segunda-feira, janeiro 31

Pegadas do leitor

 


Descoberta da literatura

No dia a dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo ,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante…
João Cabral de Melo Neto

Alimente o bebê


 

Assim começa...

Eles levantaram feito homens. Eu vi. Feito homens, ficaram em pé.

A gente não devia estar nem perto daquele lugar. Como quase todas as fazendas em volta de Lotus, Geórgia, essa aí tinha uma porção de placas que assustavam. As ameaças penduradas nas cercas de alambrado com um mourão a cada quinze metros mais ou menos. Mas quando a gente viu um espaço pra rastejar que algum bicho tinha cavado — um coiote, quem sabe, ou um guaxinim —, não deu
pra resistir. A gente era só criança. Naquela época, a grama batia no ombro pra ela e na cintura pra mim; então, vigiando se não tinha cobra, a gente passou rastejando de barriga. A recompensa valia a dor do sumo da grama e das nuvens de mosquitinhos nos olhos, porque bem ali na nossa frente, a uns quinze metros, eles estavam em pé feito homens. Os cascos erguidos batendo com estrondo, as crinas sacudindo por cima dos olhos brancos enlouquecidos. Eles se mordiam feito cachorros, mas quando levantavam, erguidos nas patas de trás, as da frente em volta do cangote um do outro, a gente ficava sem ar de emoção. Um era cor de ferrugem, o outro muito preto, os dois brilhando de suor. Os relinchos não assustavam tanto quanto o silêncio depois de um coice na boca do oponente. Ali perto, os potros e as éguas, indiferentes, mascavam a grama, olhavam pro outro lado. Então eles pararam. O cor de ferrugem baixou a cabeça e bateu o casco no chão, enquanto o vencedor saiu trotando num arco, empurrando as éguas na frente dele.

Engatinhando pela grama, procurando o buraco cavado, evitando a fila de caminhões estacionados adiante, a gente se perdeu. Mesmo demorando uma eternidade pra ver de novo a cerca, nenhum de nós dois entrou em pânico quando ouviu vozes, aflitas, mas falando baixo. Agarrei o braço dela e pus um dedo nos meus lábios. Sem erguer a cabeça, só espiando pela grama, nós vimos eles puxarem um corpo de um carrinho de mão e jogar dentro de um buraco que já estava esperando. Um pé ficou espetado pra fora na beirada e tremeu, como se conseguisse sair, como se com um pequeno esforço pudesse escapar da terra que jogavam por cima. Não dava pra ver a cara dos homens que enterravam o corpo, só as calças; mas a gente viu a ponta de uma pá empurrar pra baixo o pé que tremia pra se juntar com o resto. Quando ela viu aquele pé preto com a sola clara e rosada riscada de lama empurrado pra dentro do túmulo, o corpo dela inteiro começou a tremer. Abracei os ombros dela com força e tentei puxar o seu tremor pros ossos do meu corpo porque, como irmão quatro anos mais velho, achei que eu aguentava. Os homens já tinham ido embora fazia tempo e a lua era um melão quando a gente sentiu que não tinha perigo mexer a grama e continuar saindo de barriga, procurando a parte cavada debaixo da cerca. Chegando em casa, a gente achou que ia levar uma surra ou pelo menos uma bronca por ficar fora até tão tarde, mas os adultos nem ligaram pra nós. Estavam ocupados com alguma perturbação.

Como você está querendo escrever a minha história, pense o que for pensar e escreva o que escrever, fique sabendo de uma coisa: eu esqueci mesmo o enterro. Só lembrava dos cavalos. Eram tão bonitos.
Tão brutos. E em pé feito homens.

domingo, janeiro 30

Descanso de leitor

 


Tardes intemporais de verão intemporal

As nossas vozes misturavam-se com o rumor da água a correr, água atravessada por raios bem desenhados de claridade, som muito puro, quase silêncio, que restolhava em todas as pedras polidas ao longo do seu caminho. As sombras mais suaves das árvores eram levadas por essa corrente branda e também elas se misturavam com o tamanho daquelas tardes de verão. Eram tardes que, parecia-nos, jamais encontrariam o seu fim.


Tínhamos chegado ali de bicicleta. Primeiro, a pedalarmos pelas ruas pavimentadas da nossa aldeia e, depois, por estradas que só nós conhecíamos, torrões de terra a desfazerem-se sob os pneus. De um lado e de outro, estendiam-se paisagens cobertas por mantos de cigarras que, àquela hora, eram incandescentes, incendiadas pelo sol. Por fim, à beira da ribeira, enquanto despíamos a camisola, era esse calor e essa sede que levávamos na pele.

Entrávamos devagar na água, dissolvíamo-nos nela. Assentávamos os pés sobre seixos arredondados por muitos verões, por muitas férias grandes, por camadas de limos, como veludo. Em níveis, passo a passo, saciávamos o corpo: até aos joelhos, até à cintura, até aos ombros e mergulhávamos a cabeça. A água era leve, os nossos braços atravessavam essa matéria fina e translúcida, os nossos movimentos abrandavam apenas o suficiente para serem justos. Se nos deixávamos cair para trás, deitados na água, a flutuarmos como folhas de árvores inclinadas sobre a ribeira, tínhamos o céu inteiro diante de nós: uma cor única e absoluta, uma certeza tranquilizante.

Então, tínhamos a idade de nos deslumbrar com as coisas mais singelas. Se a nossa vida fosse um rio, estávamos muito mais perto da nascente, não éramos ainda capazes de imaginar a foz e, talvez por isso, acordávamos em manhãs inundadas por um presente luminoso, tempo de possibilidades infinitas. Sabíamos que tudo podia acontecer e, com pouco esforço, qualquer coisa ínfima, uma pedrinha atirada às águas da ribeira, podia transformar-se em qualquer coisa grandiosa, todos os nossos sonhos realizados. Essa era a força da nossa imaginação.

Era assim e, no entanto, hoje, com tudo o que mudou, continua a ser exatamente assim. Chegamos com os nossos filhos, são pouco mais novos do que nós naquele tempo. Olhamos para eles e conseguimos encontrar-lhes muitas diferenças, o cuidado com que pousam os pés descalços sobre a terra e, depois, sobre os seixos que ainda cobrem a entrada da ribeira, mas há um brilho na pele, uma ilusão no olhar que é a mesma. Os nossos filhos, passados todos estes anos, levam no olhar uma ilusão igual à que levávamos, pouco mais velhos do que eles. Talvez essa ilusão, ou esse brilho, seja um reflexo das águas desta ribeira, talvez a luz do verão se reflita assim nestas águas límpidas. Nesse caso, pode ser que também nós ainda levemos esse brilho, ou essa ilusão, no olhar. Talvez o tempo não tenha passado, o ínfimo pode ainda transformar-se em grandioso, os nossos sonhos estão lá ao fundo, vão realizar-se todos antes de terminar esta tarde imensa de verão.
José Luís Peixoto

sábado, janeiro 29

Cartão para a parede

 


Assim começa...

