sábado, dezembro 21

Boas festas

O ano se vai, chegam as festas. Uma para celebrar a Humanidade; outra para festejar a Esperança. Assim seria...
À espera que aconteça como reza a civilidade, daremos um descanso em boas companhias 

Sobreviver

Tudo o que um ser vivo faz e não merece a sua assinatura ou não faz de forma mais bela que os outros, não é obra, é uma forma de sobreviver
Gonçalo M. Tavares

O menino que escrevia versos

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(Verso do menino que fazia versos)

— Ele escreve versos!


Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.


Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.

— E o que é?

— É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.

— Não importa — respondeu o doutor.

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.


Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo…
Mia Couto, “O fio das missangas”

sexta-feira, dezembro 20

A 'mão' na tempestade

Lena Ralston

Presente de Natal

Vem chegando o Natal, e já se aprontam os presentes, e já as lojas se enchem de fios de prata e algodão fingindo neve nas vitrinas, camuflando a mercadoria cara. Já se fazem as contas e se suspira contra o dinheiro sem valor. 

Enquanto isso, no morro e no subúrbio pobre, o Natal não traz quase novidade. Quem não tem cobertor na cama nem panela com castanha no fogo – quem às vezes não tem cama nem fogo, como acontece a muita gente, não encontra no Natal diferença por maior. Talvez só a Missa do Galo, que é de graça – e nem isso, pois dá vexame ir à missa de vestido velho e pé no tamanco. Tempo de Carnaval sempre é mais fácil, basta enfiar um calção ou uma saia de velha, passa tisna no rosto, pega uma lata e um pauzinho, vai brincar do mesmo jeito. Mas em tempo do Nascimento, bloco de sujo é pecado. Não vê que a limpeza Deus amou?


Por isso minha amiga Béatrix Reynal largou de mão a poesia por um pouco e anda tomando providências. Juntando fazenda para roupinhas novas das crianças ao Natal, fazendo questão de que todo o mundo vá de vestido novo à Missa da Meia-Noite, para o galo não beliscar.

Sou mulher de natureza encolhida e tímida e deixo de fazer alguma coisa pelos outros, como seria de meu gosto, menos por secura de coração do que por falta de coragem para agir. Por isso mesmo admiro os que o fazem, os que não temem de bater à porta alheia quando é para o bem de quem precisa. Béatrix, por exemplo: começa arranjando um livro em branco para escrever o nome dos doadores. Fosse eu, logo ficaria indecisa e pessimista, acreditava lá que houvesse doadores em número suficiente para encher aquele livro. Ela porém tem fé na natureza humana, é uma maravilha; logicamente tem fé no livro. E da posse do livro para a descoberta dos doadores, parece que medeia apenas um passe de mágica. E é mágica, é. Telefonar, pedir, rogar, andar a pé, de bonde e de automóvel, até de barca. Saber descobrir quem tem coração mole, que ainda acredita e cumpre o preceito de vestir os nus, quem já não é freguês de outras caridades. Descobrir outras senhoras que se associem à empresa – senhoras que não gostam de cartaz, que trabalham em verdade por amor dos humildes e não para aparecerem nos jornais cinematográficos entregando um saquinho de não se sabe o que, de um em um, bem caprichado e em "close-up", à fila infinita de mulheres e crianças que esperaram ao sol e à chuva, o dia inteiro.

Que a minha amiga Béatrix Reynal faz as suas caridades de modo diferente. Para ela o importante é o socorro em si, não é o gesto. Na hora de pedir a fazenda, de arranjar as colaborações, de sair de porta em porta, de se matar de trabalho, medindo, cortando pano, arrumando, embrulhando, empacotando, ela é a primeira. Só na hora de entregar é que ela não aparece. O pano já está aí, os pobres já estão aí, não é mesmo?

Sei que não é com a caridade individual que se alivia a pobreza do mundo. Sei que não é com esmolas que se cura a miséria. Mas que a caridade ajuda, ajuda. Desculpem-me os senhores teóricos, posso estar errada, podem ficar danados comigo. Eu morro, mas digo: ajuda, sim. Vamos calcular que Béatrix Reynal com essa sua campanha do vestido de Natal consiga dar roupa a dez mil crianças. Sei que com isso não as redime da miséria; não as livra do barracão sórdido, não lhes dá escola, nem higiene, nem médico, nem lhes aumenta a ração. Mas enquanto o vestidinho durar, o corpo delas não estará nu. Não sentirão frio, poderão sair sem vexame, terão na sua vida de crianças e pobres aquela preciosa alegria do vestido novo. Façamos as nossas revoluções, decretemos leis, cheguemos ao socialismo, remediemos a desigualdade, como é o nosso sonho e a nossa obrigação.

Mas enquanto isso não chega, pelo menos viva o vestido novo. Mais tarde os meninos que a poetisa vestiu agora não terão nada ou terão tudo, serão vítimas da fome ou senhores do mundo, conforme for o que está para vir. Mas com futuro ou sem futuro, a alegria do vestido novo, isso pelo menos eles armazenaram, isso ninguém lhes tira mais.

quinta-feira, dezembro 19

Proteja-se do tempo

Yevhenia Haidamaka

Náufrago

Corro à máxima velocidade que consigo, levo alguma coisa a apertar-me o peito. A meio da corrida, chego à surpreendente conclusão de que é o peito que se aperta a si próprio. Corro em direção a algo que me parece imprescindível. Não sei há quanto tempo persigo essa miragem. Questiono-a por um instante, agora.
Charles Edward Perugini

E, de repente, é de novo o fim do dia. Terminou o prazo. De novo, o dia não foi suficiente, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente. E outra vez o fim do dia, e outra vez, outra, outra, de repente, exatamente o mesmo instante, a repetição do mesmo fim de dia, a mesma derrota. De manhã à noite: a pressa de fazer qualquer tarefa para fazer a tarefa seguinte. Todas as horas de um dia inteiro: a calcular o tempo que demoro até um lugar de onde quero sair o mais rapidamente possível. Ainda aqui e já a pensar no tempo que demoro a ir lá e a regressar aqui.

E, de repente, é de novo o fim do dia. É terça-feira, é quarta-feira, é quinta, sexta; de repente, é de novo sexta-feira, terminou mais uma semana, estes dias não foram suficientes, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente. Olho para a semana que passou e não consigo entender essa velocidade. Estou rodeado pelas ruínas do que não consegui fazer, cobrem a memória vaga de tudo o que me ocupou o tempo. E, agora, neste fim, parece-me que apenas fiz o que não queria.

E, de repente, é de novo dia 30. A repetição, cansativa e previsível: dia 27, dia 28, 29 e 30, é de novo dia 30, terminou mais um mês, abril, terminou abril. Estas semanas e cada um destes dias não foram suficientes, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente. Ao longo deste mês que passou, como uma paisagem que ainda olho, mas a que não consigo chegar quando estendo o braço, estão os fantasmas do que adiei. Aqui, ao terminar este dia, semana, mês, parece-me que talvez adie essas possibilidades para sempre.

