quinta-feira, novembro 30

Boia salva-vidas

 


A ovelha negra

Havia um país onde todos eram ladrões.

À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado, e encontrava a sua casa roubada.
E assim todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último, que roubava o primeiro. O comercio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeços, e não havia ricos nem pobres.


Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e lendo romances.
Vinham ladrões, viam a luz acessa e não subiam.

Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.

Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava vendo passar a água embaixo. Voltava para a casa e a encontrava roubada.

Em menos de uma semana o honesto ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas até aí tudo bem, porque era culpa sua; o problema era que o seu comportamento criava uma grande confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém; assim, sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava a casa intacta: a casa que o homem honesto deveria ter roubado. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia; assim iam ficando pobres. 
Ítalo Calvino. “Um general na biblioteca.”

Escrever

Escrever é o acto de pensamento mais justo. Obriga à escolha cuidadosa das palavras, a recuperar o pensamento que estava fixado e a fazê-lo voltar a mexer-se. Muitas vezes faz com que terminemos com o resultado contrário ao que tínhamos como certo antes de escrever a primeira palavra. Escrever crónicas obriga a um pensamento constante sobre o que nos rodeia, mas o que nos rodeia nem sempre é companhia aconselhável, e pensar sobre isso pode aumentar – para o bem e para o mal – o que antes não se via. Quando me convidaram para escrever crónicas semanais na revista Sábado (que sai à quinta, já agora), foi essa a minha dúvida: quais seriam as consequências de escolher mais uma maneira de ver de perto as coisas que me aleijam? Para me contrariar, aceitei. Enquanto escrevia dei por mim muitas vezes a pôr em causa o que pensava antes e a pensar sobre o que isso quereria dizer. Não cheguei a conclusão nenhuma, mas ao preparar este livro percebi que as coisas dentro da minha cabeça fazem muito barulho. Ordená-las e escrevê-las é ainda o último reduto de sanidade contra esse ruído. Este livro é uma compilação dessas crónicas que escrevi e que agora vieram para aqui viver todas juntas.

Bruno Nogueira, "Aqui Dentro Faz Muito Barulho"

Ray Bradbury

Eu queria escrever uns versos para Ray Bradbury,
o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas
como no tempo em que acreditávamos no Menino Jesus
que vinha deixar presentes de Natal em nossos sapatos empoeirados de meninos
e nada tinha a ver com a impenetrável Santíssima Trindade.
Era no tempo das verdadeiras princesas,
nossas belíssimas primeiras namoradas
— não essas que saem periodicamente nos jornais.
Era no tempo dos reis verdadeiramente heráldicos como os das cartas de jogar
e do bravo São Jorge, com seu cavalo branco, sua lança e seu dragão.
Era no tempo em que o cavaleiro Dom Quixote
realmente lutava com gigantes,
os quais se disfarçavam em moinhos de vento.
Todo esse encantamento de uma idade perdida
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar
e os nossos antigos balõezinhos de cor
agora são mundos girando no ar.
Depois de tantos anos de cínico materialismo
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha
que nos vai desfiando suas histórias à beira do abismo
— e nos enche de susto, esperança e amor.

Mário Quintana, "Esconderijos do tempo"

quarta-feira, novembro 29

Nem Shakespeare

Há livros tão desalentadoramente ruins que nem uma epígrafe de Shakespeare consegue salvá-los.


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Se em vez de escrever sonetos eu me esmerasse em dar murros em ponta de faca, chamaria mais a atenção e teria maior público, sem o trabalho de ficar contando sílabas e perseguindo rimas no dicionário.

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Para quem acha que um livro é o objeto ideal para servir de calço para cadeiras trôpegas ou mesas cambaleantes, nada melhor que uma antologia de poemas concretos.

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Na reunião dos gongóricos, marcada para decidir que providências seriam tomadas contra os ataques da crítica literária ao grupo e aos seus princípios estéticos, o líder perguntou aos comandados o que estavam dispostos a fazer. Um deles respondeu, hesitante: vamos reagir. Outro, vacilante, sugeriu: vamos lutar. O líder, então, sentindo que era hora de transmitir confiança e energia, deu um soco na mesa e, no melhor estilo do gongorismo, exclamou: vamos reagirmos, vamos lutarmos.

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Era uma dessas loiras longilíneas, langorosas, que fazem jus às melhores aliterações.

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De repente, o domingo se fez tão esplêndido e promissor que o homem imaginou que só podia ser uma cilada.

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Tão mesquinhos andam os tempos que logo nos será negado até o direito de sofrer.

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Era um ventríloquo que falava até pelos cotovelos.

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Gramaticalmente, salvar-se ou não salvar-se depende da boa vontade de uma partícula apassivadora.

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Os poetas antigos morriam de amor. Os modernos vivem de negá-lo.
Raul Drewnick

Livros pelo rio

 


As pontes de Londres

Todas as vezes que penso em Londres revejo as suas pontes. Achei muito natural estar na Inglaterra, mas agora quando penso que lá estive meu coração se enche de gratidão. Vi em Londres uma terra estranha e viva, cinzenta – tudo o que é cinzento misteriosamente vibra para mim, como se fosse a reunião de todas as cores amansadas.

Estive em contato com a feiura dos ingleses, que é uma das coisas que mais atraem na Inglaterra. É uma feiura tão peculiar, tão bela – e isso não são meras palavras. Fazia muito frio, e o vento dava ao rosto e às mãos aquela vermelhidão crua que torna cada pessoa extremamente real. As mulheres fazem compras com as cestas, os homens da City usam chapéu-coco. E o Tâmisa é sujo, tem lama. Já houve peste em Londres. Uma vez se incendiou a cidade inteira. A peste e o incêndio estavam presentes na minha estada em Londres.

As pessoas bebem café horrível, em xícara grande, mas o café fumega. 
Fumegante como toda a ilha, cujas pontes enegrecidas surgem da quase constante névoa. O fog se exala das pedras do chão e envolve as pontes.


As pontes de Londres são muito emocionantes. Umas são sólidas e ameaçadoras. Outras são puro esqueleto. Quanto aos ingleses, não são tão inteligentes. Mas a Inglaterra é um dos países mais inteligentes do mundo. Estávamos de carro.

Entre uma cidade e outra, as cidadezinhas inglesas dão mil voltas em torno de si, e a chuva fina cai nos vidros do carro. Nas ruas o povo usa roupas tão malfeitas que terminaram se tornando um estilo belo. E agasalham mesmo. Vejo uma criança de capotão escuro e meias grosseiras e capuz enterrado abaixo das orelhas, com o rosto vívido e magro, olhos espertos e cara vermelha – e aquela entonação pura das vozes inglesas, interrogativas e orgulhosas.

Só agora sei quanto amei o vento de Londres que me fazia os olhos lacrimejar de raiva e a pele gritar de irritação.

E depois tem as estradas, o campo inglês que é diverso de qualquer outro campo. Lembro-me de árvores tão altas.

E depois há o desejo de viajar de todo inglês – e isso é um movimento inquieto e amplo.

No teatro em Londres uma coisa essencial se passa. É de tremer de frio e de emoção: o ator inglês é o homem mais sério da Inglaterra. Em poucas horas ele dá a cada um aquilo importante que se perde na vida diária. Quando se sai, é a chuva escura, a rua molhada, as velhas ruas inglesas onde de noite há o desejo de perigo. Vai-se jantar. Uma comida péssima irrita, no restaurante de comida tipicamente inglesa. Mas pode-se ir para um restaurante de comida alegre, dos estrangeiros, em Londres mesmo.

Lembro-me que houve Idade Média na Inglaterra, e isso está nas torres. A segurança de certos ingleses chega às vezes a se tornar engraçada. Nas ruas andam depressa, é um povo lutador. E se o mundo não fosse tão doloroso, seria bonito ver a luta pela sobrevivência.

E depois há a saudade dos escritores mortos. Tenho muita saudade de Lawrence.
A rainha é suave, os jornais têm um jeito provinciano, e quando os ingleses e inglesas são bonitos, passam logo a ter uma extraordinária beleza. E a criança inglesa é sempre linda, e quando abre a boca para falar, aí é que fica lindíssima.