Sou americano, nascido em Chicago — Chicago, aquela cidade som - bria —, e faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre. Então, vou fazer o registro ao meu modo: a primeira ideia que bater será também a primeira a entrar; às vezes uma batida inocente, outras nem tanto. Mas o caráter de um homem é seu destino, como diz Heráclito, e no fundo não há como disfarçar a natureza das batidas, nem fazendo um tratamento acústico na porta nem cobrindo o nó dos dedos com luva. 

Todo mundo sabe que não existe precisão nem apuro na supressão; se você corta uma coisa, acaba amputando o que está ao lado. 

Meus próprios pais não foram tão importantes assim para mim, embora eu gostasse da minha mãe. Era uma pessoa simplória, e o que aprendi com ela não foi o que ela me ensinou, mas algo mais na ordem dos exemplos concretos. Ela não tinha muito para ensinar, coitada. Meus irmãos e eu a amávamos. Falo pelos dois; no caso do mais velho, não há muito risco de erro; no caso do mais novo, Georgie, tenho de responder por ele — Georgie nasceu retardado —, mas não preciso adivinhar seus sentimentos, pois ele tinha uma musiquinha que costumava cantar enquanto corria de um lado para o outro, manquejando com seu trote rígido de retardado, ao longo da cerca de arame farpado do quintal:

Georgie Machy, Augie, Simey 
Winnie Machy, tudo, tudo ama a mamãe.

Ele tinha razão com relação a todos, menos Winnie, a poodle da vovó Lausch, uma cadela velha, gorda e ofegante. Minha mãe era tão criada de Winnie quanto era de vovó Lausch. Respirando ruidosamente e soltando gases a torto e a direito, a cadela passava os dias deitada numa almofada bordada com o desenho de um berbere apontando um rifle para um leão, ao lado do banco em que a velha apoiava os pés. Era exclusivamente de vovó, fazia parte do séquito dela; o resto de nós éramos os súditos, principalmente mamãe. Minha mãe entregava o prato de Winnie para a vovó, e a cadela recebia sua comida aos pés da velha, das mãos da velha. Esses pés e mãos eram pequenos; vovó usava meias de um tipo enrugado de malha nas pernas e seus chinelos eram cinza — ah, o cinza daquele feltro, um cinza despótico para almas — com laços de fita cor-de-rosa. Já mamãe tinha pés grandes e, dentro de casa, usava sapatos de homem, geralmente sem cadarço, e uma espécie de touca que mais parecia uma esdrúxula escultura de algodão em formato de cérebro. Ela era dócil e comprida e tinha olhos redondos como os de Georgie — ternos olhos verdes redondos e uma suave cor de vitalidade no rosto comprido. Tinha as mãos vermelhas de tanto trabalhar, só lhe restavam poucos dentes na boca — para receber as bordoadas que vinham — e usava os mesmos casacos de tricô desfiados que Simon. Além de ter olhos redondos, mamãe usava óculos redondos, obtidos em incursões ao dispensário da Harrison Street que eu fazia junto com ela. Ensaiado por vovó Lausch, eu ia para contar as mentiras. Sei agora que mentir não era tão necessário assim, mas na época todo mundo achava que era, principalmente vovó Lausch, que era um daqueles maquiavéis de subúrbio que tanto povoaram meus tempos de garoto. Então vovó, que preparava tudo antes de sairmos de casa e devia passar horas maquinando a coisa toda em pensamentos e frases, encolhida no seu quartinho gelado debaixo do edredom de pena, me passava as instruções no café da manhã. A ideia era que mamãe não tinha esperteza o bastante para fazer a coisa direito. A hipótese de que talvez não fosse preciso ser esperto não passava pela nossa cabeça; era uma disputa, afinal. O dispensário ia querer saber por que as instituições de caridade não pagavam pelos óculos. Então eu não podia falar nada sobre as instituições de caridade, mas apenas que o dinheiro que meu pai mandava às vezes chegava e às vezes não, e que mamãe alugava quartos para hóspedes. Isso tudo era, de uma forma delicada e seletiva, ignorando e omitindo certos fatos importantes, verdade. Era verdadeiro o bastante para eles e, aos nove anos de idade, eu era capaz de entender isso perfeitamente. Melhor do que meu irmão Simon, que era franco demais para esse tipo de manobra e que, de qualquer forma, tinha adquirido nos livros umas noções de honra típicas de colegiais ingleses. Por muitos anos, Tom Brown’s Schooldays* teve uma influência lá em casa que nós não tínhamos condições de bancar. 
* "Os Dias Escolares de Tom Brown", romance de 1857 de Thomas Hughes.

sexta-feira, janeiro 28

Abrigo na neve

 

Marco Cazzato

Um dia todos se encontram

De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro da roupa. Miguilim saudou, pedindo a bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.__ Deus te abençoe, pequenino. Como é teu nome?

__ Miguilim. Eu sou irmão do Dito.

__ E seu irmão Dito é o dono daqui?

__ Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.

O homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:

__ Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?

Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.

__ Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa?

__ É mãe, os meninos...

Estava mãe., estava Tio Terêz, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: __ "Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? e agora?"

Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se esconder.

__ Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.

__ Olha, agora!

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu deus, tanta coisa, tudo...O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava., falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, à Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: __"Miguilim, você é piticego..." E ele respondeu: __ "Donazinha..."
Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.

__ "Você está triste, Miguilim?" __ Mãe perguntou.

Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.

__ Pra onde ele foi?

__ A foi pra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele volta, de manhã, antes de ir s'embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele junto te leva...

 __ O doutor era homem muito bom, levava o Miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. 

__ "Você mesmo quer ir?"

Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até o fundo, se esfriava. Mas Mãe disse:

__ Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se encontram...

quinta-feira, janeiro 27

Cuidado com os livros!

