segunda-feira, abril 15

Cuidado com o 'carrasco'


 

A palavra

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivêssemos
todos em comunhão,

mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade, "A Paixão Medida"

O casamento da lua

O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se de todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinha aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça.

É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros – ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva – que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez.

Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, com toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer?

Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curam-se com o próprio amor – eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema da crescente palidez da Lua.

Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-se eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a ideia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo.

E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso que o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições.

Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

Olhos de mar

Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.

O velho pescador era magro e seco, e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. As manchas escuras que os raios do sol produzem sempre, nos mares tropicais, enchiam-lhe o rosto, estendendo-se ao longo dos braços, e suas mãos estavam cobertas de cicatrizes fundas, causadas pela fricção das linhas ásperas enganchadas em pesados e enormes peixes. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente.

Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.
Ernest Hemingway, "O velho e o mar"

Esse William Shakespeare

Eu era um homem comum. Quis ser Shakespeare, mas foi há muito tempo, quando não sabia que Shakespeare era um deus.

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Aconselhado por um psiquiatra da ala dos otimistas, diz cem vezes, toda manhã, uma frase: “Posso ser tão grande quanto Shakespeare.” Não melhorou a opinião que tem de si próprio, mas a cada dia Shakespeare cai um pouco no seu conceito.

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Os escritores jovens, nós sabemos, se julgam todos superiores a Shakespeare – e é essa a atitude que lhes cabe. Já os veteranos – se não pela idade ao menos por algum presumível juízo -, toda vez que falam dele devem fazê-lo de joelhos, mais reverentes do que se estivessem diante do próprio Deus em seu assento de nuvens.

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Tudo que nos acontece é intolerantemente previsível. Como é enfadonha a vida do homem… Que esforço fez Shakespeare para melhorá-la, com seus príncipes insanos, seus mouros enciumados, seus reis assassinos. Que milagres ele conseguiu, com tão pobre matéria-prima.

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Se você jamais quis ser Shakespeare, você talvez seja sensato demais para ser escritor.

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Frase perfeita é aquela que, mal a escrevemos, parece plágio de Shakespeare.

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Considerava-se um gênio incontestável, inexcedível, único. Sua convicção só se atenuava quando lia Shakespeare. Parou de lê-lo.

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Para ser Shakespeare, eu me acostumaria a tudo: à inveja, às calúnias, e até ao friozinho que deve sentir um morto.

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Se ao que fazia Shakespeare damos o nome de literatura, que nome daremos ao que fazemos nós?

quinta-feira, abril 11

Leia!

 


Aborrecido de estudar

Enfastiavam-me as aulas, salvo as de literatura — que aprendia de cor — e tinha nelas um protagonismo único. Aborrecido de estudar, deixava tudo à mercê da boa sorte. Tinha um instinto próprio para pressentir os pontos álgidos de cada matéria e quase adivinhar os que mais interessavam aos professores para não estudar o resto. A realidade é que não entendia por que devia sacrificar engenho e tempo em matérias que não me interessavam e, pela mesma razão, não me iam servir para nada numa vida que não era minha.

Atrevi-me a pensar que a maioria dos meus professores me classificava mais pela minha maneira de ser do que pelos meus exames. Salvavam-me as minhas respostas imprevistas, as minhãs ideias dementes, as minhas invenções irracionais. No entanto, quando acabei o quinto ano, com sobressaltos académicos que não me sentia capaz de superar, tomei consciência dos meus limites. O bacharelato tinha sido até então um caminho empedrado de milagres, mas avisava-me o coração que no final do quinto me esperava uma muralha intransponível. A verdade sem adornos era que me faltava já a vontade, a vocação, a ordem, o dinheiro e a ortografia para embarcar numa carreira académica. Melhor dizendo: os anos voavam e não fazia a mínima ideia do que ia fazer da minha vida, pois havia de passar ainda muito tempo antes de me aperceber de que mesmo esse estado de derrota era propício, porque não há

nada deste mundo nem do outro que não seja útil para um escritor.
Gabriel García Marquez, "Viver para Contá-la"

Mundo cheio de loucos e perversos

Em Adis-Abeba conheci dois irmãos siameses que tocavam piano a quatro mãos. Quando um deles morreu, o outro teve que ser enterrado junto, embora protestasse inocência e fosse noivo de uma moça que o amava relativamente. O imperador foi visitá-los na câmara ardente, onde um estava morto e o outro ainda estava vivo, e foi lá, entre oito círios ao invés de quatro, que fui apresentado ao imperador da Etiópia, que me saudou com gentil reverência.

