terça-feira, julho 22

Leitura

 


Despedida

Meu pai leva-me à porta do famoso noturno para a cidade grande:

- Cuide-se, meu filho. É um mundo selvagem.

Esse verbo clamante no teu ouvido. Por delicadeza, perdi a minha voz. Ó profetas ó sermões!

- Longe da família, será você contra todos.

Homem não se beija nem abraça, nos apertamos duramente as mãos. Me instalo a uma das janelas, com a vidraça descida. Mais que me esforce, impossível erguê-la. Já não podemos falar. Esse pai dos pais ali na plataforma, mudo e solene. O trem não parte. Fumaça da estação? De repente ei-lo de olhos marejados.

E, sem querer, também eu comovido. Diante de mim o feroz tirano da família? Ditador da verdade, dono da palavra final? Primeira vez, em tantos anos, vejo um senhor muito antigo. Pobre velhinho solitário. o trem não parte. Meu pai saca o relógio do colete, dois giros na corda. Pressuroso, digo que se vá. Doente, não apanhe friagem. E ele sem escutar.

Olha de novo o relógio. Aceno que pode ir, não espere a partida. Quer ver a hora? Exibe o patacão na ponta da corrente dourada. Nosso último encontro, sei lá. E, ainda na despedida, o eterno equívoco entre nós. Maldita vidraça de silêncio a nos separar. Desta vez para sempre.
Dalton Trevisan, "Quem tem medo de vampiro?"

Hoje de madrugada

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
Raduan Nassar, Cadernos de Literatura Brasileira

Infância

Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
Carlos de Oliveira

Colheita

Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava.


A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.

Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.

Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.

Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.

Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.

A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.

Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.

Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.

Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.

Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?

Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.

Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.

Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.

Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.

Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.

Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.

— O que há na cozinha?

Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.

— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...

Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.

E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.

— De outro modo, como vingar-me deles?

Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.

E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.

À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.

Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.

Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.

Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-la ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.

Nélida Piñon

A ovelha negra

Havia um país onde todos eram ladrões.

À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado e encontrava a sua casa arrombada.

E assim todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeços, e não havia nem ricos nem pobres.

Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e lendo romances.

Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não subiam.

Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.

Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava vendo a água passar embaixo. Voltava para casa, e a encontrava roubada.

Em menos de uma semana o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas até aí tudo bem, porque era culpa sua; o problema era que seu comportamento criava uma grande confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém; assim sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava a casa intacta: a casa que o homem honesto devia ter roubado.

O fato é que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos que os outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia; assim iam ficando pobres.

Enquanto isso, os que tinham se tornado ricos pegaram o costume, eles também, de ir de noite até a ponte, para ver a água que passava embaixo. Isso aumentou a confusão, pois muitos outros ficaram ricos e muitos outros ficaram pobres.

Ora, os ricos perceberam que, indo de noite até a ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: “paguemos aos pobres para irem roubas para nós”. Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários, as percentagens: naturalmente, continuavam a ser ladrões e procuravam enganar-se uns aos outros. Mas, como acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e que mandavam roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de roubar, ficavam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais pobres dos pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres, e assim instituíram a polícia e constituíram as prisões.

Dessa forma, já poucos anos depois do episódio do homem honesto, não se falava mais de roubar ou de ser roubado, mas só de ricos ou de pobres; e, no entanto, todos continuavam a ser pobres.

Honesto só tinha havido aquele sujeito, e morrera logo, de fome.
Italo Calvino, "Um general na biblioteca"

segunda-feira, julho 21

O pão de cada dia

 


Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas.
Mario Quintana

As cocadas

Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.

Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando, atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.

Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível de noite, sonhava com as cocadas. De dia, as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguardando e de olho na terrina.

Batia os ovos, segurava a gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.

Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.

As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.

Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... e veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces sem interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.

Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.

Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida – de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.

Cora Coralina, " O Tesouro da Casa Velha"

Calor humano

Não, não fazia vermelho. Era quase de noite e estava ainda claro. Se pelo menos fosse vermelho à vista como o era intrinsecamente. Mas era um calor de luz sem cor, e parada. Não, a mulher não conseguia transpirar. Estava seca e límpida. E lá fora só voavam pássaros de penas empalhadas. Mas era um calor visível, se ela fechava os olhos para não ver o calor, então vinha a alucinação lenta simbolizando-o: via elefantes grossos se aproximarem, elefantes doces e pesados, de casca seca, embora molhados no interior da carne por uma ternura quente insuportável; eles eram difíceis de se carregarem a si próprios, o que os tornava lentos e pesados.

Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível – que era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E “eu te amo” era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.

Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros – e sobretudo boca voraz de nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada.

Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. “Eu vos amo, pessoas”, era frase impossível. A humanidade lhe era como uma morte eterna que no entanto não tinha o alívio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto tempo sem água e que virara ferro enferrujado. Há dois dias faltava água na cidade. Nada jamais fora tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus olhos diamantes, e de vibração parada. E Deus? Não. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito.

Enquanto isso era verão. Verão largo como um pátio vazio nas férias da escola. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no seu homem? Não, farpa na sola do pé. Filhos? Quinze filhos dependurados, sem se balançarem à ausência de vento. Ah, se as mãos começassem a se umedecer. Nem que houvesse água, por ódio não tomaria banho. Por ódio não havia água. Nada escorria. A dificuldade é uma coisa parada. É uma joia-diamante. A cigarra de garganta seca não parava de rosnar. E Deus se liquefez enfim em chuva? Não. Nem quero. Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível.

Sensível? Não se sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte parada, é a eternidade, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos da punição. Agora é a indiferença de um perdão. Não há mais julgamento. Não é o perdão depois de um julgamento. É a ausência de juiz e de condenado. E a morte, que era para ser uma única boa vez, não: está sendo sem parar. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio enxuto, quero é isto mesmo, que não chova.

E exatamente então ela ouve alguma coisa. É uma coisa também enxuta que a deixa ainda mais seca de atenção. É um rolar de trovão seco, sem nenhuma saliva, que rola mas onde? No céu absolutamente azul, nem uma nuvem de amor.