 


Os sonhos insuspeitavelmente sonhados

Os sonhos são mistérios revelados em forma de criptogramas. Porém, tão logo nos acometem, tão mais depressa nos deixam. Os que nos lembramos e contamos pouco nos revelam, pois muitas vezes nos falta a chave do significado deles. Aqueles que sumiram novamente é que poderiam ser os pontos mais altos do “mistério desvendado” e que, infelizmente, ou felizmente, não o foram. Infelizmente, porque somos curiosos natos. Será que o mistério da vida estaria embutido num sonho e saber dele nos tornaria poderosos? Felizmente, porque, se descobríssemos, talvez nem quiséssemos mais dormir. Uma das virtudes do sono: sonhar. A outra seria descansar o corpo.

Dormimos todas as noites para pescar novamente aquele sonho maior que nos escapou, igual ao peixe maior. E ele sempre escapa. Freud já disse que o sonho nos prepara para o dia. Sempre acordamos com um sonho. Quanto mais nossa vida é monótona e sem cor, mais os sonhos são agitados e coloridos. Há uma tentativa do nosso inconsciente de manter o equilíbrio das funções do corpo com a vida lá fora. Os sonhos fariam parte da nossa vital homeostase. Falo isso por mim. Podem existir outras interpretações mais científicas. Mas, se minha vida está bem movimentada, o sono é mais profundo e os sonhos desaparecem tão logo acordo. Não me lembro deles. Se estou em fase de retiro, de pouca atividade, os sonhos me acompanham durante o dia, por um bom tempo. Fico me lembrando deles. Esse é o equilíbrio vital que imagino ser de grande importância. Quando quero só dormir e dormir é porque quero sonhar.

Quero viver nos sonhos o que não vivo acordado. Mesmo que o corpo reclame depois de tanto descanso. Que acorde doído de tanto dormir. Não creio ser importante saber o que um sonho quis dizer. Importante, pelo menos para mim, é que o equilíbrio seja mantido. Aí vou eu, dormindo e sonhando. Shakespeare perguntou se durante o sono da morte sonharíamos. Acho que não é preciso sonhar. Não haverá dia seguinte.

Rui Werneck de Capistrano 

Leitura angelical

 


O ciclista

Curvado no guidão lá vai ele numa chispa. Na esquina dá com o sinal vermelho e não se perturba --levanta vôo bem na cara do guarda crucificado. No labirinto urbano persegue a morte com o trim-trim da campainha: entrega sem derreter sorvete a domicílio.

É sua lâmpada de Aladino a bicicleta e , ao ao sentar-se no selim, liberta o gênio acorrentado ao pedal. Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, desvia de fininho o poste e o caminhão; o ciclista por muito favor derrubou o boné.

Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morde, ei-lo defunto ao perder o ferrão. Guerreiros inimigos trituram com chio de pneus o seu diáfano esqueleto. Se não estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e __ uma perna mais curta __ foge por entre as nuvens, a bicicleta no ombro.

Opõe o peito magro ao para-choque do ônibus. Salta a poça d'água no asfalto. Num só corpo, touro e toureiro, golpeia ferido o ar nos cornos do guidão.
Ao fim do dia, José guarda no canto da casa o pássaro de viagem. Enfrenta o sono trim-trim a pé e, na primeira esquina, avança pelo céu na contramão, trim-trim.

Dalton Trevisan, "Os Mistérios de Curitiba"

quarta-feira, janeiro 26

No balanço do trem

 


A palavra

… Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam … Prosterno-me diante delas… Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as … Amo tanto as palavras … As inesperadas … As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem … Vocábulos amados … Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho … Persigo algumas palavras … São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema … Agarro-as no voo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas … E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as … Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda … Tudo está na palavra … Uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu … Têm sombra, transparência, peso, plumas, pelos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes … São antiquíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada … Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos … Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo … Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas… Por onde passavam a terra ficava arrasada… Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes… o idioma. Saímos perdendo… Saímos ganhando… Levaram o ouro e nos deixaram o ouro… Levaram tudo e nos deixaram tudo… Deixaram-nos as palavras.
Pablo Neruda, “Confesso que vivi”
*Butifarra: espécie de chouriço ou linguiça feita principalmente na Catalunha, Valência e Baleares

Livro na pele

 

 Eva Vázquez

Atração fatal

Onde estavam meus pais? Em que pensavam? O que faziam? Em que estavam ocupados, que me deixaram ser seduzido pela literatura? Eu tinha doze anos. Doze anos!

***

Um humorista não precisa ser bom; basta que seja engraçado.

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O horóscopo me diz que terei um futuro brilhante, na próxima década ou um pouquinho adiante.

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A gramática tem seu modo de ver as coisas. Se lhe dizemos que um gato é charmoso, ela não diz “mas que beleza”. Assume aquele ar professoral e sentencia: “Isso é um pleonasmo!”

***

É generosa a poesia. Pode-se ser poeta tanto aos dezoito quanto aos oitenta e oito anos. Tenho esperança, ainda.

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As décadas em que se entregou à literatura lhe deram uma certeza: hoje pode dizer que é um escritor veterano.

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Nem sabe mais por que decidiu ser poeta. Lembra, sem muita nitidez, que foi há muitos anos, num tempo em que era bem mais tolo do que hoje.

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Se soubesse, quando resolveu ser poeta, que a decisão lhe traria tantos dissabores, não desistiria. Sempre foi um menino esquisito.

***

Que belos são os ideais nossos, durante a construção e antes dos destroços.

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Quando morrermos, quem vai se preocupar com poesia, desencavar um soneto, abrir a porta a um haicai?

***

Dê-me um tempo, pediu o escritor, quando o secretário da academia lhe perguntou se queria candidatar-se a uma vaga de imortal.

***

Era um desses falastrões de quem, mesmo quando mortos, se receia que a qualquer momento ergam a mão e peçam a palavra no velório.
Raul Drewnick

terça-feira, janeiro 25

Tempos de manada

 


Quem fala

Não sei quem foi que disse que um diário equivale a um lento suicídio. Eu não estou a escrever um diário. Estou a passar para o papel recordações de tempos idos, ocasionalmente misturadas com impressões que vão surgindo. Sinto-me, no entanto, morrer aos poucos nestas linhas. O querer dizer o que se passa em nós, analisarmo-nos por escrito, ainda que a sós connosco, é devastador. Mas talvez eu já esteja mesmo morta. Quem fala é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir
Maria Ondina Braga, "Estátua de Sal"

Voltando do passeio

 


Tarcísio da Livro 7

Esta história parece conter mais coincidências do que possa supor nossa vã psicologia. Ou sincronicidades, como é próprio da terminologia de Carl Jung. Quarta-feira da semana passada, 18 de janeiro, enquanto remexia uma caixa com antigos objetos, minha irmã, Socorro, encontrou uma agenda. E dentro dela, o recibo de um livro (ou de livros) que comprei em 18 de janeiro de 1985. Surpresa: foi no mesmo dia, mas há justos 37 anos.