Esse imperador abissínio, aliás, foi quem me nomeou governador de Marrar pelo espaço de 12 meses — levado, talvez pela minha cor etíope e por uma falsa carteira de identidade que lhe apresentei e que roubara a um pobre mendigo por mim assassinado numa rua de Gondar —; e, findo aquele prazo, eu estava mais rico do que o próprio imperador e todo o seu império, dado o negócio de armas em que me meti e que me valeu a excomunhão do Papa.

Indo em peregrinação a Meca, para escapar à sanha de Sua Majestade, tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo, e onde fui despojado em parte de minha fabulosíssima fortuna por um empregado infiel e sem escrúpulos, que se atirou às águas e nadou como um raio em direção ao golfo de Aden. De Meca transportei-me, puro já de alma, para a próspera cidade de Medina, onde comprei metade da Arábia a um alto membro do governo que depois vim a saber ser tão árabe e tão membro do governo quanto eu mesmo, com a agravante de ser um refinado vigarista. Reduzido a 15 milhões de arabescos, fugi de bicicleta para Damasco, onde apanhei o tifo e depois me tornei amante teúdo e manteúdo de uma alta dama afegã, cujo marido era cego e ali se achava justamente em tratamento da vista. Em Cabul, aonde fui ter alguns meses depois, levado pelas mãos generosas de minha protetora e de seu infortunado esposo, dediquei-me por algum tempo a altas indagações filosóficas de natureza moral, que resultaram no meu famoso Tratado da desesperação metafísica, traduzido para vários idiomas e que em francês pode ser encontrado em edições NRF (320 págs. — 1.280 frs.) com prefácio de Georges Duhamel. Tendo sido meu rico protetor morto numa infame emboscada em que a princípio se suspeitou de minha participação, passei a morar com a poderosa viúva e mais seus sete filhos, que logo ficaram reduzidos a cinco e pouco depois a três e a dois, devido a uma estranha epidemia de gastroenterite que grassou nas imediações de nosso palácio. Com a perda final de seus dois últimos filhinhos, um dos quais era também meu, e que foram encontrados afogados numa piscina que existia aos fundos do nosso jardim, a pobre mãe entregou-se a toda sorte de desespero e acabou por matar-se numa noite de tempestade, com um tiro do meu revólver que lhe acertou bem no meio da nuca. Feito herdeiro universal de todos os bens do casal, graças à lábia de um advogado que ficou com a metade da herança, pude viver principescamente durante mais de três anos, até que rebentou a guerra entre o Paquistão e o Afeganistão e que me reduziu, do dia para a noite, à mais extrema pobreza.