Tudo isso se chama saudade: procuro recuperar Londres na memória, nessas notas. E assim fica apenas anotado, com a maior rapidez, antes que o sentimento passe.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

A cada leitor, seu assento

 


Os trovões de antigamente

Estou dormindo no antigo quarto de meus pais; as duas janelas dão para o terreiro onde fica o imenso pé de fruta-pão, à cuja sombra cresci. O desenho de suas folhas recorta-se contra o céu; essa imagem das folhas do fruta-pão recortadas contra o céu é das mais antigas de minha infância, do tempo em que eu ainda dormia em uma pequena cama cercada de palhinha junto à janela da esquerda.


A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mas deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma galinha cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais. Aqui os morros lhe dão um eco especial, que prolonga seu rumor. A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros que ladeiam as curvas do rio criam essa ressonância em que me reconheço menino, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, esperando a chegada dos trovões e depois a chuva batendo grossa lá fora, na terra quente, invadindo a casa com seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis, lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas barbas, empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa casa, no assoalho do céu — certamente também feito assim, de tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história, sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um grande armário preto me ficou na memória.

Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros, algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais; especialmente de uma grande touceira de espadas de São Jorge que a gente chamava apenas de “talas”; e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia bolas pretas para o jogo de gude. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada como a fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvores de nossa família, mas conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita?

Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundos para o rio. Como a casa das Martins, como a casa dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio.
Quando começavam as chuvas a gente ia toda manhã lá no quintal deles ver até onde chegara a enchente. As águas barrentas subiam primeiro até a altura da cerca dos fundos, depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo.

Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era uma festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito; como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso porão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da enchente, ficávamos tristes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um palmo — aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim. Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima, pelo Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas as enchentes.
E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de meus pais; eles trovejavam sobre nosso telhado e nosso pé de fruta-pão, os grandes, grossos trovões familiares de antigamente, os bons trovões do velho São Pedro.

Rubem Braga, "Ai te ti, Copacabana"

A carroça dos cachorros

Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi fecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

Amo os animais e todos eles me enchem do prazer natureza.

Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã desço a rua e vejo.

O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, tempo do império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

-- Lá vem a carrocinha! - dizem.

E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:

-- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

E toda a “avenida" se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade – o Amor.

São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá-los.
Lima Barreto

sexta-feira, novembro 24

Cuidado ao ler!

 


O corpo tendente da Divindade

No extremo da ilha, a deitar por sobre o quarto mar, onde se sabia ser já terra menos abençoada, erguia-se o segredo de Pé de Urutago para que o instruíra Pai Todo. O segredo dos guerreiros de vocação para o voo se consumava ali, atarefados todos que estiveram com a mesma ciência, o mesmo silêncio. Era muito sem vocábulo. Tinha nome, mas necessitavam calar para que se cumprisse a própria Divindade, que pedira adiamento e nenhuma notícia. Não se haveria de perigar seus comandos e sua esperança.

O grande corpo de Pé de Urutago movia-se entre a estranha estrutura que era uma outra vegetação. Uma que não vinha de raiz, não cobria de verde, não brotava fruto nem flor. Era branca. Uma mata pálida que o guerreiro cuidava de não ser coberta ou devorada por parasitas de quaisquer espécies. Carregando o corpo do inimigo, tão ao contrário do que sabia a comunidade, o guerreiro tinha a seu cargo um outro ritual. Um que precisava de executar sozinho, sem ninguém. E ele levava o inimigo morto para o lugar aberto de uma pedra à altura de meia perna e o deitou para começar a cortar. Era sempre sem discurso, sem abrigo, sem canção, sem flauta. Era sem demora. Pé de Urutago separava a carne dos ossos e tomava também a cabeça que decompunha dente a dente. Ao avesso do que sabiam os abaeté, o guerreiro ofendia a cabeça do inimigo e usava sua boca que não mais desceria enterrada. Então, imaculadamente limpo cada galho ósseo, encarou a imensa estrutura e decidiu. Atou numa ponta, correu, atou na outra, juntou alguns dentes num canto, outros ao longe, subiu para deixar pequenos ossos como flores de sal ao cimo, desceu para cravar algo mais no chão, como se aquele esqueleto gigante de quinhentos guerreiros ganhasse um novo pequeno pé. E afastou. Galho por galho, à luz intensa da tarde, incandescia a alvura daquela bizarria. Incomensurável, ali estava a mata de osso que reunia por imaginação aquele que seria o corpo tendente da Verdadeiríssima Divindade. Era o corpo tendente da Divindade que haveria de descer quando estivesse no instante certo e deitaria carne viva sobre aqueles ossos e habitaria a mata de jeito concreto na companhia de toda a criação. Um dia, quando o guerreiro de vocação alada colhesse o osso do relâmpago, nada mais faltaria para que o novo tempo e a nova ternura iniciassem. Era a intuição a que haviam acedido todos os pajés e para a qual haviam educado todos os guerreiros esperados para subir o clarão.

A Divindade virá e amará o esforço, o engenho e a imaginação abaeté, depois, deitará carne sobre os ossos e moverá seu corpo imenso para caminhar entre a criação. Será de tão vasto tamanho, tão cheia de bocas e atonará tantos olhos que poderá escolher beijar cada um e cada fera, cada árvore e cada pedra, ou poderá escolher devorar até sobrar mais nada novamente. Deprimida com o torpe dos espíritos, cansada da criação, a Divindade poderá escolher mover o corpo para o fim de todos os tempos. O novo tempo seria não haver tempo nenhum.


Pé de Urutago entristeceu por haver ameaçado matar o pequeno Honra, um tão fiel e desafiado abaeté. Mas não o poderia deixar saber que movia um inimigo pela mata, excluído dos rituais de abrigo, excluído de toda a gentileza da comunidade educada por tanta ancestralidade. O grande guerreiro aumentou o corpo tendente da Divindade e regressou ao areal. Caminhando longamente por tanta terra que os abaeté consideravam apenas silvestre. Uma terra a ir embora, sem alegria, feras por acordar, povos de feras sem ofício na guerra ou na fome abaeté. Tanta coisa sem nome, medrando no puro silêncio. Para ali, ninguém abeirava. Dava horror e dava compaixão. Criado o mundo, muito do mundo era por ganhar valentia. Valia de nada para a comunidade dos bons. Certamente apenas apodrecia, sustentava bichos e ideias podres, e seria por isso que multiplicavam os brancos.

A mesma coisa pensou o guerreiro sempre ferido. O grande Pé de Urutago o ameaçou para esconder a matança de um inimigo excluído do abrigo e da dignificação abaeté. Honra pensou que Pé de Urutago emocionara e usava os mortos para sua emoção sem sentido, levando ali a cabo uma tarefa sem serventia, um desperdício e ofensa a tudo quanto era imposto à gentileza do povo das ilhas de três mares. O feio branco chorou. Caminhou por entre os ossos erguidos num esqueleto inexplicável, impraticável, e chorou. Não tinha compaixão pelos inimigos. Era bom que tombassem, era bom que Pé de Urutago os caçasse em tão tremenda abundância e os terminasse de qualquer ataque. O que comovia Honra era o medo que sentia pelos abaeté que se mascaravam. Aqueles que não vigoravam nos límpidos gestos chefiados, na inspiração tão antiga, na intuição de cada instante que os ancestrais generosamente noticiavam. A Voz Coral berraria de dor se houvesse de prestar atenção ao que ia ali por aquela terra já enjeitada. Mais se comoveu o guerreiro, até que Meio da Noite entoou:

e se não for maldade. E se for alguma tarefa por noticiar. Uma tarefa incompleta que aguarde por certo detalhe, um certo osso, que seja. Pode tudo isto aguardar um só inimigo. Um inimigo que depois permita explicar, mostrar à comunidade, oferecer à comunidade este resultado e sua ciência. Sagrado Honra, não te impressiones senão com o tamanho dos ossos, a beleza morta que aqui está. Pode ser que o guerreiro grande cumpra uma chefia que desconhecemos. Não me parece bom acusarmos nem questionar. Melhor não entoar nada sobre isto. Esperar. Ver o que ensina o tempo. Saberemos antes de todos porque já começamos a saber. E isso deve merecer calma, paciência, e toda a esperteza de nossa guerra. Não entoes sobre nossa guerra. Isto está no caminho de todas as nossas vitórias. Eu tenho a certeza. Isto fará parte de todas as nossas vitórias.