Sei que entrego minha idade, pois é fato que, se comprei (ou pelo menos paguei) naquele dia, meus cabelos pretos de hoje não passam de mero truque. Mas, a verdade deve ser dita, doa no cabelo que doer: o papel ganhou um tom amarelado. Recibo de número 107.452, pela compra feita no cartão de fidelização número 0833, CUS1079, como pagamento da quantia de dezenove mil e quinhentos cruzeiros. Emitido pela Livro 7 Empreendimentos Culturais Ltda., CGC número 11.302.643/0001.

A agenda onde o recibo se encontrava é um volume branco, com capa estilo “clean”, projeto gráfico de autoria de Rejane Vieira Pinto, coordenação editorial de Jaci Bezerra, revisão de Evaldo Donato e Rômulo Freire. Tem 13,5 centímetros de largura e 21 de altura. Era brinde que a Livro 7, então a maior livraria do Brasil, distribuía entre clientes. Tratava-se de um objeto de desejo disputado por artistas, intelectuais, escritores e jornalistas. Eu a ganhei e repassei como mimo para a minha irmã.

No verso de cada página, um poema ou crônica de pernambucanos: Paulo Cavalcanti, Maximiano Campos, Raimundo Carrero, Tereza Tenório, Lucila Nogueira, Paulo Gustavo, Celina de Holanda, Gilvan Lemos, César Leal, entre outros. Há, inclusive, ilustrações, uma do tipo arte-xerox, de Paulo Brusky. Uma pequena apresentação afirma que aquela é a terceira edição de uma “agenda/antologia” e apresenta os agradecimentos do dono da livraria, José Tarcísio (7) Pereira. Escrito bem assim, com o numeral.

Tarcísio Pereira recebendo Sidney Sheldon

Essa é outra sincronicidade. Ou coincidência. Ou probabilidade de acasos. Ou tipo de ocorrência que pressupõe uma ação recíproca entre os mundos material e não-material. Até porque hoje é véspera do primeiro aniversário de morte de Tarcísio, o grande livreiro que, por três décadas, conduziu um empreendimento que faz parte da memória afetiva de diversas gerações. Uma livraria diferente, que dinamizou a cultura local quando o breu da história política parecia não ter fim.

Tarcísio Pereira morreu no dia 25 de janeiro do ano passado, com 73 anos, depois de lutar durante 60 dias contra as complicações da covid-19. Ele era natural do Rio Grande do Norte, mas viveu quase toda a vida no Recife. Foi na Livro 7 que realizou grandes lançamentos, seminários, encontros literários. Debates com Gilberto Freyre, Osman Lins, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto. Fez lançamentos de arrasar quarteirões como o de Sidney Sheldon e o de Eduardo Galeano. Pelo acervo da loja, foi parar no Guinness Book. A Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe a Medalha do Mérito Cultural pela Divulgação da Literatura.

Tarcísio construiu um lugar onde se lia, se ouvia, se debatia, se sonhava. Frequentar a Livro 7 não era apenas ir a uma livraria, mas ter uma atitude política, um posicionamento em favor da cultura. A Livro 7 era um espaço de convivência, ponto de ligação de gerações de artistas e intelectuais, um território quase sagrado, de construções simbólicas, lugar para onde confluíam pessoas de diversas áreas. Livraria boa de frevo, que tinha até bloco de carnaval, o Nóis Sofre Mas Nóis Goza, cuja porta-estandarte era a amiga, e grande jornalista, Letícia Lins.

Haverá quem diga que as coincidências não existem, que elas são apenas a ocorrência de dois ou mais fatos ao mesmo tempo. E aqui, há duas: o encontro da agenda da Livro 7 no mesmo dia do recibo de há 37 anos; e há uma semana antes do aniversário de morte do dono do empreendimento. Data que se completa às vésperas da publicação desta crônica. Já que os significados, em geral, somos nós quem atribuímos, prefiro deixar que a emoção denomine essa energia que nos conecta. Tarcísio, presente!
Cícero Belmar

segunda-feira, janeiro 24

Espaço do leitor

 

Daniela Giarratana

Prosa fina

Estava aqui pensando na prosa fina de certos escritores do século passado enquanto olhava a cortina de chuva de verão brilhando mais uma noite sob o poste de luz da praça. Pensava especialmente num casal de escritores, decerto pouco famoso, entre os nossos casais de escritores, a considerar o mar anônimo de fãs e o expediente da ênfase que dão lustro à fama. Falo de Luís Martins e Anna Maria Martins, cuja discrição dentro da cena literária brasileira era o que era: coisa rara.

Cronista diário por mais de trinta anos, Luís Martins teria escrito pelo menos sete mil crônicas, metade do número insano atribuído a Rubem Braga, mas, vá lá, sete mil crônicas não é algo que, mesmo com extrema discrição, não se faça notar. E que humor tão cálido e brincalhão tinha o Luís cronista. Que ironia tão sabiamente dosada. Talvez aí seu teor vagamente impopular, nessa fineza, nesse modo de dizer honestamente, humanamente, sem com isso esbofetear quem vem passando. Também assim era Anna Maria contista, uma escritora de palavra precisa, que, com muito pouco, alcançava extraordinárias sutilezas, sóbrias contundências, numa contenção de enriquecer tensões psicológicas. Há raros palavrões em seus contos, mas, justamente, porque raros, palavrões com carga máxima.


Era nisso que eu estava pensando enquanto olhava pela janela a água brilhando no halo de luz do poste lá fora. No largo alcance das coisas implícitas, subentendidas, nuançadas de contraditórias emoções. Na vasta duração disso que não escancara, mas sugere, e do que é nojo sem gorgolejo de tripas, e do que é pungente sem nem esgar de grito, e do que é violento sem porretes ou porradas. Pensando aqui, depois da chuva, que, tal como na vida, há na literatura sutilezas e truculências bem letradas.
Mariana Ianelli

domingo, janeiro 23

Iglu protetor

 


Cabelo de pandemia

No início de março de 2020 entrei numa barbearia em Lisboa para aparar o cabelo. A pandemia estava no início, não havia um único morto em Portugal, quase ninguém usava máscaras, e a palavra confinamento só tinha algum uso em pecuária.