Fui acolhido como refugiado político pelo ex-rei Farouk do Egito, que a esse tempo ainda era magro e se comportava como um segundo Luís II da Baviera, apenas com algumas mulheres a mais e um pouco menos de filosofia dentro do cérebro. No Cairo, onde estive como hóspede oficial de Sua Majestade durante mais de ano, dediquei-me à nobre arte do dolce far niente, que não excluía, é bem de ver, algumas pesquisas de ordem estritamente secreta sobre a vida particular do rei e sobretudo de seus áulicos mais influentes, e que me seriam no futuro de grande proveito para casos de pequenas chantagens ou intrigas políticas inevitáveis numa Corte que se preza. Agraciado com a Grã-Cruz da Ordem dos Faraós Atônitos e com a Comenda (1° Grau) do dervixe Abdula, pouco depois era escorraçado do país por haver-me prestado num momento de fraqueza a serviços de espionagem a favor da Inglaterra, como pode ser lido e relido no capítulo XVIII das Memórias do Sr. Winston Churchill. Deportado para a Groenlândia num cargueiro que transportava vinte toneladas de alfinetes de cabeça e um pequeno elefante, ali vivi sucessivamente em Angmagssalik, Sukkertoppen, Holsteinborg, Scoresbysund, Upernivik, Christianshaab, Umanak, Godthaab e Jakobshav, sendo que nesta última cidade quase fui morto a arpão por uma jovem esquimó de raríssima beleza e que não queria conformar-se com a minha anunciada partida para Toronto, no Canadá, onde afinal se condoerá de minha sorte e mandara chamar-me um velho membro de minha família, cujo nome no momento não vem ao caso, mesmo porque morreu logo depois que ali cheguei, torpemente envenenado ao que dizem.

Com o dinheiro herdado desse prestimoso parente comprei-lhe um rico túmulo e tratei de pôr-me ao largo o mais breve possível, indo dar com os costados no Estado de Pennsylvania (EUA), em cuja capital, Pittsburg, mais uma vez me naturalizei norte-americano e consegui viver tranquilo por um longo tempo, dado o meu gênio cordato e cheio de delicadezas. Autor de inúmeros best-sellers, todos publicados em edições pocket-book e magnificamente condensados para o Reader’s Digest, granjeei em menos de um ano uma reputação literária só comparável, na época, à de um Ernest Hemingway ou à de um Leslie Charteris, o que me propiciou contribuir para o rápido enriquecimento do país através do imposto de renda. Datam dessa época minhas trinta e seis novelas policiais mais famosas, bem como os quatorze romances que Hollywood aproveitou para algumas de suas produções mais significativas, muitas delas em technicolor e com som estereofônico. Reduzido à mais extrema penúria pelo fisco implacável, para o qual contribuía com 200% sobre o que honestamente ganhava, abandonei a literatura e entreguei-me à traficância de tóxicos e à prática ostensiva do lenocínio, o que me valeu em pouco tempo uma cadeira de deputado pelo Estado de Minnesota e as consequentes imunidades parlamentares e extraparlamentares, que de mim fizeram um dos homens mais poderosos da democracia norte-americana. Não fora a perseguição tenaz que me moveu um de meus rivais mais perigosos, John Dillinger III, com ameaças inclusive à minha integridade física, e certamente eu teria feito da grande república do Norte a minha pátria definitiva neste planeta, sem nunca ter pensado em arrumar as malas de novo e enfrentar mais uma vez as incertezas deste mundo tão cheio de loucos e perversos, como acabei fazendo em meados de setembro de 1953.

Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"

Quando vim primeiro para Lisboa

Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.

Era eu criança, e hoje não o sou; o som, porém, é igual na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, minha.

Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cerebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.

Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que nunca vi, onde a aprendiza que não conheci está ainda hoje relatando, dedo a dedo cuidados, as escalas sempre iguais do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo. E todo o lar lá do andar lá de cima, saudoso hoje mas não ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação desentendida.

Suponho, porém, que nisto tudo sou translato, que a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstracta, mas a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas emoções, que em mim são literárias, fossem, — di-lo-ia Vieira — literais. É na minha suposição de sentir que me magoo e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e sinto.

E sempre, com uma constância que vem do fundo do mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente, soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela espinha dorsal física da minha recordação. São as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas; são pessoas mortas que me estão falando, através da transparência da falta delas hoje; são remorsos do que fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruídos lá em baixo na casa queda.

Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar para a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro directamente sensível, na minha pele arrepiada, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa recordação.

