sexta-feira, dezembro 31

Vêm aí novos capítulos


A última folha do calendário está prestes a cair. Só as folhas dos livros continuarão viradas e reviradas a cada dia borrifando felicidade e sonhos

Damos uma paradinha neste dias. Voltamos breve

Quem ama, cuida

Somos uma geração perplexa, somos uma geração insegura, somos uma geração aflita — mas, como tudo tem seu lado bom, somos uma geração questionadora.

O que existe por aí não nos satisfaz. Sofremos com a falta de uma espinha dorsal mais firme que nos sustente, com a desmoralização generalizada que contamina velhos e jovens, com uma baixa auto-estima e descaso que, penso eu, transpareceram em nossa equipe de futebol na Copa do Mundo.

Algum remédio deve ser buscado na realidade, sem desprezar a força da imaginação e a raiz das tradições — até no trato com as crianças.


Uma duradoura influência em minha vida, meu trabalho e arte, foram os contos de fadas: antiquíssimas histórias populares revistas e divulgadas por Andersen e pelos Irmãos Grimm, para povoar e enriquecer alma de milhões de crianças — e adultos.

Esses relatos, plenos de fantasia, falam de realidades e mitos arcaicos que transcendem linguagem, raça e geografia, e nos revelam.

Nessa literatura infantil reúnem-se dois elementos que me apaixonam: o belo e o sinistro. Ela abre, através da imaginação, olhos e medos para a vida real, tecida de momentos bons e ameaças sinistras, experiências divertidas e outras dolorosas — também na infância.

Na realidade, nem sempre os fortes vencem e os frágeis são anulados: a força da inteligência de pessoas, grupos, ou povos ditos “fracos”, inúmeras vezes derrota a brutalidade dos “fortes” menos iluminados. Porém o mal existe, a perversão existe, atualmente a impunidade reina neste país nosso, confundindo critérios que antes nos orientavam. Cabe à família, à escola, e a qualquer pessoa bem intencionada, reinstaurar alguns fundamentos de vida e instaurar novos.

Não vejo isso em certa — não generalizada — tendência para uma educação imbecilizante de nossas crianças, segundo a qual só se deve aprender brincando, a escola passou a ser quase um pátio tumultuado, e a falta de respeito reproduz o que acontece tanto em casa quanto em alguns altos escalões do país.

Essa mesma corrente de pensamento quer mutilar histórias infantis arcaicas como a do Chapeuzinho Vermelho: agora o Lobo acaba amigo da Vovó… e nada de devorar a velha, nada de abrir a barriga da fera e retirá-la outra vez. Tudo numa boa, todos na mais santa paz, tudo de brincadeirinha — como não é assim a vida.

Modificam-se textos de cantigas como “Atirei o pau no gato”, transformando-a em um ridículo “Não atire o pau no gato” e outras bobajadas, porque o gato é bonzinho e nós devemos ser idem, no mais detestável politicamente correto que já vi.

O mundo não é assim. Coisas más e assustadoras acontecem, por isso nossas crianças e jovens devem ser preparados para a realidade. Não com pessimismo ou cinismo, mas com a força de um otimismo lúcido.

Medo faz parte de existir, e de pensar. Não precisa ser terror da violência doméstica, física ou verbal, ou da violência nas ruas — mas o medo natural e saudável que nos faz cautelosos, pois nem todo mundo é bonzinho, adultos e mesmo crianças podem ser maus, nem todos os líderes são modelos de dignidade. Uma dose de realismo no trato com crianças ajudará a lhes dar o necessário discernimento, habilidade para perceber o positivo e o negativo, e escolher melhor.

Temos muitos adolescentes infantilizados pelo excesso de proteção paterna ou pela sua omissão, na gravíssima crise de autoridade que nos assola; temos jovens adultos incapazes porque quase nada lhes foi exigido, nem na escola, nem em casa. Talvez tenha lhes faltado a essencial atenção e interesse dos pais, na onda de “tudo numa boa”.

Dar a volta por cima significará mudar algumas posturas e opções, exigir mais de nós mesmos e de nossos filhos, de professores e alunos, dos governos, das instituições. Ou vamos transformar as novas gerações em fracotes despreparados, vítimas fáceis das armadilhas que espreitam de todos os lados, no meio do honrado e do amoroso — que também existem e precisam se multiplicar.

Não prego desconfiança básica, mas uma perspectiva menos alienada: duendes de pesadelo aparecem em nosso cotidiano. Nem todos os amigos, vizinhos, parentes, professores ou autoridades nos amam e nos protegem. Nem todos são boas pessoas, nem todos são preparados para sua função, nem todos são saudáveis.

Para construir de forma mais positiva nossa vida, é preciso, repito, dispor da melhor das armas, que temos de conquistar sozinhos, duramente, quando não a recebemos em casa nem na escola: discernimento. Capacidade de analisar, argumentar, e escolher para nosso bem — o que nem sempre significa comodidade ou sucesso fácil.

Quem ama, cuida: de si mesmo, da família, da comunidade, do país — pode ser difícil, mas é de uma assustadora simplicidade, e não vejo outro caminho.
Lya Luft (1938-2021), “Em outras palavras”

Livros, um cansaço!

 


A nuvem

– Fico admirado como é que você, morando nesta cidade, consegue escrever uma semana inteira sem reclamar, sem protestar, sem espinafrar! E meu amigo falou da água, telefone, Light em geral, carne, batata, transporte, custo de vida, buracos na rua, etc. etc. etc. 

Meu amigo está, como dizem as pessoas exageradas, grávido de razões. Mas que posso fazer? Até que tenho reclamado muito isto e aquilo. Mas se eu for ficar rezingando todo dia, estou roubado: quem é que vai aguentar me ler? Acho que o leitor gosta de ver suas queixas no jornal, mas em termos.

Além disso, a verdade não está apenas nos buracos das ruas e outras mazelas. Não é verdade que as amendoeiras neste inverno deram um show luxuoso de folhas vermelhas voando no ar? E ficaria demasiado feio eu confessar que há uma jovem gostando de mim? Ah, bem sei que esses encantamentos de moça por um senhor maduro duram pouco. São caprichos de certa fase. Mas que importa? Esse carinho me faz bem; eu o recebo terna e gravemente; sem melancolia, porque sem ilusão. Ele se irá como veio, leve nuvem solta na brisa, que se tinge um instante de púrpura sobre as cinzas de meu crepúsculo.

E olhem só que tipo de frase estou escrevendo! Tome tenência, velho Braga. Deixe a nuvem, olhe para o chão – e seus tradicionais buracos.