O barbeiro, um carioca de meia-idade, alto e musculoso, queixou-se do inverno, queixou-se do alto custo de vida, queixou-se do mau humor dos lisboetas, e eu fui concordando com ele, melancolicamente, até que tive a infeliz ideia de lhe perguntar o que pensava sobre a situação política no Brasil. O barbeiro começou por dizer que havia sido policial, e no minuto seguinte estava elogiando Bolsonaro.

Muitas vezes me tenho deixado levar pela polêmica, não porque seja corajoso, que não sou — mas somente pelo embriagante prazer de discordar. Já me aconteceu até discutir com assaltantes. Com um barbeiro — enquanto este me golpeava o cabelo —, foi a primeira e a última vez que discuti. Desaconselho totalmente. É mais seguro praticar parkour, rafting ou jet ski.

Abandonei a barbearia com o pescoço intacto, mas com o orgulho e o cabelo (o que me restava dele), numa irremediável desordem. De certa forma, o meu cabelo foi uma das primeiras vítimas do bolsonarismo.

Em casa, olhando-me ao espelho, pensei em raspar o desastre com uma lâmina. Depois, lembrei-me que já fizera isso uns dez anos antes, com resultados muitíssimo constrangedores. Não sei se já viram uma coruja sem penas (podem googlar). Uma coruja sem penas não é exatamente uma coruja, aquela entidade sólida, orgulhosa e invencível diante da qual toda a vida estremece. Uma coruja sem penas é uma anticoruja. Eu, de cabeça inteiramente raspada, fico bastante parecido com uma coruja sem penas. Assim, tendo desistido de raspar a cabeça, fui a uma loja de chapéus e comprei todas as boinas disponíveis.

Neste ínterim, vieram os confinamentos e o meu cabelo foi crescendo, crescendo e crescendo. Infelizmente, não cresce com idêntico vigor em todo o crânio. Há zonas onde nem sequer cresce, o que explica o comentário do meu filho quando me reencontrou ao fim de quase dois anos de pandemia: “Nunca vi um careca com tanto cabelo!”

Desde que o meu cabelo começou a ficar ralo, passei a achar os outros homens excessivamente cabeludos. Podem chamar-lhe autoestima; ou podem chamar-lhe de negação. Olhando fotografias antigas, estranho a minha própria cabeleira, uma massa compacta e selvagem, onde nenhum pente conseguia entrar. Estou agora na situação em que uma parte do meu crânio é quase um deserto, e a outra insiste no vigor juvenil de outrora. O cabelo que esse fragmento juvenil produz, e que desisti de pentear há meses, extravasa das boinas como um tsunami. Visto de trás sou o Bob Marley; visto de frente sou o Bruce Willis.

Bem sei, deveria voltar ao barbeiro. Acontece que, entretanto, prometi a mim próprio só cortar o cabelo depois que o vírus se fosse embora. Paciência. Já faltou mais. A dois de outubro eu corto. 

 José Eduardo Agualusa

sexta-feira, janeiro 21

Leitora deco

 


A quinhentos metros

A quinhentos metros, os vossos belos olhos desaparecem; e essa claridade do vosso rosto; e a fascinação da vossa palavra. É uma pena (eu também acho que é uma pena!), mas, a quinhentos metros, tudo se torna muito reduzido: sois uma pequena figura sem pormenores; vossas amáveis singularidades fundem-se numa sombra neutra e vulgar. Ao longe, caminhais como qualquer pessoa – e até como certas aves: é o que resta de vós: esse ritmo, na imensa estrada que também se vai projetando, estreita e indistinta, sobre o horizonte.

 Albert André 
Bem sei que tendes muitas inquietações: há um mês de maio na vossa memória, e um campo em flor, e um arroio que cantava numas pedrinhas, e depois muitas, muitas cidades grandiosas e indiferentes, e teatros acesos, ramos de flores, ceias, risos, vozes, adereços de turquesa, – bem sei, bem sei. Bem sei que tudo isso ficou a mais de quinhentos metros, e ainda de longe continuais a sofrer. Mas, para quem vos olha a uma distância de quinhentos metros, essas dimensões que levais convosco deixam de existir. As canções que aprendestes e a dor que sabeis, nada se avista daqui. Sois uma sombra muito pequenina, prestes a perder mesmo o ritmo do passo, a parecer parada como o próprio chão. Podereis ir para um lado ou para o outro: daqui a pouco nem saberemos para onde fostes: e as vossas decisões estarão fora do nosso alcance, como vós estareis fora da nossa vista.

É bem triste tudo isso, porque nós vos amamos, e gostaríamos de responder, se por acaso nos chamásseis: mas, a quinhentos metros, é bem difícil ouvirmos a vossa voz. Mandamos pelo ar nossos bons pensamentos: mas, que acontece aos pensamentos, mesmo aos melhores, desde que partem, desde que se desprendem de nós? Onde vão pousar os nossos bons pensamentos? E as pessoas a quem os dirigimos serão exatamente aquelas que os encontram?

Tenho muita pena de tudo isso: mas a pena vai ficando também menor, cada vez menor, à medida que avançais para longe: o sofrimento acompanha seu dono; nós apenas o vemos, e algumas vezes o compreendemos, sem, no entanto, o podermos tomar para nós, desfazê-lo ou dar-lhe outra direção. E ele também vai ficando pequenino, diminuindo, com a distância, para nós que não o carregamos, que apenas ouvimos dizer que existe. É como, nos mapas, o desenho de um rio que jamais encontramos: é certo que passa por ali, mas não sabemos nada de suas histórias, reflexos e ecos.

A quinhentos metros, na verdade, há muita ausência, vamos acabando muito depressa. Pensai que, geralmente, neste mundo, há sempre cerca de quinhentos metros de uma pessoa para outra! Somos só desaparecimento. E apenas quando conseguimos ficar, também, a quinhentos metros de nós mesmos, encontramos algum sossego. Porque, então, é a vez dos nossos tormentos mudarem de proporções e aspecto. De serem vistos só de longe, sem pormenores, sem voz, sem ritmo: nem mês de maio, nem flores, nem arroio. Talvez a memória serenada. Talvez nem a memória…- É assim em quinhentos metros!”
Cecília Meireles, "Ilusões do mundo"

Dupla utilidade

 


A criança no sótão

Eduard Swoboda 
Vou chamar-lhe Walter, embora esse não seja o seu verdadeiro nome.