O feio branco não confiou, incandesceu os olhos sobre o amigo, agradeceu o esforço para o aquietar. Respondeu:

não sinto.

Meio da Noite perguntou:

e porque te comove que o grande guerreiro descumpra as chefias mais rigorosas quando tu mesmo resistes a cumprir e odeias tão avesso à natureza abaeté. Tanto que chego a admirar o teu ódio, a bravura que te dá, a fidelidade à vingança do povo.

O branco não respondeu. Seria incapaz de confessar que usava a cor como desculpa para ser torpe. Incapaz de uma aprendizagem gentil, Honra escudava-se na cor para ser torto. Queria que ser torto fosse sem culpa, para se corromper sem limite na voracidade de seus sentimentos. Viciava-se naqueles sentimentos. Odiar era caminho sem muito regresso. Talvez também nunca tivesse lugar de chegada. Era uma ida contínua, sem satisfação.


Tomou um osso à sorte, escolhido sem grande importância, e no lugar deixou a flauta que nunca haveria de esculpir. Melhor disfarçaria a raiva se desfeito do resto morto do inimigo que ele próprio tombara. Pensou. Menos raiva o haveria de acometer. E Pai Todo rebrilharia de orgulho quando desse com ele a tocar, a cantar as mais importantes canções.

O feio negro perguntou:

o que vais querer cantar.

Honra entoou:

canções graves. Tristes. Canções que nos estimem a inteligência mas permitam a consciência de alguma dor. Quero prosseguir com minha obrigação de chorar, sagrado Meio da Noite.

O negro entendia mal o ofício tão importante do choro. Por imitação, respondeu:

não sinto. Haverei de sentir.

Honra apenas pensou e Meio da Noite berrou vinte onças num lamento incontido. Por dor ou fúria, o negro berrou mais vinte onças, e o guerreiro branco temeu que sua pele fosse tocada e se afastou um pouco. Poderia ser o som daquele bicho. Ele mais pensou. Que vinte onças poderia ser o som daquele bicho, se a mata inteira de osso tivesse carne e se pusesse a caminhar. O guerreiro sempre ferido depois chamou:

sagrado Meio da Noite. Sagrado Meio da Noite.

Mas o negro era em lugar nenhum. Até sua pele parou de ser tocada. Como se os insectos que lhe pousavam ou subiam tivessem finalmente debandado. E ele, em sobressalto, novamente chamou:

sagrado Meio da Noite. Onde estás.

Então, o negro abeirou, refeito de uma sombra, e entoou que melhor seria que fossem em regresso. Honra duvidou se aquela prudência era do negro ou sua. Um insecto voltou a voar para seu ombro. Não o viu. Sentiu como quase lhe mordeu a pele. Olhou o negro e não confessou mas soube que não quereria mais ficar sozinho daquele amigo. Quando declarara que eram gémeos não havia mentido.

Eram-no. Diferiam, mas não diferiam de ser opostos. Eram duas partes de uma ideia só. Agora, o guerreiro branco faria qualquer coisa por seu amigo que não lhe mentira. Provara que até a absurda coisa de uma mata de osso existia. Provara que não mentia. Era puro. O negro era puro. Inventado pelas mais gentis causas.

*

Então, caminho para a aldeia, Honra o avisou de que pedira por ele a Dois Amanhãs. Pediu que lhe mexesse o corpo. O negro saltitou na mata como os filhotes e brincou palavras brancas rápidas que o amigo não pôde entender. Honra, animando-se um pouco, afirmou:

vou brincar palavras também. As palavras abaeté mais belas que abrigam esperança e criam sorte.

Então, entoou:

o mar da flor, o doce do esquecimento, a feminina gentil, o filhote de tapir, a consciência tardia, o igarapé que salta, o pequeno igarapé, o muito grande igarapé, todas as cachoeiras, o beijo do tamanduá, o trovão da terra, o fogo das araras, as conversas das araras, as chuvas castanhas, o beijo do jacaré, há um jacaré no teu peito. Animal negro, tens um jacaré no peito e só ele te vai querer beijar alguma vez.

Rindo, Meio da Noite entoou:

o cheiro e o sabor das femininas. O cheiro e o sabor de Dois Amanhãs. Obrigado. Vou dormir a sonhar com as folias. Dois Amanhãs é bela. Como é bela a nossa feminina. Obrigado, sagrado Honra. Os povos negros rejubilam.

Saltitando sempre, apressados mata fora para a aldeia litoral, os feios tomavam suas lanças como se matassem originalidades pelo caminho. Vociferavam.

Vociferavam muito, sem sentido nem compromisso. Então, num instante em que Honra se deteve para colher do chão o osso que deixara cair, Meio da Noite encheu o peito e berrou mais vinte onças. A mata partiu. Aves e roedores, feras felinas, insectos, aranhas e todos os bichos que pudessem dar passo ou salto partiram dali. Levantou-se o sopro vocabular do vento. Honra entoou:

como fede, e como é perfeito um berro assim.

Valter Hugo Mãe, "As doenças do Brasil"

O rio Grande

O rio Grande ensinava preguiça. Escorria sonolento. Ia como quem não quer ir. Empurrado. O Heládio Brito, poeta, sabe o ser dos rios: “Eu vim de ver o rio, o frouxo ir das águas, pesadas delas mesmas, grossas das lonjuras vindas no irem sendo rio. Líquido boi cansado carregado de peixes...” . Guimarães Rosa, talvez contemplando o São Francisco, confessou o seu amor pelos rios. “Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma dos homens. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade...” E Heráclito, o obscuro, filósofo grego, tomou o rio como a imagem do mundo. Tudo é rio. Tudo passa sem parar. Não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. Assim era o rio Grande. Ensinava filosofia. Filosofia tao.

Mas, ao se aproximar de Lavras, o rio Grande era repentinamente espremido numa estreitíssima garganta de pedras, pela qual as águas passavam com fúria. Era o “funil” que passou a ser agregado ao nome da cidade que virou Lavras do Funil. Lugar de perigo. Muitos distraídos foram tragados pelas águas. Mas era um lugar bom de se pescar porque os peixes, subindo o rio manso em busca das nascentes, eram parados pela força das águas. Pesquei lá muitas vezes. Hoje não existe mais. Construíram uma barragem. O funil foi coberto pelas águas do progresso. Sua fúria amansou. Na fundura serena das águas não mais estranguladas pela garganta estreita os peixes nadam tranquilamente. Dali para baixo o rio ficava preguiçoso de novo, prestando-se à navegação. Foi então que homens progressistas da cidade de Lavras, entre eles o doutor Jorge, avô materno de minha mãe, e o seu genro capitão Evaristo, pai de minha mãe, tiveram a ideia de montar uma companhia de navegação que, começando no porto de Ribeirão Vermelho, a oito quilômetros de Lavras, desceria até Boa Esperança. O vapor, parecido com aqueles do rio Mississipi, veio dos Estados Unidos. Imagino que o seu transporte do Rio de Janeiro até Ribeirão Vermelho deve ter sido uma epopeia a se comparar com a epopéia do transporte da pedra do altar para o convento de Mafra descrito por Saramago, no seu livro Memorial do convento. Rio abaixo, de Ribeirão Vermelho a Boa Esperança, a viagem levava dia e meio. O vapor, elegante, era dotado de camarotes. Rio acima, três dias, duas noites sobre as águas. Devia ser bonito e silencioso. Foi nesse vapor que os casadinhos de novo, meu pai e minha mãe, viajaram naquele dia de começo de setembro do ano de 1919. Os ipês amarelos estavam em flor.

Aquele casamento ligava duas fortunas e dois sangues: um sangue ruim, misturado, e um sangue azul, supostamente puro. Mas plebeu que se casa com princesa fica nobre. A excelentíssima esposa do filho da dona Sophia tinha sangue azul e era pianista. Seu piano Pleyel, presente de casamento do capitão Evaristo, seu pai, em breve chegaria a Dores diretamente de Paris, alterando a estatística do Almanak. Realizava-se o sonho da dona Sophia.

