sábado, outubro 31

Sobrevoo

 


Labirinto adorável


Um livro é um labirinto deliberadamente construído para confundir os homens, com a intenção de fazer com que se extraviem ou regressem às dimensões estreitas de suas ambições
Tahar Ben Lelloun, "O menino de areia"

Biblioteca ambulante

 


Temas que morrem

Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por que não? O que me impede? A exiguidade do tema, talvez, que faria com que este se esgotasse em uma palavra, em uma linha. Às vezes é o horror de tocar numa palavra que desencadeia milhares de outras, não desejadas, estas. No entanto, o impulso de escrever. O impulso puro – mesmo sem tema. Como se eu tivesse a tela, os pincéis e as cores – e me faltasse o grito de libertação, ou a mudez essencial que é necessária para que se digam essas coisas. Às vezes a minha mudez faz com que eu procure pessoas que, sem elas saberem, me darão a palavra-chave. Mas quem? quem me obriga a escrever? O mistério é esse: ninguém, e no entanto a força me impelindo.

Eu já quis escrever o que se esgotaria em uma linha. Por exemplo, sobre a experiência de ser desorganizada, e de repente a pequena febre de organização que me toma como a de uma antiga formiga. É como se o meu inconsciente coletivo fosse o de uma formiga.

Eu também queria escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando uma dor física passa. De como o corpo agradecido, ainda arfando, vê a que ponto a "alma" é também o corpo.

E é como se eu fosse escrever um livro sobre a sensação que tive uma vez que passei vários dias em casa muito gripada – e quando saí fraca pela primeira vez à rua, havia sol cálido e gente na rua. E de como me veio uma exclamação entre infantil e adulta: ah, como os outros são bonitos! É que eu vinha do escuro meu para o claro que também descobria que era meu, é que eu vinha de uma solidão de pessoas para o ser humano que movia pernas e braços e tinha expressões de rosto.

Também seria inesgotável escrever sobre beber mal. Bebo depressa demais, e não há alternativas: ou praticamente adormeço dentro de mim e fico morosa, pensativa sem que um pensamento se esclareça como descoberta, ou fico excitada dizendo tolices de maior brilho instantâneo. Mas – mas há um instante mínimo nesse estado em que simplesmente sei como é a vida, como eu sou, como os outros são, como a arte deveria ser, como o abstracionismo por mais abstrato não é abstrato. Esse instante só não vale a pena porque esqueço tudo depois, quase na hora. É como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada pelo saber.

E às vezes, por mais absurdo, acho lícito escrever assim: nunca se inventou nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um gozo natural, o de morrer, pois faz parte essencial da natureza humana, animal e vegetal, e também as coisas morrem. E, como se houvesse ligação com essa descoberta, vem a outra óbvia e espantosa: nunca se inventou um modo diferente de amor de corpo que é estranho e cego. Cada um vai naturalmente em direção à reinvenção da cópia, que é absolutamente original quando realmente se ama. E de novo volta o assunto morrer. E vem a ideia de que, depois de morrer, não se vai ao "paraíso", morrer é que é o "paraíso".

A verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar. Porque eu poderia, sem finalidade nenhuma, desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas – e sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez chamassem de abstratas.

Eu também poderia escrever um verdadeiro tratado sobre comer, eu que gosto de comer e no entanto não como tanto. Terminaria sendo um tratado sobre sensualidade, não especificamente a de sexo, mas a sensualidade de “entrar em contato” íntimo com o que existe, pois comer é uma de suas modalidades – e é uma modalidade que engage de algum modo o ser inteiro.

Também escreveria sobre rir do absurdo de minha condição. E ao mesmo tempo mostrar como ela é "digna", e usar a palavra digna me faz rir de novo.

Eu falaria sobre frutas e frutos. Mas como quem pintasse com palavras. Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?

Ah, estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no entanto.

sexta-feira, outubro 30

Aventure-se

 

Fran Parrenyo

O exílio do senhor Palácios

Todas as manhãs, contanto que fizesse sol, o velho José Palácios saía para passear. Ivete, a filha, via-o afastar-se, apoiado à bengala, um vulto esguio, alto, sempre vestido de branco. Regressava à hora do almoço, tão silencioso como quando partira — mas com um leve sorriso a iluminar-lhe o rosto.

José Palácios nunca fora um homem de esbanjar palavras. Ivete lembrava-se dele quando ainda eram sete pessoas em casa, toda a gente falando ao mesmo tempo durante as refeições, e aquele silêncio sólido crescendo como uma nuvem negra à cabeceira da mesa. Quando se zangava, apenas erguia um sobrolho, e logo todas as vozes se calavam, a mãe assustada, aconteceu alguma coisa, José?, enquanto os irmãos trocavam olhares inquietos. Ela, a caçula, de cabeça baixa. Tinha muito medo dos silêncios do pai. Contudo, também havia silêncios bons. Ivete lembra-se de estar sentada nos joelhos do pai, ambos calados, ouvindo o sol descer sobre o capinzal. Não há nada que envelheça tanto uma pessoa quanto assistir à decadência dos pais. Agora também ela estava reformada, e eram dois velhos numa casa demasiado pequena para tantos silêncios.

Susa Monteiro


Ivete não sabia para onde o pai ia, sempre que, depois de terminar a sua xícara de café, acompanhada por duas torradas com manteiga, saía a passear. O velho não tinha amigos (nunca tivera) e, aos 98 anos, parecia-lhe improvável que mantivesse uma amante secreta. Sempre que lhe perguntava, onde é que o pai vai?, recebia como resposta um daqueles silêncios ásperos, que desde criança tanto a incomodavam.

Certa manhã, decidiu segui-lo. José Palácios cruzou dois quarteirões, em passadas lentas e esforçadas. Ivete soube para onde o velho se dirigia ainda antes de avistar os compridos muros, sobre os quais se erguiam altas copas verdes — o Jardim Zoológico. Deteve-se, surpresa. Enjaular animais selvagens, ou exibi-los em circos, eram práticas que enfureciam o pai. Ouvira-o algumas vezes — com as suas raras palavras — indignar-se quer contra quem colocava animais em zoos, quer contra quem lá os ia visitar.

O velho Palácios fora caçador profissional. Nunca falava desse tempo. Um dia, um amigo de Ivete aparecera em casa com um livro sobre caçadores de elefantes, que comprara num alfarrabista. Tinha um capítulo inteiro dedicado a José Palácios. O velho agradecera a oferta. Na manhã seguinte, Ivete encontrou o livro no caixote do lixo, com as páginas arrancadas e rasgadas. Acho isto uma crueldade — disse ao pai, mostrando-lhe o volume esventrado. O velho, sentado na cama, em cuecas, pousou o jornal, tirou os óculos e olhou-a sem dizer palavra.