Rubem Braga, "Ai de ti, Copacabana"

quinta-feira, dezembro 30

Agenda cheia

 

Junghyeon Kwon


Elegíada

Esta é a verdade: agora eu estou só. Com mais um pouco, chegará a madrugada. As velas ficarão pálidas, os sinos dobrarão em tua homenagem; e, quando o sol vier, não iluminará teus olhos.

Mais algumas horas e nossos conhecidos te levarão para o Campo. Estarão um pouco tristes, mas não podem imaginar que imensa perda eu sofri. Dirão entre si: “Tinha de ser. Um deles havia que ir primeiro…” E acharão que já sou muito idoso, que minha capacidade de sofrer se extinguiu e que não tardarei a seguir-te. Não lhes ocorrerá talvez, que é justamente por ser velho que tua ida é mais triste. Se fora moço, minha saúde afastaria a dor. Mas eu estou velho. E muito só, abandonado – sou uma criança aflita, querida. Meus filhos acham agora que os superiores são eles; que devem governar-me. Fazem recolher-me cedo, não me permitem comer o que desejo e até ralham comigo. É um modo de mostrar que me amam. Mas eu não sinto grande profundidade nesse afeto. Há uma certa rispidez na maneira como eles procuram preservar-me, como se eu fosse meio tonto.
 
Também os netos, creio, não me querem como eu desejava. Sempre os imaginei como ingênuas crianças, as quais eu levaria pela mão a maravilhosas viagens e para quem inventaria histórias que ouviriam com prazer. Mas quase nunca eu os levo a passeio; e quando o faço, não consigo unir-me a eles, que trocam segredos, conversam em língua codificada, sorriem. (Suponho, mesmo, que muitas vezes troçam de mim.) E se tento contar-lhes uma história, não me levam a sério. Mas me recebem com alegria quando os visito, pedem a bênção ao vovô e levam meu chapéu para guardar. Observo, contudo, que não se sentem à vontade quando me beijam a mão e que o júbilo deles se prende muito mais aos brinquedos que lhes levo. E eu os olho sorrindo, com amargura, e penso nos anos que nos distanciam e no afeto que eles mal supõem existir. Quanto aos amigos, tu sabes muito bem que não mais os possuo. Uns morreram; outros acharam na velhice um agradável pretexto para se tornarem brigões ou dementes; e o resto me aborrece pela insistência em me fazer acreditar ser bem mais velho que eles.
 
Só tu me restavas. Junto a ti eu podia ser eu mesmo, sem temor de parecer ridículo. Eras tu quem tinha a chave do meu caráter e do dom de encantar-me. (Mesmo a tua zombaria era uma forma de afeição.) E agora um duro silêncio te envolve e imobiliza. Vejo tuas mãos cruzadas, o lençol que te cobre, tuas feições tranqüilas. Sei que logo mais eles te levarão. Talvez, então, eu te beije a fronte. Não ignoro, porém, que me dói tua frieza de morta e é mais provável que beije teus cabelos. Sim, beijarei teus cabelos — que eu vi, de abundantes e negros, rarearem e encanecerem. Beijarei teus cabelos, querida; eles não mudaram com a morte. Tua fronte ficou mais límpida, o nariz mais fino, as faces se encovaram, a carne está rígida e as pálpebras não as fechaste com a suavidade de sempre. Teu cabelo, porém, continua intato; quando sopra o vento, ainda esvoaça; está vivo, é o mesmo que penteavas pela manhã e soltavas à noite, antes de dormir. E agora se bem não os houvesses despenteado, tu dormes. E eu me senti pesaroso e grave, como tantas vezes me senti junto a nossos filhos, quando eles estavam doentes e o sono lhes chegava pela madrugada, após uma noite inquieta e eu ficava junto a eles, sentado, olhando-os, até que tu vinhas e punhas a mão em meu ombro e fazias com que me fosse deitar. Agora, eu não conhecerei mais a doçura desse gesto. Talvez, daqui há pouco, venha alguém — um filho ou vizinho — que me induza a afastar-me de ti e deitar-me. Mas, quem quer que seja, virá com palavras. Tu, não: vinhas com o teu silêncio, com tua tranqüilidade, e fazias com que eu dormisse. Mas quando despertava, eras tu quem estava ao lado do enfermo. Isto, eles não saberão. É íntimo demais, exige um nível de compreensão mútua demasiado grande para ser revelado. Não lhes contarei.
 
Também não falarei a ninguém de certas coisas que guardo com imensa ternura e que, se contasse, me julgariam tonto. Não direi da emoção com que te vi, muitas vezes, fazer as mais corriqueiras tarefas. Durante anos, quase todos os dias cuidavas da casa. Eu te viam sem nada de especial. Mas vinha um dia em que eu te descobria a intimidade nesse trabalho. Via o cuidado com que afastavas a poeira, a precisão com que punhas os jarros em seus lugares, com que mudavas as toalhas, os panos; escutava teus passos e me comovia por ver como te entregavas a esses afazeres. E descobria um extremado amor nisso tudo, o que me fazia perceber como eras simples.

Lembro-me mesmo que um dia havias trabalhado muito e te deitaste cedo. Eu fiquei lendo, e, quando o sono veio, fechei as portas. Havia um silêncio tão grande! Os móveis brilhavam, não havia pó no chão; tudo em ordem, limpo, cuidado. Detive-me um instante à sala de jantar, como se pressentisse avizinhar-se um mistério. Contemplei o jarro de flores, na mesa. Tu mesma as havias colhido pela manhã. Senti tua presença diligente na limpeza, nas flores; o carinho que depositavas em tudo. E percebi que havia algo me envolvendo: cingia-me um princípio de angústia. Na cozinha, olhei para o fogo: apagara-se. Durante o dia, estivera ativo, quente. Agora, estava morto. Era cinza. O que aconteceu em seguida, foi tão ridículo e sutil, tão difícil de expressar, que nunca te contei. Eu chorei, querida. Penso que sofri uma decepção obscura e súbita, uma espécie de dor ante a pouca duração da vida, da nossa vida – não sei; é possível também que houvesse sentido, ante a simplicidade com que vivias, algo semelhante à pena que às vezes nos aflige ante um folguedo de criança. Mas é difícil explicar. Talvez o que eu houvesse sentido fosse o presságio disto: de que virias a morrer, que nosso fogo não mais seria aceso pela tuas mãos e que nunca voltarias a colhes flores para o nosso jarro. Seria? Que me dizes?
 