Agora é um instante. Agora é um breve intervalo. Amanhã, recomeça o tempo. Tenho hora para acordar, tenho hora e lugar para estar vestido, desperto, bem-falante, tenho uma lista de tarefas a cumprir. Quanto mais depressa terminar a primeira, mais cedo poderei começar a segunda e, assim, talvez, chegar à última. Essa é a meta, o horizonte que distingo lá longe, no interior das minhas próprias ideias. Avanço na direção daquilo que consigo imaginar: os pontos da minha lista cumpridos, um a um. E, no entanto, inesperadamente, há alguém que se atrasa, há alguma coisa que demora mais do que previa: o trânsito, a chuva, cálculos inocentes. E, no entanto, de repente, é de novo o fim do dia, é de novo sexta-feira, terminou a semana, é de novo dia 30, terminou o mês. O tempo não foi suficiente, ou talvez tenha sido eu próprio que não fui suficiente.

Agora, fecho os olhos, inspiro longamente. Agora, o tempo parece uma matéria informe, nada o pode conter, entra por todos os lados. Este é um navio a naufragar, o tempo é a água, entra pelas frinchas mais finas, o tempo é o oceano. Estou no último pedaço à tona e, em volta, apenas oceano noturno, apenas tempo. Em breve, irá submergir-me.

terça-feira, dezembro 17

Calçadas com livros

Dhaka (Bangladesh)

O cego

Há bastante tempo que não o vejo e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no alto, como um instrumento, a captar os ruídos, os perigos, as ameaças da Terra. Os cegos, habitantes de um mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo as nossas incertezas e perplexidade. Sua bengala bate na calçada com um barulho seco e compassado, investigando o mundo geométrico. A cidade é um vasto diagrama, de que ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvario. Sua sobrevivência é um cálculo.

Ele parava ali na esquina, inclinava a cabeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos da selva de asfalto. Se da rua chegasse apenas o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem. Ao chocar-se com o obstáculo, seu corpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e permanecia por alguns momentos em plena rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.

Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. De profissão, por estranho que seja, faz chaves e conserta fechaduras, chaves perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem para o botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam afavelmente, os porteiros conversam longamente com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que fosse completamente cego. Outra vez, quando ele passava, uma pessoa a meu lado fez um comentário que parecia esquisito e, entretanto, apenas nascia da simplicidade com que devemos reconhecer a evidência:

— Já reparou como ele é elegante?

Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos vazios de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas compunham uma figura misteriosamente elegante, de uma elegância abstrata e hostil, uma elegância que as nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.

Às vezes, revolta-se perigosamente contra o seu fado. Há alguns anos, ele saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. Ele parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo quase silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto em que se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquanto o cego vibrava a bengala contra o motor, gritando: "Está pensando que você é o dono da rua?".

Outra vez, eu o vi em um momento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos percorreram os para-lamas, o painel, os faróis, os frisos. Seu rosto se iluminava, deslumbrado, como se seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira, o mar de encontro aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.

E não me esqueço também de um domingo, quando ele saía do boteco. Sol morno e pesado. Meu irmão cego estava completamente bêbedo. Encostava-se à parede em um equilíbrio improvável. Ao contrário de outros homens que se embriagavam aos domingos, e cujo rosto fica irônico ou feroz, ele mantinha uma expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica a dele. O cego de Ipanema representava naquele momento todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre a Terra. A poesia usava dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam na turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado como qualquer um de nós. A agressividade que lhe empresta segurança desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com o seu sol opaco e furioso. Naquele instante ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, a bengala espetava o chão, evitando a queda. Voltava assustado à certeza da parede, para recomeçar momentos depois a tentativa desesperadora de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no caos.

segunda-feira, dezembro 16

Pra começar o dia


Impressão sob demanda ajuda editoras a não perder vendas e a dispensar o estoque

Recém-saídos da faculdade, Arthur Lamas, Caroline Rocha, Julian Guimarães e Nestor Turano pensavam em criar a Fora do Ar, uma editora especializada em literatura cyberpunk, a ficção científica popularizada a partir dos anos 1980 que imagina futuros distópicos altamente tecnológicos. Estavam empolgados com a possibilidade de desdobrar os títulos para além do papel e produzir conteúdo em diferentes plataformas, como vídeos e podcasts, para enriquecer a experiência de leitura e aproximar do livro quem talvez não goste muito de ler. Mas editar autores cyberpunk contemporâneos exigiria investimentos consideráveis. Para baratear a produção, eles resolveram adiar o plano e investir em clássicos literários já em domínio público e há tempos longe das livrarias. Essa estratégia ajudaria a economizar com o pagamento de direitos autorais, mas o boleto da gráfica ainda preocupava: o custo de impressão de tiragens mínimas, de 1.000 ou até 500 exemplares, era demasiado alto para uma editora iniciante. E, depois de impressos os livros, haveria os custos de distribuição, o trabalho de convencimento dos livreiros e meses de espera até o dinheiro de eventuais vendas recompor o caixa.

Foi aí que surgiu a ideia de imprimir os livros só depois de vendê-los. Nos últimos anos, inovações tecnológicas nas gráficas permitiram que as editoras imprimissem tiragens mínimas ou às vezes um único livro. Antes, para garantirem bons preços, editores precisavam encomendar tiragens de milhares de exemplares. Imprimir pouco ou apenas uma unidade saía caro, e o acabamento às vezes deixava a desejar. Hoje, já é possível imprimir um único exemplar com rapidez e qualidade. E melhor: fazê-lo só depois de vender. É a impressão por demanda (ou modelo PoD, do inglês “print on demand”).



Quando um leitor compra um livro disponível para impressão por demanda numa loja virtual, o pedido não vai para a editora ou para uma livraria, mas para empresas como a UmLivro e a Bok2, que são integradas a diversos marketplaces — espécie de shopping centers virtuais. São elas que, com a autorização das editoras, vão imprimir o livro e entregá-lo no endereço escolhido pelo cliente. “A impressão por demanda é um de nossos alicerces”, disse Turano, da Fora do Ar. “Para imprimir tiragens de 3 mil exemplares, que é a média, as editoras têm de investir, chutando baixo, uns R$ 25 mil. Não é qualquer um que dispõe desse dinheiro. O PoD abre portas para editoras pequenas, como nós, para quem seria fatal desembolsar tanto dinheiro num primeiro momento”, completou. A possibilidade de ajustar a impressão dos livros à demanda também animou as editoras grandes e médias, castigadas há anos por uma crise severa e pelo calote das duas principais redes de livrarias do país, Saraiva e Cultura, que estão em recuperação judicial.