E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro que se tornasse independente, soam, soam, soam as escalas lá em baixo lá em cima da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.
Fernando Pessoa (Bernardo Soares), "Livro do desassossego"

quarta-feira, abril 10

Ilumine-se

 


Uma criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a vida.
Machado de Assis

Incentive a aventura

O importante é motivar a criança para a leitura, para a aventura de ler
Ziraldo

Plantando com as palavras corretas

Cá entre nós, não houve cravos-de-defunto no outono de 1941. Na época pensamos que era porque Pecola ia ter o bebê do pai dela que os cravos-de-defunto não cresceram. Um pequeno exame e muito menos melancolia nos teriam provado que as nossas sementes não foram as únicas que não brotaram: as de ninguém brotaram. Nem mesmo os jardins que ficavam de frente para o lago exibiram cravos-de-defunto naquele ano. Mas estávamos tão profundamente preocupadas com a saúde e o nascimento do bebê de Pecola que não conseguíamos pensar em outra coisa que não fosse a nossa magia: se plantássemos dizendo as palavras corretas, as sementes brotariam e daria tudo certo.

Passou-se um longo tempo até que minha irmã e eu admitíssemos para nós mesmas que não ia sair broto algum das nossas sementes. Quando entendemos isso, só aliviávamos nossa culpa com brigas e acusações mútuas sobre a responsabilidade pelo fato. Durante anos achei que minha irmã tinha razão: a culpa foi minha. Eu as tinha plantado fundo demais na terra. Jamais ocorreu a nenhuma das duas que a própria terra pudesse estar improdutiva. Tínhamos jogado as sementes no nosso canteiro de terra negra exatamente como o pai de Pecola havia jogado as suas no canteiro de terra negra dele. Nossa inocência e nossa fé não foram mais produtivas do que a luxúria ou o desespero dele. O que está claro agora é que, de toda a nossa esperança, do medo, luxúria, amor e pesar, não resta nada além de Pecola e da terra improdutiva. Cholly Breedlove está morto; nossa inocência também. As sementes murcharam e morreram; o bebê dela também.

Não há realmente mais nada a dizer — a não ser por quê. Mas, como é difícil lidar com o porquê, é preciso buscar refúgio no como.

Toni Morrison, "O olho mais azul"

O inverno era a melhor das estações

A casa ficava na parte mais elevada da estreita faixa de terra entre o porto e o mar aberto. Tinha resistido a três furacões e era sólida como um navio. Protegida pela sombra de altos coqueiros pensos pelo vento alísio, podia-se abrir a porta do lado do oceano, descer o barranco, atravessar a areia branca e mergulhar na Corrente do Golfo. Quando não havia vento, a água da Corrente era azul-escura. Mas à medida que se avançava mar adentro, criava uma transparência verde sobre a branca areia porosa, tornando possível avistar a sombra de qualquer peixe graúdo muito antes que sequer se avizinhasse da praia.

Um lugar seguro e bonito para tomar banho durante o dia, mas não para nadar à noite. De noite os tubarões rondavam a beira à caça de presas na orla da Corrente; da varanda superior da casa, nas noites calmas, ouvia-se o chapinhar do peixe que abocanhavam e indo-se até a praia enxergava-se o rastro fosforescente que deixavam na água. De noite os tubarões eram mais atrevidos, e todo mundo os temia. De dia, porém, mantinham-se a distância da clara areia branca, e, caso se animassem a se aproximar, percebia-se logo sua sombra com grande antecedência.

Um homem chamado Thomas Hudson, que era bom pintor, morava naquela casa, trabalhando ali e na ilha a maior parte do ano. Depois de se morar bastante tempo nessas paragens, a mudança das estações adquire tanta importância como noutros lugares, e Thomas Hudson, que amava a ilha, não queria perder nenhuma primavera, verão, outono ou inverno.

Às vezes o calor do verão ficava intenso demais, quando o vento diminuía em agosto ou quando os alísios deixavam ocasionalmente de aparecer em junho e julho. Os furacões também podiam sobrevir em setembro e outubro, e a qualquer momento, a partir de julho, eram capazes de armar-se inesperadas tempestades tropicais. Mas livre de vendavais, os meses mais sujeitos a furacão têm um clima ótimo.