O foguetório era para anunciar que os nubentes acabavam de desembarcar do vapor Doutor Jorge, no porto do rio Grande, depois de uma viagem de um dia e meio rio abaixo, desde o porto de Ribeirão Vermelho. Todo mundo tinha de saber. Naquele momento a comitiva estava a caminho, os homens cavalgando em selas e arreios, minha mãe cavalgando em silhão porque em Dores não havia liteira. Silhão, se é que você não sabe, foi a solução encontrada pelos artesãos defensores da castidade para evitar a indecência de uma mulher cavalgando de pernas abertas, como os homens. No silhão cavalgava-se assentado. De fato, era perigoso para uma mulher cavalgar de pernas abertas, mormente se fosse virgem. Havia sempre duas possibilidades, pelo menos na imaginação dos homens. Primeira, que a virgem viesse a perder sua virgindade, o que a infelicitaria pelo resto da vida, posto que o marido não acreditaria nas explicações que ela daria na noite de núpcias. Segunda, mais realista, que as pressões rítmicas da sela sobre as partes secretas da mulher viessem a lhe causar prazeres proibidos. Aqueles movimentos do cavalo, especialmente se for trotão, sugerem imediatamente os movimentos de um coito e os seus deleites, coisa que eventualmente era confirmada pelo sorriso de prazer da amazona. Ora, isso é incompatível com o caráter puro de uma excelentíssima mulher honesta. Mulheres honestas não gostam de sexo. Por isso a mulher tinha de ir assentada no silhão, pernas castamente fechadas, o seu cavalo a andar passo a passo, como se estivesse seguindo uma procissão.

O vapor Doutor Jorge, eu o vi 22 anos depois, quando tinha sete anos, afundado no porto de Ribeirão Vermelho. Dizem que a sua chaminé ainda pode ser vista hoje quando o rio está baixo.

Minha avó sorriu feliz. O seu sonho de nobreza, acrescentado ao da riqueza, estava realizado.
Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"

Eram três brasileiras e um português

Eu cá queria escrever sobre a sorte que tem a língua portuguesa aqui em Portugal por ter tantos brasileiros a falar a nossa língua. É mais do que uma injeção de vitalidade e de amplitude: é uma segunda vida.

Não é só o português que os brasileiros falam — musical, gracioso, sexy, humorístico, brincalhão, metediço, encantador — mas a maneira como eles vão construindo a língua à medida que falam, como se tivessem vindo do dentista e, estando a passar a anestesia camoniana, se pusessem a explorar a língua e o interior da boca, para ver onde se consegue meter, para descobrir até aonde pode ir.

É a língua portuguesa em liberdade, muito novinha, ainda a decidir o que quer ser.

Mas, como se verá, é difícil para caramba escrever em português. Lembrei-me dos nadadores-salvadores brasileiros que havia na Praia Grande, que ficavam escandalizados com a maneira como os basbaques olhavam para as mulheres. Um deles estava sempre a abanar a cabeça e a protestar: “Isto no Brasil é assédio!”

Saindo anteontem da padaria, dei com três brasileiras que iam para a escola. Iam mesmo à minha frente, de passo apressado, muito bem-dispostas — a rir-se tanto que tinham de parar para deixar escapar o riso.

Mas como é que se podia escrever isto sem parecer assédio? Não podia dizer que fui atrás de três brasileiras ou que segui três brasileiras pela rua abaixo — apesar de ter sido isso que aconteceu.

E eis que surge uma lição que os brasileiros nos ensinaram: só um português teria este problema.

É o eterno problema do “parecer mal”. Um brasileiro acharia graça à possibilidade de um mal-entendido. Um sexagenário português que persegue três adolescentes brasileiras, para mais a pensar em Drummond de Andrade e em Cesariny, é bom demais para ser desperdiçado.

Não é só a língua que falamos que agradece, mas é importantíssimo: considero cada brasileirismo que apanhei não só como uma honra, mas como uma prova de abertura e de flexibilidade.

quarta-feira, novembro 22

Bomba incendiária

 


Leituras adolescentes que deixaram marca

Tenho falado longamente de leituras que, na adolescência, deixaram marca em mim. Não foram só grandes autores, como Voltaire, Stendhal, Balzac, André Gide, Dostoiewsky, Tolstoi, Turguenev, Charlotte Bronte, Garrett, Camões, Régio e outros, de grande gabarito, que profundamente me afectaram. Tive já ocasião de referir livros como Família sem nome, de Jules Verne, ou Os dramas da Internacional, de Pierre Zacone, que deixaram marca profunda. São livros que, depois de lidos, durante algum tempo, não nos deixam pensar em mais nada senão neles. É um erro pensar que só as grandes obras têm este poder. O dia em que, adolescente, li Férias, da Condessa de Ségur, ficou, para sempre, como um dia mágico. Só os snobs e os mentirosos não confessam estas coisas. Estes livros são aqueles que eu costumo classificar como clássicos menores. Mas são, efectivamente, livros clássicos. São pequenas estrelas que, para sempre, ficam a brilhar, no nosso firmamento.

Entre estes clássicos menores, coloco sempre o romance histórico de Arnaldo Gama, O sargento-mor de Vilar. Li, dele, nessa altura, quase tudo o que escreveu: Um motim há cem anos, O Bailio de Leça, A última dama de S. Nicolau, O filho do Baldaia, A caldeira de Pero Botelho, O segredo do Abadde e até esse longo folhetim, na peugada dos de Eugène Sue, O génio do ml, com a tenebrosa Matilde, cuja maldade tanto me fascinou. Porém, de todos os seus livros, o que mais me impressionou foi, aliás, o primeiro que dele li, O sargento-mor de Vilar. Os amores do fidalgo Luis Vasques com Camila, a filha do sargento-mor de Vilar, tendo como pano de fundo a invasão francesa de Portugal, a comando de Soult, e a descrição da resistência portuguesa ao invasor, “apanharam-me” completamente e na altura própria. Nunca mais voltei ao livro, com receio de se não renovar a magia. Nem todas estas marcas profundas se renovam, como seguramente se renova a magia de Le rouge et le noir, de Ressurreição (Tolstoi), de Assia (Turguenev), de Os irmãos Karamazov (Dostoiewsky) ou de Uma gota de sangue (José Régio). Estas são marcas que resistem à erosão do tempo. As outras, brilham no horizonte da nossa memória, mas tememos revisitá-las…

Eugénio Lisboa

Papai

Em primeiro lugar, ele me falou longamente e protetoramente – como todos me falam… – acerca das responsabilidades que me foram transmitidas pelo nome que herdei… E em seguida perguntou-me:

– Com que idade morreu seu pai?

– 51 anos…

Meneando a cabeça, o seu comentário foi como de toda gente:

– Como morreu cedo!

Eu contestei:

– Não, como morreu tarde!

Ele, de certo, não me compreendeu.

Sorriu.

“As minhas blagues!”…

Mas a verdade é que ele morreu tarde: muito tarde!

Como, ali, novamente, acabara de ouvir a enumeração da sua Glória, novamente me lembrei de tudo…

Meu Pai devia ter morrido 17 anos antes. Já houve quem o dissesse… O falecido João Marques, se não me engano… Eu concordo.

Devia ter morrido em 88, no estrépito, no clangor, na ilusão da sua Glória. E assim talvez tivesse levado da Glória, talvez tivesse levado da vida uma ideia menos amarga.

Não morreu.

E a vida continuou…

E a vida é feroz!

Antes de tudo, a sua eloquência.

Pobre eloquência!

O gesto com que arrebatara a multidão no dia 13 de Maio, ajoelhando-se aos pés de Isabel (a Redentora) em nome da raça que ela acabava de libertar – e que era a nossa –, esse mesmo gesto passou a ser na sua vida um libelo. Era um “escravo do trono”… Trocadilhisticamente se tornou o “preto-cínico”, o “vira-casaca”, o “Chalaça” e, até agora, nas notas explicativas da antologia do piedoso Laet – “um jornalista que enveredava frequentemente pela calúnia”…

O menos que lhe sucedeu – porque era expansivo, tropical, ruidoso – foi ter um vulgo, como tipos da rua: Zé do Pato.