No dia 22 de novembro, os dois primeiros livros da Fora do Ar foram disponibilizados para impressão por demanda: "Esaú e Jacó", de Machado de Assis, e "A ilha maldita", de Bernardo Guimarães, o autor de "A escrava Isaura". Os dois livros trazem notas e prefácios assinados por estudiosos. "A ilha maldita" teve apenas outras duas edições desde 1879, quando foi publicado pela primeira vez. Ambos os romances estão disponíveis em três formatos: e-book (R$ 14,90 e R$ 10,90, respectivamente), edições artesanais limitadas a 500 exemplares (R$ 119,90 e R$ 109,90) e, é claro, edições impressas por demanda, mais em conta (R$ 54,90 e R$ 39,90), que podem ser compradas no site da editora e em outros marketplaces.

“O objetivo de nossa plataforma é acabar com a ruptura”, afirmou Anselmo Bortolin, presidente da UmLivro. “Às vezes, as editoras têm dificuldade em manter ativos no catálogos os livros ‘cauda longa’”. Traduzindo: o mercado editorial fala que há “ruptura” quando o leitor não consegue encontrar determinados livros porque, embora eles ainda constem nos catálogos das editoras, não são reimpressos há tempos. E a expressão “cauda longa” descreve a trajetória de venda de um produto cuja procura, ainda que modesta, não se concentra logo após o lançamento, mas se estende pelo tempo. Entre os livros que desaparecem das livrarias, os classificados como científicos, técnicos e profissionais, voltados para públicos muito específicos, como professores universitários e estudantes de pós-graduação, têm destaque. Essas obras costumam vender pouco por ano, às vezes menos de uma centena de exemplares. Para as editoras, não compensa imprimir tiragens de mais de 1.000 exemplares que vão passar anos e anos empoeirados em estoques terceirizados que cobram por espaço ocupado. As plataformas de PoD estão empenhadas em explorar esse nicho.

Judith Almeida, gerente comercial do Grupo Autêntica, ainda se lembra do tempo em que impressão por demanda remetia a livros caros e com páginas que soltavam facilmente. “No começo, a impressão por demanda tinha alto custo e soluções de acabamento pouco atraentes”, disse. “Os livros eram colados, e não costurados, não tinham orelha e não dava para optar por nenhum recurso de embelezamento da capa, como um verniz. Hoje, a apresentação gráfica de um livro impresso por demanda é muito parecida com um livro impresso numa tiragem maior”, disse. O Grupo Autêntica tem quase 190 títulos em PoD.

Segundo Bertolin, da UmLivro, evoluções no maquinário e nos insumos gráficos — como um tipo de cola mais resistente — permitiram impressões por demanda mais baratas e caprichadas. Mas o que garantiu o sucesso do PoD foi a criação de plataformas capazes de integrar todos os processos, da compra à distribuição. Uma das primeiras editoras a apostar na UmLivro foi a Zahar, dona de um farto catálogo de ciências humanas. “Há mais de dez anos estudávamos o modelo de impressão por demanda. Para uma editora que tem um catálogo de quase 1.000 títulos, encontrar uma solução que permitisse não investir em estoque e manter os livros ativos é um incremento e tanto para o negócio e para os leitores”, afirmou Ana Paula Rocha, diretora de operações da Zahar. “Com os marketplaces, o PoD se tornou uma possibilidade real, porque permitiu a venda direta ao consumidor.” A Zahar tem 224 títulos disponíveis em PoD e pretende terminar o ano com 300. Livros de cinema e psicanálise têm saído bem. Recentemente, a UmLivro fechou contratos com editoras estrangeiras e já oferece quase 4 milhões de títulos de mais de 40 mil editoras em 90 idiomas. O preço de capa é definido pelo editor.

Antes de abraçar o PoD, a Perspectiva, outra editora de ciências humanas, que lançou a moda da semiótica no Brasil, optava por imprimir tiragens pequenas — 30 a 200 exemplares — de livros que vendiam pouco por ano. O PoD permitiu ajustar ainda mais a oferta à demanda e imprimir só o que já estava vendido. Para Alexandre Fonseca, diretor comercial da Perspectiva, além de acabar a “ruptura”, o principal benefício da impressão por demanda é a diminuição dos gastos com estoques e do valor a investir para manter o catálogo ativo. “Nós, editores, só recebemos lá na frente o que investimos hoje. Se os livros que chegam da gráfica forem para as livrarias hoje, daqui a um mês eu recebo do livreiro um relatório parcial do que vendeu. Na melhor da hipóteses, recebo o dinheiro daqui a 90 dias. No PoD, como eu vendo primeiro, o dispêndio financeiro é menor ou inexistente, o que ajuda no fluxo de caixa”, explicou. A Perspectiva tem um catálogo de 1.100 títulos, dos quais 600 estão disponíveis para impressão por demanda.

Algumas editoras já lançam livros diretamente em PoD. A Companhia das Letras, por exemplo, publicou, em janeiro, o infantil "Entre sonhos e tempestades", adaptação de três peças de William Shakespeare assinada por Rui de Oliveira. “Começamos a avaliar a impressão por demanda depois de verificarmos que o serviço proposto pela UmLivro atendia a nossas necessidades de qualidade, custo e logística”, afirmou Fabiana Roncoroni, gerente de produção do Grupo Companhia das Letras. “Todos os títulos são aptos ao PoD, embora haja uma limitação referente a acabamentos gráficos, como capa dura, pois os prazos de entrega são curtos.” A Companhia já lançou outros cinco livros diretamente em PoD. Nesses casos, foram impressas pequenas tiragens para atender aos eventos de lançamentos. Ao todo, a editora tem 15 livros disponíveis para impressão por demanda.

Outra plataforma de PoD que tem prestado serviços às editoras é a Bok2, fundada em 2017. A Bok2 tem loja virtual própria e trabalha com outros nove marketplaces, como Amazon e Saraiva. Entre editoras como Autêntica, L&PM, Companhia Editora Nacional e Aleph e autores independentes, conta com 5 mil clientes e mais de 6 mil títulos em português. Qualquer um pode cadastrar um livro na plataforma e disponibilizá-lo para ser impresso por demanda. O preço é definido pelo dono do livro. A partir de informações como número de páginas, dimensões do livro e preço, o sistema calcula quanto a editora ou o autor vai ganhar por exemplar. ÉPOCA fez um teste: se publicasse um livro de 200 páginas, com 16 centímetros de largura por 23 centímetros de altura a R$ 49,90, ganharia R$ 14 por unidade vendida. “A gente não faz diferença entre editoras gigantescas e autores independentes. E, quando eles ligam para pedir desconto, aí é que não tem diferença mesmo”, disse Eduardo Neto, diretor de operação da Bok2. “Nosso propósito não é alimentar uma máquina impressora, mas entregar o máximo de dinheiro possível para o dono do livro.” Segundo Neto, o faturamento da Bok2 mais que dobrou desde fevereiro.