Walter era uma criança esperta que não se empenhava muito nos estudos. 
Um dia, a sua vida mudou radicalmente. O pai abandonou-o e aos irmãos, deixando a mãe com três rapazes para cuidar. Como o Estado não fornecia qualquer tipo de apoio a mães trabalhadoras, a mãe de Walter trabalhava em vários lugares a fim de assegurar o sustento dos filhos. À medida que as férias grandes se aproximavam, começou a preocupar-se com os perigos a que os filhos estariam sujeitos ao vaguear pelas ruas enquanto ela trabalhava.

Walter foi trabalhar numa quinta, onde deparou com um patrão severo. Frequentemente castigado, o seu local de expiação era um velho sótão. Nesse sótão, Walter encontrou vários livros velhos que o dono da quinta também lá tinha exilado: Dickens, Austen, Twain e Stevenson tornam-se companhias permanentes e desejadas. Walter fazia com que o patrão o castigasse frequentemente, de forma a poder estar com os seus livros adorados.

Há algo de tão evocativo na imagem da criança só, incompreendida, desprezada, que vários escritores de ficção resolveram fazer dela personagens suas. Talvez a mais conhecida seja Sara Crewe, de Frances Hogdson Burnett, no livro A Little Princess. Embora muitas das realidades que Burnett descreve sejam reprováveis – a fortuna de Sara provém de minas onde gente miserável é obrigada a trabalhar em condições degradantes e Becky é salva no fim para se tornar, não numa amiga de Sara, mas na sua criada pessoal – há, contudo, uma ideia que importa reter no livro.

Quando Sara é enviada para o sótão por Miss Minchin, a diretora da escola onde ela estudava, por já não ser herdeira de uma grande fortuna, Sara tira partido da sua imaginação fértil e constrói um mundo onde imagina ser uma princesa prisioneira de uma tirana, o que a vai ajudar a lidar com as vicissitudes a que está sujeita.

Um livro pode ajudar uma criança a autovalorizar-se e isso é o início de um processo de crescimento da alma (por isso, sou contra a ideia de personagens-modelo, nas quais a criança não se reconhece). E há tantas crianças entre nós que estão fechadas em sótãos que as aterrorizam…. Os livros podem ser e são a chave que abre essas portas fechadas.

Regressemos agora à história de Walter. Quando voltou para a cidade, Walter não se tornou um aluno mais diligente. Contudo, levou consigo uma avidez de leitura que fez com que se candidatasse à universidade e acabasse por se licenciar em Harvard. Os mundos que a leitura abrira para ele expandiram a sua mente e o seu coração, como nada antes o havia feito. Tornou‑se um empresário bem-sucedido e um marido, pai e avô dedicado.

Os livros salvaram-lhe a vida.

Suponhamos que não havia livros no sótão para o qual Walter foi enviado. Se coloco esta hipótese é porque, hoje em dia ainda, há muitas crianças cujas vidas são difíceis, cujos espíritos estão sedentos, que estão isoladas, com medo e que não têm livros.

Muitas pessoas do sector do governo e da educação acreditam que se lhes proporcionarem uma ligação à Internet estão a contribuir para aliviar as suas múltiplas fomes… Mas, quando os jovens se comportam agressivamente na escola e são expulsos, isso só os conduz a um isolamento maior.

Justamente quando estão mais vulneráveis e isolados, vão para uma casa, tantas vezes vazia, passar o tempo a ver jogos de vídeo violentos ou a navegar na Internet. Com quem é que eles estabelecem relações? As mais das vezes fazem-no com indivíduos que têm uma autoestima tão baixa quanto a deles e que, assim, ajudam a perpetuar todos os seus receios e ódios.

O acesso à Internet não é a solução para estas “crianças no sótão” e nem sequer os bons livros são já suficientes. Do que eles precisam é de vós, professores, adultos dedicados e atentos. Para mim, a coisa mais importante do mundo é que o verbo se torne carne. Posso escrever histórias para crianças e oferecer-lhes palavras, mas os professores são a palavra encarnada dentro da sala de aula. Ao preocuparem-se com elas e ao mostrarem-lhes essa preocupação, os professores partilham com as crianças e os jovens o que eu também quero partilhar quando escrevo.

Quero dizer a cada criança no sótão que se sente só, triste, zangada e com medo, que não está sozinha nem é desprezível. É um ser único e tem um valor infinito no seio da família humana que todos formamos. Posso dizer isto através de uma história, mas os professores dizem-no através da sua própria presença. E dos livros que incentivam a ler!
Katherine Paterson, "The Invisible Child," (Tradução e adaptação)

quinta-feira, janeiro 20

Páginas que aquecem

 

Maria Corte Maidagan

Elegíada

Esta é a verdade: agora eu estou só. Com mais um pouco, chegará a madrugada. As velas ficarão pálidas, os sinos dobrarão em tua homenagem; e, quando o sol vier, não iluminará teus olhos.

Mais algumas horas e nossos conhecidos te levarão para o Campo. Estarão um pouco tristes, mas não podem imaginar que imensa perda eu sofri. Dirão entre si: “Tinha de ser. Um deles havia que ir primeiro…” E acharão que já sou muito idoso, que minha capacidade de sofrer se extinguiu e que não tardarei a seguir-te. Não lhes ocorrerá talvez, que é justamente por ser velho que tua ida é mais triste. Se fora moço, minha saúde afastaria a dor. Mas eu estou velho. E muito só, abandonado – sou uma criança aflita, querida. Meus filhos acham agora que os superiores são eles; que devem governar-me. Fazem recolher-me cedo, não me permitem comer o que desejo e até ralham comigo. É um modo de mostrar que me amam. Mas eu não sinto grande profundidade nesse afeto. Há uma certa rispidez na maneira como eles procuram preservar-me, como se eu fosse meio tonto.

