domingo, setembro 30

Leitora urbana


Valor

Tão bem-posto estava
o escritor no caixão
que ao menos como defunto
merecia uma reimpressão.

Bom dia


Assim começa o livro...

Eu ainda era menina e frequentava um curso de música.

Minha mãe trabalhava de bibliotecária na faculdade de direito e me falava dos grandes escritores que haviam passado por lá, Castro Alves, Tobias Barreto, o que me dava um desejo de viver outras vidas. Na volta de uma das aulas (ela sempre ia me pegar na escola), passamos em frente a uma loja de móveis usados, dessas cheias de quinquilharias. Num canto, sob umas cadeiras, estava um piano branco, de um branco encardido. Eu olhei para ele. A mãe também. Paramos na calçada. Alguém esbarrou na gente. Entramos na loja e coloquei a mão nele como quem toca a imagem de um santo. Na infância, a gente se apega mais aos objetos. Apareceu um homem magro e com roupas largas — devia vestir peças que comprava de segunda mão. Ele não disse um a. Até hoje gosto de vendedores discretos, que me olham com carinho e respondem às perguntas com voz baixa, educadamente, sem querer vender nada. Ficamos os três em silêncio, como se estivéssemos rezando. A mãe perguntou se podia ver melhor o piano. Eu já identificara o fabricante — a casa Pleyel & Lion & Cia. Ter um objeto de Paris, mesmo comprado numa loja de usados, era realizar um sonho. O homem magro tirou as cadeiras de cima do meu piano — sim, eu sabia que ele seria meu —, arrastou vários móveis e o deixou bem no meio do corredor. O piano tinha pés torneados, detalhes em metal e dois pedais. Não era grande, por isso se ajustava à nossa vida. O vendedor trouxe uma banqueta com o assento reencapado de veludo envelhecido e olhou para mim. Eu me sentei, abri o tampo, coloquei os dedos sobre o marfim amarelado, mas não apertei.

— Quanto o senhor está pedindo pelo piano? — minha mãe perguntou.

Tive uma crise de taquicardia. A garganta ficou seca. Meus olhos se encheram de água. Mas não chorei. Esperei a eternidade daquela resposta, pois ele foi até a sua mesa, uma mesa antiga coberta de coisas também para vender, e pegou um caderno, onde devia anotar os preços. Pensou uns segundos e disse, ainda com lentidão, o valor e o número de vezes em que ele podia parcelar.

Eu sabia que era muito dinheiro para nós.

Minha mãe engravidara de um amigo, que foi embora antes de receber a notícia. Isso ainda era um escândalo na década de 1970, mas ela tinha o seu emprego e queria um filho. Nunca me senti órfã, embora desejasse uma presença masculina em casa. A mãe então disse que ficaria com o piano. Gostei de ela não ter discutido o preço, isso me faria sofrer com a possibilidade de perdê-lo. No mesmo dia, o piano entrou em nosso apartamento na rua do Hospício. Colocamos a mesa de jantar encostada em uma das paredes, para que ele tivesse um espaço só dele.

Quando minha mãe chegava do serviço, e principalmente se vinha cansada ou contrariada com algo, eu corria para o piano e tocava as músicas aprendidas na escola. Ela cozinhava ao som de Bach, Mozart, Villa-Lobos. Devíamos ser malvistas no prédio. Quase ninguém nos visitava, e ficávamos ali com nossa mania musical. Minha mãe não entendia nada de música. Nascera na roça, vindo cedo para o Recife. Daí engravidou, parou os estudos e teve a sorte de ser contratada pela universidade.

Não cursei direito, mas odontologia. Mesmo na época da faculdade, eu não deixava de tocar e passava dos dentes estudados o curso para as teclas de marfim. Elas estavam precisando de um clareamento. Quando comecei a atuar na profissão, achei que não sobraria tempo para o piano, que se tornara apenas um hobby. Mas, nos dias de maior desânimo, ia até ele e tocava. Minha mãe parava o que estivesse fazendo para me ouvir. Ganhei algum dinheiro e comprei um apartamento. Decidimos nos desfazer de todos os móveis velhos. Só levamos o piano, porque o piano não era um móvel.

A outra literatura

O público, muitas vezes, só conhece os livros que são editados pelos grandes editores, que podem fazer muitos anúncios e, sobretudo, anúncios de televisão que são terrivelmente caros. E isso falseia. Deixa de ser a Literatura dos escritores, passa a ser a Literatura dos editores. Deixa de ser um diálogo entre o escritor e o público e passa a ser um diálogo entre o público e a propaganda
Sophia de Mello Breyner Andresen

Ainda bem que há amanhã


Noite prosaica, calma na minha rua

Sozinho em casa, minha mulher foi a um coquetel de trabalho, estava linda e sorridente quando saiu. Minha filha foi ver a Bienal com um convite especial, a mostra ainda não estava aberta para o público. Sozinho, me deu fome. Desci para o Vianna, bar na rua atrás da minha, onde fiz o lançamento de um livro há alguns anos e o bairro inteiro compareceu, foi uma festa nossa que me lembrou a atmosfera do primeiro jantar do jovem personagem de Roma, filme de Fellini. Todos se conheciam, conversavam, sabiam da vida de uns e outros. Noite bastante fresca, pedi uma omelete de queijo gruyère, com uma saladinha e tudo me pareceu a França, imaginação é tudo...

Gostei de ver um casalzinho que tomava chope e conversava, conversava, conversava. Os celulares ficaram abandonados na mesa, soltos, nem chamaram, nem foram chamados, nada daquela fissura de ficar mandando e recebendo mensagens ou instagrams ou o que fosse. Na saída, passei pela mesa deles e confessei: “Há muito não via duas pessoas a conversar realmente. Nem por um minuto olharam para os telefones, entretidos um com o outro. Viva”. Surpresos, eles riram, agradeceram. Nem tudo está perdido.

Dado o friozinho não havia muita gente na rua. E olhe que por aqui está cheio de bares. Passei por um casal talvez cinquentão, os dois me cumprimentaram: “Boa noite, escritor”. Assim me chamam por aqui. Outros dizem mestre. Há quem prefira professor, para eles é um título honorífico. Esse tempo já existiu. Segui, o dono da farmácia me apertou a mão, “leva nada hoje?”, como se a cada dia ou noite eu levasse alguma coisa. Continuei, jovens me acenaram do outro lado da calçada, da hamburgueria Underdog, excelente carne, principalmente um shoulder maravilhoso. Reino de jovens, enchem a calçada, cervejas na mão, conversam, é o mesmo clima do antigo footing. Na outra quadra tem o Cão Veio, cheio de tatuados, barbudos, casacos de couro, há tempos, curioso e faminto, quase consegui lugar, mas éramos três e uma garçonete nos disse: “Pena, essa mesa é para quatro, não pode”.