Deve ser de muito longe o trovão. Mas ao mesmo tempo vem um cheiro adocicado de elefantes grandes, e de jasmim da casa ao lado. A Índia invadindo, com suas mulheres adocicadas. Um cheiro de cravos de cemitério. Irá tudo mudar tão de repente? Para quem não tinha nem noite nem chuva nem apodrecimento de madeira na água – para quem não tinha senão pérolas, vai vir a noite, vai vir madeira enfim apodrecendo, cravo vivo de chuva no cemitério, chuva que vem da Malásia? A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Ela não percebe, a mulher, que o tremor é seu, como não percebera que aquilo que a queimava não era a tarde encalorada e sim o seu calor humano. Ela só percebe que agora alguma coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite. Mas não suporta a espera de uma passagem, e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz em duas lágrimas. E enfim o céu se abranda.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Arábia

A Rua North Richmond, por ser um lugar sem saída, era uma rua tranquila, exceto no horário em que a Escola dos Irmãos Cristãos liberava os meninos. Uma casa desabitada de dois andares erguia-se no final da rua, separada das vizinhas por um terreno quadrado. As outras casas da rua, conscientes de suas vidas decentes, olhavam umas para as outras com rostos morenos e imperturbáveis.

O antigo inquilino da nossa casa, um padre, morrera na sala de estar dos fundos. O ar, mofado por ter ficado fechado por muito tempo, pairava em todos os cômodos, e o depósito atrás da cozinha estava cheio de papéis velhos e inúteis. Entre eles, encontrei alguns livros encadernados, cujas páginas estavam enroladas e úmidas: O Abade, de Walter Scott, O Devoto Comungante e As Memórias de Vidocq. Gostei mais deste último porque suas folhas eram amarelas. O jardim selvagem atrás da casa continha uma macieira central e alguns arbustos dispersos, sob um dos quais encontrei a bomba de bicicleta enferrujada do falecido inquilino. Ele fora um padre muito caridoso; em seu testamento, deixara todo o seu dinheiro para instituições e os móveis de sua casa para sua irmã.


Quando os curtos dias de inverno chegavam, o crepúsculo caía antes que tivéssemos jantado direito. Quando nos encontrávamos na rua, as casas estavam sombrias. O espaço do céu acima de nós era da cor de um violeta em constante mudança e em direção a ele os postes da rua erguiam suas lanternas fracas. O ar frio nos feria e brincávamos até nossos corpos brilharem. Nossos gritos ecoavam na rua silenciosa. A sequência de nossas brincadeiras nos levava pelas vielas escuras e lamacentas atrás das casas, onde corríamos o desafio das tribos rudes das casas de campo, até as portas dos fundos dos jardins escuros e gotejantes, onde odores subiam dos cinzeiros, até os estábulos escuros e odoríferos onde um cocheiro alisava e penteava o cavalo ou tocava música nos arreios afivelados. Quando voltávamos para a rua, a luz das janelas da cozinha iluminava as áreas. Se meu tio fosse visto virando a esquina, nos escondíamos na sombra até vê-lo abrigado em segurança. Ou se a irmã de Mangan saísse à porta para chamar o irmão para o chá, nós a observávamos da nossa sombra, espiando a rua de um lado para o outro. Esperávamos para ver se ela permaneceria ou entraria e, se permanecesse, deixávamos a nossa sombra e subíamos resignadamente os degraus de Mangan. Ela nos esperava, sua figura definida pela luz da porta entreaberta. O irmão sempre a provocava antes de obedecer, e eu ficava parado junto à grade, olhando para ela. Seu vestido balançava conforme ela movia o corpo e a mecha macia de seus cabelos balançava de um lado para o outro.

Todas as manhãs, eu me deitava no chão da sala de estar, observando a porta dela. A persiana estava abaixada até quase dois centímetros do caixilho, para que eu não pudesse ser vista. Quando ela saiu pela porta, meu coração disparou. Corri para o corredor, peguei meus livros e a segui. Mantive sua figura morena sempre em meus olhos e, quando nos aproximamos do ponto em que nossos caminhos divergiam, apressei o passo e a ultrapassei. Isso acontecia manhã após manhã. Eu nunca havia falado com ela, exceto por algumas palavras casuais, e ainda assim seu nome era como um chamado para todo o meu sangue tolo.

Sua imagem me acompanhava até nos lugares mais hostis ao romance. Nas noites de sábado, quando minha tia ia ao mercado, eu tinha que ir carregar alguns pacotes. Caminhávamos pelas ruas movimentadas, empurrados por homens bêbados e mulheres negociando, em meio aos xingamentos dos trabalhadores, às ladainhas estridentes dos balconistas que guardavam os barris de bochechas de porco, aos cânticos nasais dos cantores de rua, que cantavam um "venha-tudo" sobre O'Donovan Rossa ou uma balada sobre os problemas em nossa terra natal. Esses ruídos convergiam em uma única sensação de vida para mim: eu imaginava que carregava meu cálice em segurança através de uma multidão de inimigos. Seu nome saltava aos meus lábios em momentos estranhos, em orações e louvores que eu mesmo não entendia. Meus olhos frequentemente se enchiam de lágrimas (eu não sabia por quê) e, às vezes, uma torrente do meu coração parecia transbordar para o meu peito. Eu pensava pouco no futuro. Eu não sabia se algum dia falaria com ela ou não, ou, se falasse, como poderia lhe contar sobre minha confusa adoração. Mas meu corpo era como uma harpa, e suas palavras e gestos eram como dedos percorrendo as cordas.

Certa noite, fui à sala de estar dos fundos onde o padre havia morrido. Era uma noite escura e chuvosa, e não havia som algum na casa. Através de uma das vidraças quebradas, ouvi a chuva batendo na terra, as finas agulhas incessantes de água brincando nos canteiros encharcados. Alguma lâmpada distante ou janela iluminada brilhava abaixo de mim. Eu estava grato por poder ver tão pouco. Todos os meus sentidos pareciam desejar se ocultar e, sentindo que estava prestes a escapar deles, apertei as palmas das mãos até que tremessem, murmurando: "Ó amor! Ó amor!" muitas vezes.