Também os netos, creio, não me querem como eu desejava. Sempre os imaginei como ingênuas crianças, as quais eu levaria pela mão a maravilhosas viagens e para quem inventaria histórias que ouviriam com prazer. Mas quase nunca eu os levo a passeio; e quando o faço, não consigo unir-me a eles, que trocam segredos, conversam em língua codificada, sorriem. (Suponho, mesmo, que muitas vezes troçam de mim.) E se tento contar-lhes uma história, não me levam a sério. Mas me recebem com alegria quando os visito, pedem a bênção ao vovô e levam meu chapéu para guardar. Observo, contudo, que não se sentem à vontade quando me beijam a mão e que o júbilo deles se prende muito mais aos brinquedos que lhes levo. E eu os olho sorrindo, com amargura, e penso nos anos que nos distanciam e no afeto que eles mal supõem existir. Quanto aos amigos, tu sabes muito bem que não mais os possuo. Uns morreram; outros acharam na velhice um agradável pretexto para se tornarem brigões ou dementes; e o resto me aborrece pela insistência em me fazer acreditar ser bem mais velho que eles.

Só tu me restavas. Junto a ti eu podia ser eu mesmo, sem temor de parecer ridículo. Eras tu quem tinha a chave do meu caráter e do dom de encantar-me. (Mesmo a tua zombaria era uma forma de afeição.) E agora um duro silêncio te envolve e imobiliza. Vejo tuas mãos cruzadas, o lençol que te cobre, tuas feições tranquilas. Sei que logo mais eles te levarão. Talvez, então, eu te beije a fronte. Não ignoro, porém, que me dói tua frieza de morta e é mais provável que beije teus cabelos. Sim, beijarei teus cabelos — que eu vi, de abundantes e negros, rarearem e encanecerem. Beijarei teus cabelos, querida; eles não mudaram com a morte. Tua fronte ficou mais límpida, o nariz mais fino, as faces se encovaram, a carne está rígida e as pálpebras não as fechaste com a suavidade de sempre. Teu cabelo, porém, continua intato; quando sopra o vento, ainda esvoaça; está vivo, é o mesmo que penteavas pela manhã e soltavas à noite, antes de dormir. E agora se bem não os houvesses despenteado, tu dormes. E eu me senti pesaroso e grave, como tantas vezes me senti junto a nossos filhos, quando eles estavam doentes e o sono lhes chegava pela madrugada, após uma noite inquieta e eu ficava junto a eles, sentado, olhando-os, até que tu vinhas e punhas a mão em meu ombro e fazias com que me fosse deitar. Agora, eu não conhecerei mais a doçura desse gesto. Talvez, daqui há pouco, venha alguém — um filho ou vizinho — que me induza a afastar-me de ti e deitar-me. Mas, quem quer que seja, virá com palavras. Tu, não: vinhas com o teu silêncio, com tua tranqüilidade, e fazias com que eu dormisse. Mas quando despertava, eras tu quem estava ao lado do enfermo. Isto, eles não saberão. É íntimo demais, exige um nível de compreensão mútua demasiado grande para ser revelado. Não lhes contarei.

Também não falarei a ninguém de certas coisas que guardo com imensa ternura e que, se contasse, me julgariam tonto. Não direi da emoção com que te vi, muitas vezes, fazer as mais corriqueiras tarefas. Durante anos, quase todos os dias cuidavas da casa. Eu te viam sem nada de especial. Mas vinha um dia em que eu te descobria a intimidade nesse trabalho. Via o cuidado com que afastavas a poeira, a precisão com que punhas os jarros em seus lugares, com que mudavas as toalhas, os panos; escutava teus passos e me comovia por ver como te entregavas a esses afazeres. E descobria um extremado amor nisso tudo, o que me fazia perceber como eras simples.

Lembro-me mesmo que um dia havias trabalhado muito e te deitaste cedo. Eu fiquei lendo, e, quando o sono veio, fechei as portas. Havia um silêncio tão grande! Os móveis brilhavam, não havia pó no chão; tudo em ordem, limpo, cuidado. Detive-me um instante à sala de jantar, como se pressentisse avizinhar-se um mistério. Contemplei o jarro de flores, na mesa. Tu mesma as havias colhido pela manhã. Senti tua presença diligente na limpeza, nas flores; o carinho que depositavas em tudo. E percebi que havia algo me envolvendo: cingia-me um princípio de angústia. Na cozinha, olhei para o fogo: apagara-se. Durante o dia, estivera ativo, quente. Agora, estava morto. Era cinza. O que aconteceu em seguida, foi tão ridículo e sutil, tão difícil de expressar, que nunca te contei. Eu chorei, querida. Penso que sofri uma decepção obscura e súbita, uma espécie de dor ante a pouca duração da vida, da nossa vida – não sei; é possível também que houvesse sentido, ante a simplicidade com que vivias, algo semelhante à pena que às vezes nos aflige ante um folguedo de criança. Mas é difícil explicar. Talvez o que eu houvesse sentido fosse o presságio disto: de que virias a morrer, que nosso fogo não mais seria aceso pela tuas mãos e que nunca voltarias a colhes flores para o nosso jarro. Seria? Que me dizes?

Oh! Mas eu estou delirando. Fitava-te tão intensamente, com tanta saudade, que já te supunha viva. Se eles soubessem disto, também sorririam de mim. Na minha idade, já não se pode ter pensamentos estranhos nem fazer confissões. Fica-se ridículo, querida. E eu tenho que aproveitar estes últimos momentos em que ainda estamos juntos. É a última oportunidade de falar-te, mesmo sem abrir os lábios, e contar as tolices que não contarei a ninguém. Quero te dizer, por exemplo, uma coisa esquisita, uma coisa que não compreendo: os fatos culminantes de nossas vidas, aqueles que nunca poderíamos chegar a esquecer, perderam hoje esse privilégio. Nosso casamentos não é mais importante que a lembrança conservada, como por milagre, de quando te vi, pouco antes da cerimônia, em teu traje de noiva. Tão bem me lembro como teus olhos brilhavam e como teu riso era alegre! E no momento em que fecharam a porta para teu primeiro parto, que eu não tive coragem de assistir? Antes, isso era um fato importante! Hoje, não: está no mesmo nível de um gesto teu ou de teu sorriso. Hoje ele é tão importante como a tua alegria – esse resto de infância que nunca perdeste – a tua alegrai quando eu te presenteava com uma caixa de bombons ou uma fruta. Às vezes, eu te trazia biscoitos. Tu os guardavas e eu te censurava, porque me parecias avara, pois nem os comia de uma vez, nem os repartias com outrem. Mas eu te censurava sem rancor, porque sabia que a tua avareza era um modo de prolongar, ingenuamente, uma lembrança minha. Também não poderei contar isto a ninguém. Dirão que me preocupo com migalhas ou invento qualidades que não tinhas. E agora, querida, com quem repartirei estas memórias? Tu te vais e o peso do passado é muito grande para que eu o suporte sozinho. As palavras – todos sabem – são mortalmente vazias para exprimir certas coisas. Quando nos sentávamos, sós, a recordar nossa vida, não eram elas que restauravam os fatos: éramos nós.