Inspirada num dos princípios da impressão por demanda — disponibilizar o que o consumidor quer —, a Bok2 se desdobrou em uma editora, a Pausa, que trabalha sem estoque. De julho, quando saíram os primeiros títulos, até agora, a Pausa já publicou dez livros: romances comerciais e títulos de autoajuda e negócios. A editora identifica os livros que os leitores brasileiros procuram, mas não encontram traduzidos, e, com essas informações, monta seu catálogo. “Trabalhamos com gêneros consolidados no mercado. Sempre conversamos com grupos de leitores para saber o que eles querem e vamos atrás disso”, explicou Silvia Tocci, diretora editorial da Pausa. “Sempre tive um relacionamento muito bom com os agentes literários e converso com eles sobre o que é tendência. Eles sugerem títulos, e eu avalio para ver qual tem mais o perfil do leitor brasileiro.” Todos os títulos da Pausa estão disponíveis sob demanda, mas também é possível encontrá-los em livrarias se o livreiro quiser encomendar alguns exemplares.

Em meio à crise das livrarias, a emergência de uma plataforma que envia livros difíceis de encontrar direto aos clientes não precisa assustar os livreiros. “Se o livreiro achar o PoD ruim, ele não entendeu direito as vantagens. Agora, nós não dizemos mais ao cliente que um livro está esgotado, porque podemos mandar imprimir rapidamente o que não temos no estoque”, disse o editor e livreiro Alexandre Martins Fontes, da editora e livraria que levam seu sobrenome. O site da livraria Martins Fontes é integrado a plataformas de PoD. A editora ainda não imprime por demanda, mas costuma fazer pequenas tiragens, de dezenas de exemplares, de títulos que saem pouco, para não entulhar o estoque.

Por enquanto, o faturamento das editoras com impressão por demanda ainda é pequeno, mas a economia com o estoque e a possibilidade de manter todo o catálogo ativo sem os custos de uma tiragem de centenas ou milhares de exemplares compensam. A Fora do Ar espera que os livros impressos por demanda ajudem, em dois anos, a financiar tiragens de autores cyberpunk. “Quando começarmos a editar os contemporâneos, que exigem diálogo com outras mídias, não sei se vamos continuar só com o PoD”, disse Turano. “Mas não vamos virar as costas para a impressão por demanda, porque a ideia é genial.”

Amor de leitora


O Natal de tia Calu

Tia Calu deixara a porta semi-aberta, para não correr a todo instante a receber os rapazes. Maria Augusta, sozinha, não daria conta do recado. Eram salgadinhos de toda sorte, delicados pastéis, empadinhas apimentadas, camarões recheados, canapés de salmão importado, caprichosas invenções do seu reconhecido gênio culinário. Entre os presentes recebidos àquela manhã havia dois vidros grandes de caviar. Seriam a surpresa da noite. Cortava, amassava, picava, colocava, com requintes de decoradora, trabalho amoroso e sutil, em que punha a alma. Naquela noite todos viriam! Pela primeira vez todos estariam em sua casa, na doce festa de Natal.
Soaram passos na sala.

— Vai ver quem chegou, Maria Augusta.

A preta espiou à porta, viu um jovem oficial, de malinha na mão, contemplando risonho a grande árvore, fulgurante de luzes.

— Tem um que eu não conheço. Está fardado.

— Fardado?

Seu rosto subitamente se fechou. Tia Calu, em suas festas, não gostava que eles viessem de uniforme e todos sabiam disso. O uniforme era a lembrança viva do perigo permanente, da ceifadora implacável.

Tia Calu, em silêncio, lavou as mãos à torneira, enxugou-as lentamente.

— Você, meu filho?

— Pois é, tia Calu — disse o rapaz, alegre, ligeiramente constrangido. — Tenho que estar no campo às cinco horas. Vou para Assunção. Posso dormir aqui, depois da festa?

— Claro, seu pirata! — disse tia Calu abrindo-lhe os braços, beijando-o na testa.

E já brincalhona:

— Mas quem não trabalha não come e não dorme. Venha ajudar na cozinha, que está tudo atrasado e às dez horas a Maria Augusta vai-se embora. Tem festa também…

O capitão deixou a malinha a um canto, sacou fora o dólmã, arregaçou as mangas da camisa.

— Assim que eu gosto. Soldado enfrenta o inimigo em qualquer terreno. E se adapta… A capacidade de adaptação é tudo…

— Eh! Eh! Eh! — riu Maria Augusta, feliz. Ela gostava daquela rapaziada porque topava tudo, não tinha orgulho. Onde é que já se viu um capitão cheio de medalhas botar pastel na frigideira e ficar todo salpicado de gordura?

— Eh! Eh! Eh! Essa Dona Calu tem cada ideia! Mas já havia rumor novo na sala.

— Ô de casa! Pode-se entrar?

— Rua! — disse tia Calu aparecendo, os claros dentes abertos num sorriso. — Rua! Isto aqui não é casa da sogra! — Rua! Rua!

Estava com as mãos cheias de pacotinhos, que os dois lhe passavam.

— Vocês são umas crianças! Pra que essa bobagem?

E colocou, numa alegria de mãe feliz, os pacotes junto ao embrulhinho que o capitão auxiliar de cozinha depositara timidamente sobre um móvel.

— Vocês são impossíveis!

— Sabem que hoje não vai faltar ninguém?

— Não diga! — exclamou surpreso um dos recém-chegados.

— Não falta ninguém! O Guilherme chegou hoje do Pará. Já me telefonou. O Oto conseguiu habeas-corpus da família. Prometeu que vem. E até o Mesquita. Ele me telegrafou de Bagé. Conseguiu licença. Deve estar chegando…

E já dona-de-casa:

— Vão se servindo. Uísque tem à bessa.

— Uísque? Com os preços que andam por aí?

— Ora! Pra que é que a tia Calu trabalha? Não é pra vocês? Sobe o preço do uísque eu subo o preço das aulas, ora essa! Eu acompanho a marcha do câmbio…

Voltaram-se os três. Dois braços apontavam na porta, cada um terminando por uma garrafa de uísque. Tia Calu sorriu de novo:

— E depois, nem era preciso. Eu trabalho com um corpo incansável de contrabandistas… Eles não falham nunca!

Abraços e gargalhadas festejaram a aparição dos braços e garrafas.

— Gelo é só buscar lá dentro!

Voltou à cozinha:

— Vai fazer sala, capitão de bobagem. Seus companheiros estão chegando. Aqui você serve só para atrapalhar.

Vozes e exclamações festivas animavam a sala. Duas horas da manhã!

— Um uísque só — pediu o oficial que chegara primeiro.

— Guaraná, capitão. Hoje você é donzela. Também, pra que é que foi aceitar serviço para a manhã de Natal? É guaraná, se quiser. Você tem de voar muitas horas. E não amola, não, que daqui a pouco eu te ponho na cama…

Tia Calu se mirava amorosa nos doze rapazes. Estavam todos! Não faltava nenhum. Uma juventude magnífica, alguns prematuramente graves, alguns melancólicos, a família longe. O Heitor, um dos bravos da campanha na Itália, fumava muito sério, o copo de uísque na mão esquerda. No mundo, só tinha tia Calu. O único irmão perecera num desastre, dois anos antes, nas margens do Guaporé. Subira num avião obsoleto, que ele sabia sem condições de vôo. Dois outros recordavam uma viagem por Mato Grosso, em que o avião caíra. Haviam escapado por milagre. O mecânico desaparecera.