Finalmente ela falou comigo. Quando me dirigiu as primeiras palavras, fiquei tão confuso que não sabia o que responder. Ela me perguntou se eu iria para a Arábia. Esqueci se respondi sim ou não. Seria um bazar esplêndido, disse ela; ela adoraria ir.

“E por que você não pode?” perguntei.

Enquanto falava, girava uma pulseira de prata no pulso. Não podia ir, disse ela, porque haveria um retiro naquela semana em seu convento. Seu irmão e outros dois meninos estavam brigando por seus barretes e eu estava sozinho na grade. Ela segurava uma das pontas, curvando a cabeça em minha direção. A luz do lampião em frente à nossa porta incidiu sobre a curva branca de seu pescoço, iluminou seus cabelos que repousavam ali e, caindo, iluminou a mão sobre a grade. Ela caiu sobre um lado de seu vestido e atingiu a borda branca de uma anágua, apenas visível enquanto ela permanecia à vontade.

"Está tudo bem para você", ela disse.

“Se eu for”, eu disse, “trarei algo para você”.

Quantas loucuras inumeráveis devastaram meus pensamentos, tanto de vigília quanto de sono, depois daquela noite! Eu desejava aniquilar os tediosos dias intermediários. Eu me irritava com o trabalho da escola. À noite, no meu quarto, e de dia, na sala de aula, sua imagem se interpunha entre mim e a página que eu me esforçava para ler. As sílabas da palavra "Araby" me eram chamadas através do silêncio em que minha alma se deleitava e lançavam sobre mim um encanto oriental. Pedi permissão para ir ao bazar no sábado à noite. Minha tia ficou surpresa e esperava que não fosse algum caso maçônico. Respondi a poucas perguntas na aula. Observei o rosto do meu mestre passar da amabilidade à severidade; ele esperava que eu não estivesse começando a ficar ocioso. Eu não conseguia organizar meus pensamentos errantes. Eu mal tinha paciência com o trabalho sério da vida que, agora que se interpunha entre mim e meu desejo, me parecia uma brincadeira de criança, uma brincadeira de criança feia e monótona.

Na manhã de sábado, lembrei meu tio de que queria ir ao bazar à noite. Ele estava remexendo no cabideiro, procurando a escova para chapéus, e me respondeu secamente:

“Sim, rapaz, eu sei.”

Como ele estava no corredor, não pude ir até a sala de estar e me deitar perto da janela. Saí de casa de mau humor e caminhei lentamente em direção à escola. O ar estava impiedosamente frio e meu coração já estava me dando uma dor de cabeça.

Quando cheguei em casa para jantar, meu tio ainda não tinha chegado. Ainda era cedo. Fiquei olhando para o relógio por algum tempo e, quando seu tique-taque começou a me irritar, saí do quarto. Subi a escada e cheguei à parte superior da casa. Os cômodos altos, frios, vazios e sombrios me libertaram e eu ia de cômodo em cômodo cantando. Da janela da frente, vi meus companheiros brincando lá embaixo na rua. Seus gritos me chegavam enfraquecidos e indistintos e, encostando minha testa no vidro frio, olhei para a casa escura onde ela morava. Posso ter ficado lá por uma hora, sem ver nada além da figura vestida de marrom projetada pela minha imaginação, tocada discretamente pela luz do lampião no pescoço curvo, na mão sobre o corrimão e na barra abaixo do vestido.

Quando desci novamente, encontrei a Sra. Mercer sentada perto da lareira. Era uma velha tagarela, viúva de um penhorista, que colecionava selos usados para algum propósito piedoso. Tive que suportar as fofocas da mesa de chá. A refeição se prolongou por mais de uma hora e meu tio ainda não apareceu. A Sra. Mercer levantou-se para ir embora: lamentava não poder esperar mais, mas já passava das oito horas e ela não gostava de ficar fora até tarde, pois o ar da noite lhe fazia mal. Depois que ela saiu, comecei a andar de um lado para o outro na sala, cerrando os punhos. Minha tia disse:

“Receio que você possa adiar seu bazar para esta noite de Nosso Senhor.”

Às nove horas, ouvi a chave do meu tio na porta do corredor. Ouvi-o falando sozinho e ouvi o aparador balançar ao receber o peso do seu sobretudo. Eu conseguia interpretar esses sinais. Quando ele estava no meio do jantar, pedi-lhe que me desse o dinheiro para ir ao mercado. Ele tinha esquecido.

“As pessoas já estão na cama e depois da primeira noite de sono”, disse ele.

Eu não sorri. Minha tia lhe disse energicamente:

"Você não pode dar o dinheiro a ele e deixá-lo ir? Você já o prendeu até tarde demais."

Meu tio disse que lamentava muito ter esquecido. Disse que acreditava no velho ditado: "Só trabalho e nenhuma diversão fazem de Jack um menino chato". Perguntou-me para onde eu ia e, quando lhe contei pela segunda vez, perguntou-me se eu conhecia "O Adeus do Árabe ao seu Corcel". Quando saí da cozinha, ele estava prestes a recitar os primeiros versos da peça para minha tia.

Segurei firmemente um florim na mão enquanto caminhava pela Rua Buckingham em direção à estação. A visão das ruas apinhadas de compradores e ofuscadas pelo gás me lembrou o propósito da minha viagem. Sentei-me em um vagão de terceira classe de um trem deserto. Após um atraso intolerável, o trem partiu lentamente da estação. Seguiu em frente, arrastando-se entre casas em ruínas e sobre o rio cintilante. Na Estação Westland Row, uma multidão de pessoas se espremia contra as portas do vagão; mas os carregadores as afastaram, dizendo que era um trem especial para o bazar. Fiquei sozinho no vagão vazio. Em poucos minutos, o trem parou ao lado de uma plataforma de madeira improvisada. Saí para a rua e vi, pelo mostrador iluminado de um relógio, que faltavam dez minutos para as dez. À minha frente, havia um grande edifício que ostentava o nome mágico.