Oh! Mas eu estou delirando. Fitava-te tão intensamente, com tanta saudade, que já te supunha viva. Se eles soubessem disto, também sorririam de mim. Na minha idade, já não se pode ter pensamentos estranhos nem fazer confissões. Fica-se ridículo, querida. E eu tenho que aproveitar estes últimos momentos em que ainda estamos juntos. É a última oportunidade de falar-te, mesmo sem abrir os lábios, e contar as tolices que não contarei a ninguém. Quero te dizer, por exemplo, uma coisa esquisita, uma coisa que não compreendo: os fatos culminantes de nossas vidas, aqueles que nunca poderíamos chegar a esquecer, perderam hoje esse privilégio. Nosso casamentos não é mais importante que a lembrança conservada, como por milagre, de quando te vi, pouco antes da cerimônia, em teu traje de noiva. Tão bem me lembro como teus olhos brilhavam e como teu riso era alegre! E no momento em que fecharam a porta para teu primeiro parto, que eu não tive coragem de assistir? Antes, isso era um fato importante! Hoje, não: está no mesmo nível de um gesto teu ou de teu sorriso. Hoje ele é tão importante como a tua alegria – esse resto de infância que nunca perdeste – a tua alegrai quando eu te presenteava com uma caixa de bombons ou uma fruta. Às vezes, eu te trazia biscoitos. Tu os guardavas e eu te censurava, porque me parecias avara, pois nem os comia de uma vez, nem os repartias com outrem. Mas eu te censurava sem rancor, porque sabia que a tua avareza era um modo de prolongar, ingenuamente, uma lembrança minha. Também não poderei contar isto a ninguém. Dirão que me preocupo com migalhas ou invento qualidades que não tinhas. E agora, querida, com quem repartirei estas memórias? Tu te vais e o peso do passado é muito grande para que eu o suporte sozinho. As palavras – todos sabem – são mortalmente vazias para exprimir certas coisas. Quando nos sentávamos, sós, a recordar nossa vida, não eram elas que restauravam os fatos: éramos nós.

E agora, que já não existes, com quem poderei falar de coisas triviais e amadas, como teu pesar, por teres quebrado involuntariamente um presente que eu te dera e nossa alegria na primeira viagem de trem? Com quem poderia falar disto? Com quem irei comentar teu hábito de, quando eu me esquecia dos óculos, deixares que eu chegasse à esquina para só então me chamar? E eu vinha, ralhava contigo, perguntava quando deixarias de ser criança. Mais tardem lembrava-me do episódio e me ria, disfarçadamente, com medo que me vissem e dissessem: Olha o velho rindo sem motivo…
 
"Mas eu não devia estar me lembrando dessas coisas. Talvez alguém tenha visto meu sorriso e julgará que não sinto a tua falta. “Ele não chorou — pensará. E agora, sorri. Está maluco; ou então nem sentiu.” Decerto, minha dor não é violenta. É cansada. Mas é tão vasta, tão desalentada e profunda… E vou ficar tão sozinho, querida…

Osman Lins, "Os Gestos" 

Café tá na mesa

 


Assim começa...

Aquela era uma cidade assombrosa, que parecia ter brotado do vale num repente de uma noite de inverno, como um ser pré-histórico, e, rastejando com enorme esforço, galgado a face do monte. Tudo naquela cidade era velho e pétreo, desde as ruas e ruelas até os telhados das casas, grandes, seculares, cobertos de placas de pedra cinzenta, semelhantes a escamas gigantescas. Era difícil acreditar que dentro daquelas duras couraças palpitava e repetia-se a tenra e branda carne da vida.

Em cada viajante que a via pela primeira vez, a cidade despertava o impulso das comparações, mas logo, quando o forasteiro caía em suas garras, ela repelia os paralelos, pois era uma cidade que não se parecia com nada. Não absorvia cotejos, assim como não absorvia as chuvas, as nevascas, os arco-íris e as multicoloridas bandeiras estrangeiras que iam e vinham sobre seus tetos, tão temporárias e etéreas como se estranhassem a pétrea constância do lugar.

 Era uma cidade torta, talvez a mais torta do mundo, contrariando todas as leis do urbanismo. Graças à sua enorme tortuosidade, ocorria de o telhado de uma casa estar no mesmo nível das fundações de outra. Com certeza era o único lugar do mundo em que alguém podia escorregar na rua e, em vez de cair na sarjeta, tombar talvez no telhado de uma casa de vários andares. Quem melhor sabia disso eram os beberrões.

Era, com efeito, uma cidade de muitas surpresas. Você podia passear pela rua e, querendo, esticar o braço e pendurar o chapéu no topo de um minarete. Muitas coisas ali eram inacreditáveis e muitas pareciam sonhos.

Ao guardar a custo a vida humana em suas juntas e sob suas cascas de rocha, a cidade sem querer causava-lhe muita dor, arranhões, feridas. Era algo natural, já que era uma cidade de pedra, áspera e fria ao tato.

Não era fácil ser criança naquela cidade.

1.