E os anos foram passando…

Mudaram os tempos.

Em novecentos e tantos, já sem a “Cidade do Rio”, o seu jornal, que muita gente tinha comparado a “uma Força desencadeada na vida nacional!” –, fazendo um discurso a Santos Dumont no Teatro Lírico, foi acometido da sua primeira hemoptise.

Caiu-me nos braços como um cedro ferido pelo raio (conforme se dizia em 1830…).

Foi para a cama.

Aneurisma.

Cirrose…

Trinta anos de romantismo, ideais, vinho do Porto…

E nem um níquel!

João de Souza Lage (Deus lhe fale na alma!) encomendara-lhe, quase por caridade, um artigo semanal para “O país”. Salvador Santos, nas mesmas condições, uma crônica humorística (humorística!) para “A notícia”. Foram as derradeiras mãos que o ampararam. E aquilo era quanto tinha para viver e sustentar a família. E também era tudo o que lhe restava da Glória…

Então começou a agonia.

Dois anos!

Vegetamos pelos subúrbios. Durante meses moramos num barracão, onde o vento assoviava pela frincha das tábuas.

Às vezes não havia com que mandar aviar as receitas do seu médico.

Foi quando comecei a cometer estelionatos: escrevia artigos, assinava o seu nome, levava-os ao Lage, ou ao Salvador, para que houvesse quatro vinténs em casa…

E de todos os seus discípulos, de todos aqueles que o rodeavam, e nos chamavam, em outros tempos, a ele e a mim, os “nossos Dumas”, nunca mais um único se abeirou do seu leito de agonia…

Minto!

Em dois anos, o romancista Coelho Neto foi visitá-lo uma vez. Era seu afilhado de casamento, e foi o melhor de todos.

Ele se comoveu com a visita. Contou-lhe tudo. E, ao voltar para a cidade, o conceituado escritor escreveu uma coisa tão comovedora sobre a nossa miséria que o homem da venda nos suspendeu o crédito.

A vida é assim…

Bilac também o foi ver: no dia seguinte ao dia em que ele morreu…

Nesse dia, chegaram juntos, lá aos confins do Engenho de Dentro, onde faleceu, o Poeta da Tarde e a Glória – que há tanto andava arredia.

Efetivamente, o Sr. J. J. Seabra, seu companheiro de desterro no Cucuí, seu amigo íntimo, nos dias prósperos, mas que, de certo por ser ministro, nessa outra época, nunca tivera tempo para indagar da sua saúde, conseguiu que o governo mandasse fazer-lhe o enterro.

Funerais de estado, com um coche de grande gala, cavalos cobertos de plumas negras, marcha fúnebre, embalsamento, crepe nos lampiões etc., etc., etc.

Seu corpo, durante quinze dias, esteve exposto numa igreja – “ao culto cívico do povo”. Entretanto, no oitavo dia que se seguiu à sua morte, nós desocupávamos a casa em que ele morrera, em virtude de um mandado de despejo…

Ele sabia, na hora da morte, que esse despejo estava iminente…

1888…

1905…

Morreu tarde, coitado, muito tarde!

É verdade que pouco importa a folha caída na corrente do rio que deriva por baixo da árvore…

A vida continuou…

Mas foi assim que eu comecei a conhecer a vida

José do Patrocínio Filho, "O homem que passa" (1927)

segunda-feira, novembro 20

Leitura em tempo chuvoso

 


O Menino Mais Novo

A ideia surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã e entrou a amansá-la. Não era propriamente ideia: era o desejo vago de realizar qualquer ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia.

Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para trás, preso debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um círculo enorme em torno da cabeça.

O animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinha Vitória subjugava-o agarrando-lhe os beiços. O vaqueiro apertou a cilha e posse a andar em redor, fiscalizando os arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um coice: virou o corpo, os cascos da égua passaram-lhe rente ao peito, raspando o gibão. Em seguida Fabiano subiu ao copiar, saltou na sela, a mulher recuou – e foi um redemoinho na catinga.

Trepado na porteira do curral, o menino mais novo torcia as mãos suadas, estirava-se para ver a nuvem de poeira que toldava as imburanas. Ficou assim uma eternidade, cheio de alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo. Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio, os arreios no braço. Os estribos, soltos na carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das esporas tiniam.

Sinha Vitória cachimbava tranquila no banco do copiar, catando lêndeas no filho mais velho. Não se conformando com semelhante indiferença depois da façanha do pai, o menino foi acordar Baleia, que preguiçava, a barriguinha vermelha descoberta, sem-vergonha. A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de amolar, bocejou e pegou no sono de novo.

Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido da mãe, desejando comunicar-se com ela. Sinha Vitória soltou uma exclamação de aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.

Retirou-se zangado, encostou-se num esteio do alpendre, achando o mundo todo ruim e insensato. Dirigiu-se ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando, erguendo os focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de Baleia e o mau humor de Sinha Vitória desapareceram. A admiração a Fabiano é que ia ficando maior.


Esqueceu desentendimentos e grosserias, um entusiasmo verdadeiro encheu-lhe a alma pequenina. Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas perneiras, tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guarda-peito, as esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no.

Fabiano desviou-o desatento, entrou na sala e foi despojar- se daquela grandeza.
O menino deitou-se na esteira, enrolou-se e fechou os olhos. Fabiano era terrível. No chão, despidos os couros, reduzia-se bastante, mas no lombo da égua alazã era terrível.

Dormiu e sonhou. Um pé-de-vento cobria de poeira a folhagem das imburanas, Sinha Vitória catava piolhos no filho mais velho. Baleia descansava a cabeça na pedra de amolar.

No dia seguinte essas imagens se varreram completamente. Os juazeiros do fim do pátio estavam escuros, destoavam das outras árvores. Porque seria?

Aproximou-se do chiqueiro das cabras, viu o bode velho fazendo um barulho feio com as ventas arregaçadas, lembrou-se do acontecimento da véspera. 
Encaminhou-se aos juazeiros, curvado, espiando os rastos da égua alazã.

A hora do almoço Sinha Vitória repreendeu-o: – Este capeta anda leso.

Ergueu-se, deixou a cozinha, foi contemplar as perneiras, o guarda-peito e o gibão pendurados num torno da sala. Daí marchou para o chiqueiro – e o projeto nasceu.

Arredou-se, fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também. Rodeou o chiqueiro, mexendo-se como um urubu, arremedando Fabiano.

A necessidade de consultar o irmão apareceu e desapareceu. O outro iria rir-se, mangar dele, avisar Sinha Vitória. Teve medo do riso e da mangação. Se falasse naquilo, Sinha Vitória lhe puxaria as orelhas.

Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano. Conversando, talvez conseguisse explicar-se.

Pôs-se a caminhar, banzeiro, até que o irmão e Baleia levaram as cabras ao bebedouro. A porteira abriu-se, um fartum espalhou-se pelos arredores, os chocalhos soaram, a camisinha de algodão atravessou o pátio, contornou as pedras onde se atiravam cobras mortas, passou os juazeiros, desceu a ladeira, alcançou a margem do rio.

Agora as cabras se empurravam metendo os focinhos na água, os cornos entrechocavam-se. Baleia, atarefada, latia correndo.

Trepado na ribanceira, o coração aos baques, o menino mais novo esperava que o bode chegasse ao bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali em cima tinha crescido e podia virar Fabiano.

Sentou-se indeciso. O bode ia saltar e derrubá-lo. Ergueu-se, afastou-se, quase livre da tentação, viu um bando de periquitos que voava sobre as catingueiras. Desejou possuir um deles, amarrá-lo com uma embira, dar-lhe comida. Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando o céu cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos, mas desmanchavam-se e tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes se juntaram – e uma tinha a figura da égua alazã, a outra representava Fabiano.