Tia Calu contemplava a sua macacada, como sempre dizia.

— Vocês não podiam respeitar um pouco esta casa? Isto é família, tá bem?

— Ora, tia Calu, não chacoalha — sorna um rapaz moreno, de sobrancelhas espessas.

Estava a contar ao amigo a história de uma garota conhecida em Anápolis.

E continuando, já alto de uísque:

— Você não faz ideia! Nunca vi criatura mais clara, cabelos mais louros! Mas louro natural, entendeu? Uma coisa maravilhosa! Custei a acreditar que fosse goiana. A gente sempre acha que goiano tem de ser índio…

— O Lauro era goiano e parecia alemão — disse tia Calu.

Ouve um silêncio pesado. Rápido. Lauro caíra seis meses antes. O motor falhara. O avião fora descoberto uma semana depois, quatro homens carbonizados em plena floresta. Tia Calu sentiu um arrepio. Ouvia ainda as três descargas em funeral, diante da cripta dos aviadores, no São João Batista. Vinte e oito anos.

(— Estou ficando velho, tia Calu. Parece que vou ficar pra semente…)

Tia Calu ergueu o copo de uísque à altura dos lábios. Sorria para o Capitão Eduardo:

— Está com inveja, hem, seu boboca? É pra você não aceitar voo em véspera de Natal, tá bem?

O rapaz fez um muxoxo infantil:

— Ora, tia Calu.

— É pra aprender, entendeu? Olha, prova esses camarões… Trabalho de mestre… Duvido que você já tenha comido coisa melhor… Alguém cantarolava na cozinha, procurando mais gelo.

— Pára com essa taquara rachada — ordenou uma voz, ligeiramente engrolada.

Tia Calu se ergueu, dirigiu-se para o interior. Voz tinha o Meira. Estava agora em Pistoia. Tia Calu mordeu os lábios. Meira deixara um filhinho, tinha agora oito anos.

(— O que é que você vai ser quando homem, Vadinho?

— Ué! Aviador, tia Calu!)

Ela já estava na cozinha, um amontoado de bandejas, pratos, panelas, garrafas.

— Puxa! Você não presta nem pra tirar gelo, Simão. Nunca vi cara mais sem jeito! Escorre um pouco de água em cima, que eles se desprendem .

O rapaz olhou-a, atarantado. Tia Calu aproximou-se, em voz baixa:

— Você não tinha arranjado uma colocação no Ministério?

— Falhou, tia Calu.

Ela ficou séria, olhando a testa larga, os olhos ingênuos do moço. Fazendo viagens longas, voando em ferro velho, a mulher esperando bebê. Era o mais imprudente de todos. Na escola, até os instrutores tinham medo de subir com ele. Fora várias vezes censurado, até punido. Adorava os malabarismos no espaço. Ficava possuído, ao subir, de verdadeiro delírio. Dos malucos da turma, dos tidos como malucos, era o único sobrevivente. Por que não tivera ainda a sorte de cair e ficar inutilizado para os vôos, arranjando sinecura numa base qualquer, pegando uma promoção, livrando-a daquela agonia permanente?

— Vai ser menino ou menina?

— Pelo jeito, menina.

— Graças a Deus — disse tia Calu, arrumando uns canapés.

Voltou para a sala com a bandeja. O grupo cantava, agora, um dos sambas do pré-carnaval. Tia Calu parou à porta, contente de ver aquela sadia despreocupação. Eram o seu orgulho, aqueles rapazes. Caíam como pássaros atingidos em bando, por invisíveis caçadores. Tinham filhos, mãe, esposa, irmãs, gente que vivia em terra, sempre de coração pequenino. Voavam sempre, os nervos de aço, a vontade inquebrantável. Pela primeira vez os tinha todos ao mesmo tempo em casa. Rapazes de escol, exemplares raros de coragem, de saúde física, de saúde moral. Era como se fossem filhos. Nunca mãe nenhuma tivera tantos filhos, tantos filhos tão jovens, tão fortes, tão belos. Pena que não estivessem todos como Carlos. Ah! antes estivessem! E o coração apertado, pousou os olhos enternecidos em Carlos. Somente Carlos não cantava. Levava aos lábios um pastel de camarão. Uma entrada profunda no frontal, que lhe deformava a cabeça, garantia que Carlos não voaria mais.

Olhou o relógio de pulso.

— Duas e meia, capitão! Berço! Chega de guaraná! Vai dormir! Quer que eu te chame a que horas?

O rapaz, que cantava também, quis protestar.

— Não tem choro não. Vai dizendo boa-noite, dá um beijo na mamãe, vai dormir.

O capitão se ergueu, obedeceu docilmente. Pouco depois, um a um, o grupo se dispersava.

— Bom Natal, tia Calu.

Quando se viu só — o capitão ressonava. Maria Augusta saíra às dez horas, o apartamento em silêncio — tia Calu olhou a sala. Parecia um campo de batalha. Precisava pôr em ordem tudo aquilo, senão Maria Augusta resmungaria o dia inteiro. Começou a reunir os copos numa bandeja. Treze copos, doze de uísque, um dela, e o de guaraná, do capitão que ressonava. Aproximou-se, na mão a bandeja, ficou a observar-lhe o sono vagamente atormentado. A seguir, voltou e, a bandeja sempre na mão, atulhada de copos, enfrentou o retrato do filho na parede principal da sala, medalhas e citações ao lado. Durante toda a noite passara despercebido. Havia como que um acordo tácito. Tia Calu agora encarava o filho. Depois, os olhos enxutos, agitou a cabeça:

— E pensar que vocês eram setenta e oito, tenente, setenta e oito!
Orígenes Lessa

domingo, dezembro 15

Descanso do trabalho


Domingo

Ghelman Lazar (1932)
Santiago do Chile, outubro -"O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal".

No conto de Machado de Assis o que aconteceu nesse domingo foi que deu uma coisa em dona Severina, de 25 anos de idade, mulher do sr. Borges, e quando o moço Inácio, de 15 anos, estava dormindo a sesta da rede, dona Severina lhe deu um leve beijo na boca.

Nada de tão belo houve entre nós neste domingo de primavera em que saímos ao campo. Havia sol, flores, brisa nas árvores e era mesmo difícil imaginar que na Terra inteira naquele instante, não fosse um domingo de sol; na Terra e por aí além, em Marte, em Vênus, em Aldebarã, que por toda parte há de haver domingos.