Mais à frente uma japonesinha (mora no meu prédio): “Boa noite, escritor”. Uma noite de paz, tranquila, de vida calma, normal, cotidiana, prosaica, pessoas se cumprimentando, entrando na padaria, no supermercadinho expresso, para compras rápidas, boa noite escritor, daqui e dali, como se fosse – e é – uma vila do interior, nos conhecemos todos, sabemos o que cada um faz, quem é mulher de quem, marido ou namorado de quem, alguns levam os cachorros para o último xixi, alguém passa apressado com uma cesta cheia de Heinekens, o restaurante Arturito, chique, caro, sempre com fila na porta, parece deserto, a lojinha de produtos de beleza desce as portas, sigo para casa.

Muitas vezes essa paz me contamina, gosto, preciso dela, é a vida normal pulsando, escorrendo. Entro em casa, os gatos me esperam na porta, dou comida aos dois. Não sei se vejo tevê ou se leio um livro. Bom ter acabado o romance, entregue, vê-lo publicado. Porque acabou aquela ânsia de escrever continuamente, resolver problemas, a cada dia, cada momento, ter dúvidas sobre um trecho, um nome, uma situação. Ao mesmo tempo, vem um vazio, uma coisa estranha, de paz e inutilidade. Prefiro abrir um livro que me chamou na livraria, dia desses. Não tem essas coisas com vocês? Um livro chamar? E quando vê você está comprado?

Esse foi uma pequena antologia poética de Anna Akhmátova, excelente poeta russa, nascida em 1889 e falecida em 1966. Considerada hoje uma das mais importantes poetas da Rússia, viveu um vida dramática, foi perseguida pelo governo stalinista, que não a deixava publicar, viu o primeiro marido fuzilado, o terceiro marido morreu em um campo de concentração e o filho dela foi preso. Segundo Lauro Machado Coelho, belo crítico, tradutor e especialista em ópera (comprei seus livros para minha filha), Anna produziu um dos maiores testemunhos literários do sofrimento individual sob a opressão política. Apago a luz, a noite está sem um ruído.

sábado, setembro 29

Manhã

Tadahiro Uesugi

A palavra une

Na alma, no espírito, todos somos parentes: estamos unidos pela leitura
José Saramago

Está servido?


Um pouco de ternura

Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a tranquilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era alta, quase imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no chão.

Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.

Eve, Patricia Schappler
Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta, atenta e exposta. Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que amara.

As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a pequena viração de altivez que dela se desprendia.

Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis, que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que ainda mais arreliou as outras.

Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que, certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas, como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda. Para onde fora? Que seria feito dela? E se ela não regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?

Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte. Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao perseguidor assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-dias. Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.

Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela disse:

— Quer saber o que eu faço, não é?

— Bom…bom — Não sabia o que responder.

— Olhe: vendo ternura.

E desandou. Agora, uma brisa mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o silêncio. Era assim: todos os dias, ou quase, ela visitava casas de gente idosa, e recebia escassos euros para lhes ler jornais, revistas ou livros de histórias cordatas com finais felizes. Simplesmente um pouco de ternura.
Voltou à rua para se despedir da rua e ignorar as pessoas. As pessoas juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar pelas pernas para escalar a escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela. Nunca ninguém soube o seu nome, nem se foi feliz na vida.

Anos depois, um modesto cronista contou-a numa crónica humilde.
Baptista-Bastos 

sexta-feira, setembro 28

Boas coisas da vida

 Andrei Popov

Amar é...

Thomas Jakob Richter
Folhear ao menos uma vez ao ano os livros lidos para arejar as páginas e a própria cabeça

Sonho de consumo

Galina Yegorenkova

O Kama Sutra das letras: Técnicas para ler na cama

Numa coluna anterior, comentamos sobre os benefícios do feijão para a saúde de nossas leituras cotidianas, pois que serve de apoio de página enquanto estamos comendo ou lixando as unhas. Falamos do leitoril, este valoroso objeto que mantém as páginas abertas sobre uma superfície lisa e iluminada, facilitando a fruição dos romances mais volumosos.

Não falamos, porém, de como fazer para ler na cama num dia de inverno, quando só o que você quer é passar a noite ronronando debaixo de quatro mantinhas de lã, de preferência na companhia de algum clássico francês.


O elemento central de uma boa leitura na horizontal é o abajur. Não há nada mais determinante do que o estilo e a intensidade luminosa do mesmo — talvez a qualidade do livro, diriam os mais ortodoxos —, e meu sonho sempre foi ter uma modesta (porém significativa) coleção de abajures nos mais diversos formatos, quilowatts, cores, materiais. O sueco Stieg Larsson, por exemplo, é um autor de luzes fortes e vermelhas. Stendhal e Flaubert requerem uma claridade mortiça, amarelada, em tons amadeirados. Os russos a gente lê à luz de velas quando acaba a eletricidade na rua, e Edgar Allan Poe se beneficiaria de um abajur com defeito, que vai falhando e definhando conforme as páginas avançam, até que, lá pelo fim, você não o esteja mais lendo, e sim imaginando. Luz focada de ônibus é para ler aventuras, diários de viagem e expedições com piratas, cerimônias pagãs e escorbuto.

Acionado o abajur, porém, pouco nos resta senão soterrar-se debaixo do edredom e esperar sair de lá vivo.

E qual a posição ideal para ler na cama? De barriga para cima, o mundo parece perfeito até que seus braços e ombros começam a sentir o peso da gravidade. Então você vira de lado, suponhamos, o esquerdo, e prossegue sua leitura da página 77, julgando assim ter encontrado um estado de coisas assaz satisfatório. A página 78, contudo, traz uma inverossímil reviravolta na trama e uma dificuldade: ela se localiza na parte inicial do grosso livro, que você mal começou. Como equilibrar a página 78 aberta quando se está deitado sobre o flanco corporal esquerdo, sendo esta uma folha par e o lado direito do livro, essencialmente ímpar?