E agora ali estava ele, parado diante da ilha dos elefantes. Àquela hora havia pouquíssimas visitas. O velho parecia saído de um postal antigo, assim, todo de brim branco, bengala de pau preto e fulgurante chapéu panamá.

Um dos elefantes viu-o, e avançou a trote em direção ao fosso. Deteve-se diante dele, erguendo a tromba, ao que o velho respondeu levantando a mão, num aceno cúmplice. Parecem amigos de infância, pensou Ivete, parecem parentes próximos, e então deu-se conta da humidade súbita, uma neblina espessa, que descia do céu e ia pouco a pouco desbotando as árvores, as pessoas, os animais e os edifícios.

Olhando para o pai como para um desconhecido, Ivete sentiu que pela primeira vez o reconhecia: um homem nos confins do seu exílio. José Palácios e o elefante, um diante do outro, eram como dois reis no degredo.

A mulher recuou em silêncio. Encontrou a casa maior, mais desolada, a sala escura e fria, os quartos alheios, cheirando a bolor e abandono. Devíamos voltar para África, disse ao pai, nessa noite, enquanto lhe servia a sopa. O velho sorveu o caldo em silêncio, uma lenta colher após a outra. Não quero morrer aqui, acrescentou Ivete. José Palácios ergueu os olhos:

Há muitos anos matei um elefante, disse. Uma fêmea. Percebi demasiado tarde que ela tinha uma cria pequena. Entreguei essa cria a um jardim zoológico.

Calou-se. Ivete deu-lhe a mão. Estamos velhos, eu e tu. Continuou José Palácios. Eu, demasiado velho para morrer. Quero dizer, para morrer decentemente, para escolher o lugar onde morrer.

Chovia lá fora. Um cão ladrou algures, muito longe. Uma porta bateu. Pareceu a Ivete que o ar se enchia do cheiro vivo do capim húmido, macerado, ela sentada nos joelhos do pai, ouvindo o sol cair sobre a savana.

quarta-feira, outubro 28

Em boas companhias

 


Dois pensamentos na praia

Darren Thompson
O sol funciona esplêndido em cima da praia. Abre-se o espaço largamente. Custa admitir que a vida se cava em escritórios tristonhos, nas jaulas dos guichês, repartições, filas, cemitérios do homem. 

Amo esta distância verde, este cheiro de sal, esta paz. Seria um absurdo mitológico se um submarino atômico surgisse à tona e nos destruísse, a nós que apenas pedimos um pouco mais de intimidade com a vida.

Dispomos aqui dos instrumentos essenciais a um momento de equilíbrio: a persistência do coração, o trabalho do fígado e dos rins, eliminando os venenos, a persistência do ar iodado, a água salgada, elementos suficientes ao mistério linear de viver e sentir. Não fosse uma gaivota faminta, nem perceberíamos este espinho interior a denunciar as vastas solidões que dominamos, sofrimento, pressentimento, aniquilamento.

Há pequenos vermes ocultos na areia para que a nossa tranquilidade não seja alarmante. Obrigações a cumprir, amores a sonhar, coisas a fazer formam figuras abstratas que se misturam, se deformam e se quebram. Baste o sol, baste o céu azul, baste a escura arraia da vida dormindo maldormida em nossas profundezas submarinas.

Penso em Ícaro às vezes, despenhando-se do rochedo a fim de legar ao mundo, segundo a poesia, um fracasso definitivo. Às vezes, nem penso: as nuvens me atrapalham o entendimento, os ventos me dispersam em outras paisagens, outras idades, já não sei quem sou, enquanto uma esquadrilha de aviões parece conferir o meu corpo, triste corpo, que aguarda os monstros do meu juízo final.

Hoje o homem vive simultaneamente em todas as partes do mundo. Dói-lhe o mundo inteiro como se fosse uma extensão sensível de seu corpo; os postes de telegrafia e de rádio são as células nervosas deste imenso organismo a transmitir-lhe impressões sob forma de notícias. A primeira página do jornal é o gráfico dessa vida nervosa suplementar, estampando diariamente a curva de nossas tristezas universais, de nossas esperanças ecumênicas, nossos receios, somando o mundo em nosso comportamento mental, e dividindo a nossa mal distraída atenção pelos quatro recantos da Terra. 

O homem particular desaparece ou, pelo menos, cede uma grande parte de seus direitos aparentemente inalienáveis. Somos todos homens mais ou menos homens públicos. As mesmas vibrações percorrem os povos de toda a Terra. Nossa curiosidade e nossos interesses estão em todos os lugares, nosso ativado espírito de justiça não recua diante de fronteiras. Já não vivemos em nossa urbs limitada. Nossa segurança não depende de nós, mas de todos. Uma atitude tomada a milhares de quilômetros (um engano) poderá transformar violentamente o nosso plano de vida para amanhã. Já não podemos dizer: "Não temos nada com isso". Temos a ver com todo o mundo e com todos. Com o artista que morre num país distante e deixou uma obra aos vivos; com o político que morreu varado a tiros, e é preciso conhecer os motivos desse gesto; com o pequeno povo que se tornou independente depois de séculos de servidão; com a transferência de propriedade duma grande indústria. 

Estamos interessados em tudo, envolvidos em tudo e em todos. Das experiências termonucleares às pesquisas sobre a dor reumática. Das multidões esfomeadas da Índia à menina brasileira que furtou um pão. Das reviravoltas na política do Congo às usinas de alumínio do Canadá.

A janela do nosso quarto se abre para todos os quadrantes. O olhar de toda pessoa responsável deve ser indiscreto. O homem indaga o mundo, olha as razões do mundo, fareja os motivos dessa ou daquela atitude, reflete sobre a vasta massa informe de acontecimentos, de situações estacionárias, de promessas, de mentiras. E olhando, indagando, farejando, refletindo, o seu interesse cruza-se com o interesse de milhões de outras criaturas que procuram um entendimento universal, de criaturas que buscam, não a própria segurança, a segurança de todos. Nosso destino é morrer. Mas também é nascer. O resto é aflição de espírito.

Viajantes

 


Palavras que atrapalham e ajudam a viver

Mas você sabe que a pessoa pode encalhar
numa palavra e perder anos de vida?
Clarice Lispector


Vejam só: encalhar numa palavra. A pessoa lá vai no seu barquinho vida adentro e, de repente, encalha numa palavra. Pode ser "marxismo", "Deus", "pai", "vanguarda", "revolução", "Paris", "aposentadoria". As palavras são paralisantes. 

O Brasil, por exemplo, no princípio do século estava encalhado na "febre amarela". Nos últimos anos reencalhou na "ditadura" e na "censura". Tem hora que encalha na "inflação". Agora encalhou no "desemprego". E está difícil desencalhar da "reforma agrária", da "corrupção" e do "subdesenvolvimento".