Não consegui encontrar nenhuma entrada de seis pence e, temendo que o bazar estivesse fechado, entrei rapidamente por uma catraca, entregando um xelim a um homem de aparência cansada. Encontrei-me em um grande salão cercado a metade de sua altura por uma galeria. Quase todas as barracas estavam fechadas e a maior parte do salão estava às escuras. Reconheci um silêncio como o que permeia uma igreja após um culto. Entrei timidamente no centro do bazar. Algumas pessoas estavam reunidas em torno das barracas que ainda estavam abertas. Diante de uma cortina, sobre a qual as palavras Café Chantant estavam escritas em lâmpadas coloridas, dois homens contavam dinheiro em uma bandeja. Ouvi a queda das moedas.

Lembrando-me com dificuldade do motivo da minha visita, fui até uma das barracas e examinei vasos de porcelana e jogos de chá floridos. Na porta da barraca, uma jovem conversava e ria com dois jovens cavalheiros. Notei seus sotaques ingleses e ouvi vagamente a conversa.

“Oh, eu nunca disse uma coisa dessas!”

“Ah, mas você fez!”

“Ah, mas eu não fiz!”

“Ela não disse isso?”

“Sim. Eu a ouvi.”

“Ah, tem uma… mentira!”

Observando-me, a jovem se aproximou e perguntou se eu queria comprar alguma coisa. O tom de sua voz não era encorajador; ela parecia ter falado comigo por dever. Olhei humildemente para os grandes jarros que se erguiam como guardas orientais de cada lado da entrada escura da barraca e murmurei:

“Não, obrigado.”

A jovem mudou a posição de um dos vasos e voltou para os dois rapazes. Começaram a conversar sobre o mesmo assunto. Uma ou duas vezes, a jovem olhou para mim por cima do ombro.

Demorei-me diante de sua barraca, embora soubesse que minha permanência seria inútil, para tornar meu interesse por suas mercadorias ainda mais real. Então, virei-me lentamente e caminhei pelo meio do bazar. Deixei as duas moedas caírem sobre a nota de seis pence em meu bolso. Ouvi uma voz gritar de uma das extremidades da galeria que a luz estava apagada. A parte superior do salão estava completamente escura.

Olhando para a escuridão, vi-me como uma criatura movida e ridicularizada pela vaidade; e meus olhos ardiam de angústia e raiva.

James Joyce, "Os dublinenses"

domingo, julho 20

É domingo!


 

A forma justa


Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Sophia de Mello Breyner Andresen

Um grande português

Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.

Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.

Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: "Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar.
O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma." "Deixa ver", disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: "Para que quero eu isso?", disse; "isso nem a cegos se passa." O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.


Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis.

No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.

Houve então a troca de outro olhar.

O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.

Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de

fulano, e "estando nós a jantar" (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado. . .), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.

Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira. . . E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar. Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.

Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. "E se eu tivesse pago em notas de cem", rematou o Vigário, "nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam." E, como era de justiça, foi mandado em paz.

O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do "conto de réis do Manuel Vigário" passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem. Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

Fernando Pessoa

Fita verde no cabelo

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam.

Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.

Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia.

Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.

Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.

Então, ela, mesma, era quem se dizia:

— Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.

A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.

E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em pós.

Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.

Vinha sobejadamente.

Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:

— “Quem é?”

— “Sou eu…” — e Fita-Verde descansou a voz. — “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.”

Vai, a avó, difícil, disse: — “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.”

Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.

A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo:

— “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.”

Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:

— “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”

— “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…” — a avó murmurou.

— “Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”

— “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…” — a avó suspirou.

— “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”

— “É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha…” — a avó ainda gemeu.

Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: — “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…”

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

João Guimarães Rosa, Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo ( 8/2/1964)

A última visita do cavaleiro enfermo

Todos o chamavam de Cavaleiro Negro, porém ninguém jamais soube seu verdadeiro nome. Depois de seu inopinado desaparecimento, dele não restou nada mais do que a lembrança de seus sorrisos e um retrato pintado por Sebastiano del Piombo que o representava envolvido em uma peliça e com uma das mãos enluvada pendendo suavemente como se estivesse adormecido. Alguns dos que mais ò estimaram (e eu, um dos poucos entre eles) recordam sua cútis amarelo pálido, transparente, a leveza quase feminina de seus passos e a habitual languidez dos olhos.

Na verdade, era um semeador de assombros. Sua presença dava um calor fantástico às coisas mais simples; quando sua mão tocava algum objeto, parecia que este entrava no mundo dos sonhos...

Ninguém lhe perguntou qual era o seu mal e porque não se cuidava.

Caminhava sempre, sem parar, dia e noite. Ninguém soube jamais onde era sua casa ou conheceu seus pais e seus irmãos. Apareceu um dia na cidade, e passados alguns anos, em outro dia, desapareceu.

Na véspera, quando o céu começava a iluminar-se, veio ao meu quarto despertar-me. Senti a carícia de sua luva em minha fronte, e o vi, com seu sorriso que mais parecia a lembrança de um sorriso, tendo os olhos mais distraídos do que de costume. Compreendi que havia passado a noite em claro, aguardando com ansiedade o amanhecer: tremiam-lhe as mãos e todo seu corpo parecia tomado pela febre.

Perguntei a ele se sua doença o fazia sofrer mais do que nos outros dias.

— Crês então, como todos os outros, que eu tenho uma enfermidade? Por que não dizer que eu sou uma enfermidade? Nada me pertence, porém eu sou de alguém e há alguém a quem pertenço.

Acostumado as suas estranhas digressões, nada disse. Acercou-se de minha cama e tocou-me outra vez a fronte com sua luva.