A solução, claro, é rolar para o outro lado, mas a satisfação só dura até avançarmos para a folha ímpar novamente. É hora de rolar de volta, e algum leitor agora pode alegar: nós somos intelectuais, não nascemos para competir na corrida do queijo, de modo que, exauridos pelo rolamento infinito, atolamos de barriga e cedemos à controversa posição de bruços. (Nota: pesquisar o que vem a ser etimologicamente um bruço.)

Ler de bruços é confortável apenas nos primeiros três parágrafos — sim, a bruçalidade é assim fugaz e não compensa, embora seja quase impossível resistir-lhe. Finda a primeira oração subordinada substantiva reduzida do infinitivo, o leitor deve escolher entre a fisioterapia e o pilates, pois que a cervicalgia virá — e virá com todas as forças, pinçando os seus nervos e abrindo terreno para a hérnia discal. Por outro lado, ler de bruços é até considerado uma posição de ioga, só que sem o livro.

Engenhocas como a que ilustra este post podem ser uma solução. O Salonpas Linimento e o Profenid têm se mostrado boas opções paliativas. Uma alternativa muito apreciada é ler com as pernas para o alto, apoiadas na cabeceira da cama ou numa parede, de modo a encaixar o livro na barriga e nas coxas, favorecendo ao mesmo tempo a circulação sanguínea e o alongamento da região dorsal, feito um pilates literário. Manter a posição até a página 120 com respiração abdominal alternada, descansar e repetir a operação por mais cinco capítulos.

Vanessa Barbara
 
PS: Segundo o Dicionário Etimológico Silveira Bueno, bruço — “Tovar explica a expressão por um cruzamento árabe-basco: bus (ar.), beijo; buruz (basco), cabeça. O mais difícil é explicar como é que o árabe se foi cruzar com o basco e como este entrou para o português. Além do que, na loc. “De bruço” não há, nem por milagre, a ideia de beijo, a não ser um beijo dado na terra… Melhor é dizer que até o momento ainda não se conhece o verdadeiro étimo dessa palavra”.

quinta-feira, setembro 27

Bom passeio!


Mais Eça

Eça de Queirós foi recentemente objecto de uma infinidade de textos de opinião na imprensa portuguesa pelo facto de o Ministério da Educação ter tornado facultativa a leitura do seu romance Os Maias (e, mais tarde, ter revisto a sua posição). Há quem pense que, de facto, metade dos alunos, viciados em smartphones e leitura rápida, já não conseguem compreender a prosa queirosiana (ou mesmo grande parte do que é literário); e há quem saiba também que muitos professores dão Os Maias apoiados nos manuais e guias do professor que lhes fazem a papa toda, mas que eles próprios, afinal, não os leram quando eram da idade dos seus alunos.

Aventureiros


A minha salamandra

Certa vez, escrevendo uma novela, precisei saber se uma salamandra tinha quatro ou seis pernas. Já não me lembro em que episódio novelesco pretendia envolver as pernas da minha salamandra, mas a verdade é que precisava saber e não fiquei sabendo.

Que sei eu a respeito de minhas próprias pernas, pensava então, deixando que elas me levassem para outros caminhos, fora da ficção.

Um ficcionista às vezes precisa saber coisas muito esquisitas. A experiência própria nem sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha infância nos galhos de uma mangueira, chupando manga o dia todo, e não soube responder a um meu amigo, excelente romancista, quanto tempo levava para germinar um caroço de manga.

Bernard Boutet de Monvel
Contou-me ele, na época, que andou precisando saber este pormenor, em razão de uma história que estava escrevendo. Depois de perguntar a um e outro, e não obtendo senão respostas vagas, telefonou para a repartição do Ministério da Agricultura que lhe pareceu mais apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário que o atendeu ficou simplesmente perplexo:

- Caroço de manga. Que brincadeira é essa

Como insistisse, informaram- lhe que, realmente, havia quem talvez soubesse " um especialista no assunto, lotado num departamento ao qual estava afeto o setor de fruticultura. Discou para lá " mas só conseguiu colher vagos palpites:

- Um caroço de manga. Bem, deve levar um ou dois meses, o senhor não acha

- Não acho nada: preciso saber com exatidão.

- Por quê?

- Bem, porque...

Outros telefonemas, que somente despertavam reminiscências infantis:

- Na minha casa tinha uma mangueira. A manga-espada, por exemplo, se bem me lembro...

- Boa é a manga carlota, aquela pequenina, sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de itamaracá.

- O caroço. Bem, o caroço, para lhe dizer com franqueza...

Resolveu telefonar para o Gabinete do Ministro:

- Queria uma informaçãozinha de Vossa Excelência.

O ministro não sabia. Que futuro tem um país de economia essencialmente agrícola se ninguém, nem o próprio ministro da Agricultura, sabe informar quanto tempo leva para germinar um caroço de manga.

Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas pernas. Que futuro tenho eu como escritor, se não sei dizer com quantas pernas se faz uma salamandra. O mundo anda cheio de pernas, e o coração do poeta já perguntou para que tanta perna, meu Deus.

As da salamandra "quatro, ou seis " nada acrescentam ao meu mundo interior, senão a ligeira desconfiança de que acabo tendo quatro.

No entanto, as de uma jovem galgando comigo as pedras do Arpoador, por exemplo, apenas duas, podem sustentar o universo, vertiginoso universo onde as sensações germinam bem mais depressa que um caroço de manga.

Onde se acendem estrelas inexistentes e os astros desandam nas suas órbitas. Onde se abrem abismos de uma profundeza que nem a imaginação do romancista ousa devassar.