Os escritores, sobretudo, encalham muito nas palavras. João Cabral se referia a Graciliano Ramos como um homem "com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol". Joyce, com Ulisses e Finnegans wake encalhou titanicamente numa região cheia de palavrosos icebergs. Alguns poetas que conheço estão há cinquenta anos engastalhados em palavras como "Pound, ideograma, morte do verso, Joyce, un coup de dés", e não há quem os demova.

Quem leu O nome da rosa se lembra que havia lá na biblioteca medieval um texto impossível, envenenado, como o fruto interditado no meio do jardim. É que as palavras, com essa coisa de se plantarem em nossa vida, nos alimentam e nos matam, são remédio e veneno, e, como os produtos de uma farmácia, são drogas que podem sarar ou curar. É uma questão de alquimia verbal saber administrá-las. Aurélio Buarque de Hollanda, que dicionarizava rebanhos de palavras, enfatizando o lado positivo das palavras, me disse um dia: "Nós temos que dar oportunidade às palavras". Entendi isto como uma sugestão para a gente se desencalhar e ir desfrutando palavras novas, como o amante que com um novo amor renasce vida afora.

Em algumas culturas certas palavras não podem sequer ser pronunciadas, pois trazem desgraças. Mas em algumas narrativas certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: "esperança", amanhã", "utopia". Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação.

Ler é tomar a palavra alheia, vesti-la, habitá-la por certo tempo. Escritor, no entanto, não é aquele que acumula palavras obscuras num egoísta museu ou cofre de erudição, mas quem as troca na bela moeda da emoção.

Eis um bom exercício: tome um lápis e anote as palavras que paralisaram ou fizeram a sua vida avançar. Palavras-coisas, palavras-pessoas. Sobre a vida e sobre as palavras há várias teorias, a escolher. Há quem diga que a vida tem que ser palavras em movimento, aquele work-in-progress de que falam os ingleses. Se você encontrar, vinte ou trinta anos depois, uma pessoa fazendo o mesmo discurso, tenha pena, desconfie, é sinal que a vida dela emperrou. (A menos que seja um discurso de amor).

Com as palavras, a gente tem que tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam. Há palavras tão duras e montanhosas, que nem com trator, só dinamitando. E o facto é que um simples "bom dia" ou "alô" pode salvar uma vida. A psicanálise pretende ser o método da "cura pela fala", mas também pode se tratar pelo ouvido. As palavras ouvidas também curam. Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: "já passou o dodói, pronto".

Viver também é a arte de lidar com as palavras.

E como já disse alguém as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas.
Affonso Romano de Sant'Anna, "Que presente te dar?"

terça-feira, outubro 27

Reler é preciso


Um livro lê-se, sem dúvida, mas sobretudo relê-se
Vergilio Ferreira

Cuidado ao devolver o livro!

 


Augusto dos Anjos, um poeta para sempre

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) – ou simplesmente o poeta Augusto dos Anjos – é figura singular na literatura brasileira. Não se filiou a qualquer escola literária e não deixou seguidores. Morreu jovem, aos 30 anos, e publicou um único livro – “Eu”, acrescido, após sua morte, de poemas inéditos e reeditado sob o título “Eu e Outras Poesias”.

É o único documento literário de sua passagem por este mundo. E, no entanto, garante-lhe lugar de prestígio no panteão de poetas da língua portuguesa, entronizando-o no cânone da literatura brasileira como um de seus clássicos.

Figura máxima do que posteriormente passou a se chamar de “poesia científica”, Augusto dos Anjos, no entanto, repele rótulos e, a rigor, não se ajusta a nenhum.

Paraibano de Sapé – nasceu no Engenho Pau D’Arco, na região da várzea nordestina -, era filho de um senhor de engenho e tinha sete irmãos. Teve, pois, meios de se educar, e formou-se em direito no Recife. Voltou à Paraíba, onde se casou e passou a lecionar no Lyceu Paraibano. Divergências políticas com o governador do estado (dizia-se então presidente da província), acrescidas de debilidade na saúde (padecia de tuberculose, que o levaria à morte precoce), mudou-se para o Rio de Janeiro.

Antes, lançou seu único livro, custeado por ele e seu irmão Odilon. Foi em 1912. O livro, porém, passou ao largo do interesse da crítica. Nem notoriedade, nem escândalo. Indiferença.


Ali estavam 58 poemas, explorando temas esquisitíssimos, em que, conforme notaria posteriormente Manuel Bandeira, não se falava do amor carnal, mas apenas do amor metafísico. Augusto dos Anjos considerava o amor carnal “comércio físico nefando”.

No poema “Queixas Noturnas”, faz esta surpreendente confissão, que deve ter chocado o ambiente literário de então, povoado de parnasianos e simbolistas, que faziam da musa não apenas objeto de admiração, mas também de intensa fruição física:

“Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me”

E sustentava seu particularíssimo conceito metafísico de amor: 

“ (amor) É espírito, é éter, é substância fluida/É assim como o ar que a gente pega e cuida 
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável
Que anda acima da carne miserável 
Como anda a garça acima dos açudes"

Não apenas os conceitos que sua poesia emitia eram surpreendentes. Da mesma forma, os vocábulos que empregava para expressá-los. Vejam-se os versos iniciais de “Monólogo de uma Sombra”, poema com que abre o “Eu”, e que vale por um auto-retrato: 

Sou uma sombra! Venho de outras eras /Do cosmopolitismo das moneras…/ Pólipo de recônditas reentrâncias/ Larva do caos telúrico, procedo/ Da escuridão do cósmico segredo/ Da substância de todas as substâncias!

E vai por aí. A terminologia “esquisita” (palavras ainda de Manuel Bandeira) provocava escárnio nos meios literários. Os que o levavam a sério viam nele parentesco com Euclides da Cunha, que tinha também se servido de amplo glossário científico para adensar sua literatura. O parentesco, porém, termina aí.

A dimensão estética de sua obra excede a singularidade de seu vocabulário – e o distancia de Euclides.

O conteúdo dos poemas, sua atmosfera lúgubre, era – e é – única. O reconhecimento de sua arte dá-se depois de sua morte. Pouco a pouco, a academia começa a vê-lo como o que de fato o é: um artista superior, original, que, não obstante a exigüidade de sua produção, destinava-se à permanência.

Carlos Drummond de Andrade foi um dos que o estranharam, mas que, depois, o reconheceria na proporção gigante de sua obra e talento. Considerou-o o mais original poeta da literatura brasileira.

Josué Montello ia ainda mais longe: considerou-o “uma das figuras mais importantes do Brasil”. Nada menos.