— Não tens o menor sinal de febre e estás perfeitamente são e tranquilo. Talvez isto te espante, mas posso dizer quem sou. E talvez não possa voltar a repeti-lo.
Deixou-se cair em uma poltrona e prosseguiu em voz mais alta: — Não sou um homem real, com ossos e músculos, gerado por homens. Não sou mais do que a figura de um sonho. Há uma imagem de Shakespeare que é, com referência a mim, literal e tragicamente exata: Sou feito da mesma matéria de que são feitos os sonhos! Existo porque há alguém que me sonha; há alguém que dorme e sonha e me vê agir e viver e mover-me, e neste momento sonha que eu digo tudo isto.

Quando começou a sonhar-me, comecei a existir: hoje sou hóspede de suas grandes fantasias noturnas, tão intensas que me tornaram visível àqueles que estão acordados. O mundo da vigília, porém, não é o meu.

Minha verdadeira vida é a que transcorre na alma do meu adormecido criador. Não recorro a enigmas nem a símbolos; o que digo é verdade.

Ser ator de um sonho não é o que mais me atormenta. Há poetas que disseram que a vida dos homens é a sombra de um sonho e há filósofos que sugeriram que a realidade é uma alucinação. Porém, quem é aquele que me sonha? Quem é este ser que me fez surgir e que ao despertar me apagará? Quantas vezes penso nesse meu dono que dorme!... A pergunta me agita desde que descobri de que estou feito.

Compreenderás a importância que este problema tem para mim.

As personagens dos sonhos desfrutam de bastante liberdade; tenho também os meus caprichos. A princípio, me aterrorizava a ideia de despertá-lo, quer dizer, de aniquilar-me. Levei uma vida virtuosa. Até que me cansei da humilhante qualidade de espetáculo e desejei ardentemente o que antes temia: despertá-lo. E não deixei de cometer delitos. Porém aquele que me sonha, não se espantará com o que faz tremer os demais homens? Regozija-se com as visões terríveis, ou não lhes dá importância? Nesta monótona ficção, digo ao meu sonhador que sou um sonho: quero que ele sonhe que está sonhando. Não existem homens que acordam quando se dão conta de que estão sonhando?

Quando, quando conseguirei isso?

O Cavaleiro Enfermo colocava e tirava a luva da mão esquerda; não sei se esperava que, de um momento para outro, algo de atroz acontecesse.

— Acreditas que eu esteja mentindo? Por que eu não posso desaparecer? Console-me; diga algo, tenha piedade deste aborrecido espectro.

Não atinei dizer coisa alguma. Deu-me sua mão, parecendo-se mais alto do que antes, e sua pele era diáfana. Disse algo em voz baixa, saiu do meu quarto, e desde então somente uma pessoa pode vê-lo.
Giovanni Papini, "O trágico cotidiano"

sábado, julho 19

Cadeado eletrônico

 


Dezembro no bairro

O cinema no porão da nossa casa não tinha dado certo porque antes mesmo do intervalo o Pedro Piolho pôs-se a berrar que não estava enxergando nada, que aquilo tudo era uma grandessíssima porcaria. Queria o dinheiro de volta. Os outros meninos também começaram a vaiar, ameaçando quebrar as cadeiras. Foi quando apareceu minha mãe mandando que toda a gente calasse a boca. E exigindo que devolvêssemos o dinheiro das entradas. Proibiu ainda que fizéssemos outras sessões iguais. E levou a cesta de pão que eu segurava no colo, estava combinado que no intervalo eu devia sair anunciando “Balas, bombons, chocolates”!... Embora houvesse na cesta apenas um punhado de rebuçados de Lisboa. Caramelo; bala.

— Você não presta como chefe — disse meu irmão ao Maneco. — Com que dinheiro agora vamos fazer o presépio? Eu avisei que o projetor não estava funcionando. Não avisei?

Maneco era o filho do Marcolino, um vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais negros que já vi em minha vida.

— Mas só falta comprarmos o céu — retrucou o Maneco. — Papel de seda azul para o céu e o papel prateado para as estrelas, eu já disse que faço as estrelas. Não fiz da outra vez?

— Não quero saber de nada. Agora o chefe sou eu.

— É o que vamos decidir lá fora — ameaçou Maneco avançando para o meu irmão.

Foram para a rua. Em silêncio seguimos todos atrás. A luta travou-se debaixo da árvore, uma luta desigual porque meu irmão, que era um touro de forte, logo de saída atirou Maneco no chão e montou em cima. Mordeu-lhe o peito.

— Pede água! Pede água!

Foi aí que apareceu o Marcolino. Agarrou o filho pelos cabelos, sacudiu-o no ar e deu-lhe um bofetão que o fez rodopiar até se estender no meio da calçada.

— Em casa a gente conversa melhor — disse o homem apertando o cinto das calças.


A noite estava escura, mas mesmo assim pudemos ver que ele estava bêbado.

— Vamos embora, anda!

Maneco limpou na mão o sangue do nariz. Seus cabelos formavam uma espécie de capacete negro caindo na testa até as sobrancelhas. Fechou no peito a camisa rasgada e seguiu o pai.

— Os meninos já entraram? — perguntou minha mãe quando me viu chegar.

— Estão se lavando lá no tanque. Ela ouvia uma novela no rádio. E cerzia meias.

— Que é que vocês estavam fazendo?

— Nada...

— O Maneco estava com vocês?

— Só um pouco, foi embora logo.

— Esse menino é doente e essa doença pega, já avisei mil vezes! Não mandei se afastarem dele, não mandei?

Um pobre de um menino pesteado e com o pai daquele jeito...

— É que o céu do nosso presépio queimou, mãe! Não sei quem acendeu aquela vela e o céu pegou fogo. O Natal está chegando e só ele é que sabe cortar as estrelas, só ele é que sabe.

— Vocês andam impossíveis! Continuem assim e veremos se vai ter presente no sapato.