Onde vicejam plantas bem mais exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas sombras se arrastam seres vorazes e bem mais misteriosos que a salamandra, salamandras...
Fernando Sabino

Aperitivo da sesta


No meio do inferno

Já depois das oito horas, quando baixaram âncora, a taiga de Sacalina ardia em grandes fogueiras em cinco pontos, na margem. Através da escuridão e da fumaça, que se alastrava pelo mar, eu não via o cais nem as construções e mal conseguia distinguir as luzinhas embaçadas do posto da guarda, duas das quais eram vermelhas. O quadro terrível, grosseiramente feito de trevas, silhuetas de morros, fumaça, chamas e fagulhas em brasa, parecia uma cena fantástica. No plano esquerdo, erguia-se alto para o céu o clarão avermelhado de incêndios distantes; parecia que Sacalina inteira estava em chamas. À direita, a massa escura e pesada do Cabo Jonquière avança para o mar, semelhante ao monte Aiu-Dag, na Crimeia; no seu cume, brilha um farol e embaixo, na água, entre nós e a margem, há três recifes pontiagudos – os Três Irmãos. E tudo isso no meio da fumaça, como no inferno.

quarta-feira, setembro 26

Divirta-se também


José David

Susa Monteiro
José David nasceu no Ribatejo numa família pobre e portanto começou a trabalhar muito pequeno, ajudando os pais. Muito pequeno ainda, disse, aos quatro ou cinco anos, levantava-se para tratar dos animais e numa dessas manhãs encontrou o pai enforcado numa trave do curral e ficou sozinho com a mãe, uma senhora muito bonita de quem só conheço a fotografia a olhar para mim atrás do vidro. A infância dele foi difícil, a juventude também, começou a trabalhar muito cedo, a certa altura veio sozinho, adolescente, para Lisboa, comeu o pão que o diabo amassou, lá conseguiu arranjar um emprego como gráfico porque o Zé queria ser pintor, começou a desenhar, a pintar, a ganhar um bocadinho melhor embora sempre pouco, até encontrar um amigo, na rua, que lhe perguntou se ele não estava farto de dar voltas à Praça do Chile. O Zé pensou nisso, achou que sim e decidiu emigrar. Foi ao aeroporto e comprou um bilhete para Londres. Depois viu que existia um voo mais cedo para Paris de modo que apanhou um avião para Paris. Não conhecia lá ninguém. Comeu o pão que o diabo amassou, porque não repetir a expressão, em empregos desgraçados até lhe aparecer um trabalho de capista num magazine médico e uns ganchitos aqui e acolá em algumas revistas. E continuou a pintar. O que mais queria era pintar e à força de muito trabalho e do talento que tinha, claro, conseguiu uma vida mais ao menos. E continuou pintando. A certa altura convidaram-no para fazer a capa de um romance português numa editora pequena, a única em Paris que aceitou o primeiro livro de um portuga desconhecido chamado António Lobo Antunes. O livro tinha o título Os Cus de Judas, o Zé, cuja obra ia aumentando e crescendo, aceitou um pagamento medíocre pela capa. Houve um lançamento onde o tal António não conhecia ninguém. De súbito viu o Zé David: pequeno, careca, de bigode imenso, escuro, com um sorriso lindo que lhe transformava os olhos em duas fendas de caixa de esmolas. O tal António veio ter com ele e começou a falar-lhe em português porque o Zé era o sujeito com o aspecto mais português que ele alguma vez tinha visto. E ficaram amigos para a vida. Aliás, nas suas cartas, o Zé às vezes assinava Zé da Vida. A amizade entre eles foi aumentando. Quando estavam juntos estavam juntos mesmo. Quando não estavam juntos o Zé da Vida escrevia cartões e na outra face um desenho ou uma aguarela. E o tal António começou assim a tornar-se colecionador da obra do Zé da Vida, as tais aguarelas, algumas gravuras, alguns desenhos, alguns quadros. Um dos seus temas favoritos eram os toiros que lhe encheram a infância. Falavam muito. O Zé da Vida cozinhava muito bem e penso que gostavam imenso um do outro. Pelo menos o tal António gostava, o Zé da Vida penso que também. Encontravam-se em Paris e em Lisboa quando o Zé de vez em quando cá vinha. Falavam imenso de pintura e de escrever também. Uma ocasião 
estavam a comer num restaurante barato e um tipo na mesa ao lado voltou-se para eles e ordenou-lhes

– Parlez français

com essa amabilidade e calor humano típicos dos Çá Vás. O tal António mandou-o educadamente para o caralho e seguiu-se um certo burburinho com o Zé aflito que lhe tirassem a autorização de estar em França. Isto já na esquadra. A senhora da editora lá resolveu o problema. Deve ter explicado aos Çá Vás que vá para o caralho é um cumprimento respeitoso. Entretanto o Zé da Vida ia vivendo um bocadinho melhor, cozinhava com mais competência que uma estrela Michelin, passeavam por Paris e a amizade entre eles continuava a crescer. Depois apareceu a Françoise, o Zé da Vida casou com a Françoise e tornou-se um marido modelo. Foi-se tornando também um pintor cada vez melhor. A sua bondade, a sua generosidade e a sua ternura eram imensas. A seguir ao jantar o Zé da Vida mostrava os quadros ao amigo. Levantava-se cedíssimo e trabalhava imenso. O tal António gostava da pintura e do apaixonado entusiasmo da sua vocação. O tal António achava o Zé da Vida, para além de pintor, um santo. Um exemplo de perseverança e generosidade. Um homem que, desde tão criança ainda, viveu toda a vida com uma coragem e uma modéstia exemplares

(Um aparte: o tal António nunca viu fumar cigarros até ao fim: só o Zé da Vida sabia fazer isso.)

Depois o Zé da Vida tinha um amigo com uma doença no intestino, e o amigo pediu-lhe para o acompanhar ao hospital. O amigo teve alta mas o Zé da Vida ficou internado, com um mal crónico da tripa que passou a fazer parte da sua personalidade e que, até certo ponto, lhe limitava a existência. Mas o Zé da Vida nunca se queixou, da mesma forma que o tal António nunca lhe disse nada. Nenhum deles deu importância à desgraça e o sorriso do Zé da Vida continuava a encher o mundo com a sua tranquila, orgulhosa humildade. Depois do jantar, da conversa e dos quadros o Zé da Vida acompanhava o tal António ao hotel e o tal António ficava à entrada a vê-lo afastar-se. O Zé da Vida foi o santo laico mais sem pecados que o tal António conheceu. E podes ficar descansado, porque eu gostava do teu trabalho. Isto durou anos e anos. Depois passaram a ver-se menos porque a existência e tal e coisa. Mas o tal António continuava a gostar muito dele. Depois soube que o Zé da Vida tinha morrido e andou discretamente a apagar lágrimas dos olhos como quem sopra velas de um bolo de aniversário. Claro que ninguém o viu chorar, era o que faltava. Diante de um sorriso como o do Zé o que se pode fazer salvo sorrir também? Mas o que no fundo me apetece, sabes, é mandar a morte para o caralho igualmente.

Nesta terra...