E agora, que já não existes, com quem poderei falar de coisas triviais e amadas, como teu pesar, por teres quebrado involuntariamente um presente que eu te dera e nossa alegria na primeira viagem de trem? Com quem poderia falar disto? Com quem irei comentar teu hábito de, quando eu me esquecia dos óculos, deixares que eu chegasse à esquina para só então me chamar? E eu vinha, ralhava contigo, perguntava quando deixarias de ser criança. Mais tardem lembrava-me do episódio e me ria, disfarçadamente, com medo que me vissem e dissessem: Olha o velho rindo sem motivo…

"Mas eu não devia estar me lembrando dessas coisas. Talvez alguém tenha visto meu sorriso e julgará que não sinto a tua falta. “Ele não chorou — pensará. E agora, sorri. Está maluco; ou então nem sentiu.” Decerto, minha dor não é violenta. É cansada. Mas é tão vasta, tão desalentada e profunda… E vou ficar tão sozinho, querida…
Osman Lins, "Os Gestos"

Hora do café

 


Para uma menina com uma flor

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua ddc para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara na Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, “Minha namorada”, a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora — tão purinha entre as marias-sem- -vergonha — a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos — eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aleia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações — porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.
Vinicius de Moraes, “Para uma menina com uma flor”

quarta-feira, janeiro 19

Isso que é relaxar!

 


A descoberta

Eu era magrinho.

Magrinho, o menor do colégio. Tinha seis anos quando lá entrei, diretamente na segunda série primária. E porque era pequeno (e talvez também porque era filho de uma professora), os mais velhos debochavam de mim.

Uma tarde, eu brincava no pátio, sozinho. Era hora do recreio; a meu redor, todos corriam, jogavam bola, mas eu, distraído, esgaravatava a terra com um graveto.

De repente, achei uma moeda.


Uma moeda de duzentos réis! Que sorte. E logo em seguida achei outra moeda. E outra, e mais outra! Imaginei que tinha descoberto um oculto tesouro, decerto ali enterrado pelos piratas em épocas remotas – quando as ondas do mar vinham quebrar no pátio do colégio. Eu agora cavava furiosamente, gritando, sem poder me conter: Um tesouro! Achei um tesouro!

Não, não era um tesouro. Colocado atrás de mim, um garoto atirava habilidosamente as moedas que eu pensava estar encontrando. E de repente me dei conta: porque estavam todos a meu redor, rindo, rindo a valer. Fiquei furioso. E quando o garoto me pediu o dinheiro, não quis entregá-lo: era meu! Me arrancaram as moedas à força e foram embora, rindo. Fiquei sozinho no pátio, chorando.

Mas eu realmente tinha encontrado um tesouro. Não as moedas: a história. Aquela, dos piratas… Minha imaginação fervilhava: um tesouro.
Moacir Scliar. "Memórias de um aprendiz de escritor"

Perdidas no tempo

 


O tatuado Tatuagem

Então era aventureiro, e gostava de viagens, e de viver perigosamente, e estivera em guerrilhas na América Central, e foi mercenário na África, e fez contrabando no Paraguai, e combateu contrabandistas em Mato Grosso, e foi garimpeiro e procurou por todo o mundo sinais de extraterrestres, e alçava grandes voos dentro da vida, e por isso levava no braço direito uma águia tatuada.

E um dia ele atracou numa mesa de bar de onde via, em frente, no porto, os navios chegando e partindo. Ele ficava. O mar já não lhe sugeria mistérios, não ouvia mais os apelos das aventuras. As estradas, ele sabia, o levariam de volta àquela mesa, àquele bar onde passava os dias bebendo e sentindo o braço direito doer um pouco. A águia tatuada, inconformada, se debatia e tentava se desprender de seu braço. E ela conseguiu. O homem viu, com tristeza, a águia voar até sumir. Ele sabia que isso iria acontecer, pois o tatuador lhe dissera:

— Você não tem tatuagem, a tatuagem é que tem você.

terça-feira, janeiro 18

Leitor em atividade

 


Contaminação


Mesmo que os livros não sejam tão discutidos como o futebol, as ideias circulam. Os leitores contaminam os outros
José Luís Peixoto

Prontos pra navegar

 


Simples assim

A todo momento há alguém dizendo na televisão: “Eu só queria pontuar que…”. Apresentadores, repórteres, comentaristas, entrevistados, todos estão freneticamente querendo pontuar. Ninguém está a fim de virgular, exclamar, interrogar e muito menos ponto-virgular. Só de pontuar. É uma das palavras do momento. E, como outras do gênero, desnecessária. Se, em vez de pontuar, a pessoa disser logo aquilo que quer pontuar, sua supressão não fará a menor falta.

Outra mania em curso na praça é “simples assim”. Para mim, o primeiro a usá-la, há mais de 30 anos, foi Paulo Francis. Era tradução de “that simple” e combinava com o jeito de Francis argumentar. Ele morreu em 1997 e, por décadas, não ouvi ninguém dizer “simples assim”. Mas, de há algum tempo, passei a escutá-la no atacado e no varejo —não no sentido original de “não é complicado”, mas no de “Ponto final!”, “Cala a boca!”, “Acabou, porra!” e outras bolsoexcreções. O mesmo se aplica a “Vida que segue”, expressão popularizada no rádio dos anos 60 por João Saldanha. Definia um certo fatalismo, como o singelo “É isso aí”. Hoje é também sinônimo de “Assunto encerrado!”

Há transmigrações semânticas benignas. “Robusto” é o caso. Até há pouco, designava uma pessoa forte, rija, maciça. De repente, passou a definir também um conjunto de provas capazes de condenar alguém —”Provas robustas”, dizem os magistrados. Pois é o que teremos quando aqueles sujeitos musculosos que fazem a tara de Jair Bolsonaro, associados à produção de fake news, enfrentarem as provas robustas que estão se acumulando contra eles.

As palavras vão e vêm. Impossível ficar hoje mais de cinco minutos sem ouvir alguém dizer “assertivo”, “resiliência” e “empatia”. No passado, já foram palavras de 100 dólares e só os intelectualizados as usavam. Agora saem de graça.

Tudo bem. Temo apenas que, assim como entraram, logo saiam da língua —sem saber por quê.