A complexidade de sua linguagem – e esse é um dos seus muitos mistérios – não impediu (e não impede) que se tornasse um poeta popular, citado e recitado pelo leitor não especializado.

Um de seus versos tornou-se emblema da dualidade humana, repetido como um dito popular, sem dono: “A mão que afaga é a mesma que apedreja” (“Versos Íntimos”), repetido, ao longo de gerações, como axioma da fragilidade moral do ser humano.

A atualidade de Augusto dos Anjos é incontestável. Teve sua obra completa editada em luxuosa edição em papel bíblia, da editora Nova Aguillar, acompanhada de vasta fortuna crítica, privilégio reservado aos autores canônicos.

Acima de escolas, modismos, cronologias ou outros condicionamentos, a obra de Augusto dos Anjos está definitivamente inscrita na história das letras da língua lusa. A língua de Camões, Fernando Pessoa e Machado de Assis. A língua de Augusto dos Anjos.
Ruy Fabiano

segunda-feira, outubro 26

Alimento saudável

 


Manhãs de Oran

 Vladislav Nagornov
Nessas praias de Oran, todas as manhãs de verão parecem ser as primeiras do mundo. Todos os crepúsculos dão-nos a impressão de serem os últimos, agonias solenes anunciadas ao pôr-do-sol através de uma derradeira luz que escurece todos os matizes. O mar é ultramar; o caminho, cor de sangue coagulado; a praia, amarela. Tudo desaparece com o sol verde; uma hora mais tarde, a lua começa a jorrar das dunas. Nesses momentos, as noites se fazem incomensuráveis sob a chuva de estrelas. Por vezes cruzam-nas tempestades, e os relâmpagos escorrem sobre o dorso das dunas, empalidecem o céu, pondo na areia e nos olhos clarões alaranjados. Mas nada disso se pode compartilhar. É necessário tê-lo vivido. Tamanha solidão e grandeza dão a esses lugares um rosto inesquecível. Ao nascer da madrugada frágil, passadas as primeiras vagas ainda negras e amargas, é um novo ser o que fende a água da noite, tão difícil de suportar. A lembrança dessas alegrias não é uma saudade triste; por isso sei que eram boas. Tantos anos depois, ainda persistem em algum recanto de meu coração, que tem dificuldade de ser fiel. E hoje sei que sobre a duna deserta, se eu quisesse retornar, o mesmo céu continuaria derramando sobre mim a sua carga de suspiros e estrelas. Porque aqui estão as terras da inocência. 

Albert Camus

A 'arma'


Emanuele Del Rosso

A lâmina da cultura corta a ignorância, a radicalização e o medo

Nada era pior

Não existia nada pior no mundo do que tomar remédio de óleo de rícino. Como outros meninos lá da rua, todos os anos tinha de beber um copo com aquela droga de remédio, que dava enjoo quando descia na garganta. O cheiro do remédio no copo cheio provocava um frio no corpo todo, de tal forma era o medo quando pensava que tinha de beber outra vez aquele purgante pior do que o pior dos castigos. Não havia menino lá da rua que tivesse tomado aquela coisa pastosa e dissesse ser aquilo algo que se podia enfrentar sem fazer cara feia. A melhor coisa que se fazia quando fosse tomar aquele troço era fechar os olhos e pedir que ele descesse rápido pela garganta.


Disse que daquela vez não tomaria o remédio. Arranjasse minha mãe outro tipo de remédio para combater as lombrigas na barriga. Ela advertiu que a vida era feita também de momentos nem sempre bons. O remédio ia matar todas as lombrigas da barriga. Se tomasse o purgante de óleo de rícino, ao invés daquela palidez no rosto, eu ia ficar corado. Meu apetite voltaria. Bem alimentado iria crescer como um menino sadio. Afastaria assim minha indiferença para fazer os deveres da escola. Para não falar no fôlego que ia ter no jogo de bola ou em qualquer brincadeira que exigisse esforço. Ia ser o mais veloz nadador no rio Cachoeira, entre todos os meninos lá da rua.

Não adiantava minha mãe argumentar para encorajar-me a beber o purgante terrível, que deixava qualquer menino assustado só em ouvir falar nele. Preferia ficar pálido, magro com pele e osso. Sem o fôlego e vontade de correr no jogo de bola quando a partida fosse disputada, o placar desfavorável para a minha equipe, já em boa parte do segundo tempo. Era melhor passar como jogador desinteressado do resultado sendo desfavorável ao meu time do que beber aquela droga com gosto de óleo, cheiro horrível, que dava tontura no corpo, fazendo as vistas ficarem turvas quando chegava a hora de bebê-la. Gritei, esperneei, esmurrei a porta. Derrubei a cadeira, chutei o travesseiro, quis rasgar o lençol da cama. Chorei forte para que o mundo todo ouvisse., cerrei os dentes para que não entrasse uma gota daquela droga em minha boca.

Meu pai foi chamado para interferir e convencer-me de que o remédio era para fazer bem à minha saúde. Ele não era homem de muita conversa nessas horas. Com o cinturão grosso preso na mão, advertia que me dava cinco minutos para beber o purgante de óleo de rícino para matar os vermes na barriga, se não quisesse provar de outro remédio ali mesmo. Uma boa surra com o cinturão grosso. E ainda ficar sem ir à matinê do Cine Itabuna no domingo para assistir ao filme “O Pirata dos Sete Mares”, estrelado por Paul Henreid, um dos meus ídolos. O jeito foi chamar por Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, minha madrinha, para que me encorajasse para beber aquela porqueira. Livrasse-me daquele castigo e fizesse com que eu não sentisse nada quando o remédio entrasse na boca, descesse lento na garganta como um bolo de pasta repelente e fosse se alojar lá dentro na barriga.

Costumava beber o remédio de madrugada, em jejum, O efeito já era visto durante o dia. Expelidas da barriga, as lombrigas iam descendo mortas pelo vaso sanitário. Não sabia como era que aquelas iscas grandes nasciam e se criavam dentro de minha barriga. Minha mãe não deixava de ter suas razões quando insistia para que eu bebesse o purgante com óleo de rícino, se não quisesse que acontecesse comigo o que se passou com o filho do dono da venda.

Carlito Caburé nunca quis tomar a droga daquele remédio para combater os vermes que estavam engordando dentro da barriga dele. Ele já estava com a cor tão pálida que parecia não ter sangue no rosto. Os braços e as pernas pareciam que não tinham carne, de tão murcha. Não morreu por um triz. O pai teve de amarrar os braços dele na cabeceira da cama enquanto a mãe enfiava de vez na boca dele o gargalo da garrafa de guaraná com o óleo de rícino. Quando ele acabou de beber o remédio, esbravejou, xingava a Deus e o mundo.