(...) Vá para o diabo, Civilização!
Muito melhor a carruagem de antanho, com cavalos
brancos, cocheiros de gala e com muita educação.
Neste atropelo nem se pode mais sonhar;
perdi, aos encontrões, a rima rica que buscava.
E há tantos jornais, que nem leio os jornais;
namoro os livros nas vitrinas da “Garraux”,.
- Quanto é este livrinho?
- 10$000.
(Irra!ladrão).
Nesta terra não se deve saber ler

Rodrigues de Abreu, "Casa Destelhada", Editorial Paulista, 1933

Para começar o dia

 Laia Berloso Clarà

Os pombos

Os pombos já o viram. Esperam que ele se sente, abra a marmita aluminizada e enfie a colher de plástico para pegar o primeiro bocado de feijão e arroz. Ele também os viu, atocaiados sobre um toldo. É uma cena que se repete todas as tardes, como se fizesse parte do filme de um diretor exigente. Assim que ele tira a tampa, os pombos descem, com estrépito, para assustá-lo e fazê-lo cometer um erro. Ele não se assusta mais. No primeiro dia, deixou cair a marmita e precisou lutar pela sua comida, enfiando as mãos na calçada. Agora já sabe lidar com eles. Joga dez ou doze grãozinhos de arroz no chão e, enquanto eles se bicam para disputá-los, ele come rapidamente, mas com cuidado, para que não escape nada: há dias em que lhe dão pedaços de batata e até de carne. É simpático o gerente do restaurante. Faz dois meses que guarda restos do almoço para ele. É sua única refeição do dia e ele gostaria de comê-la com mais sossego, mas os pombos o vigiam, entre a uma e meia e as duas, e não o deixam em paz. Eles o seguem até quando ele vai jogar a marmita vazia no lixo. Poderia atirá-la ao chão, mas não faz isso nunca, por ser educado e - reconhece - também por birra, para que os pombos não tenham como raspar mais nada no fundo dela.

terça-feira, setembro 25

Boa noite de leitura


Poesia, provérbios, chatos

Alberto Macone

Numa tentativa de lirismo, o passarinho pousa no poema concreto.

***

A poesia e eu nos dávamos melhor no tempo em que não nos conhecíamos tão bem.

***

Vende-se poema concreto na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Corretores no local.

***

Narciso foi o precursor das selfies.

***

Escrever tem sido só o que faço. Escrevo, escrevo. Sobre o que escrevo? Acho que, basicamente, sobre o ato de escrever.

***

Quem oferece afeto, só, é um sovina, mesmo que se trate de um primeiro encontro.

***

Estive pensando no que eu faria hoje, se depois de tantos anos te encontrasse. Já sei. Com todo o respeito, ou nenhum, te daria um tapa na bunda.

***

Não tenho nada. Tudo me falta. Meu único orgulho é minha pressão alta.

***

Sou um homem moderno. Seja qual for o fato, aceito sempre a pior das versões. Se me dizem que alguém é desonesto, acredito imediatamente.

***

Morrer é uma atividade da qual ainda não fomos chamados a participar.

***

Um chato é sempre um contador de histórias perfeito, talvez porque conte sempre a mesma: a própria.

***

Nada como as biografias. Elas conseguem transformar num fato precioso até a mais dolorosa das fomes da infância.

***

O chato reformula ininterruptamente sua teoria sobre a criação do mundo e naturalmente faz questão de nos manter atualizados.

***

A maioria dos provérbios não resiste quando expostos ao sol.

***

Os provérbios respeitáveis devem ter pelo menos cinqüenta anos e andar sempre com os documentos comprobatórios.

***

Os provérbios já nascem antigos.

***

Um provérbio que conheci outro dia me garantiu que freqüentou o colégio Dom Pedro II.

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Um poema concreto é comedido. Cai do alto da prateleira e não dá um gemido.

***

Os sonetistas costumam ser muito piores que os sonetos.

Ler de tudo, jovem

Lambertus Lingeman (1871)
Especialmente quando se é jovem, deve-se ler o maior número possível de livros. Os excelentes, os não tão excelentes e até aqueles insignificantes, que não têm (nenhum) problema. O importante é ler tudo o que estiver ao alcance. Fazer passar pelo corpo o máximo de narrativas possíveis. Encontrar textos maravilhosos e outros de menor qualidade. Passar por essas experiências é o mais importante
Haruki Murakami, "Romancista como vocação"

Para o café dos leitores



A nova onda de internacionalização de Machado de Assis

“Machado de Assis já não pertence apenas à literatura brasileira. Suas obras passaram a interessar a outras culturas, sucedendo-se as traduções em várias línguas”, escreveu o crítico literário Eugenio Gomes no jornal carioca Correio da Manhã em 8 de dezembro de 1951. Gomes enumerou entusiasmado as novas traduções de Machado mundo afora: uma edição alemã de Memórias póstumas de Brás Cubas e “outra deste mesmo romance em castelhano”, e a publicação, nos Estados Unidos, de mais uma tradução, assinada por William L. Grossman. Dedicou boa parte de seu texto a comentários elogiosos (apesar “de alguns lapsos”) às Memórias póstumas de Grossman para indicar o “interesse excepcional que o escritor brasileiro está despertando naquele país”.

Capas das edições em língua inglesa de Memorial de Aires,
Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas
 

Quase 70 anos mais tarde, esse “interesse excepcional” citado por Gomes poderia ser incluído no famoso capítulo “Das negativas”, de Memórias póstumas, que lista o que não aconteceu. Um ensaio de Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, publicado no mês passado na revista americana The New Yorker, perguntava por que Machado ainda era tão pouco lido nos EUA. Além do ensaio de Moser, outros textos sobre Machado apareceram na imprensa americana nas últimas semanas por ocasião da publicação de The collected stories of Machado de Assis, uma reunião de 76 contos traduzidos para o inglês pelos britânicos Margaret Jull Costa e Robin Patterson. A editora W. W. Norton & Company, responsável pela publicação das Collected stories, não divulgou a tiragem do livro, mas informou que os editores “estão muito contentes — mais do que contentes, na verdade — com a recepção do livro nos EUA”.

O aplauso da imprensa americana reavivou o desejo expresso por Gomes nos anos 50: será que agora os estrangeiros acordam para o talento de Machado? “Há poucos dias, vi uma coisa insólita na London Review of Books: um retrato de página inteira de Machado e capas de livros dele, inclusive das Collected sories”, disse o britânico John Gledson, tradutor do estudo Dom Casmurro e autor do estudo Machado de Assis: impostura e realismo. Em agosto, Machado foi eleito o autor do mês pela prestigiosa revista literária britânica. “Trabalho com a obra de Machado desde os anos 80 e ele nunca teve esse tipo de destaque na Inglaterra, onde se publicam traduções dele esporadicamente. A tradutora das Collected stories tem uma ótima reputação, o que me dá esperança de que ela ajude a reputação de Machado em inglês.”