Baixou os olhos encandeados, esfregou-os, aproximou-se novamente da ribanceira, distinguiu a massa confusa do rebanho, ouviu as pancadas dos chifres. Se o bode já tivesse bebido, ele experimentaria decepção. Examinou as pernas finas, a camisinha encardida e rasgada. Enxergara viventes no céu, considerava-se protegido, convencia-se de que forças misteriosas iam ampará-lo. Boiaria no ar, como um periquito.

Pôs-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão e a cachorra. Não obtendo resultado, indignou-se. Ia mostrar aos dois uma proeza, voltariam para casa espantados.

Aí o bode se avizinhou e meteu o focinho na água. O menino despenhou-se da ribanceira, escanchou-se no espinhaço dele.

Mergulhou no pelame fofo, escorregou, tentou em vão segurar-se com os calcanhares, foi atirado para a frente, voltou, achou-se montado na garupa do animal, que saltava demais e provavelmente se distanciava do bebedouro. Inclinou-se para um lado, mas fortemente sacudido, retomou a posição vertical, entrou a dançar desengonçado, as pernas abertas, os braços inúteis. Outra vez impelido para a frente, deu um salto mortal, passou por cima da cabeça do bode, aumentou o rasgão da camisa numa das pontas e estirou-se na areia. Ficou ali estatelado, quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo vagamente que escapara sem honra da aventura.

Viu as nuvens que se desmanchavam no céu azul, embirrou com elas. Interessou-se pelo vôo dos urubus. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu.

Sentou-se, apalpou as juntas doídas. Fora sacolejado violentamente, parecia-lhe que os ossos estavam deslocados.

Olhou com raiva o irmão e a cachorra. Deviam tê-lo prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade: o irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas, coices e marradas.

Ergueu-se, arrastou-se com desânimo até a cerca do bebedouro, encostou-se a ela, o rosto virado para a água barrenta, o coração esmorecido. Meteu os dedos finos pelo rasgão, coçou o peito magro. O tropel das cabras perdeu-se na ladeira, a cachorrinha ladrou longe. Como estariam as nuvens? Provavelmente algumas se transformavam em carneirinhos, outras eram como bichos desconhecidos.

Lembrou-se de Fabiano e procurou esquecê-lo. Com certeza Fabiano e Sinha Vitória iam castigá-lo por causa do acidente. Levantou os olhos tímidos. A lua tinha aparecido, engrossava, acompanhada por uma estrelinha quase invisível. Aquela hora os Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de milho. Se possuísse um daqueles periquitos, seria feliz.

Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara. Uns riachos miúdos marejavam na areia como artérias abertas de animais. Recordou-se das cabras abatidas a mão de pilão, penduradas de cabeça para baixo num caibro do copiar, sangrando.

Retirou-se. A humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu. Precisava entrar em casa, jantar, dormir. E precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru.

Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. 
Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados.
Graciliano Ramos, "Vidas Secas"

Última vontade

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos.
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a lage do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Este sim, imortais.
Até que, um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.

Millôr Fernandes, "Papáverum" 

Diário de Bernardo Soares

Nasci num tempo em que a maioria dos jovens tinham perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a tinham tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com os seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia. A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como aos meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.

Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida. Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.

Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde. Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego"

O que dizem os abraços

Juntar as pontas dos ombros e dar algumas palmadinhas nas costas não é um abraço. Escrever "abraço" no fim de um e-mail também não é um abraço. Indiferente ao desenvolvimento social e tecnológico, um abraço continua a ser duas pessoas que se juntam e se apertam uma de encontro à outra.

Esses rapazes que aparecem com cartazes a oferecerem abraços nos festivais de verão têm graça e talvez sejam bem-intencionados, mas fazem publicidade enganosa. Não são os abraços que provocam as ligações, são as ligações que provocam os abraços. Um abraço não é apenas duas pessoas que se juntam e se apertam uma de encontro à outra.

Um abraço tem muita importância.

Quando eu era uma criança, teria talvez uns nove ou dez anos, o meu pai deu-me um abraço na cozinha da nossa casa. Era de madrugada porque essa era a hora em que, naquele tempo, se saía da minha terra quando se ia para Lisboa. O meu pai tinha uma operação marcada no hospital, estava vestido com as roupas novas e tinha medo. Enquanto me abraçava, o meu pai chorou porque, durante um momento, acreditou que podia nunca mais me ver. Os braços do meu pai passavam-me pelos ombros, a minha cabeça assentava-lhe na barriga, sobre o pullover. A lâmpada que tínhamos acesa por cima da cabeça espalhava uma luz que amarelecia tudo o que tocava: a mesa onde jantávamos todos os dias, o ar que ali respirámos em tantas horas anteriores àquela, em tantas horas ignorantes daquela. O meu pai usava um aftershave muito enjoativo, barato, que alguém lhe tinha oferecido no Natal. Agora mesmo, consigo ainda sentir esse cheiro com nitidez absoluta.

A operação correu bem. Depois do susto, depois da convalescença, o meu pai voltou para casa com uma cicatriz grossa e roxa na barriga, ficava à vista quando a camisa lhe saía para fora das calças ou na praia, apesar de usar os calções exageradamente puxados para cima. Depois disso, tivemos direito a nove anos em que não voltámos a pensar em despedidas.s

Durante muito tempo procurei em toda a minha memória: as lembranças de quando regressou da operação ou, depois, quando tínhamos a mesma altura ou, mesmo depois, quando ficou doente pela última vez. Mas abandonei as buscas, não consigo recordar outra ocasião em que nos tenhamos voltado a abraçar. Essa madrugada na cozinha, a luz amarela, o aftershave, foi a única vez em que nos abraçámos na vida.

Não afirmo com leveza que um abraço tem muita importância. Há quinze anos que escrevo livros apenas sobre esse abraço.

José Luís Peixoto

sábado, novembro 18

Boa vista do mundo

 