Já sabíamos que o Papai Noel era ela. Ou então, o pai, quando calhava de voltar das suas viagens antes do fim do ano. Mas ambos insistiam em continuar falando no santo que devia descer pela lareira, a tal lareira que por sinal nunca tivemos. Então a gente achava melhor entrar no jogo com a maior cara-de-pau do mundo. Eu chegava ao ponto de escrever bilhetinhos endereçados a Papai Noel pedindo-lhe tudo o que me passava pela cabeça. Minha mãe lia os bilhetes, guardava-os de novo no envelope e não dizia nada. Já meus irmãos, mais audaciosos, tentavam forçar o cadeado da cômoda onde ela ia escondendo os presentes: enfiavam pontas de faca nas frestas das gavetas, cheiravam as frestas, trocavam ideias sobre o que podia caber lá dentro e se torciam de rir com as obscenidades que prometiam escrever nas suas cartas. Mas quando chegava dezembro, nas vésperas da grande visita, ficavam delicadíssimos. Faziam aquelas caras de piedade e engraxavam furiosamente os sapatos porque estava resolvido que Papai Noel deixaria uma barata no sapato que não estivesse brilhando. Nesse Natal pensamos em ganhar algum dinheiro com o tal cinema no porão. Mas o projetor não projetava nada, foi aquele vexame. Restava agora o recurso do presépio com entrada paga, eu ficaria na porta chamando os possíveis visitantes com minha bata de procissão e asas de anjo.

— E o céu? — lembrou meu irmão lançando um olhar desconfiado na direção de Maneco. — Como vai ser o céu?

Estávamos sentados nos degraus de pedra da escadaria da igreja. Meus irmãos tinham ido me buscar depois da aula de catecismo e agora tratávamos dos nossos assuntos, tão pasmados quanto as moscas estateladas em nosso redor, tomando sol. Pareciam tão inertes que davam a impressão de que poderíamos segurá-las pelas asas. Mas sabíamos que nenhum de nós prenderia qualquer uma delas assim naquela aparente abstração.

— Eu já prometi que faço as estrelas, dou o papel prateado das estrelas — disse Maneco riscando com a ponta da unha as pernas magras, com marcas de cicatrizes. Baixou a cara amarela. — Já andei tirando areia de uma construção, está num caixotinho lá em casa, uma areia branca, limpa. Tem areia à beça.

— Então você dá o papel.

— Dou o prateado das estrelas, estrela tem que ser prateada. O papel azul do céu é com vocês que já estou dando muito.
Confabulamos em voz baixa. E ficou decidido que no dia seguinte iríamos catar alguma coisa num palacete vago da avenida Angélica, na hora em que o vigilante devia sair para almoçar. Mas o Maneco não apareceu. Durante três dias esperamos por ele.

— Ficou com medo — disse meu irmão. — É um covarde, uma besta.

O Polaquinho protestou: — Mas ele está doente, não pode nem se levantar. Meu pai acha que ele vai morrer logo.

— Não interessa, prometeu e não cumpriu, é um covarde. Vamos nós e pronto.

Entramos pela janela dos fundos, que estava aberta, enfiamos numa sacola de feira todas as lâmpadas e maçanetas de porta que pudemos desatarraxar e fugimos antes que o vigilante voltasse. Quando chegamos em casa, fomos retos para o porão e abrimos a sacola. A verdade é que longe do palacete, isoladas dos grandes lustres de cristal e daquelas portas trabalhadas, as lâmpadas e maçanetas tinham perdido todo o prestígio: vistas assim de perto, não passavam de maçanetas gastas. É de um monte de lâmpadas empoeiradas e que talvez não se acendessem nunca. Esfreguei na palma da mão a mais escura delas: e se fosse a lâmpada mágica de Aladim? O que eu pediria ao esfumaçado gênio de calças bufantes e argolas de ouro?

— Depressa, gente, depressa! Tem um Papai Noel lá na loja do Samuel —anunciou o Marinho chegando quase sem fôlego.

— Um Papai Noel de verdade? Na loja do Samuel? Deixe de mentira...

— Mentira nada! Venham depressa que ele está lá com a barba branca, a roupa vermelha, juro que é verdade!

— Um Papai Noel na loja do Samuel, a loja mais mambembe do bairro?

— Se for mentira, você me paga — ameaçou o Polaquinho encostando o punho fechado no queixo do Marinho.

— Quero ficar cego se estou mentindo!

Esse mesmo juramento ele fazia quando contava as piores mentiras. Mas o fato é que já estávamos há muito tempo ali parados diante da sacola aberta, sem nos ocorrer um destino a dar àquilo tudo. Era preciso fazer outra coisa. Fomos atrás do Marinho, que ia falando na maior agitação, descrevendo o capuz vermelho, a bata debruada de algodão branco, como aparecia nas ilustrações. Quando dobramos a esquina, ficamos de boca aberta, olhando: lá estava ele de carne e osso, a sepavonear de um lado para outro sob o olhar radiante de Samuel, na porta da loja. Fomos nos aproximando devagar. Sacudindo um pequeno sino dourado, o Papai Noel alisava a barba postiça e dizia gracinhas ao filho de um tipo que parecia ter dinheiro.

— Não quer encomendar nada a este Papai Noel? Vamos, queridinho, faça seu pedido... Uma bola? Um patinete?

— Estou conhecendo esse cara — resmungou o Polaquinho apertando os olhos. — Já vi ele em algum lugar...

Sentindo-se observado, o homem deu-nos as costas enquanto estendia a mão enluvada na direção do menino. Fizemos a volta até vê-lo de frente. Foi o bastante para o homem esquivar-se de novo, fingindo arrumar os brinquedos dependurados na porta. Essa segunda manobra alertou-nos. Fomos nos aproximando assim com ar de quem não estava querendo nada. O queixo e a boca não se podiam ver sob o emaranhado do algodão da barba. O gorro vermelho também escondia toda a cabeça. Mas, e aqueles ombros curvos e aquele jeito assim balanceado de andar? Era um conhecido, sem dúvida. Mas quem? E por que nos evitava, por quê? Penso agora que se ele não tivesse disfarçado tanto, não teríamos desconfiado de nada: seria mais um Papai Noel como dezenas de outros que víamos andando pela cidade. Mas aquela preocupação de se esconder acabou por denunciá-lo. Ficamos na maior excitação: ele estava com medo. Nunca nos sentimos tão poderosos.