A tradutora Margaret Jull Costa resolveu aprender português depois de assistir ao filme Orfeu negro. “Quando eu menciono Orfeu negro, os brasileiros suspiram e reviram os olhos, mas, para mim, aos 20 anos, o filme pareceu exótico e comovente. Eu adorei a musicalidade da língua. O sotaque carioca foi o que despertou meu interesse”, contou Costa, que é uma celebrada tradutora de autores portugueses e espanhóis, como Eça de Queirós e Javier Marías. Além de Gledson, outros machadianos ouvidos por ÉPOCA elogiaram o trabalho de Costa. “Eu adoro Machado desde que estudei português e espanhol na Universidade de Bristol. Adoro a voz narrativa lúdica e inteligente e o olhar afiado sobre o absurdo da vida, que é um traço muito inglês dele, penso eu”, afirmou Costa. Ela convidou Robin Patterson para se juntar à tradução dos contos. “Estamos muito felizes com a recepção das Collected stories e esperamos que a tradução ajude a popularizar Machado. Ele tem muito a dizer ao leitor contemporâneo de qualquer país”, disse Patterson. “Planejamos traduzir Memórias póstumas, começando no ano que vem. Há algumas edições em inglês, mas achamos que é hora de uma nova tradução.”

O primeiro a investir na internacionalização de Machado foi ele próprio. Machado se empenhou para que seus livros circulassem em Portugal e tentou convencer um editor a traduzi-los para o alemão. “Não tereis nada a ganhar ao ser traduzido para o alemão”, desencorajou o editor. Machado viveu para ver duas traduções para o espanhol de romances seus: uma edição uruguaia de Memórias póstumas, de 1902, e uma argentina de Esaú e Jacó, de 1905. Um pequeno “boom machadiano” tomou o mundo anglófono nos anos 50, quando William L. Gordon e Helen P. Caldwell publicaram, respectivamente, traduções de Memórias póstumas e Dom Casmurro. Caldwell, aliás, foi a primeira intelectual a defender a honra de Capitu. No livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis, Caldwell recupera as referências shakespearianas de Dom Casmurro para argumentar que Capitu não traíra Bentinho, um dos mais célebres mistérios literários.

Ainda nos anos 40, num esforço para popularizar a literatura brasileira no exterior, o Instituto Nacional do Livro (INL) encomendara uma tradução de Memórias póstumas para o inglês a Edward Percy Ellis, um missionário protestante britânico que vivia no Rio de Janeiro e não tinha nenhuma experiência como tradutor. A tradução foi entregue em 1949, mas só foi publicada em 1955, quando a versão de Memórias póstumas de Grossman já havia conquistado os leitores anglófonos. A edição patrocinada pelo INL foi localizada recentemente pela americana Flora Thomson-DeVeaux, doutoranda da Universidade Brown, que também prepara uma nova tradução de Memórias póstumas. Thomson-DeVeaux descobriu que o chefe do setor de publicações do INL frequentava a igreja de Percy Ellis — um exemplo das relações de compadrio tão bem descritas nos romances machadianos. Nos anos 90, apareceram novas — e problemáticas — traduções em inglês. As Memórias póstumas e o Quincas Borba de Gregory Rabassa, tradutor de Gabriel García Márquez e de outros latino-americanos, sofreram duras críticas. Gledson acusou essas traduções de “fatais”, “incompetentes” e “preguiçosas”. Outro tradutor, Robert Scott-Buccleuch, eliminou nove capítulos de Dom Casmurro.

“A internacionalização de Machado de Assis é uma questão eterna”, disse Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade Princeton, nos EUA. “Nós, leitores brasileiros, somos um pouco ansiosos, queremos ver Machado, nosso tesouro nacional, reconhecido. Há certo nacionalismo nesse desejo.” Ao lado de Hélio de Seixas Guimarães, professor da Universidade de São Paulo (USP), Monteiro trabalha num volume sobre Machado encomendado pela Modern Language Association, uma prestigiosa associação de professores de literatura que edita livros voltados ao público universitário. Machado será o primeiro autor lusófono a constar no catálogo. “O que eu não sei é se um senhor tão discreto, que viveu no Cosme Velho, às vezes tão hermético e de uma ironia tão fina e etérea, pode pegar fogo no exterior como Clarice Lispector pegou”, ponderou Monteiro.

Para ajudar na explosão machadiana, os resenhistas estrangeiros costumam compará-lo a escritores universais, como Henry James, Anton Tchékhov, Jorge Luis Borges, Italo Calvino... E ressaltam a falta de “cor local” em Machado: nele, não há clichês latino-americanos, como indígenas, exuberância tropical, imaginação delirante ou crítica social explícita. A resenhista do New York Times disse que a “recusa (de Machado) de escrever mais explicitamente sobre a escravidão” é uma “persistente frustração”.

A discussão sobre uma leitura de Machado dissociada do contexto social brasileiro também é notícia velha. Anos atrás, Michael Wood, professor de literatura comparada na Universidade Princeton e autor do prefácio das Collected stories, envolveu-se numa contenda pública com o crítico literário Roberto Schwarz sobre a (im)possibilidade de desprender a literatura machadiana do solo social brasileiro — o que pode afastar o leitor estrangeiro ou informá-lo sobre as idiossincrasias do país, como as complicadas relações raciais. “Podemos ser menos ansiosos em relação ao conhecimento necessário para ler um autor como Machado”, disse Monteiro. “Quando a gente lê Dostoiévski, tem ali um samovar (tipo de bule russo), relações de servidão que a gente não conhece sociologicamente em detalhes, mas a comédia humana também está lá, os personagens são densos. Talvez Machado possa circular no exterior assim como Dostoiévski. Ele é mais pesado, mas pode voar.” Os voos de Machado, no entanto, costumam ser curtos. O “boom” dos anos 50 se repetiu de forma espasmódica nas décadas seguintes, mas Machado continuou restrito a círculos acadêmicos. “A recepção de Machado nos EUA não é uma trajetória crescente”, afirmou Thomson-DeVeaux. “O próprio Grossman achava que Machado nunca seria um escritor lido pelas massas, mas, sim, um remédio para os narcisismos nacionais.” A acidentada trajetória internacional de Machado repete um pouco da trajetória do Brasil, país que acredita que, algum dia, ainda vai decolar. Machado é o “escritor universal” produzido pelas contradições deste país, ambos sempre prontos a ser descobertos pelo mundo.
Ruan de Sousa Gabiel

segunda-feira, setembro 24

Viaje!


