteza tenha dado jamais uma audiência tão longa a um simples mortal, e tive receio de abusar. Por fim, quando a aurora tremeluzente já branqueava as vidraças, o famoso personagem, cantado por tantos poetas e servido por tantos filósofos que trabalham por sua glória, assim falou: Como quero que você guarde de mim uma boa recordação, vou provar-lhe que Eu, de quem se diz tanto mal, sou às vezes bom diabo, para servir-me de uma locução vulgar.

Afim de remediar a perda irremediável de sua alma, dou-lhe a parte que você teria ganho se a sorte lhe tivesse sido favorável, isto é, a possibilidade de aliviar e de vencer, durante toda a sua vida, essa estranha afeição pelo Tédio, que é a fonte de todas as enfermidades e de todos os miseráveis progressos humanos. Jamais você terá um desejo que eu não o ajude a realizá-lo. Será adulado e até adorado; o dinheiro, o ouro, os diamantes, os palácios feéricos virão procurá-lo e lhe pedirão que os aceite, sem que você tenha feito o menor esforço para ganhá-los; mudará de pátria tantas vezes quantas sua fantasia o ordenar; fartar-se-á de volúpias, sem enjoar-se, em países encantadores onde faz sempre calor e onde as mulheres são tão perfumadas quanto as flores. Et cætera, et cætera... — acrescentou levantando-se e se despedindo de mim com um sorriso cheio de bondade.

Não fora o receio de humilhar-me perante tão grandiosa assembleia, eu de bom grado cairia aos pés do generoso jogador, para agradecer-lhe a inaudita munificência. Aos poucos, porém, depois que o deixei, a incurável desconfiança tornou a entrar no meu peito.

Não mais ousei acreditar em tão prodigiosa felicidade e, ao deitar-me, fazendo ainda minha prece por um resto de hábito imbecil, repeti, meio adormecido: — Meu Deus! Senhor meu Deus! Fazei com que o diabo cumpra sua palavra para comigo!
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"