— Esse filho-da-mãe é aqui do bairro — cochichou meu irmão. — Dou minha cabeça a cortar como ele é daqui do bairro.
Polaquinho olhava agora para os pés dele, para aqueles sapatos deformados sob as perneiras de oleado preto fingindo bota. Os sapatos! Aqueles sapatos velhos, sapatos de andarilho, eram a própria face do homem. Jamais sapato algum acabou por adquirir tão fielmente as feições do dono: era o pai de Maneco.

— Marcolino!

Ele voltou-se como se tivesse sido golpeado pelas costas.

Desatamos a rir e a gritar, era o malandro do Marcolino fazendo de Papai Noel, era o Marcolino!...

— Marcolino, eh! Marcolino!... Tira a barba, Marcolino!

A alegria da descoberta nos fez delirantes, pulávamos e cantávamos aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas, "Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! Em vão ele tentou prosseguir representando o seu papel. Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua vergonha. Sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e ficaram olhando e rindo.

— Molecada suja! — gritou o Samuel saindo da loja. Sacudiu os punhos fechados. — Fora daqui seus ladrõezinhos! Fora!

Fugimos. Para voltar em seguida mais exaltados, com Firpo que apareceu de repente correndo e latindo feito louco, investindo às cegas por entre nossas pernas. Gritávamos compassadamente, com todas as forças: — Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!...Ele então arrancou a barba. Arrancou o gorro, arrancou a bata e atirou tudo no chão. Pôs-se a pisotear em cima, a pisotear tão furiosamente que o Samuel não pensou sequer em impedir, ficou só ali parado, olhando. E dessa vez o homem não tinha bebido, era raiva mesmo, uma raiva tamanha que chegou a nos assustar, quando vimos sua cara amarfanhada, branca. Em meio ao susto que nos fez calar, ocorreu-me pela primeira vez o quanto o Maneco era parecido com o pai quando ficava assim furioso, ah, eram iguais aqueles capacetes de cabelo desabando até as sobrancelhas negras. Quando se cansou de pular em cima da fantasia, foi-se embora naquele andar gingado, a fralda da camisa fora da calça, os sapatões esparramados. Samuel entrou de novo na loja. Fecharam-se as janelas. Firpo saiu correndo, levando a carapuça vermelha nos dentes, enquanto o vento espalhava o algodão da barba por todo o quarteirão. Polaquinho apanhou alguns fiapos e grudou-os com cuspe no queixo, mas ninguém achou graça. Voltamos à nossa sacola de maçanetas e lâmpadas. No dia seguinte, um outro Papai Noel mais baixo e mais gordo passeava diante da loja. Olhou-nos com ar ameaçador, mas seguimos firmes, esse nós não conhecíamos. Depois do jantar, meu irmão instalou-se em cima da árvore na calçada, diante da nossa casa. Abriu a folhagem e ficou olhando lá de cima.

— Boca-de-forno!

— Forno! — repetimos fazendo continência.

— Fareis tudo o que o vosso mestre mandar?

— Faremos com muito gosto!

— Quero que vocês entrem no porão do Maneco, gritem duas vezes Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! e voltem correndo. Já!

Saímos em disparada pela rua afora. O portão do cortiço estava apenas cerrado. Duas pretas gordas conversavam refesteladas em cadeiras na calçada. Empurramos devagarinho a portinhola carcomida. Entramos. E paramos assustados no meio do porão de paredes encardidas e trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num colchão com a palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo de esconder qualquer coisa debaixo do lençol. Tinha na mão uma tesoura, devia estar cortando o papel que escondeu. Brincadeira em que uma criança, o "mestre", distribui tarefas para as outras. Sob a luz débil da lamparina em cima do caixotinho ele me pareceu completamente amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a cara.

— Seus traidores! — gritou com voz rouca. — Que é que vocês querem aqui, seus traidores! Traidores!

Morreu na semana seguinte, foi essa a última vez que o vimos. Fomos saindo em silêncio e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para trás. Ele fungava por entre as lágrimas enquanto procurava esconder debaixo do lençol a ponta de uma estrela de papel prateado.
Lygia Fagundes Telles

O melhor amigo de um garoto

– Onde está Jimmy, querida? – perguntou o Sr. Anderson.

– Lá fora, na cratera – disse a Sra. Anderson. – Ele está bem. Está junto com Robobo… Sabe se já chegou?

– Chegou. Está na estação de foguetes, fazendo os testes. Na realidade, eu mesmo mal posso esperar para vê-lo. Não vi nenhum de verdade desde que deixei a Terra, quinze anos atrás. Os que passaram nos filmes não contam.

– Jimmy nunca viu nenhum – disse a Sra. Anderson.

– Porque ele nasceu na Lua e não pode ir à Terra. E é por isso que estou trazendo um para cá. Acho que é o primeiro a aparecer na Lua.

– Custou bastante caro – disse a Sra. Anderson com um ligeiro suspiro.

– Manter Robobo também não é barato – disse o Sr. Anderson.

Jimmy estava lá fora, na cratera, como sua mãe tinha dito. Pelos padrões da Terra, ele era espigado, um tanto alto para os seus dez anos de idade. Seus braços e pernas eram compridos e ágeis. Parecia mais gordo e troncudo, vestido com o traje espacial, mas podia lidar com a gravidade lunar como nenhum ser humano, nascido na Terra, seria capaz. O pai não podia acompanhar-lhe os passos quando ele esticava as pernas e entrava no salto de Canguru.

A face exterior da cratera inclinava-se para o sul, e a Terra, que surgia baixa no céu meridional (onde sempre surgia, quando vista da Cidade Lunar) estava quase cheia, de modo que todo o declive da cratera ficava brilhantemente iluminado.