Pátria e tribo confundem-se na minha cabeça

Escrevo estas páginas num socalco incrustado numa colina escarpada, vigiada por uma centena de carvalhos retorcidos, contemplando a baía de São Francisco, mas eu venho de outro lado. A nostalgia é o meu vício. A nostalgia é um sentimento melancólico e um pouco piegas, como a ternura; é quase impossível abordar o tema sem cair no sentimentalismo, mas vou tentá-lo. Se resvalar e cair na pieguice, tenha o leitor a certeza de que me porei de pé umas linhas mais à frente. Na minha idade - sou tão antiga como a penicilina sintética - começamos a recordar coisas que estiveram enterradas durante meio século. Não pensei na minha infância nem na minha adolescência durante décadas; na realidade nem sequer me importavam aqueles períodos do passado remoto em que ao ver os álbuns de fotografias da minha mãe não reconhecia ninguém, exceto uma cadela buldogue com o nome improvável de Pelvina López-Pun, e a única razão pela qual me ficou gravada é porque nos parecíamos de forma notável. Existe uma fotografia de ambas, quando eu tinha poucos meses de idade, na qual a minha mãe teve de indicar com uma seta quem era quem. Certamente que a minha pouca memória se deve a que esses tempos não foram particularmente ditosos, mas suponho que acontece o mesmo com a maior parte dos mortais. A infância feliz é um mito; para o compreender basta lançar um olhar aos contos infantis, nos quais o lobo come a avozinha, e logo vem um lenhador que abre o pobre animal de cima a baixo com o seu machado, tira a velha viva e inteira, volta a encher a barriga com pedras e em seguida cose a pele com linha e agulha, provocando uma tal sede no lobo que este desata a correr para ir beber água no rio, onde se afoga com o peso das pedras. Por que não o eliminou de maneira mais simples e humana?, interrogo-me. Seguramente porque nada é simples nem humano na infância. Nesses tempos não existia o termo «abuso infantil», supunha-se que a melhor forma de criar meninos era com o chicote numa mão e a cruz na outra, tal como se dava por adquirido o direito do homem a abanar a sua mulher se a sopa chegasse fria à mesa. Antes de os psicólogos e as autoridades intervirem no assunto, ninguém duvidava dos efeitos benéficos de uma boa sova. Não me batiam como aos meus irmãos, mas também eu vivia com medo, como todas as outras crianças à minha volta. No meu caso, a infelicidade natural da infância era agravada por uma quantidade de complexos tão emaranhados que já nem sequer consigo enumerá-los, mas que felizmente não me deixaram feridas que o tempo não curasse. Uma vez ouvi dizer a uma famosa escritora afro-americana que desde criança se tinha sentido uma estranha na sua família e na sua terra; acrescentou que é o que sentem quase todos os escritores, mesmo que nunca saiam da sua cidade natal. É uma condição inerente a este trabalho, garantiu; sem o desassossego de se sentir diferente não haveria necessidade de escrever. A escrita, ao fim e ao cabo, é uma tentativa de compreender as circunstâncias próprias e clarificar a confusão da existência, inquietudes que não atormentam as pessoas normais, só os inconformistas crônicos, muitos dos quais acabam convertidos em escritores depois de terem fracassado noutros ofícios. Esta teoria tirou-me um peso de cima: não sou um monstro, há outros como eu. Nunca vesti em parte alguma, nem na família, a classe social ou a religião que me tocaram em sorte; não pertenci aos bandos que andavam de bicicleta pela rua; os primos não me incluíam nas suas brincadeiras; era a rapariguinha menos popular do colégio e depois fui durante muito tempo a que menos dançava nas festas, mais por ser tímida do que por ser feia, prefiro supor. Fechava-me na capa do orgulho, fingindo que não me importava, mas teria vendido a alma ao diabo para ser do grupo, se por acaso Satanás se tivesse apresentado com uma proposta tão atrativa. A raiz do meu problema foi sempre a mesma: incapacidade de aceitar o que a outros parece natural e uma tendência irresistível para emitir opiniões que ninguém deseja ouvir, o que afugentou alguns potenciais pretendentes. (Não quero ser convencida, nunca foram muitos.) Mais tarde, durante os meus anos de jornalista, a curiosidade e o atrevimento tiveram algumas vantagens. Pela primeira vez fiz então parte de uma comunidade, tinha carta de alforria para fazer perguntas indiscretas e divulgar as minhas ideias, mas isso acabou bruscamente com o golpe militar de 1973, que desencadeou forças incontroláveis. Da noite para o dia vi-me estrangeira na minha própria terra, até que finalmente tive de partir, porque não podia viver e criar os meus filhos num país onde imperava o medo e onde não havia lugar para dissidentes como eu. Nesse tempo a curiosidade e o atrevimento estavam proibidos por decreto. Fora do Chile esperei durante anos que se reinstalasse a democracia para regressar, mas quando isso aconteceu não o fiz, porque estava casada com um norte-americano, a viver perto de São Francisco. Não voltei a residir no Chile, onde na verdade passei menos de metade da minha vida, embora o visite com frequência; mas para responder à pergunta daquele desconhecido sobre a nostalgia, devo limitar-me quase exclusivamente aos anos que lá vivi. E para o fazer devo ter como referência a minha família, porque pátria e tribo confundem-se na minha cabeça.

Isabel Allende, "O meu país inventado"

Johnny Sete Luas

Apesar de nunca ter dito nada, e de usar sua necessidade de sono e de bons sonhos como desculpa, vovô Jake não gostava da caça ao porco das manhãs de domingo – não gostava nadinha. Ficava aborrecido pelo fato de Miúdo estar se tornando obcecado por matar o Cerra-Dente. Caçar era uma coisa, matar era outra, e a obsessão, de qualquer forma, era, ela experiência de vovô, altamente traiçoeira; não se pode nascer sem se soltar, e muito pouca gente conseguia soltar uma obsessão.

A constância do lampejo tenso e excitado nos olhos de Miúdo o perturbava. Abençoava Fup por acompanhar Miúdo, pois, apesar da impetuosidade, ela era lenta, e os dois juntos só cobriam cerca de um oitavo do território que Miúdo conseguiria cobrir se fosse sozinho ou com cachorros. No fundo do coração, vovô não queria que o Cerra-Dente fosse morto; acreditava piamente que ele era a reencarnação de seu velho amigo Johnny Sete Luas. Essa crença constantemente o surpreendia já que em geral afirmava que essa coisa de reencarnação era um monte de bosta de cavalo com dois metros de altura.

Johnny Sete Luas fora o único homem, além de vovô, a tomar uma dose do Velho Sussurro da Morte sem vacilar Vovô o encontrara pela primeira vez ogo depois de ter desistido do jogo em favor de uma vida mais estável e sossegada. Estava sentado na varanda de frente, experimentando sua quinta bagatela, quando viu um velho índio chegar e cruzar o quintal, usando um chapéu de cowboy bem surrado e uma espécie de cachecol preto, típico de sua gente. Apesar de nunca o ter visto antes, vovô Jake o reconheceu pelas histórias como sendo o Johnny Sete Luas, um velho índio pomo que perambulava pelas colinas do litoral, aparentemente sem ter casa ou fonte de renda. Segundo algumas histórias que tinha ouvido, Johnny Sete Luas tinha sido treinado como pajé antes de o esmagamento imposto pela civilização branca desintegrar os costumes tribais. Johnny Sete Luas era suspeito de ter sabotado amplamente as cercas e o equipamento pesado dos agricultores locais, e em geral não era bem-vindo na área. No entanto, sempre se falava nele com um estranho respeito – ele era polido e manso no falar, e o seu passado de xamã sugeria certos poderes… nada específico… só uma sensação.

Vovô sentira isso antes mesmo de Johnny Sete Luas chegar à varanda perguntando se podia trabalhar em troca de algo para beber, de preferência uísque. Sentaram-se na varanda e ficaram bebendo uísque por dois dias, e até a tardinha do terceiro. Vovô Jake o achou um excelente companheiro, pois durante todo esse tempo Johnny Sete Luas não emitiu uma palavra. Ficou sentado, tomando uns goles na garrafa, contemplando o dia, a noite, calmo e extremamente quieto.

Na terceira noite, ele deu uma respirada profunda, virou-se para Jake e disse:

– Deixa eu te contar sobre meu nome, Sete Luas. Acrescentei o Johnny quando o homem branco chegou, pois achei que soava jovem e sexy, mas não parecer ter ajudado muito. Agora eu acho ruim inventar nomes, mas o mantenho pra me lembrar que a gente precisar viver com os próprios erros. Recebi o meu nome, Sete Luas, quando fui treinado para pajé. Saí por aí, sozinho, procurando meu nome numa visão. Perambulei e procurei, sem comida, por três dias, uma semana. Não aconteceu nada. No sétimo dia, quando o sol tocou o mar, dei com um grupo de moças de outra aldeia, colhendo junco e bagas. Era uma noite morna de outono. Elas estavam acampadas ao longo de um pequeno córrego cozinhando um salmão gordo, e tinham um pão de bolota de carvalho e frutas silvestres. Você já reparou como a fome chega ao máximo quando se está bem perto de satisfazê-la? Eu me juntei a elas e comemos bem. Naquela noite, enquanto a lua cheia viajava pelo céu, fiz amor com cada uma delas, e com cada uma senti a lua cheia se queimando no meu corpo, uma luz grande, cor de pérola, explodindo na minha cabeça. Sete Moças. Sete Luas – fez uma pausa, sorrindo na penumbra. – Teu uísque… quatro luas, talvez cinco.

Desde essa primeira visita e até ele morrer, seis anos mais tarde, Johnny Sete Luas aparecia na casa de Jake mais ou menos a cada dois meses, e Jake, ao mesmo tempo em que gostava de sua silenciosa companhia, adorava suas raras elocuções. Sete Luas, por reverência ou desconfiança da linguagem, nunca falava muito, mas, quando o fazia, sempre dizia alguma coisa. Jake se lembrava de algumas vezes em particular. Uma vez, enquanto olhavam o sol se pôr no mar, Sete Luas dissera com o doce enfado do deslumbramento constante:

– Sabe, eu vi o sol se pôr 30 mil vezes e não consigo me lembrar de duas que tenham sido iguais. Que mais é possível desejar?