Lá fora a noite de inverno a tudo cobrira de água, névoa e vento. Cabeça enfiada sob a coberta, ouvi o barulho abafado e monótono das gotas de chuva no grande telhado de nossa casa.
Imaginei como os inumeráveis pingos escorriam agora sobre as lajes desiguais, correndo para cair o quanto antes no chão, depois evaporando e subindo outra vez, bem alto no céu alva-cento. Mal sabiam que nos beirais dos telhados uma armadilha desconhecida os aguardava, a calha. Justamente quando as gotas de chuva se preparavam para saltar do teto ao chão, repentinamente iam dar na estreita calha, junto com milhares e milhares de companheiras, que amedrontadas indagavam: "Aonde vamos, aonde nos levam?". E, antes que se recobrassem daquela carreira insana, súbito se achavam numa prisão funda e escura, a cisterna de nossa casa.
Assim findava a livre e alegre vida das gotas d'água. Mais tarde, na cisterna sombria e surda, elas recordariam nostalgicamente as vastidões celestes que nunca mais avistariam, as assombrosas cidades lá embaixo e os horizontes riscados por raios. Só eu, vez por outra, de brincadeira, haveria de lhes mostrar, com a ajuda de um espelho, um pedacinho de céu do tamanho de um dedo, que flutuaria sobre as águas como fugaz lembrança do grande firmamento.
Lá embaixo elas atravessariam muitos dias e meses de tédio até que mamãe as recolheria com um balde, desvanecidas e inermes de pavor, para com elas lavar nossas roupas, as escadas e os pisos da casa.
Mas por enquanto elas nem suspeitavam. Corriam alegres e ruidosas pelas placas de pedra e só eu, sob a coberta, apiedava-me delas.
Quando as chuvas se prolongavam por três ou quatro dias a fio, papai virava a calha para que a cisterna não transbordasse. Era uma grande cacimba. Abarcava quase toda a área de nossa casa e, caso arrebentasse, poderia inundar o porão e socavar os alicerces da casa. Nossa cidade era ladeirenta e tudo podia acontecer numa cidade assim.
Eu cogitava quem sofreria mais com a prisão, se uma pessoa ou um pingo d'água, quando ouvi os passos de vovó, e em seguida sua voz, no quarto ao lado:
- Levantem, levantem, esquecemos de virar a calha.
Papai e mamãe saltaram da cama alarmados. Meu pai apressou-se no escuro, em longas ceroulas brancas, abriu a janela do corredor e com a ajuda de uma longa vara empurrou a calha. Ouvi o barulho da água caindo no quintal.
Enquanto isso, mamãe acendera a lamparina de querosene e desceu as escadas com papai e vovó. Aproximei-me da janela e tentei olhar lá fora. O vento açoitava furiosamente a chuva de encontro aos vidros, e as rachaduras da construção antiga gemiam.
Não resisti e desci as escadas para ver o que acontecia. Os três nem repararam em mim. Tinham afastado a tampa de madeira da boca da cisterna e tentavam enxergar o que acontecia lá dentro. Mamãe segurava a lamparina enquanto papai espiava lá embaixo.
Senti um arrepio no corpo e agarrei-me às roupas de vovó. Ela pôs a mão sobre minha cabeça. O vento fazia vibrar as portas e o portão.
- Que temporal! - disse vovó.
Papai, todo curvado, tentava enxergar dentro da cisterna.
- Vá pegar uma folha de jornal - disse ele a mamãe.
Ela trouxe. Meu pai enrolou o papel, acendeu e jogou na cisterna. Mamãe deixou escapar um gritinho.
- A água subiu até a boca - disse papai.
Vovó murmurava uma oração.
- Depressa - disse papai -, acenda o lampião.
Mamãe, pálida, acendeu-o com mãos trêmulas, enquanto papai cobriu-se com uma capa preta, pegou o lampião e foi abrir o portão. Mamãe também vestiu alguma coisa e foi atrás.
Lá fora, abafado em meio ao barulho da chuva, ouvi que batiam numa porta, depois em outra e ainda outra.
- Não tenha medo - disse vovó. - Os vizinhos virão tirar a água e a cisterna vai se aquietar. - A voz dela era tranquilizadora, como se narrasse um conto. - Tudo de ruim neste mundo tem remédio, menos a morte, filho.
Aproximei-me da borda e olhei para baixo. Escuridão. Escuridão e medo.
- Uuu!... - fiz, baixinho. Mas a cisterna não respondeu. Era a primeira vez que não respondia. Eu gostava muito dela e muitas vezes falava-lhe todo tipo de coisa, debruçado sobre sua boca. Ela sempre respondia com aquela sua voz cava e profunda.
- Uuu!... - fiz de novo, mas ela permaneceu em silêncio. Isso queria dizer que estava furiosa.
Agora eu me dava conta de como as incontáveis gotas de chuva reuniam sua revolta ali embaixo. As velhas, que esperavam ali havia tempos, uniam-se às novas, às coléricas gotas daquela noite de tempestade e preparavam algo mau. Que pena que papai esquecera de virar a calha. Era preciso impedir a todo custo que as águas do temporal penetrassem em nossa bem-comportada cisterna e a incitassem à revolta.
Ouvi barulho no portão e eles entraram, um após outro, encharcados: Djedjo, Mane Votso e Nazo, esta acompanhada de sua nora. Depois entrou meu pai, seguido por mamãe, que tremia de frio. O portão voltou a ranger, e entrou correndo Javer, com Maks, o filho de Nazo, trazendo uma grande vasilha.
Encorajei-me ao ver tanta gente. Dançavam as cordas, gamelas e baldes. Pareceu-me que aqueles utensílios tilintantes arrancavam-me a ansiedade da alma. Subi a escada e dali acompanhava as pessoas que se agitavam ruidosamente: Mane Votso, alto e magro, de cabelos grisalhos; o filho e a bela nora de Nazo, de olhos sonolentos; Djedjo, que respirava a custo. Eles tiravam balde após balde, enquanto papai e os outros os esvaziavam no portão do quintal. Lá fora a chuva continuava a desabar e de vez em quando Djedjo falava com sua voz anasalada:
- Puxa, que aguaceiro!
Cada vez que uma vasilha se ia, eu dizia comigo: "Vai, que o diabo te leve, já que não quis ficar na nossa cisterna". Cada balde estava lotado de pingos encarcerados, e pus-me a pensar como seria bom se houvesse uma maneira de tirar primeiro os pingos ruins e criadores de caso, de modo a afastar o perigo.
Djedjo foi para um canto descansar e acendeu um cigarro.
- Ouviu? - disse, aproximando-se da avó. - A filha de Tchetcho Kail... está de barba.
- Não me diga.
- Palavra - disse Djedjo. - Uma barba preta como barba de homem. Por isso o pai não a deixa sair na rua.
Apurei os ouvidos. Eu conhecia a moça, e era verdade: fazia tempo eu não a via na rua.
- Ai, minha Selfidje - gemeu Djedjo. - Pobres de nós. Que maus agouros Deus nos manda! E agora este aguaceiro desgraçado de hoje.
Acompanhando com os olhos a bela nora de Nazo, casada três semanas antes, Djedjo cochichou mais alguma coisa à avó. Ela mordeu os lábios. Aproximei-me para ouvir, mas Djedjo jogou fora o cigarro e foi para a borda do poço.
- Que horas serão? - perguntou Mane Votso.
- Já passa da meia-noite - respondeu papai.
- Vou fazer um café - disse vovó, e levou-me consigo.
Estávamos subindo a escada, quando ouvi o portão ranger.
- Chegou mais gente - disse vovó.
Espichei a cabeça para ver quem chegara, mas em vão. O corredor estava às escuras e sombras amedrontadoras se moviam pelas paredes, como os contornos instáveis de um pesadelo.
Subimos para o terceiro andar.
Vovó acendeu o fogo na sala da lareira. Fui dormir. Lá fora o temporal urrava. As chaminés gemiam como seres vivos e fiquei pensando que debaixo dos alicerces de nossa casa não havia terra firme e segura, mas a água negra e pérfida da cisterna.
Tempos ruins, tempos tormentosos, ah, minha comadre, estes tempos são traiçoeiros.
Confusamente, à medida que o sonho tomava conta de mim ao som agradável do fogo, acorreram-me fragmentos de palavras e conversas ouvidas dos grandes aqui e ali, com significados escorregadios como água.
Quando acordei, a casa estava muda. Papai e mamãe dormiam. Levantei sem ruído e fui ver as horas. Eram nove. Fui até o outro quarto, mas vovó também dormia. Era a primeira vez
que todos estavam dormindo numa hora daquelas.
A tempestade cessara. Aproximei-me da janela da sala grande e olhei para fora. O céu estava alto e frio, coberto de nuvens cinzentas, imóveis. A água que tinham tirado da cisterna durante a noite talvez já houvesse evaporado e àquela altura estivesse lá em cima nas nuvens, observando dali, carrancuda e lúgubre, os telhados na terra sombria.
A primeira coisa com que topei quando voltei os olhos para as ruas embaixo foi o rio que transbordara. Era certo que transbordaria. Não podia ser diferente numa noite daquelas. Por horas a fio ele tentara, como de costume, derrubar a ponte, como um cavalo enraivecido que tenta derrubar o cavaleiro. Os ferozes esforços do rio durante a noite estavam patentes em seu dorso ensangüentado. Como não lograsse derrubar a ponte, o rio, como de hábito, lançara-se sobre a estrada e a engolira. Agora não se via a estrada. O rio, excepcionalmente inchado pelo repasto, tratava de arrastá-la consigo. Mas a estrada era sólida. Estava acostumada com aqueles inesperados ataques e com certeza mantinha a tranqüilidade por baixo das águas revoltas e barrentas, esperando que se retirassem.
Rio maluco, pensei. Todo inverno ele tenta devorar a cidade pelas pernas. Apesar disso, não é tão perigoso como tenta parecer. Mais perigosas eram as torrentes que desabavam das montanhas. Também elas, tal como ele, tratavam de engolir a cidade. Só que, enquanto o rio, megalomaníaco, mordia os pés da cidade, as torrentes precipitavam-se por suas costas, traiçoeiramente. Na maior parte do tempo, não tinham água. Seus leitos na encosta do monte serpeavam como cobras mortas e secas. Mas de repente, depois de uma noite de chuva, ganhavam vida, cresciam, precipitavam-se, assoviavam, rugiam. Eis que corriam ladeira abaixo, pálidos de cólera, com aqueles seus nomes curtos como os de cães (arroio de Tsulos, de Ficos, de Tsfakë), levando consigo torrões de terra e pedras, arrebatados na arremetida sobre os bairros altos.
Olhei a paisagem modificada ao longo da noite e pensei que, assim como o rio odiava a estrada, a estrada com certeza odiava o rio, as torrentes odiavam os muros, o vento odiava o monte que lhe continha a fúria... e todos juntos odiavam a cidade que permanecia, molhada, cinzenta e desdenhosa, em meio àquele frenesi destrutivo. Eu simpatizava com ela, já que se achava sozinha naquela guerra.
Sem tirar os olhos da janela, tratei de entender que ligação poderia existir entre a tempestade da véspera e a filha de Tchetcho Kail, cuja barba agourenta veio-me à lembrança. Depois o pensamento dirigiu-se à cisterna. Levantei e desci a escada. O corredor ainda estava todo molhado. Os baldes e as cordas tinham sido deixados por terra num monte. Sua presença parecia reforçar o silêncio. Aproximei-me da boca da cisterna, tirei a tampa e inclinei a cabeça.
- Uuu!... - fiz, vagarosamente, como se temesse despertar algum monstro.
- Uuu!... - respondeu a cisterna, como que de má vontade, com uma voz estranha e rouca. Aquilo queria dizer que sua raiva passara, mesmo que não por completo, pois tinha a voz mais surda que de costume.
Quando subi de volta para a sala grande do terceiro andar, vi com alegria que mais adiante, a uma distância indefinível, aparecera um arco-íris, como um tratado de paz recém-estabelecido entre o monte, o rio, a ponte, os arroios, a estrada, o vento e a cidade. Não era preciso muito para perceber que era uma paz temporária.