O declive era suave e mesmo o peso do traje espacial não impedia que Jimmy disparasse em cima dele num salto flutuante que fazia a gravidade parecer não existente.

– Venha, Robobo – ele gritou.

Robobo, que podia ouvi-lo pelo rádio, guinchou e pulou atrás.

Jimmy, embora fosse ágil, não podia correr mais depressa que Robobo, que não precisava de um traje espacial e tinha quatro pernas e tendões de aço. Robobo navegava sobre a cabeça de Jimmy, dando saltos imensos e aterrando quase sob os pés do garoto.

– Não precisa se exibir, Robobo – disse Jimmy – e não saia de vista.

Robobo guinchou outra vez o guincho especial que significava “Sim”.

– Eu não confio em você, seu enrolador – gritou Jimmy, subindo num último salto, que o conduziu sobre a curva da beira superior da parede da cratera, e o largou do outro lado, num declive interno.

A Terra mergulhou abaixo do topo da parede da cratera e, de imediato, ficou escuro como breu em volta de Jimmy. Uma escuridão amistosa e quente, que dissipava a diferença entre solo e céu, exceto pelo brilho das estrelas.

Na verdade, Jimmy não devia brincar no lado escuro da parede da cratera. Os adultos diziam que era perigoso, mas isso acontecia porque nunca estiveram ali. O chão era macio e ondulado, e Jimmy conhecia a localização exata de cada uma das poucas rochas.

Além disso, como podia ser perigoso correr no escuro se Robobo estava bem ali a seu lado, pulando em volta, guinchando e cintilando? Mesmo sem cintilar, Robobo podia dizer onde estava, e onde Jimmy estava, pelo radar. Jimmy não podia se machucar enquanto Robobo estivesse por perto, detendo-o quando ele se aproximava demais de uma rocha, ou pulando sobre ele para mostrar o quanto o amava, ou circulando em volta e guinchando baixo e assustado quando Jimmy se escondia atrás de uma rocha, embora nessas ocasiões Robobo soubesse todo o tempo, e suficientemente bem, onde ele estava. Certa vez, Jimmy se esticou imóvel no chão e fingiu estar ferido. Robobo acionou o rádio alarme e o pessoal da Cidade Lunar chegou ali às pressas. O pai de Jimmy disse-lhe poucas e boas sobre aquele pequeno embuste, e Jimmy nunca mais o repetiu.

Quando estava se lembrando disso, Jimmy ouviu a voz do pai no seu rádio individual de ondas longas.

– Jimmy, volte. Tenho uma coisa para lhe contar.

Jimmy tirou o traje espacial e se lavou. Você sempre precisa se lavar quando vem de fora. Mesmo Robobo tinha de ser borrifado, mas ele gostava disso. Ficava de gatinhas, o pequeno corpo, com menos de meio metro de comprimento, tremia e exibia uma minúscula cintilação. A cabecinha, sem boca, possuía dois grandes olhos vidrados e uma protuberância onde ficava o cérebro. Ele guinchou até ouvir a voz do Sr. Anderson:

– Quieto, Robobo!

O Sr. Anderson sorria.

– Temos uma coisa para você, Jimmy. Ainda está na estação de foguetes, mas estará conosco amanhã, depois de todos os testes terminarem. Achei que tinha de lhe contar isso agora.

– É da Terra, papai?

– Um cachorro da Terra, filho. Um cachorro de verdade. Um cãozinho “terrier” escocês. O primeiro cachorro na Lua. Não precisará mais de Robobo. Não podemos ficar com os dois, você sabe. Ele ficará com algum outro menino ou menina.

O Sr. Anderson pareceu esperar que Jimmy dissesse alguma coisa.

– Você sabe o que é um cachorro, Jimmy. É a coisa real. Robobo não passa de uma imitação mecânica, um robô boboca. Ê isso que seu nome significa.

Jimmy fez cara feia.

– Robobo não é uma imitação, papai. É o meu cachorro.

– Não um cachorro verdadeiro, Jimmy. Robobo é apenas aço, fiação e um simples cérebro positrônico. Não é um ser vivo.

– Ele faz tudo que eu quero que ele faça, papai. Ele me compreende. Sem dúvida, é um ser vivo.

– Não, filho. Robobo é só uma máquina. É apenas programado para se comportar do modo como se comporta. Um cachorro está vivo. Você não vai mais querer Robobo depois de ter o cachorro.

– O cachorro precisará de um traje espacial, não é?

– Sim, naturalmente. Mas será um dinheiro bem empregado e o cão se acostumará. E não precisará usá-lo na Cidade. Você vai ver a diferença quando ele estiver aqui.

Jimmy olhou para Robobo, que estava guinchando outra vez, um guincho lento, muito baixo, parecendo amedrontado. Jimmy estendeu os braços e Robobo deu um salto para eles.

– Qual será a diferença entre Robobo e o cachorro? – Jimmy perguntou.

– É difícil explicar – disse o Sr. Anderson – mas será fácil de perceber. O cachorro realmente gostará de você. Robobo está apenas ajustado para agir como se gostasse de você.

– Mas, papai, não sabemos o que há dentro de um cachorro ou quais são as suas sensações. Talvez seja também apenas um modo de agir.

O Sr. Anderson franziu a testa.

– Jimmy, você saberá a diferença quando experimentar o amor de uma coisa viva.

Jimmy segurou Robobo com força. Também estava franzindo a testa e o olhar desesperado em seu rosto significava que não estava disposto a mudar de ideia.

– Mas qual é a diferença no modo como eles agem? E quanto ao modo como eu sinto? Eu gosto de Robobo e isso é o que importa.

E o pequeno robô-boboca, que nunca fora abraçado com tanta força em toda a sua vida, guinchou rápidos e altos guinchos… guinchos felizes.

Isaac Asimov, "Os melhores contos de Isaac Asimov"

Dois velhinhos

Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:

— Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde:

— Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda:

— Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.

Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.

Dalton Trevisan, “Mistérios de Curitiba”