A história do prolífico contista devorado pelo conde Drácula

O gosto voraz do conde Drácula por sangue fresco deixou um fluxo interminável de vítimas, a começar por seu próprio criador, o autor irlandês Bram Stoker (1847-1912), cuja obra ficou sepultada sob seu personagem, um dos maiores ícones da cultura popular. Para alguns, é um esquecimento merecido – há alguns anos Rogério Fresán se referiu a ele neste jornal como um "criador fraco" com "uma grande obra"–, mas para outros é totalmente injusto porque defendem um escritor com uma dezena de romances, poemas, adaptações teatrais, crônicas e artigos que, entre outras coisas, "cultivou de modo primoroso e feliz a narrativa curta".

É o que está escrito na contracapa de Cuentos Completos de Bran Stoker, obra recém-publicada pela editora Páginas de Espuma, na Espanha, a qual inclui os três livros de contos que ele publicou e outros 27 textos que saíram ao longo dos anos em jornais e outras publicações. Estes últimos foram o resultado de um esforço colossal de busca em obras dispersas e arquivos digitais, que os conduziu a cinco contos que não tinham sido republicadas desde que apareceram em vários jornais britânicos e norte-americanos: eles se intitulam em inglês Our New House (nossa nova casa), The Night of the Shifting Bog (noite do lamaçal ambulante), A Yellow Duster (um espanador amarelo), Story of Senator Quay (a história do senador Quay) e To the Rescue (ao resgate)

O especialista Antonio Sanz Egea, que fez esse trabalho, diz que a tarefa se tornou ainda mais complicada pelo fato de não haver edição canônica em inglês que reúna os contos de Stoker. Isso torna este livro da Páginas de Espuma se não a obra completa – dada a dificuldade e as lacunas–, na obra mais completa de contos de Stoker, afirma Juan Casamayor, diretor da Páginas de Espuma. A tradução para o espanhol foi feita por Jon Bilbao.

Sanz Egea insiste em que os contos de Stoker podem levar até mesmo os mais críticos a revisar sua ideia sobre o autor. Por sua qualidade e enorme variedade, com contos de fantasia, contos de amor, contos históricos e realistas autorreferenciais, contos de aventuras e de piratas que lembram Stevenson ou Conrad, e também, é claro, vampiros e terror gótico no estilo de Poe, explica o especialista. Textos que também podem preencher algumas das grandes lacunas na biografia de Abraham (Bram) Stoker, que fez uma cuidadosa seleção das cartas biográficas e passagens biográficas que não queria deixar para a posteridade.

Sabe-se que, quando criança, ele passou anos prostrado na cama em sua casa em Dublin por causa de uma doença –não se sabe qual– que o uniu de maneira muito especial a sua mãe, Charlotte Thornley, uma mulher aguerrida nascida em um pequeno condado no noroeste da Irlanda e que viveu experiências terríveis em sua juventude. Por exemplo, aos 14 anos, ela cortou o braço de um intruso que tentava entrar em sua casa. Charlotte ensinou o filho a ler e escrever enquanto lhe contava histórias folclóricas de duendes e magia, como aquelas que permeiam Under the Sunset (sob o pôr do sol), seu primeiro livro de contos, publicado em 1881.

Por essa época, o menino doentio já se tornara um grande atleta, passara com mais dificuldade que glória pela universidade, era crítico de teatro, casado com Florence Balcombe –ex-namorada de Oscar Wilde– e se mudara para Londres para conduzir o Lyceum, o teatro de seu amigo, o grande ator Henry Irving. Uma tarefa, a última, que o consumiu –literalmente, com jornadas de segunda a domingo em que terminava muitas vezes dormindo no escritório– durante quase três décadas.

E que o fez deixar em segundo plano sua carreira de escritor, embora na época tenha publicado sua grande obra, Drácula (1897). De fato, embora não lhes tenha dedicado muita atenção, Sanz Egea acredita que deve ter escrito nessa época a maior parte das obras que publicaria mais tarde, quando a morte de Irving, o declínio do teatro e sua saúde debilitada o forçaram a procurar o sustento na literatura. Foi assim que surgiu seu segundo livro de contos, em 1908, um trabalho notável que brinca com a realidade e a ficção, intitulado Snowbound – the Record of a Theatrical Touring Party (Retidos pela neve: registro de uma excursão teatral). Nele, os membros de uma companhia retidos pela neve contam vivências que se transformam em cada um dos contos.

O Convidado de Drácula e Outros Contos de Terror e Mistério, cujo título deixa pouco espaço para dúvidas sobre o assunto, foi publicado por sua mulher em 1914, dois anos após a morte do escritor e justamente quando Drácula, que até então tinha sido uma obra de bastante sucesso, começou a se tornar o ícone universal que é hoje.

sexta-feira, setembro 21

Leitura

Jozsef Rippl-Ronai (1861-1927)

As coisas mais estúpidas de sempre

Há, sobretudo em Inglaterra, dicionários para todos os gostos: dicionários para coisas que se devem dizer depois do jantar, dicionários de insultos, dicionários das melhores coisas que se disseram nos anos 80 ou 90 do século passado, dicionários das melhores tiradas no Parlamento, etc., etc. Pensem na possibilidade de um dicionário qualquer e verificarão que ele já existe.

Um dos dicionários que adquiri, quando vivia em Londres, foi um dicionário de “As 776 coisas mais estúpidas que jamais se disseram”. É uma colecção que nos tira o fôlego, porque colige os disparates ditos ao longo das diferentes Idades de Ouro da Estupidez. Vou dar-vos, aqui, uma pequena amostra daqueles deslizes a que não só os estúpidos estão sujeitos. Se gostarem, poderei dar-vos, depois, uma segunda amostra.