quarta-feira, dezembro 29

Hora de regar o jardim

 


Os jornais

Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. “Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz...” Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:

“Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraça-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: Meu amor, ao que ele retorquiu: Deolinda. Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7:45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal.”

Henri Matisse 

A impressão que a gente tem, lendo os jornais – continuou meu amigo – é que “lar” é um local destinado principalmente à prática de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala. Imagine isto:

“Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar Flor Mineira, à rua Cruzeiro, 524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegando a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada.”

E meu amigo:

- Se um repórter redigir essas duas notas e leva-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida...
Rubem Braga, "Pequena antologia do Braga"

Leitura com paisagem

 

Junghyeon Kwon

Assim começa...

Saramago escreveu a última frase do romance. 

Preso, o seu olhar entrou em cada uma daquelas palavras, mestre de obras, avaliou-as por dentro como se fossem casas; pode viver-se aqui?, perguntou no silêncio do seu interior, interior dele e das casas, recebendo apenas a resposta do eco, otimista evidência de um lugar criado, espaço viável, habitat. Depois, na via que aquela frase alinhava, passeou diante das palavras, rua de fachadas dignas e sólidas, mediu o espaço entre cada uma, comparou as nuances da cor que apresentavam, reflexos de um sol que brilhava desde o centro do romance. 

Ainda com a atenção nessa paisagem, afastou as mãos do teclado do computador, seriam duas aves possíveis, mas eram realmente as mãos de um homem de setenta e quatro anos, mãos de pele humana, provisoriamente sem peso, esquecidas da gravidade. Pousou-as sobre o tampo de madeira, uma em cada banda do teclado, e os dedos encontraram um descanso individual, uns mais esticados, outros mais encaracolados nas falanges. Debaixo da mesa, na sombra, deslizou os pés para fora das pantufas, deixou-os a meio, ainda no conforto têxtil e já na liberdade. Mas tudo isto era alheio ao arbítrio do escritor, o corpo humano avança numa existência independente quando abandonado, é por felicidade que o coração não espera ordem para bater, que os pulmões se organizam autónomos na sua azáfama de respirar, até o mais anónimo cabelo sabe embranquecer sozinho. Atrás, os livros das estantes pareciam inclinar-se-lhe sobre os ombros, ávidos de não perder o que fosse, investigadores, também eles já tinham sido assim, antes da impressora e das leituras críticas, antes do mundo, protegidos pelo zelo do seu criador. No outro lado do escritório, fugindo de raízes afeiçoadas à terra doméstica, imitação envasada dos campos, plantas mudas estendiam-se na direção da claridade, era esse esforço que as fazia crescer. Talvez se possa acreditar que também essas folhas carnudas faziam crescer a claridade, tal era a abundância com que julho inteiro rebentava naquela janela, o início de julho através daquelas vidraças, o dia 2 de julho de 1997 jorrava inteiro por aquela janela. Na parede restante, a porta fechada, ruídos cautelosos que alguém poderia definir por remanso. 