Notem que Machado escreveu "lindíssimo", ele que era anti-superlativo. É que havia de ser mesmo um domingo assim, doce e perfeito, em que o simples ato de respirar e além disso não fazer nada torna uma pessoa feliz. Um puro domingo. Uns amigos Chilenos há muito me convidavam para um almoço desses. São todos engenheiros e todos estiveram juntos ― uma turma completa ― em excursão pelo Brasil, há 11 ou 12 anos atrás. Foram bem tratados, gostaram, voltaram com o ouvido cheio de canções e palavras brasileiras. Quando resolveram, aqui, comprar um sítio, de "vaquinha", puseram nele um nome brasileiro. E de vez em quando, em companhia do mesmo professor com que foram ao Brasil, se juntam no sítio para um almoço. Comemos num caramanchão, a toalha salpicada de sol, a brisa vegetal nos abençoando. O vinho era leve, mas forte e bom, e então esses chilenos começaram a cantar em português aquele negócio "salve o lindo companheiro, se és covarde saia da mesa" etc. e cada um de nós ia emborcando seu canecão de vinho; depois cantaram de a mistura com as "cuecas" e "tonadas" da terra, velhos sambas, velhas marchas, e cânticos de estudantes brasileiros e "oh Minas Gerais, oh Minas Gerais"; a emoção e o vinho me umedeceram os olhos.

Era difícil mesmo não ficar comovido no meio desses chilenos a lembrar coisas do Brasil entre plantações de damasco, fileiras de álamos murmurantes, perante a alta Cordilheira toucada de neve. Um ítalo-brasileiro em visita cantou um samba que ele mesmo compôs e Ângela Maria gravou. Eu não cantava, porque canto demasiado mal e iria desafinar o domingo inteiro; ou melhor, apenas cantava para dentro, o que aumenta a emoção. E então de repente, no meio de tantos homens, me deu uma saudade de mulher, qualquer mulher com cabelos de mulher, pele de mulher, olhos de mulher, voz de mulher, jeito de corpo de mulher, e que, ao final, fosse mesmo mulher. Deixei a rude alegria dos homens, e me deitei na relva, de cara para o sol e cerrei os olhos, mas a escuridão era toda dourada de luz e povoada de lembrança, vontade e visão de mulher.

Ah, dona Severina, de meus domingos de sonho!

sexta-feira, dezembro 13

Biblioteca... no muro


O velhinho que roubava livros

A cena é desconcertante: no interior de uma livraria movimentada, um senhor bem posto, de cabelos brancos e óculos escuros, pega um livro numa estante, esconde-o dentro de um jornal dobrado, põe esse jornal dentro de uma sacola e vai embora. O vídeo das câmeras de segurança da El Ateneo não deixa margem a dúvidas: não há distração, hesitação, esquecimento. O que se viu foi um roubo, denunciado à saída pelo sistema de alarme da loja.


O embaixador do México na Argentina acabava de lançar, ali, uma mancha indelével no seu currículo. O que aconteceu antes, nos seus 76 anos de vida, passou a segundo plano.

O vídeo, de outubro, veio à tona há alguns dias; a notícia foi dada em todas as línguas. O chanceler Marcelo Ebrard chamou-o de volta e afirmou, pelo Twitter, que, em sendo verdadeiras as imagens, ele perderá o cargo: “Zero tolerância com a desonestidade.” O presidente López Obrador pediu que o caso seja tratado com cuidado, e que “não se façam linchamentos públicos”.

Pois sim, presidente.

O embaixador é um alvo fácil demais para escapar incólume, e o seu escalpo já está espetado em praça pública.

Meu primeiro sentimento foi de pena pelo homem, provavelmente doente, que se desgraçou pelo equivalente a dez dólares; e pensei que faltou caridade à livraria, que poderia ter resolvido o assunto de forma discreta, sem envolver a polícia. De quantos casos assim já não ouvimos falar? Quantas famílias não saem desesperadas pelo comércio, pagando envergonhadas pelo que os seus parentes levaram em surto?

Mas pensei também no avesso disso: até que ponto eu estava encontrando uma saída fácil para ele? Então ladrões são só os pobres? Ricos caem automaticamente na categoria elegante dos cleptomaníacos?

Eu teria a mesma condescendência por alguém mais jovem?

Eu teria a mesma pena de alguém mais pobre?

Duas respostas no afirmativo, sinto dizer — e sinto porque, na verdade, sei que deveria mais me horrorizar com o roubo do que me apiedar do ladrão, mas não consigo deixar de simpatizar com quem não resiste a um livro.

Por outro lado, para que roubar um livro? Não é necessidade básica como um pedaço de pão ou um casaco (ainda que sim), nem objeto de valor como uma joia (ainda que sim). Um livro pode ser retirado de uma biblioteca, pode ser pedido emprestado a um amigo. Em último caso, um livro pode ser lido na própria livraria, aos pouquinhos.

Tenho a impressão, porém, de que, mais do que a biografia de Casanova que escondeu na sacola, o embaixador buscava um pouco de adrenalina na rotina dos seus dias cômodos, um certo frisson, a aventura louca que estava ao seu alcance.

Continuo com pena dele porque, no fundo, tenho pena de todos nós, embaixadores e não embaixadores, tão frágeis e falhos, tão cheios de defeitos, tão indignos do alto conceito em que nos temos.

Humanos, apenas isso.

Sorria!


Nuvens

Aquela galinha branca e gorda finge estar parada, mas avança vagarosa, decidida a bicar o bode do outro lado do céu. Segue disfarçando, passa detrás daquele floco redondo, mas vai tão lenta que, quando chega perto, o bode já está mais para um abacaxi de coroa quebrada. E bicar abacaxi é o tipo do programa besta. Não sei se por decepção, divide-se em quatro nuvens desimportantes, pobre galinha esquartejada, vagando no ar.

Eis que 10 minutos depois surge a cara de um cão. Só do pescoço para cima, o suficiente para vermos que é um cão feliz, de sorriso aberto e orelhas em pé. Mais duas caipirinhas e eu o ouviria latir. Estou aguardando surgir por trás dos prédios a razão de tanta felicidade: uma bola, um moleque companheiro, uma cadela cheia de ziriguidum?


Segundo os entendidos, uma nuvem se forma pela evaporação das águas dos rios e dos mares. Segundo os iludidos, ali está um boto, mais adiante o esboço de um tamborim e, há pouco, uma barbatana de cabeça pra baixo.

Ontem mesmo o céu estava todo azul, sem uma nuvenzinha pra contar a história. Pois lembrem as senhoras e senhores que os anjos moram nas nuvens e, sem elas, eles não teriam como se divertir. Ou você acha bacana passar a eternidade entoando hinos sacros e tocando harpa? Hoje é um bom dia para moldá-las e assoprar para ver o que vão dar.

Aquela, por exemplo: não deu em nada. Um amontoado disforme e indeciso, girando sobre si mesmo. Que logo dá lugar a uma nuvem escura, que chega com pressa e cheia de ameaças, torós e trovões estocados. Lá dentro deve ventar pra burro, pois ela lança flocos pra todo lado, que crescem como pelotões de algodão avançando pelo céu.