Corey R. Tabor
Em primeiro lugar, cito Virginia Guyda, que foi funcionária na Itália Fascista e que assim opinou sobre o item “cultura”: “A cultura é necessária mas deve ser viva e não muito abundante.” A seguir, dou-vos um mimo, da autoria de Johny Walker, campeão de luta de punho (wrist wrestler), informando como conseguira os seus triunfos: “É cerca de 90 por cento de força e 40 por cento de técnica.” E, já agora, este convite de um hotel japonês aos seus hóspedes: “Está convidado a aproveitar a criada de quarto.” Noutro registo, o historiador do Estado do Tennessee, John Trotwood Moore, exprimia assim a sua ilimitada admiração por Andrew Jackson: “Acredito que, depois de Deus, Andrew Jackson foi o maior homem que jamais viveu.” E, já que falamos de política e de políticos, esta pérola da autoria de Alf London (na América), dizendo isto, na sua campanha eleitoral contra Roosevelt: “Onde quer que fui, neste país, encontrei americanos.” Célebre, pelos seus “goldwynismos”, era o produtor cinematográfico americano Samuel Goldwyn, a quem, por altura em que fazia filmar um “western”, vieram dizer que precisavam de mais índios para o que iam filmar: “Tirem alguns do reservatório”, ordenou ele, no seu inglês de trapos, confundindo “reservatório” com “reserva”.

Os políticos são os campeões, neste concurso da estupidez: Orrin Hatch, senador republicano do Utah, explicava assim o seu apoio à pena de morte: “A pena de morte é o reconhecimento, pela nossa sociedade, da santidade da vida humana.” Outro exemplo é esta apresentação feita ao Parlamento, no século XIX: “Apresento-vos o Reverendo Padre McFadden, conhecido em todo o mundo e noutros lugares.” E esta do Presidente da Câmara de Washington D. C., Marion Barry: “Com excepção dos assassinatos, Washington tem uma das taxas de crime mais baixas deste século.” Os políticos, como disse, são os campeões: esta, de um ministro da Informação, na África do Sul (Louis Nel): “Nós não temos censura. O que nós temos é uma limitação àquilo que os jornais podem dizer.” A censura é fértil em atrair os disparates, como se comprova com esta saída do General William Westmoreland, que ficou conhecido pelo seu retumbante fracasso no Vietnam: “Sem a censura, as coisas podem ficar terrivelmente confusas, no espírito das pessoas.”

E, para terminar, mais duas de políticos (sempre os campeões!). Uma, de um legislador irlandês, muito assertivo: ”A única maneira de pôr termo a esta onda de suicídios é tornar o suicídio uma ofensa capital, punível com a morte.” E, por fim, esta deliciosa proclamação oficial do Partido Comunista Chinês, em 1971: “Fazer amor é uma doença mental que desperdiça tempo e energia.
 Eugénio Lisboa, Revista "LER", Verão de 2018

Aventura

Timo Mänttäri

O amor e o livro

E vou contar-lhes agora a história deste livro, um dos mais controvertidos daqueles que escrevi. Foi durante muito tempo um segredo, durante muito tempo não ostentou o meu nome na capa, como se o renegasse ou o próprio livro não soubesse quem era o pai. Tal como os filhos naturais, filhos do amor natural, "Los versos del capitán" eram, também, um "libro natural". 

Pablo e Matilde Urrutia
Os poemas que contém foram escritos aqui e ali, ao longo do meu desterro na Europa. Foram publicados anonimamente em Nápoles, em 1952. O amor por Matilde, a nostalgia do Chile, as paixões cívicas, recheiam as páginas desse livro, que teve muitas edições sem trazer o nome do autor.

Para a 1ª edição, o pintor Paolo Ricci conseguiu um papel admirável e antigos tipos de imprensa «bodonianos», bem como gravuras extraídas dos vasos de Pompeia. Com fraternal fervor, Paolo elaborou também a lista dos assinantes. Em breve apareceu o belo volume, com tiragem limitada a cinquenta exemplares. Festejamos largamente o acontecimento, com mesa florida, "frutti di mare", vinho transparente como água, filho único das vinhas de Capri. E com a alegria dos amigos que amaram o nosso amor.

Alguns críticos suspicazes atribuíram a motivos políticos a publicação anônima do livro. "O partido opôs-se, o partido não o aprova", disseram. Mas não era verdade. Felizmente, o meu partido não se opõe a nenhuma expressão da beleza.

A única verdade é que não quis, durante muito tempo, que aqueles poemas ferissem Delia, de quem estava a separar-me. Delia del Carril, passageira suavíssima, fio de aço e mel que me atou as mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma companheira exemplar. O livro, de paixão brusca e ardente, atingi-la-ia como uma pedra atirada à sua terna compleição. Foram estas, e não outras, as razões profundas, pessoais e respeitáveis do meu anonimato.

O livro tornou-se depois, ainda sem nome e apelido, num homem, homem natural e valoroso. Abriu caminho na vida e eu tive, por fim, de o reconhecer. Andam agora pelos caminhos, quer dizer, pelas livrarias e as bibliotecas, os "versos do capitão" assinados pelo capitão genuíno.

Pablo Neruda, "Confesso que Vivi"

quinta-feira, setembro 20

No calçadão há uma leitora...


Conselho

Alfonso Cuñado
Se você não gosta de ler livros grossos, com muito texto, se isso te cansa e te impede de ter o hábito de ler todos os dias tudo bem, é absolutamente normal e não existe nenhuma obrigatoriedade em relação ao que deve-se ler. Eu te sugiro que leia então, para começarmos, contos. Contos curtos. Leia um conto hoje, outro amanhã, e nunca na sequência, leia de forma aleatória

Dica de passeio


A carroça dos cachorros

Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi fecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

Amo os animais e todos eles me enchem do prazer natureza.

Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã desço a rua e vejo.

O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, tempo do império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

– Lá vem a carrocinha! – dizem.

E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:

– Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

E toda a “avenida” se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade – o Amor.

São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá-los.
Lima Barreto

quarta-feira, setembro 19

Mesa posta

Victoria Kirdiy

Ver no escuro

A noite cai. Ou caiu a noite. Por que a noite cai, em vez de subir como o raiar do dia? Contudo, se você olhar para o leste, ao pôr-do-sol, pode ver a noite subindo, não caindo; a escuridão se eleva em direção ao céu, subindo do horizonte, como um sol negro atrás de uma coberta de nuvem. Como fumaça de chamas que não se vê, uma linha de fogo pouco abaixo do horizonte, um fogo em meio à mata ou uma cidade em chamas. Talvez a noite caia porque é pesada, uma cortina espessa puxada sobre os olhos. Cobertor de lã. Eu gostaria de poder ver no escuro, melhor do que vejo
Margaret Atwood, "O conto da aia"