Com um movimento de pescoço, quase indistinto, aconteceu ou não, Saramago levantou o olhar. Não chamaria Pilar imediatamente, tinha esse lance guardado, antecipou-o durante meses e, agora, queria tomar-lhe o gosto. Entre pensamentos, era capaz de ouvir a sua própria voz a chamá-la, tinha uma maneira especial para articular o nome de Pilar naqueles momentos, conseguia já ver os detalhes do seu rosto assim que lhe desse a notícia. Animara essa imagem entre capítulos e jornadas de escrita, a ponto de não terem sido poucas as vezes em que essa lhe pareceu a primeira razão, a mais verdadeira, tinha-se dado ao trabalho daquele romance para assistir ao rosto de Pilar no momento em que o tivesse terminado. Sem que precisasse de alterar a expressão, esta ideia juvenil fazia-o sorrir. Ao mesmo tempo, as personagens ainda mexiam no seu íntimo, revolteavam assustadas, incertas do futuro, faltava-lhes palavras, começavam a desfazer-se; também por isso, o escritor precisava de mais algum tempo a sós com elas, precisava de acudir a essa afl ição; e agora?, e agora?, indagavam as personagens sem parança. Era necessário tempo para explicar-lhes que agora a sua vida começaria de facto. 

Existia aquele escritório e dentro da cabeça de Saramago existia outro escritório, o mesmo acontecia com aquele livro acabado de escrever e com toda a ilha de Lanzarote, o oceano Atlântico. Não se pode saber o que é maior, há muitos tipos de tamanho, assim como o livro estava dentro da ilha, também a ilha estava dentro do 


Tocaram à campainha. Pensou logo no vale de correio, poderia ser? Precisava muito desse dinheiro, mas não lhe era conveniente quebrar a agilidade rara, tão rara, da escrita. José fechou os olhos, girou o indicador sobre o teclado até perder discernimento da localização das letras. Confiaria na ordem alfabética, mas desnivelou as probabilidades, abriria a porta se calhasse menos do que h, continuaria sentado se saísse uma letra mais alta no alfabeto. Pousou o dedo, levantou as pálpebras, curiosidade de rato, calhou b. Libertou-se do sofá que o engolia para o interior de uma cova na napa, molas partidas, e deu seis passos médios, atravessando aquela divisão. A meio desse caminho, bateram à porta, ossos na madeira. Não estranhou, José morava no rés do chão, a entrada do prédio ficava a pouca distância da sua porta. 

Convencido de que ia encontrar o carteiro, arrastou o puxador num movimento único, levava semblante escolhido e reprimenda preparada mas, antes de abrir a boca, um dos homens lançou-lhe a mão ao pescoço e empurrou-o para dentro, levantou-o no ar, os bicos dos pés a tocarem o chão, bailarina despreocupada com a graciosidade; o outro seguiu-os e fechou a porta. Retido nessa mão apertada, braço esticado, José não soube o que dizer ou o que fazer, ainda que não conseguisse exprimir um pio com a garganta cingida e que, pelo mesmo motivo, não tivesse a autoridade de qualquer gesto. Sabes quem nos mandou? Só o murro que recebeu no baço depois desta pergunta teria chegado para José. Não caiu de joelhos porque estava suspenso pelo pescoço. Talvez o homem fosse canhoto se esmurrava com tanta pujança à esquerda mas, nesse caso, impressionava a competência com que estrafegava à direita. Em qualquer das opções, era certo que tinha mais raiva num braço, qualquer um, do que José em todo o esqueleto. 


Engelhando a cara para puxar a lembrança, José apenas conseguia distinguir retalhos, momentos incompletos a passarem demasiado depressa, sem início, começados a meio, sem fim, terminados no ar, de repente. Talvez a angústia cortasse instantes ao calhas. Mesmo em recordação, depois de ter passado a aridez do susto, essas imagens foram sempre acompanhadas pelo peito oprimido. 

Bartolomeu responsabilizou a bebida. Whisky?, não; vinho tinto?, não; conhaque?, não, já disse que não. José arrependeu- -se de ter-lhe contado mas, a partir de certa altura, ele próprio deixou de saber em que acreditar, teve dúvidas. Ainda assim, quando atinava, quando acertava o olhar por um dedo levantado a dois palmos da cara, acreditava que se tinha tratado de um esgotamento, uma fadiga de cabeça, não aguentou a pressão que as palavras faziam para atravessar-lhe os poros. Nessa época, ainda confi ava que, se insistisse muito, podia avançar com o romance. Em casa, durante dias seguidos, acumulava suor, restos de comida podre e, ao longo de horas, mantinha o caderno aberto à sua frente, palavras riscadas, palavras escritas e riscadas. Tinha dores de cabeça que lhe faziam doer os olhos, sentia os globos oculares claramente defi nidos no interior do crânio, duas esferas de veias a palpitar. De dia ou de noite, adormecia no sofá, perdia os sentidos. Não guarda recordação de como saiu de casa naquela tarde, felizmente vestido e calçado; lembra as ruas, talvez Olivais, talvez Chelas, talvez Alcântara ou Telheiras, talvez qualquer bairro de Lisboa com prédios e trânsito. Lembra também algumas vozes a tentarem falar com ele, a perceberem que estava desorientado, a chamarem-lhe rapaz, apesar da barba. Deixou de conseguir organizar os momentos que recorda, antes e depois misturam-se até deixarem de existir; perdido na memória da mesma maneira que, naquela tarde, se perdeu em Lisboa. 