Thomas Hudson tinha estudado as tempestades tropicais durante vários anos, e bastava-lhe olhar o céu para saber quando haveria uma perturbação atmosférica, muito antes que o barômetro indicasse sua presença. Sabia traçar o gráfico dos temporais e as precauções que devia tomar contra eles, como também sabia o que significa enfrentar um furacão com os demais habitantes da ilha e o laço que se estabelece entre todas as criaturas que passam por essa experiência. E mais: que os furacões podiam ser tão devastadores que nada conseguiria sobrevivê-los. Porém sempre imaginou que, se algum dia irrompesse um dessas proporções, gostaria de se encontrar ali para desaparecer junto com a casa.

Ela lembrava quase tanto um navio quanto uma casa. Colocada ali para resistir às tempestades, incrustava-se na ilha como se fosse parte integrante dela; mas de todas as janelas descortinava-se o mar e era muito arejada, de modo que não se sentia calor nem nas noites mais quentes. Pintada de branco para ficar bem fresca no verão, podia-se avistá-la de longe, na Corrente do Golfo. Era o ponto culminante da ilha, com exceção da extensa plantação de altos pés de casuarina, a primeira coisa que se enxergava ao se acercar da ilha por via marítima. Logo depois da mancha escura das casuarinas acima da linha do horizonte, via-se o vulto branco da casa. Aí então, à medida que se chegava mais perto, a ilha emergia inteira, com os coqueirais, as cabanas de madeira, a faixa branca da praia, e o verde da Ilha Sul se estendendo ao fundo. Thomas Hudson nunca avistava aquela casa na ilha sem que ficasse tomado por uma sensação de felicidade. Sempre a imaginava exatamente como um barco. No inverno, quando soprava o vento norte e esfriava de fato, ela era quente e confortável porque possuía a única lareira na ilha. Uma vasta lareira aberta onde Thomas Hudson queimava sarrafos lançados à praia pelas ondas.

Guardava-os numa pilha enorme, encostados à parede do lado sul da casa. Estavam esbranquiçados de sol, cobertos de areia trazida pelo vento, e ele se afeiçoava tanto a vários pedaços que até sentia ódio de ter que queimá-los. Mas depois das grandes tempestades sempre surgiam outros na praia, e terminava achando divertido queimar mesmo os pedaços de que mais gostava. Sabia que o mar traria novos e nas noites frias sentava na ampla poltrona diante do fogo, lendo à luz do lampião pousado na grossa mesa de tábuas, interrompendo a leitura para escutar o noroeste soprando lá fora, o estrondo da rebentação, e contemplar os enormes sarrafos esbranquiçados a arder.

Às vezes apagava o lampião e deitava em cima do tapete no chão, detendo-se a fitar as pontas coloridas que o sal marinho e a areia desenhavam nas chamas enquanto a lenha ardia. Deitado, seus olhos nivelavam com a altura da madeira que queimava, tornando nítida a linha de separação entre a chama e os sarrafos, o que o deixava ao mesmo tempo triste e alegre. Toda madeira que queimasse o afetava desse modo. Mas os sarrafos trazidos pelo mar a arder ali no fogo causavam-lhe uma sensação que não conseguia definir. Achou que talvez fosse erro queimá-los, uma vez que gostava tanto deles; mas não tinha remorsos por causa disso.

Ao deitar-se no chão sentia-se protegido contra o vento, embora, na realidade, o vento açoitasse até os cantos inferiores da casa, a grama mais baixa da ilha, infiltrando-se pelas raízes da vegetação rasteira da praia, pelos carrapichos e pela própria areia. No chão, podia sentir a batida da rebentação tal como se lembrava de ter sentido o disparo de poderosos canhões quando se jogava por terra perto de uma peça de artilharia há muitos e muitos anos, quando ainda era menino.

A lareira era uma coisa formidável; no inverno e durante todos os outros meses contemplava-a com carinho, imaginando como seria quando o inverno chegasse de novo. O inverno era a melhor de todas as estações na ilha, e aguardava-o com impaciência o resto do ano inteiro.
Ernest Hemingway, "As ilhas da corrente"

Os tristes descaminhos

Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco – e pelo menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, porque o que é que adianta ver?