Meu resguardo demorava três dias após tomar o remédio de óleo de rícino. A comida agora era leve. Nada de comida oleosa, com fritura, ensopado de carne ou galinha. Nem peixe com dendê. Era somente chá com torradas na refeição matinal. Canja de galinha no almoço. De novo chá com torradas na refeição do jantar. Sobremesa com doce nem implorasse, minha mãe tinha todo o cuidado em minha alimentação especial, para que assim o remédio tivesse um efeito rápido. Minha refeição devia ser leve para que o purgante fizesse uma lavagem rigorosa em minhas tripas. Qualquer comida gordurosa poderia alimentar e fortalecer algumas lombrigas, que tivessem resistido ao purgante. Se isso acontecesse, o remédio de óleo de rícino teria um efeito fraco e, fatalmente, devia ser repetido.

Da última vez que bebi aquela nojeira, com a cara feia de sempre, minha mãe presenteou-me com um ioiô. Enquanto durava o resguardo, ficava agora o tempo todo em pé, na beira da cama, jogando o ioiô para lá e para cá. Exercitava-me fazendo malabarismos com o ioiô no quarto. Treinava de manhã, à tarde e antes de dormir. Preparava-me assim para enfrentar Ney Gaguinho, o filho do vizinho, que morava no sobrado ao lado, Naquela brincadeira de jogar o ioiô, ele fazia malabarismos inacreditáveis. Quando lançava o ioiô, puxando-o rápido pelo cordão, deixava de boca aberta quem estivesse assistindo.

Depois que eu recebi alta, comecei aos poucos a me alimentar com as comidas que mais gostava: ensopado com carne de carneiro, galinha ao molho pardo, carne-de-sol fritada, doce de batata-doce na sobremesa. Aí um dia chamei o Ney Gaguinho para jogar ioiô comigo, para ver quem era melhor para fazer malabarismos com o brinquedo. Dessa vez foi ele quem ficou espantado com os malabarismos que eu fazia. Deixava que o ioiô fosse para qualquer direção, puxando-o em seguida pelo cordão com habilidade e ligeireza. A facilidade que demonstrava em fazer os mais incríveis malabarismos com o ioiô arrancava agora aplausos demorados dos amigos.
Cyro de Mattos

sábado, outubro 24

O barco e os livros

 


Aquela terra misteriosa

O Outono chegou. O céu aberto coberto de nuvens abateu-se sobre os negros contornos das colinas; e as folhas mortas dançavam em espirais debaixo das árvores despidas, até o vento , com um profundo suspiro, as deixar descansar nas covas dos vales nus. E, de manhã à noite, em toda aquela terra, os ramos escuros e nus, os ramos nodosos e torcidos que uma dor teria forçado a emaranhar-se uns nos outros, balançavam tristemente entre as nuvens e a terra alagada pelas chuvas. Os regatos límpidos do Verão , agora turvos, precipitavam-se com fragor , com a fúria da loucura suicida, contra as pedras que lhes barravam o caminho para o mar. Duma ponta à outra do horizonte, a grande estrada das areias jazia entre as colinas com uma luz baça, de curvas vazias, lembrando um rio de lama.

Jean-Pierre ia de um campo para o outro, um vulto alto e pouco nítido sob a chuva miudinha, ou calcorreava a crista dos montes sozinho, recortado contra a cortina cinzenta das nuvens à deriva, como se caminhasse ao longo da própria borda do universo. Olhava para aquela terra misteriosa que, numa imobilidade semelhante à morte, realizava o seu trabalho de vida sob a tristeza velada do céu. E parecia-lhe que, para ele que conhecia um destino pior ainda que não ter filhos, a fertilidade dos campos não era nenhuma promessa; parecia-lhe que a terra se lhe furtava, se lhe negava , se carregava contra ele como as nuvens , negras e apressadas, por cima da sua cabeça. Por ter de lutar sozinho contra os seus campos, sentia a inferioridade do homem breve perante o torrão -que é eterno. Teria de perder a esperança de ter a seu lado um filho que olhasse para a terra lavrada com um olhar de dono? Um homem que pensasse como ele , que sentisse como ele; um homem que fosse parte de si e no entanto permanecesse, para pisar aquela terra, quando ele se fosse? 

Joseph Conrad , "Histórias Inquietas"

Pintor de letras

 


Investir nos livros e na leitura

É notável o trabalho de Miguel Carvalho, na edição de hoje da Visão, sobretudo por nos colocar diante dos olhos exemplos como o de uma mulher de 57 anos, de Canelas, Penafiel, que não só começou a ler por influência dos filhos, como também, a dado momento, explica ao repórter: “os livros ajudam muito a compreender os outros e a olhar para dentro de nós”. Magistralmente, Conceição acrescenta ao cariz didático que, de forma mais ou menos tácita, todos reconhecem à leitura uma dimensão que só os leitores sabem que ela tem. Essa dupla importância servirá de postulado em relação ao que a seguir direi.

Segundo a consultora GFK, que audita o mercado livreiro em Portugal, a quebra das vendas de livros nos primeiros nove meses de 2020 (juntando as fases de confinamento e de pós-confinamento, portanto) foi de 15,8%. Já sob o jugo da chamada segunda vaga da pandemia da Covid-19, os profissionais do setor temem um final de ano que, ao invés de oferecer uma recuperação, os oprima ainda mais. A crise está aí e a memória nunca se mostra curta no que toca aos problemas próprios – todos se lembram do que aconteceu depois da crise de 2008, todos sabem que, na última década, as vendas de livros em Portugal caíram quase 30%.

 Stanimira Petrov
Um país que não lê não pode aspirar a muita coisa

Os economistas conseguirão explicá-lo melhor, especialistas em psicologia e em sociologia do consumo também, mas o que a crise anterior demonstrou foi que uma quebra abrupta dos hábitos de consumo de livros (e, digo eu, dos hábitos de leitura) pode tornar-se, pelo menos em parte, perene, uma vez que nunca recuperámos os números de vendas anteriores a essa crise. Vem agravar esta realidade o facto de, nos tempos que correm, esses hábitos tenderem a ser rapidamente substituídos por outros de cariz mais imediato e fácil (como os ligados às redes sociais, ou às plataformas de streaming). Em suma, a crise económica origina também empobrecimento cultural. E os números aí estão, demonstrando que as letras se encontram em apuros: os dados já conhecidos do novo estudo do Plano Nacional de Leitura (PNL) e do ISCTE sobre os hábitos de leitura dos portugueses revelam, como se esperava, que os alunos do 3.º ciclo e do ensino secundário leem cada vez menos. E, tal como o anterior, este estudo aponta ainda para a influência da família nos hábitos de leitura. Ou seja, um sexto do mercado livreiro desapareceu e os portugueses leem cada vez menos. O livro e a leitura, enquanto constituintes de um alicerce fundamental de uma sociedade que se pretende desenvolvida, perdem importância. O que fazer?