Para dar mais emoção ao quadro, no seu caminho está parada outra nuvem – maior, mais escura e com cara emburrada. O encontro das duas não vai dar em boa coisa. É a hora em que as lavadeiras recolhem as roupas do varal e as mães puxam pelos braços seus filhos que se recusam a sair da praia, berrando e se jogando na areia até virar uma farofa só.

Mas o que é aquilo? Um inocente pintinho surge detrás do morro. Há até um furo na nuvem fazendo de olho. Segue firme em direção ao terrível encontro das nuvens. Jesus, ele não está vendo o que está para acontecer? Ah, claro, está atrás da mãe galinha, mas lamento informá-lo que… não, não tenho coragem de dizer a verdade a ele. Que ele pule pra lá e pra cá, desvie dos relâmpagos e aprenda a voar meio ensopado, para já ir aprendendo que a vida é dura, companheiro, e com sorte seu fim será um belo coq au vin com recomendações ao chef.

Nuvens feias nos tornam cruéis e levemente sarcásticos.

Mas também elas passam. Ouço ao longe a conversa dos trovões, foram se encontrar em outra freguesia. O pintinho, a humanidade e as caipirinhas estão salvos. Talvez agora um cochilo. Mas aguardemos que aquele caranguejo cinza sem patas, mas com duas belas tenazes, desapareça pelos lados do oeste. Não, não é de medo, e sim respeito. Apreciamos nuvens, mas não somos bobos. Ou somos, sei lá. Vejamos o que diz o microfone que surgiu no horizonte.
Cássio Zanatta

quinta-feira, dezembro 12

Más notícias para Sua Majestade

Quando comecei a trabalhar com livros, lembro-me de que Portugal era ainda um país com fortes marcas do analfabetismo que se vivera em anos e anos de ditadura. Apesar de os intelectuais nessa época terem sido sobretudo influenciados pela cultura francesa, a verdade é que os índices de leitura do Reino Unido eram talvez os mais impressionantes para os editores portugueses e aqueles que estes sonhavam um dia igualar. Íamos à Feira do Livro de Londres e víamos gente a ler em todo o lado, nos bancos dos jardins e nos transportes, embora por vezes apenas literatura de supermercado, como então se dizia. Hoje, infelizmente, lá como cá, o que encontramos são pessoas com o nariz enfiado no telemóvel e o rosto que, se não se desvia um segundo para olhar o outro, ali sentado à sua frente, muito menos o faz por um livro aberto. Claro que isso só podia originar o que li numa notícia do The Guardian de sexta-feira passada: fecharam mais de 800 bibliotecas na Grã-Bretanha nos últimos dez anos. Um verdadeiro susto, que explica muito do que por lá está a acontecer.

Dê a volta ao mundo


A minha glória literária

"Quando a alma vibra, atormentada..."

Tremi de emoção ao ver essas palavras impressas. E lá estava o meu nome, que pela primeira vez eu via em letra de forma. O jornal era O Itapemerim, órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do Colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemerim, estado do Espírito Santo.

O professor de Português passara uma composição: "A lágrima". Não tive dúvidas: peguei a pena e me pus a dizer coisas sublimes. Ganhei dez, e ainda por cima a composição foi publicada no jornalzinho do colégio. Não era para menos:

Quando a alma vibra atormentada, às pulsações de um coração amargurado pelo peso da desgraça, este numa explosão irremediável, num desabafo sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido, por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e esta pérola de amargura arrebatada pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada é a própria essência do sofrimento: é a lágrima.

É claro que eu não parava aí. Vêm, depois, outras belezas; eu chamo a lágrima de "traidora inconsciente dos segredos da alma", descubro que ela "amolece os corações mais duros" e também (o que é mais estranho) "endurece os corações mais moles". E acabo com certo exagero dizendo que ela foi "sempre, através da História, a realizadora dos maiores empreendimentos, a salvadora miraculosa de cidades e nações, talismã encantado de vingança e crime, de brandura e perdão".

Sim, eu era um pouco exagerado; hoje não me arriscaria a afirmar tantas coisas. Mas o importante é que minha composição abafara; e tanto que não faltou um colega despeitado que pusesse em dúvida a sua autoria: eu devia ter copiado aquilo de algum almanaque. A suspeita tinha seus motivos: tímido e mal falante, meio emburrado na conversa, eu não parecia capaz de tamanha eloquência. O fato é que a suspeita não me feriu, antes me orgulhou; e a recebi com desdém, sem sequer desmentir a acusação. Veriam, eu sabia escrever coisas loucas; dispunha secretamente de um imenso estoque de "corações amargurados", "pérolas da amargura" e "talismãs encantados" para embasbacar os incréus; veriam...

Uma semana depois o professor mandou que nós todos escrevêssemos sobre a Bandeira Nacional. Foi então que – dá-lhe Braga! – meti uma bossa que deixou todos maravilhados. Minha composição tinha poucas linhas, mas era nada menos que uma paráfrase do Padre Nosso, que começava assim: "Bandeira nossa, que estais no céu..."

Não me lembro do resto, mas era divino. Ganhei novamente dez, e o professor fez questão de ler, ele mesmo, a minha obrinha para a classe estupefata. Essa composição não foi publicada porque O Itapemerim deixara de sair; mas duas meninas – glória suave! – tiraram cópias, porque acharam uma beleza.

Foi logo depois das férias de junho que o professor passou nova composição: "Amanhecer na fazenda". Ora, eu tinha passado uns quinze dias na Boa Esperança, fazenda de meu tio Cristóvão, e estava muito bem informado sobre os amanheceres da mesma. Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos, galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo... e no fim achei que ficava bonito, para fazer pendant com essa vaca mugindo (assim como "consoladora como a esperança" combinava com "ardente como o desejo"), um "burro zurrando". Depois fiz parágrafo, e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de ouro:

"Um burro zurrando escandalosamente".