Numa outra vez, varreu a mão pela paisagem e disse:

– Arg, vocês brancos fizeram muito pra tirar isso da gente, mas nada pra merecer. Vocês querem domar tudo, mas, se ficassem quieto e sentissem por um momento, saberiam que tudo anseia por ser selvagem – deu uma cuspida – E tosa essa gente com cercas, cercas, cercas. Afinal, o âmago da questão não é se deixar nada dentro e nada fora? Mas sei que você compreende isso, Jake, porque você não tem cercas e dedica sua vida a fazer uísque e ficar sossegado, e essas atividades nobres que valorizam o espírito de um homem.

Essa declaração veio assombrar Jake quando Miúdo começou a construir as cercas. Mas quando Miúdo transformou a caça ao Cerra-Dente num ritual obsessivo, o que assombrava Jake até o fundo era a lembrança das palavras que Sete Luas lhe dissera da última vez.

Jake caminhara com ele até o topo da colina para se despedir e, pouco antes de partir, Sete Luas apontara para um pedaço de chão recentemente escavado, obra de um porco-do-mato, dando um sorriso estupendo:

– Ah, aí vemos alguma esperança; o domesticado se tornando selvagem. Os porcos são muito graciosos. Seus corpos são feitos para segurar o céu. Eu não me importaria de ser um porco, alguma vez… um velho porco, louco e grande. Seria ótimo.

Jim Dodge, "Fup"

Iniciativas

Faça o que lhe digo. Solte primeiro uma borboleta.

Se não amanhecer depressa, solte outras de cores diferentes.

De vez em quando, faça partir um barco. Veja aonde vai. Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície.

Mande um esboço de rochedo, o resto de uma floresta.

Jogue as iniciais do lenço. Faça descer algumas ilhas.

Mande a fotografia do lugar, com as curvas capitais e a cópia dos seios.

Atire um planisfério. Um zodíaco. Uma fachada de igreja. E os livros fundamentais.

Sirva-se do vento, se achar difícil.

Eles estão perdidos. Mas nem tudo o que fizeram está perdido.

Separe o que possa ser aproveitado e mande. Sobretudo as formas em que o sonho de alguns se cristalizou.

Remeta a relação dos encontros, se possível. E o horário dos ventos.

Mande uma manhã de sol, na íntegra.

Faça subir a caixa de música, com o barulho dos canaviais e o apito da locomotiva.

Veja se consegue o mapa dos caminhos.

Mande o resumo dos melhores momentos.

As amostras de outra raça.

Com urgência, o projeto de uma nova cidade.

Aníbal Machado

Saudade da emoção

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. ‘Fabricou Salomão um palácio...’ E fui lendo, até ao fim, trêmulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.

Fernando Pessoa,"Livro do Desassossego"

quarta-feira, novembro 15

Café com leitura

 


Os carros automáticos

Sentamos no banco embaixo do velho carvalho. Dali dava para avistar toda a extensão do pequeno lago e a rodovia particular que tínhamos do lado oposto. Era um dia quente, os carros estavam do lado de fora, distraindo-se – uns trinta deles, pelo menos. Mesmo a distância eu podia ver que Jeremiah estava entregue à sua brincadeira de costume, acompanhando em marcha lenta um dos modelos mais sérios, mais antigos, e de repente arrancando em plena potência, cantando pneus e o ultrapassando com estridência em questão de segundos. Há duas semanas ele tinha assustado o velho Angus, fazendo-o perder a direção e sair do asfalto; aí tive que desligar seu motor por dois dias.

Pelo que vejo agora, não adiantou muito; parece que não há nada a fazer. Jeremiah é um desses modelos esportivos, eles são assim mesmo, dão o maior trabalho.

-- Muito bem, Sr. Gellhorn – falei. – Quais são as informações que deseja?

Mas o cara estava distraído, olhando em redor.

-- Que lugar fantástico, Sr. Folkers.

-- Pode me chamar de Jake. Todo mundo chama.

-- Ok, Jake. Quantos carros você tem aqui?

-- Cinquenta e um. Todo ano chegam mais um ou dois. Houve um ano em que vieram cinco. Até agora não perdemos nenhum. Estão todos funcionando perfeitamente. Temos até mesmo um Mat-O-Mot de 2015 em perfeito funcionamento. Um dos primeiros automáticos. Foi o primeiro carro que trouxemos para cá.


O velho Matthew. Agora ele costumava ficar na garagem a maior parte do dia, afinal de contas ele era o avô de todos os carros positrônicos. Da época em que os carros automáticos eram utilizados apenas por veteranos de guerra, paraplégicos e chefe de Estado. Mas naquela época Samson Harridge era meu patrão, ele era rico o bastante para ter um carro automático. Eu era seu chofer.

Pensar naquilo fez com que me sentisse velho. Sou do tempo em que não existia um único automóvel no mundo capaz de encontrar sozinho o caminho de casa. Já dirigi umas coisas enormes e desajeitadas cujo motorista não podia tirar as mãos do volante por um só momento. Monstrengos desse tipo matavam dezenas de milhares de pessoas todo ano.

Os automáticos resolveram esse problema. Um cérebro positrônico pode reagir muito mais rápido do que um cérebro humano, claro, e as pessoas não tinham que manter as mãos nos controles o tempo inteiro. Sentavam ao volante, digitavam as instruções sobre o trajeto e o carro fazia o resto sozinho.

Hoje em dia todo mundo já está acostumado, mas eu me lembro de quando surgiram as primeiras leis retirando das autoestradas os carros velhos e só autorizando viagens em carros automáticos. Deus do céu, que balbúrdia. Disseram que isso era fascismo, que era comunismo, mas o fato é que as estradas ficaram muito mais tranquilas e as mortes por acidentes pararam como por encanto; um número muito maior de pessoas passou a viajar com muito mais segurança.

Claro que os automáticos eram de dez a cem vezes mais caros do que os carros manuais, e não havia muita gente que pudesse pagar esse preço. A indústria começou a derivar para a produção de ônibus automáticos. A qualquer momento você podia chamar uma empresa e em poucos minutos ter um desses ônibus à sua porta, indo na direção que você queria. Você tinha que viajar ao lado de outras pessoas que iam para o mesmo lado, mas qual era o problema?

Samson Harridge, no entanto, tinha um automóvel particular, e eu fui contra ele desde o instante em que o vi. Naquele tempo, eu não via o tal carro como “Matthew”, não podia imaginar que ele se tornaria no futuro o decano de nossa Fazenda. A única coisa que eu sabia era que aquele carro ia me jogar no desemprego, por isto o odiei.

Falei:

-- Bem, acho que não vai mais precisar de mim, Sr. Harridge.

-- Ora, Jake, que bobagem está me dizendo? – foi a resposta dele. – Você não está pensando que vou deixar essa geringonça tomar conta de mim, não é mesmo? Você é quem vai ficar ao volante.

Eu falei:

-- Mas esse carro funciona sozinho, Sr. Harridge. Ele capta e analisa a imagem da estrada, evita os obstáculos, sejam eles carros ou pedestres, e arquiva os trajetos na memória.

-- Sim, é o que dizem. Mesmo assim, prefiro que você esteja sentado ao volante, no caso de alguma coisa não correr bem.

É engraçado como a gente pode chegar a se afeiçoar a um carro. De um dia para o outro eu já o tinha batizado de Matthew e passava a maior parte do tempo dando polimento nele, checando o motor. Um cérebro positrônico funciona melhor quando está em contato permanente com o seu “corpo”, ou seja, o chassi, de modo que ajuda bastante se a gente mantiver o tanque cheio para que o motor possa ficar ligado dia e noite. Depois de algum tempo acostumei-me tanto àquilo que bastava ouvir o som do motor para saber como Matthew estava se sentindo.

O Sr. Harridge também gostava muito de Matthew, ao seu modo. Ele não tinha ninguém mais para gostar. Tinha ficado sem três esposas, através da viuvez ou do divórcio; e acabou vivendo mais tempo do que cinco filhos e três netos. Desse modo, quando morreu não foi surpresa para ninguém que ele fizesse converter suas propriedades numa Fazenda para Automóveis Aposentados, onde eu era o curador e Matthew o primeiro membro de uma família que viria a se tornar ilustre.

Minha vida passou a ser apenas isso. Nunca me casei. Você não pode ser casado e ao mesmo tempo se dedicar a carros automáticos de uma maneira adequada.
Isaac Asimov, "Sonhos de Robô".