A reportagem da Visão dá a conhecer o Bibliomóvel, um excelente exemplo de políticas públicas para a leitura criado há quase vinte anos pela Câmara Municipal de Penafiel (que também organiza o muito original e meritório Escritaria) e inspirado nas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Conceição, utente do Bibliomóvel, do qual os filhos já eram frequentadores, é exemplo perfeito de que o acesso aos livros e a influência familiar (neste caso, em sentido deliciosamente inverso face ao habitual) criam leitores. Penso nisto e atento também no que fez a Câmara Municipal de Lisboa, ao dar abrigo em estantes à biblioteca do escritor Alberto Manguel, encaixotada há cinco anos em França, ou a Câmara Municipal de Bragança, ao apostar num Museu da Língua Portuguesa, ou até um privado, como a empresa que detém a livraria Lello, no Porto, a partir de um espaço que, em Portugal, dignifica os livros como nenhum outro, atento nisto tudo e não consigo senão pensar em tantas outras possibilidades de valorização do livro e da leitura. Não me refiro à chamada festivalização da cultura, que desde os tempos de Jack Lang tem alimentado debates, mas considero que dignificar o objeto livro, dando-lhe visibilidade, resulta inevitavelmente numa proclamação – que, por não ser ostensiva, é mais eficaz – do quão gratificante e benéfica é a leitura.

Não sei quanto vai gastar a autarquia lisboeta, no contexto da guarida dada à biblioteca de Manguel e da criação do Centro de Estudos da Leitura, mas trata-se de uma medida que contribui muito para o referido propósito; sei que, na construção do Museu da Língua Portuguesa, a sua homóloga de Bragança vai investir dez milhões de euros e até estou certo de que o projeto prevê retorno económico para a cidade; desconheço os lucros da Lello, mas conheço as filas à porta da livraria (é claro que ali se vai pela arquitetura do espaço – a propósito, tal como acontece no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro –, mas ainda bem que nele estão expostos livros e não copos e garrafas, como poderia ter acontecido) e sei que os proprietários adquiriram recentemente outro espaço icónico da cidade, o Teatro Sá da Bandeira, prova de que o investimento está a valer a pena. Estes são exemplos de apostas públicas e privadas que, possuindo propósitos distintos, resultam na valorização do livro e da leitura. Exemplos daquilo a que o estado deve dedicar-se e do que os privados podem fazer. Atividade económica com livros? Com certeza que sim. Poucas serão, aliás, as áreas em que o potencial económico será tão capaz de se constituir também gerador de valor cultural e civilizacional.

Em abril, já aqui escrevi sobre o acolhimento que a Câmara Municipal de Setúbal deu a parte da biblioteca de 80 mil volumes de Lauro António; sei também que 70 dos 80 mil livros da igualmente impressionante biblioteca de Mário Sottomayor Cardia estão hoje à disposição dos estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. São boas e profícuas ideias, tais como muitas outras, nas quais quem tem funções e responsabilidades públicas pode inspirar-se. Porque são positivas e urgentes todas as medidas que, de algum modo, possam contribuir para a familiarização dos portugueses – de todas as idades, como na realidade apresentada por Miguel Carvalho – com o objeto livro. E não duvidem os empresários de que há oportunidades neste meio. Venham daí esses investimentos, se forem capazes de contribuir para aproximar os cidadãos dos livros. Ver livros, lidar com livros, percepcionar valor nos livros – raros e felizes aqueles que se fazem leitores sem o incentivo calado que constitui crescer com livros em casa ou a ver os pais a lerem – produz resultados. Porque um país que não lê não pode aspirar a muita coisa, investir no livro e na leitura é um dos caminhos para o Portugal que temos de ambicionar ser.

sexta-feira, outubro 23

De manhã, já refugiada

 

Polina Goduyko

Para onde se foi?

Pawel Kuczynski

Foram tantos os livros escritos a respeito dos corpos, dos prazeres, dos perfumes, da ternura, da doçura do amor entre o homem e a mulher no Islã.... livros antigos e que ninguém jamais lê. Para onde foi o espírito daquela poesia? 
Tahar Ben Jelloun, "O menino de areia"

Gente 'perigosa'

 


A especulação imobiliária

Erguer os olhos do livro (sempre lia no trem) e reencontrar a paisagem parte por parte — o muro, a figueira, a nora, os juncos, a cadeia rochosa —, as coisas vistas desde sempre e que somente agora, por ter estado distante, percebia: era assim que, todas as vezes que voltava para ali, Quinto retomava contato com sua terra, a Riviera. No entanto, como já fazia anos essa história de distância e de retornos esporádicos, qual era a graça? Ele já sabia tudo de cor; mesmo assim, continuava buscando novas descobertas, de relance, um olho no livro e outro para além da janela, e era quase uma mera checagem de observações, sempre as mesmas.


Mas toda vez havia algo que interrompia o prazer desse exercício e o forçava a voltar às linhas do livro, um incômodo que nem ele entendia bem. Eram os edifícios: todas essas novas construções que surgiam, conjuntos urbanos de seis, oito andares, a reluzir maciços como barreiras de contenção contra o desmoronamento das encostas, debruçando sobre o mar o maior número de janelas e varandas que podiam. A febre do cimento se apossara da Riviera: ali se avistava um prédio já habitado, com os canteiros de gerânio todos iguais nas sacadas; aqui, moradias recém-terminadas, com os vidros marcados por serpentes de giz, à espera de famílias lombardas ansiosas pelo banho de mar; mais adiante, um castelo de andaimes e, embaixo dele, a betoneira girando e o cartaz da imobiliária anunciando a venda de unidades.

Nas cidadezinhas íngremes, dispostas em patamares, os prédios novos brincavam de montar uns nos ombros dos outros, e, em meio àquilo, os donos das casas antigas espichavam o pescoço dos telhados. Em ***, a cidade de Quinto, antes circundada por umbrosos jardins de eucaliptos e magnólias onde, de uma sebe a outra, velhos coronéis ingleses e misses idosas se emprestavam mutuamente edições Tauchnitz e regadores, as escavadeiras agora reviravam o terreno macio das folhas apodrecidas ou granuloso do pedrisco das aleias, enquanto as picaretas demoliam os sobrados de dois andares e os machados abatiam num chiado de papel os leques das palmeiras washingtônias, varridas do céu onde surgiriam os futuros três quartos ensolarados com área de serviço.