Em certas horas, não sabe por que associação ou por que desfoque, chega a confundir essa vez com aquela em que se perdeu da mãe na Rua Augusta. Era um menino de quatro anos, soltaram as mãos dadas durante os minutos em que a mãe precisou de experimentar um casaco de malha, precisou de ver-se ao espelho. José aproveitou essa liberdade para explorar a loja, a porta aberta chamou-o, depois explorou a rua, a multidão e, quando voltou a entrar, a loja era já completamente diferente. Tem essas lembranças bem arrumadas, porque ouviu a mãe contar a história muitas vezes. José não chegou a assustar-se ou a dispensar o comprazimento daquela aventura, foi a mãe que fi cou em pânico, que demorou a acalmar a respiração já depois de o ter encontrado, consolada por empregadas de lojas de pronto a vestir, a rodearem-na e a abanarem-na com tampas de caixas de cartão. Essa era uma lembrança fragmentada porque, quando aconteceu, tinha quatro anos, apenas se agarrava ao presente imediato, o passado esmigalhava-se nas suas costas. Mesmo assim, chegava a confundir esse episódio infantil com aquela desorientação adulta, vinte e oito anos, a achar-se demasiado velho, a achar que precisava de um segundo romance escrito, a acreditar que perderia o nome e a existência sem um segundo romance escrito, a imaginar-se invisível ou morto. Havia também a diferença de, em criança, Lisboa ser um deslumbramento. Em Bucelas, no quintal, na cozinha, a mãe dizia-lhe que iriam a Lisboa quando queria enchê-lo de eletricidade. Foi assim durante muito tempo, mas havia de mudar, mudou ele ou mudou Lisboa. 

A mãe nunca chegou a saber que José se tinha perdido em adulto. Essa informação era mais distante do seu mundo do que os longos trinta quilómetros que separavam Bucelas de Lisboa. Voluntária de limpezas na igreja matriz, Igreja de Nossa Senhora da Purifi cação, há muito que decorara o missal. Certos desgostos, o casamento, bodas de prata, tinham-se cristalizado numa satisfação gasosa, aparvalhada, sem expectativas. No primeiro domingo de cada mês, confessava uma seleção de pecados, apenas os que não a deixavam malvista perante o senhor prior. Se alguém lhe tivesse contado que o filho se perdera em Lisboa, a mãe demoraria a acreditar. Por um lado, José estava sozinho na cidade havia dez anos, tempo de conhecer todas as vielas; por outro lado, não era capaz de imaginar que a escrita de um livro fosse razão para problemas de tal ordem. Para sua própria expiação, o fi lho alimentava essa infl uência cega, os livros. Antes tivesse apanhado meningite como o rapaz da vizinha, perdeu alguma audição, mas tornou-se num mecânico gabado por todos. Em julhos da puberdade, enquanto os outros rapazes acertavam em pardais com tiros de pressão de ar, saudável treino de pontaria, José passava horas oculto e silencioso, lia deitado na cama ou escrevia doidices, inclinado sobre um caderno. No princípio, a mãe rezou, pediu a Santa Cecília, protetora dos poetas, que lhe poupasse o filho, que o libertasse dessas ideias. Não alcançando resposta, conformou-se e baixou os olhos perante Deus, aceitando os seus mistérios. A partir daí, passou a rezar pelo filho a Santo Aleixo, protetor dos mendigos. 

Após desistir da faculdade, com vinte e quatro ou vinte e cinco anos, José apareceu em Bucelas com o primeiro romance na mão, orgulhoso e convencido. A mãe deu-lhe os parabéns, percebeu que os olhos do rapaz pediam essa reação. Mas, em silêncio, recordou a adolescência custosa do fi lho, revoltado, ideias fi xas, poemas sem rima e sem jeito, acne selvagem, e temeu que nunca mais crescesse. Por essa imaturidade, por essa falta de preparação para a vida, culpava exclusivamente o marido, pai de José. Deixara de passar serões inteiros a cismar na deslealdade e na cobardia do marido, mas ainda o culpava por tudo. 

terça-feira, dezembro 28

Há uma rua na estante...

 

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A gota

Há este céu duro, Empedrado de ventos... 
Hilda Hilst

Após os bombardeamentos a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes era chão é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente, nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs dona Teófila pede ao marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente, e faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.

Ao fim da tarde, quando o calor amaina, o casal sai dos seus escombros privados e atravessa em silêncio a defunta paisagem. Com passo trémulo, Diamantino empurra a cadeira de rodas, guiado pelas instruções murmuradas com firmeza pela esposa. Protegida por um sombreiro, a velha senhora vai empertigada como se as ruínas fossem o seu reino, a cadeira fosse o seu trono e Diamantino fosse o seu povo.

— Devagar, Diamantino — comanda dona Teófila. E acrescenta: — Estás farto de saber que esta poeira é um veneno.

O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a boca e o nariz.

Desde os bombardeamentos que não chove nem sopra a mais ténue brisa.


Foi como se as bombas tivessem rasgado e vazado as nuvens. Os sulcos das rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a perpétua poeira dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a pegada se torna eterna.

O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos vizinhos, os Pimentas. Ali se senta dona Teófila numa mutilada sombra enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido.

Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz regressar à realidade.

— Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro, está tudo morto, mais do que morto — vai avisando Diamantino. E depois, entediado, ele reclama: — Por que tanto insistes em falar de mim, mulher?

— Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes — responde dona Teófila.

Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma.

Apesar desse céu fechado — de onde para sempre se ausentou o sol e a lua — dona Teófila não abdica do seu guarda-sol. Protege-se, diz ela, da poeira que cai das nuvens.

— Os pássaros já começaram a voltar — afirma dona Teófila. — Gostava que os pudesses ver, Diamantino.

— A verdade é que não os escuto — avisa o marido.

— Mas já andam por aí — insiste dona Teófila. — Não tarda que comecem a cantar.

— Onde pousam esses pássaros se as árvores morreram?

— Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes.

Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.

Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara descaída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto adverte: — Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que voltarmos a casa vais lavar esse trapo.

— Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.

— Olha, está a passar agora uma garça! — proclama dona Téofila, com entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das dificuldades auditivas do marido. — É pena não veres, é tão branca, parece um anjo...

— Por que é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça. Tudo mentira, tudo pura mentira.

— Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.

O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Dona Teófila opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia que os sobreviventes deambulam como sombras por detrás dos escombros.

Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes mágicas de se enclausurar. Somos os mais competentes carcereiros de nós mesmos. É o que diz dona Teófila.

— Quando falas, mulher — reclama o homem —, espalhas cuspe e levantas poeira e ambos são mortais venenos.

— Tem que haver pessoas, Diamantino — insiste a esposa. — Se assim não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente — prossegue dona Teófila. — Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigénio.

Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com quem nunca viu o seu próprio corpo.

— Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas poeiras e devias ter vergonha na cara — acusa dona Teófila. — Continuas a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.

— Não entendo nada do que dizes, mulher — comenta Diamantino.

— Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? — interroga-se dona Teófila. — Desconfio que à noite deixas de ser cego.

Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então que o marido se apercebe de que Teófila se levanta e caminha por si mesma.

O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.

Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe de que ali se aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se, primeiro, o cego Diamantino. Depois escuta uma das sombras que lhe dirige a palavra.