Foi minha desgraça. O professor disse que daquela vez o senhor Braga o havia decepcionado, não tinha levado a sério o seu dever e não merecia uma nota maior do que cinco; e para mostrar como era ruim minha composição leu aquele final: "um burro zurrando escandalosamente". Foi uma gargalhada geral dos alunos, uma gargalhada que era uma grande vaia cruel. Sorri amarelo. Minha glória literária fora por água abaixo.

quarta-feira, dezembro 11

Há em cada um a semente

José Rosero

Crepúsculo

David Hettinge
O sol é viril, a noite é feminina e eu não sei de onde me vem tanta incompetência de viver a hora do crepúsculo. Sim, há o colégio interno, com os eucaliptos gesticulantes, perfumes vegetais mesclados na brisa, o trisso das andorinhas e as milícias da saudade a marchar dentro de meu coração patético e pateta. Mas não creio que só isso explique o meu medo e a minha reserva. Eu, que a despeito de tudo aprendi a amar a vida, a respeitar as pessoas que se sentem naturais dentro do mundo, não gosto do crepúsculo. Sinto um princípio de náusea, uma irrealidade que me enjoa corpo e alma, uma desconfiança, uma antipatia cósmica. Andei em muitas ruas, bebi vinhos violentos em cidades estrangeiras, dei guarda a uma estrada, senti vergonhosas vontades de chorar um pouco dentro de um trem ou de um avião, conheço o timbre dos sinos antigos, vi as figuras de minhas namoradas se desfazendo entre a luz e a noite, olhos arrogantes que de repente ficavam humildes, e tenho inveja dos que sabem aonde ir na hora do crepúsculo. E nas viagens rodoviárias, quando os companheiros se calam, e a música do rádio assume o mundo, e a gente se interroga o que fazer na vida. Se entro num bar, é como um autômato incoerente, cujo coração de lata se estiola. Posso amar tudo, ser tudo, fingir-me de tudo, mas não na hora descompassada do ocaso, quando não é, e a noite é nada. Todas as janelas se cercam de grades quando ele chega, todas as paisagens como se fossem vistas e recordadas com aflição, todos os pensamentos se contraem, absurdamente, todos os sentimentos se minimizam. A terra não é nada, apenas um drama cansado e de mau gosto. Ah, meu Cesário Verde querido, meu irmão, como sou a tua alma quando contemplo a tua Lisboa ao anoitecer! Como falei contigo sobre a soturnidade, o bulício, o Tejo, a maresia, o gás extravasado perturbando, os carros de aluguel, a cor monótona, o tinir de louças e talheres, os lojistas enfadados, as varinas hercúleas num cardume negro, o peixe podre, as burguesinhas do catolicismo, o chorar doente dos pianos, o cheiro salutar e honesto a pão no forno, e Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Robinson em minha ilha crepuscular, espero o naufrágio de todos os dias. O céu tem a cor das ratazanas, a hora é esquerda, torta, e não ousa dizer o seu nome. Penso nos entardeceres lentos do Paço no tempo do rei, nos pavões imperiais de São Cristóvão, e nós todos ainda mortos, poeira imperceptível no crepúsculo.
Paulo Mendes Campos, Diário Carioca 28/11/1958

Café da manhã

Hu Jongka 

Mudam-se os tempos

Piero Schirinzi
Os tempos mudaram muito nas últimas décadas – as novas tecnologias viraram tudo do avesso e criaram um homem diferente, menos virado para a paciência, o desfrutar, a calma, o esforço, a concentração. A literatura dita séria está a sofrer drasticamente com isto e os seus leitores serão cada vez menos. Alguém afirma que, agora, ficção é na Netflix e na HBO, mas sabemos que ler desenvolve outras capacidades, desde logo a da imaginação. Ler põe algo de nós nas coisas, e ver não, é receber e pronto. Por tudo isto e também pela falta de espaço, as grandes enciclopédias tornaram-se digitais e deixaram de imprimir-se em papel. E agora leio com espanto que uma colecção que em Espanha ombreava com a Pléiade francesa vai ser destruída e reduzida a tirinhas de papel. Trata-se das Obras Completas do Círculo de Lectores, empresa pertencente ao Grupo Planeta no país vizinho, que anunciou recentemente o seu fecho, já que se tornou perfeitamente obsoleto vender livros de porta em porta a leitores que não só não querem ler, como não têm onde guardar colecções encadernadas, pesadas, extensas… Günther Grass, Vargas Llosa, Juan Goytisolo, Manuel Vázquez-Montalbán… no lixo. É a mesma coisa por todo o lado. E, ainda que nos faça pena, crendo que alguém ainda as podia aproveitar, desenganemo-nos: já ninguém quer estes livros, porque já não há quase ninguém para os ler, sobretudo neste formato. Mudam-se os tempos, sim, e em certas coisas para pior.

segunda-feira, dezembro 9

Para começar a semana

Dulwich (Londres)

Minha rua

Era estreita a nossa rua. No verão de céu azul, os raios de sol coavam a manhã fresca. Não existiam fronteiras em nossa rua, pelo menos no quarteirão onde eu morava. As famílias pareciam uma só, tamanha a intimidade que existiam entre elas. Havia convívio harmonioso entre os vizinhos, fosse dia de festa ou de tristeza.

No tempo das férias escolares, havia nos passeios jogo de tampilha, pião e leilão de brinquedos. Jogar bola de gude ou bola era no meio da rua. Natural que durante o jogo surgissem disputas acaloradas, bate-boca, empurrões e até briga. Em pouco tempo tudo voltava ao normal. Os dias retomavam a sua temperatura agradável, como se nada de mais houvesse acontecido entre os que brigavam durante o jogo de futebol. Agora de vez em quando um nariz podia ficar quebrado, ao receber um murro bem dado, só porque o amigo caiu na besteira de ficar teimando e dizendo que ali na rua o estilingue mais certeiro não era o do irmão. No fim da tarde, o irmão chegava com a capanga cheia de passarinhos, eram abatidos com bala de estilingue no Jardim da Prefeitura ou em alguma roça próxima à cidade. O irmão no estilingue era mesmo um campeão. Ninguém ali na rua duvidasse da pontaria dele. Cada balaço que ele desferia acertava em passarinho pousado até em cocuruto de árvore alta.

Nossa rua ficava impregnada de um aroma verde, quando o homem passava com o tabuleiro de verduras na cabeça. Os ares coloridos, todos os dias, com o roxo da beterraba, o verde do repolho e o laranja da cenoura.

Era iluminada com a gritaria dos companheiros. Zoada havia de canto a canto. Corneta, apito, bangue-bangue, jogo de bola, pião rodava na mão e no chão.

Do que eu mais gostava era do jogo de bola. Quando a mulher gorda chegava ao batente da porta, segurando a bola, que ela no mesmo instante furava, não encontrava um menino sequer para perguntar quem foi o pestinha que acertou daquela vez a sua vidraça, dando-lhe outra vez um prejuízo danado.

Cedo, no outro dia, os companheiros voltavam ao jogo com bola de pano. Os lances aguerridos, rosto vermelho e suado, cabelos assanhados. Palavrão, bate-boca e, aos gritos, a comemoração da vitória.

A vidraça da janela de alguns dos moradores de nossa rua não deixaria de ser acertada.

Ó que saudade da minha rua! Hoje, vejo-a estreita e nem tão comprida. Outrora tão grande para mim e os companheiros.

O mundo ali cabia dentro das cores da verdura no tabuleiro.

Bastava-se no leilão dos brinquedos, troca de gibi ou figurinhas do álbum de artistas do cinema americano, bala de estilingue nos quintais frutíferos, para não se falar no jogo de bola.

Ah, viver era uma canção verde como verde todos os dias a gente ouvia a voz do verdureiro.

Verde na voz dos companheiros colhendo coentro nos passeios.

Abóbora nas valetas.

Couve-flor nos calçamentos.
Cyro de Mattos