Quando Quinto subia até sua casa, que noutros tempos dominava toda a extensão dos telhados da cidade nova e os bairros baixos da marina e do porto, mais para cá o monte de casas mofadas e musguentas da cidade velha, entre a encosta oeste da colina onde os olivais se adensavam sobre os hortos e, a leste, um reino de palacetes e hotéis verdes como um bosque, sob o dorso árido dos campos de cravos cintilantes em serras que se estendiam até o Cabo, agora não avistava mais nada, só um sobrepor-se geométrico de paralelepípedos e poliedros, pontas e lados de casas, de cá e de lá, tetos, janelas, muros cegos para servidões contíguas com apenas os basculantes esmerilhados dos banheiros uns sobre os outros.

Toda vez que ele chegava a ***, a primeira coisa que sua mãe fazia era levá-lo ao terraço (ele, com uma saudade indolente, distraída e logo inapetente, teria ido embora sem subir até lá): — Agora vou lhe mostrar as novidades — e indicava as novas construções. — Ali os Sampieri estão levantando mais um andar, aquele lá é o prédio novo de um pessoal de Novara, e as freiras, até as freiras — lembra o jardim com bambus que a gente via lá embaixo? —, agora veja o buraco que elas fizeram, quem sabe quantos andares vão querer erguer com essas fundações! E a araucária da vila Van Moen, a mais linda da Riviera: agora a empresa Baudino comprou toda a área, e uma árvore que devia ter sido tombada pela prefeitura virou madeira de lenha; aliás, seria impossível transplantá-la, quem sabe até onde iam as raízes. Agora venha ver desse lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo telhado que aparece; pois bem, agora o sol da manhã chega meia hora depois.
Ítalo Calvino, "A especulação imobiliária"

quarta-feira, outubro 21

Melhor da vida


O que a vida tem de melhor é, para mim, a literatura

João Cabral de Melo Neto 

Refúgio

 

Andreea Dumuta

A barriguinha

De repente, no sétimo ano de um casamento feliz, Luísa começou a ser cutucada pelo espinho da inquietação. Se alguém lhe perguntasse, ela não saberia dizer o que havia mudado no comportamento de Cláudio, mas tinha certeza de que o marido não era mais o mesmo.

Ele parecia tão atencioso como nos primeiros dias do namoro, tão amável como no início do noivado, tão carinhoso como na inesquecível quinzena de lua de mel em Cancún. Ainda beijava Luísa antes de sair para o trabalho e ainda trazia, ao voltar, os braços cheios de abraços para ela. Lembrava-se ainda do dia do aniversário de Luísa e não se esquecia nem da data do aniversário de dona Marta, a mãe dela.

O que havia mudado, então? Essa era a pergunta que Luísa vinha se fazendo nos últimos dois meses e, embora se esforçasse para encontrar a resposta, a única alteração que podia honestamente apontar no marido era aquele princípio de barriga que ele tentava de todas as formas ocultar e que ela – para não deixá-lo constrangido – fingia não ver.


Mas ela era capaz de apostar que havia alguma coisa além daquela saliência que já nenhuma camisa ou pulôver conseguia disfarçar. E era essa coisa que agora enchia de desconfiança os seus dias. Consultada, dona Marta censurou a filha:

– Quando é que você vai perder essa mania de inventar problemas? Faz sete anos que você está casada com esse homem e ainda não percebeu que ele é ouro puro?

Essa conversa com a mãe fez Luísa ser tomada por um alívio e por uma calma que duraram meia hora, talvez um pouco mais. Depois, o espinho da suspeita voltou a atormentá-la, mais agudo do que nunca. E podia ser diferente? Diariamente ela ouvia histórias de separação e recentemente havia lido uma reportagem que falava da maldição do sétimo ano de casamento. Pouquíssimos casais ultrapassavam essa barreira, dizia a revista.

Por isso tudo, certa noite, ela resolveu ficar ainda mais atenta às atitudes de Cláudio. Ele chegou às oito, como todos os dias, e até as onze e meia, quando se deitaram, ela não descobriu nada diferente no marido. Ele devorou o jantar feito por ela, notou que Luísa havia mudado o jeito de pentear os cabelos e disse que tinha gostado muito, elogiou o pudim de chocolate, deixou que ela escolhesse o filme na tevê e, quando foram dormir, pareceu tão apaixonado quanto em cada uma das memoráveis noites em Cancún.

Ela dormiu tranquila, sonhou que era menina e andava de bicicleta nas nuvens e acordou sorrindo. Eram seis horas. Então, com um sobressalto, notou que Cláudio não estava ao lado dela. Era esquisito aquilo, porque o marido costumava se levantar só às sete.

Ela esperou um pouco, imaginando que ele pudesse ter ido ao banheiro. Depois, já quase transtornada, saiu da cama, passou pelo banheiro vazio e, com um horrível pressentimento, caminhou furtivamente até o quartinho da empregada. Dorinha não era jovem, nem bonita, mas…

A porta do quarto de Dorinha estava entreaberta e Luísa viu que ela dormia e – ufa! – dormia sozinha. Uma investigação nos outros cantos da casa mostrou que Cláudio não estava por lá. Luísa resolveu então voltar para o quarto e fazer de conta que não tinha reparado na ausência do marido. Ia ficar de olhos bem abertos, quando ele aparecesse, e não tinha dúvida de que Cláudio ia acabar se traindo.

Às seis e quarenta, ele entrou no quarto e Luísa não conseguiu continuar fingindo que dormia. Sentada na cama, ela o encarou com raiva e já ia exigir uma explicação, quando Cláudio se antecipou:

– Eu preciso contar uma coisa a você, Luisinha.

– O que é? – ela perguntou rispidamente, já achando que não tinha feito bem a vistoria no quarto de Dorinha.

– Eu vou entrar numa academia.

– Academia? – espantou-se Luísa. – Academia de quê?

– De ginástica. Sabe o que é? Eu estou engordando, engordando, e acho que, assim, você vai acabar me dando um fora. Hoje eu levantei cedo para ver se corria uma horinha e queimava umas calorias, mas não aguentei nem vinte minutos. Eu não tenho força de vontade. Nunca tive. Mas numa academia talvez eu…

Luísa não o deixou concluir a frase. Pulou da cama e o abraçou forte, bem forte. Ele estava com uma bermuda velha e apertada e aquele par de tênis ridículo, que fazia muito tempo não usava, mas ela não disse nada. Beijou-o, beijou-o muito. Só depois pensou que, se Cláudio fosse mesmo entrar em uma academia, ela ia precisar dar uma passadinha com ele em uma loja de material esportivo.
Raul Drewnick

terça-feira, outubro 20

Encontro nos livros

 


Adeus, pechinchas!