— Veio ao funeral, Diamantino?

— Funeral? Funeral de quem?

— Da Marlu. Morreu esta noite.

Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva a mão ao rosto para se certificar de que ainda existe.

— Não sei o que dizer — murmura ele. — Sempre pensei que Marlu não tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.

— O que se passa, Diamantino? — espanta-se um dos vizinhos. — Desde que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a passear a nossa querida Marlu.

— Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? — pergunta um outro vizinho.

Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa a casa, o universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas, a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara tinha sido apenas ele.

Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São passos de mulher, disso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem chegou. Depois o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a sombra entre as pedras e pergunta: — Já germinou?

— Já despontam duas pequenas folhinhas — responde uma voz toldada pela comoção.

Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.
Mia Couto

Dica de passeio

 


Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti, "Eu sei, mas não devia"

segunda-feira, dezembro 27

Labirinto de escolhas


 

Itens, nem todos básicos

Depois que se casou com uma viúva pobre e mãe de três filhos, o poeta passou a fazer recitais para um tipo só de público: o pagante.

***

Cinquenta anos atrás, quando se esmerava para escrever seus sonetos, ele os classificava em duas categorias: os românticos e os realistas. Na época, eles ainda não se dividiam em dolosos e culposos.

***

Que todo sacrifício imposto pela literatura seja assumido pelos escritores e que eles resistam à tentação de repassá-los aos leitores.

***

Enquanto o poeta social se identifica apresentando a carteirinha do sindicato, o poeta comum continua dependendo do testemunho dos passarinhos e dos seus colegas de confraria.

***

É um desses poetas que, numa antologia de quinze, fazem sempre pensar que com catorze ela ficaria bem melhor.

***

Na ideia de imortalidade do escritor municipal não há uma passagem por Estocolmo. Há uma reunião na câmara de vereadores e uma votação que lhe garantirá uma estátua na praça central. Isso lhe bastaria. Se pudesse pedir algo mais, seria que o pusessem de frente para o pequeno lago.

***

Ando tão diverso, já, de modos e de feições, que a Morte, se me aceitar, há de ser com restrições.

***

Estou num momento mau, que péssima fase a minha. Minha alma virou mingau, e meu cérebro, farinha.

***

Eu nasci triste. Isso fez de mim um menino orgulhoso. Repugnava-me o riso dos adultos, como quase tudo que lhes era próprio. Horrorizava-me pensar que logo eu seria um deles. Quando descobri a literatura, escravizei-me aos personagens atormentados, aos miseráveis, aos ressentidos e aos derrotados. Ela nunca me falhou. Até hoje me dá o pão amargo que me alimenta.

***

Tem uma convicção: a de que um poeta presunçoso jamais receberá a visita de um haicai.

***

Quando, cinquenta anos depois, abriu a gaveta onde estavam guardados os sonetos de sua juventude, decepcionou-se. Tinha lido já o terceiro e seus olhos permaneciam obstinadamente secos.
Raul Drewnick

Leitura no campo

 

Lynn Mehta

A velha

Era no ano de 1832, uma tarde de verão como hoje calmosa, seca, mas o céu puro e desabafado. À porta dessa casa entre o arvoredo, estava sentada uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que apertava na cintura com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que afetava, não menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da velha. Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio: textualmente parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro da Madonna della Sedia.

Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar aqui em parêntesis que, não há muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados piramidais, simples, sem nobreza, mas elegantes.

Tornemos à velhinha.

Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.

Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de António Ferreira ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal.

O movimento bem visível da dobadoira era regular, e respondia ao movimento quase imperceptível das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguindo outros dois, três minutos, tornava a parar: e nesta regularidade de intermitências se ia alternando como o pulso de um que treme sezões.

Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira tornava a andar.

Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os tirou dessa direção nem os inclinava de modo algum para a dobadoira que lhe ficava um pouco mais à esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupilas, que devia ter sido brilhante como o das safiras, parecia desbotado e sem lume.

O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou tranquilamente as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:

— Joaninha?

Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:

— Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.

— Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando puderes. É a meada que se me embaraçou.

A velha era cega, cega de gota serena, e paciente, resignada como a providência misericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio.
Almeida Garrett, "Viagens na Minha Terra"

quinta-feira, dezembro 23

Feliz Natal

 

A quem se aventure por este espaço, aqui fica nosso desejo de que seja abençoado por muito pó de Pirlimpimpim que sempre sai dos livros e nos faz levar a vida bem melhor

Voltamos em breve 

 

Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta
Manuel Bandeira

Nossa árvore de Natal

 


Cartinha natalina

Nesta época , escreve-se muito . O Natal permeia e incentiva a escrita. Aparecem lindos textos apelando ao que pode haver de melhor no coração dos homens. Desde poemas simples , frases soltas, elaboradas reflexões a longas epístolas de bem-aventurança. Todos eles trazem mensagens que acabam por nos tocar. Estamos abertos à celebração, embora nem sempre seja o nascimento de uma criança que esteja a ser festejado. Nascida há dois mil anos é ela o motor desta celebração. O Natal é assim a festa de toda a criança que se fez e fará Homem. Repetir, em cada ano, esse acontecimento é a necessidade que todos nós encontrámos para dar forma à solidariedade que se perde ou negligencia durante o ano. Tomamos a família e fazemos dela o encontro que foi, por vezes, adiado. Que Natal pode ser todos os dias é uma frase que se perde nas pregas das intenções. Basta olhar as imagens que, dia a dia, enchem os écrans televisivos para encontrar a legenda exacta para esta verdade. Ferem e agridem, mas não deixam de se repetir. E são tantas as imagens de crianças de todas as idades . Perdidas em campos de refugiados ou em marcha por esse mundo fora. Sujas , desgrenhadas, famintas, perdidas, abandonadas rasgam o coração , sem que a piedade do Natal as alcance.

Não. Não pretendo aumentar a resma das lindas mensagens. Quero apenas dar fôlego ao sonho: Que este nosso mundo , que se muralha entre pandémicos vírus, acorde e renasça jubiloso em verdadeiro Natal.

quarta-feira, dezembro 22

Bom passeio

 

Jenny Kroik

Você é um número

Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento – tudo é número.

Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube, tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras, tem o número da cadeira.


É por isso que vou tomar aulas particulares de matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.

Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.

Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência, também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio, recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações, também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico, recebe número de batismo. No registro civil ou religioso você é numerado. Se possui personalidade jurídica, tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.

Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número. Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao posto de saúde. E recebeu a ficha de número dez. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o número nove. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados.
Clarice Lispector