Até há bem poucos anos, o bibliófilo pobre, saindo a curiosear pelos livro-velheiros , topava às vezes algumas obras interessantes, já pouco achadiças. Eram encontros felizes, agradáveis, alegrias positivas, que custavam pouco dinheiro. Agora, é muito difícil. Os achados pouco dispendiosos são cada dia mais caros, porque os livros de sebo, com judaica cupidez, fariscam logo aquilo que mais pode interessar aos amadores de alfarrábios e, em consequência, cotam bem a sebosa mercadoria.
Adeus, pechinchas!
Eduardo Frieiro, "Os livros nossos amigos"

Vampiros também lêem

 

Lisa Anchin

Longos anos têm catorze dias

A sensação foi a de um taco de basebol a atingir-me a cabeça e a estatelar-me no chão. O coração passou a bater dentro dos meus ouvidos. A saliva secou por completo, tornando-me incapaz de falar e de engolir, A sua mãe testou positivo, repetiu, ao telefone, a senhora enfermeira do hospital de Cascais. Mantive-me especada, no meio da sala da casa da minha mãe.

Era de manhã. O sol içava-se entre a neblina de agosto. As flores da buganvília tinham caído para o chão do quintal. Numa das casas da frente, o cão ladrava e arrastava a corrente de ferro pelo pátio. Dias antes, eu havia perguntado à vizinha do lado se sabia por que motivo o cão estava tão desassossegado, Os donos foram de férias, respondeu-me.


O telemóvel continuava em alta voz, para que a minha irmã e eu pudéssemos ouvir ao mesmo tempo as informações que a enfermeira nos transmitia. No dia anterior, a nossa mãe dera entrada nas urgências, depois de ter andado de hospital em hospital a fazer as análises, TAC e ressonâncias com que os médicos tentavam identificar o mal que a levava de nós a cada dia, Deve haver um engano, ontem fizeram-lhe o teste no hospital de São Francisco Xavier, temos aqui o papel que confirma o resultado negativo, consegui dizer. A enfermeira manteve a paciência ao prosseguir, Um falso positivo é muito raro, a sua mãe foi transferida para o covidário, não tem quaisquer sintomas, mas vai ter de ficar internada umas semanas, enquanto testar positivo fica adiada a maioria dos exames que tem de fazer… Era uma enfermeira simpática, esforçada, compassiva, no entanto, deixei de a ouvir, enredada no enquanto ela testar positivo. É assim que todos passámos a dizer. Pondero se incorremos num erro de sintaxe, como se isso fosse de repente preocupante, Há uma figura de estilo que, numa oração, omite palavras subentendidas, lembrei-me incompreensivelmente apaziguada, Zeugma, é isso, zeugma, soa a nome de deusa. As palavras da enfermeira iam desaparecendo como se o meu cérebro fosse uma peneira de malha larga, O ecocardiograma transesofágico e o mielograma vão ter de esperar, como sabem no atual contexto de pandemia foram suprimidas as visitas, para compensar faremos uma videochamada por dia, os médicos poderão falar telefonicamente com os familiares às segundas, quartas e sextas, estiveram em contacto com a doente nos últimos dias?

Tínhamos almoçado todos juntos há menos de vinte e quatro horas. Apesar da sua preocupante fraqueza física, nada fazia a minha mãe mais feliz do que ver-nos reunidos à volta da mesa, a família que soube construir é o seu maior orgulho, a sua obra mais querida. Possivelmente a minha mãe já estava infetada nesse almoço, possivelmente infetou alguns de nós, possivelmente foi infetada por algum de nós, Têm de telefonar para a linha SNS24 o mais breve possível, avisou a enfermeira, ser-vos-ão dadas instruções de como devem proceder.

Quase meio ano antes, eu mudara-me para a casa da minha mãe depois de ela me ter confessado envergonhada que não se sentia capaz de continuar a viver sozinha, Tenho medo do vírus, ouço as informações que passam na televisão, há muita coisa que não entendo, tu sabes o que temos de fazer para não apanharmos o vírus? Sei, mãe, respondi, não te preocupes. Como se veio a provar, menti-lhe. Mas que importância tem a verdade nas coisas do amor?

Quando desligámos o telefone, a Lina e eu ficámos em silêncio. Havia muito para dizer, por exemplo, Temos de nos afastar, pode dar-se o caso de alguns de nós estarem infetados e outros não. As estatísticas que eu acompanhava nos últimos meses toldavam-me as palavras. Uma mulher que tivesse mais de 80 anos e problemas cardíacos pertencia ao grupo dos mais vulneráveis, cuja taxa de letalidade rondava os quinze por cento. A minha mãe era uma dessas mulheres. Ainda por cima dizia-se sem forças há meses. Queixava-se de um enorme e irreparável cansaço, emagrecia como que sugada vorazmente pelos ossos, definhava, os médicos a que a levávamos não percebiam o que se passava com ela. Por isso, exames e mais exames. Eu queria lembrar a competência dos hospitais públicos, a força e o apego à vida da nossa mãe, o caso da idosa de quase 100 anos que sobrevivera à Covid depois de ter estado ligada a um ventilador, mas ouvi-me dizer, A mãe vai morrer.

E só então consegui respirar devidamente. Como se o medo calado me inundasse os pulmões.

Pouco depois, a Lina e o Paulo foram-se embora. De acordo com as instruções da SNS24 ficaríamos longe uns dos outros, a Lina e o Paulo, o Coca e a Catarina e os meninos, o Luís. Aqui em casa, o Pedro e eu dormiríamos em quartos separados e não tomaríamos as refeições juntos. Faríamos compras online. Não sairíamos de casa, a não ser para passeios higiénicos. Que raio de coisa é um passeio higiénico de que agora tanto se fala? Mediríamos a febre duas vezes ao dia. Estaríamos especialmente atentos aos sintomas.

Ninguém nos disse que estaríamos especialmente sós.

O resto era esperar. Frouxamente unidos por ecrãs de telemóveis e tablets, em gestos e palavras de desfazer receios. Esperar. Esperar que a minha mãe não começasse a ter febre. Que a minha mãe não viesse a ter falta de ar. Que a minha mãe não tivesse de ser ventilada. Que a minha mãe não morresse. Nem a minha mãe nem nenhum de nós. O resto era esperar. Que a hidroxicloroquina, o gengibre e as demais mezinhas fizessem efeito e não deixassem o vírus replicar-se. Que as instruções das autoridades de saúde fossem as certas e que os médicos e enfermeiros e auxiliares fizessem bem o seu trabalho. Esperar que o tempo passasse. Encolhida como em criança, ao jogar às escondidas, por detrás da porta da despensa escura. Se alguém fosse apanhado, se eu fosse apanhada, esperar que o último corresse depressa até o coito, 1, 2, 3, salva todos. O resto era começar a contar. Catorze dias. Vinte mil, cento e sessenta minutos.

Esperar.