São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências – e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? – que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? – que esperança!

Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios – palha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.

Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?

No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?

São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? – que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.

Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.

Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.

Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.
Vinícius de Moraes, Jornal do Brasil (1969)

sábado, abril 6

Leitura não tem idade

 


O desbunde

Tinha, como direi, eu, que sou uma senhora a seu modo pacata e até pudica, uma, ou melhor, um derrière esplendido. Não é preciso ser homem pra essas avaliações. Firme em definidos e perfeitos contornos, rebelde ao disfarce das saias e anáguas daquele tempo, inscrevia-se na cara de sua dona, que, movendo os olhos como as ancas, subia a rua em falsa pudicicia, apregoando-se: tenho. Os homens ficavam loucos. Eu era mocinha boba e escutei no armazém do Calixto ele dizer pro Teodoro, meu futuro marido, naquele tempo preocupado em fazer bodoques de goma: eh, ferro! O Vicente não vai dar conta daquela ali, não. É preciso muita saúde. Calixto falava com o Teodoro do que eu suspeitava serem os tesouros da 
Oldalisa e ela nem aí, toda toda, sobe e desce rua. Exatamente o que era me escapava, só podia ser coisa de homem e mulher. Felicitei-me por estar viva e participar de segredos tão excitantes. O Vicente era muito magrinho, não jogava bola, não nadava, “não salientava em nada”, o Vicente

Cisquim. Pois foi dele que a Raimunda — como o Calixto chamou ela naquele dia — gostou. Casaram e tiveram pencas de filhos. O Calixto ficou chupando o dedo. Ser bonitão e dono de armazém não contou ponto pra ele. Pois é, falou o Teodoro, hoje, assim que botou o pé em casa: O que é a tecnologia, hein? Tecnologia? É o avanço da medicina. Teodoro falava era do avanço do tempo. Tou aqui matutando, disse ele, porque a Oldalisa escolheu o Vicente, não tem base. Tô vendo aquela dona pegando as compras no caixa e… Plim! Era ela, a velha senhora. A Oldalisa do Vicente? É. O Vicente estava junto? Não. Estava com duas alianças e um menino, neto dela com certeza. Será que o Vicente morreu da praga do Calixto? Acho que não, porque eu procurei o traseiro da Oldalisa e nada da olda, só mesmo a lisa, magra e murcha. Ter encontrado a Oldalisa expropriada de seu dote mais tentador deixou Teodoro bem filosofante sobre as agruras do corpo. Teria ele também sido um apaixonado da Oldalisa e eu corrido sérios riscos? Porque amor não olha idade, não é mesmo? Agora, daquela do escritório eu tive, medo não, por causa de meus outros poderes, tive inveja. A uma cintura de vespa seguia-se, instruída e fatal, o que a Oldalisa trazia com inocência. Batia à máquina, agarradinha no Teodoro, de saia justa e batom cor de sangue. O apelido dela na firma era Corrosiva, e foi Teodoro quem pôs. Se chamava Rosiva, a perigosa. Imagina o risco que eu corri.
 Adélia Prado

Gente demais

Ah, vida penosa! Tudo tão difícil, tão sofrido, tão sem jeito. A discórdia, as disputas, as mentiras. O grevismo. Pensando bem, quem sabe os males do mundo não decorrem do fato de, neste mesmo mundo, estar havendo gente demais? Já não se morre tanto como antigamente. A perspectiva de vida das pessoas subiu de modo incrível. Na época da nossa independência, o tempo médio de vida dos brasileiros talvez não passasse dos 40. Hoje alcançou os 70 e, nas áreas mais adiantadas, já estão falando em 80. A medicina evoluiu tanto que, neste final de século, andam esquecidas quase todas as grandes doenças que outrora dizimavam populações. Ninguém morre mais de varíola, de bubônica, de tifo, de febre amarela. O impaludismo acaba onde chega o mata-mosquito. Quase não se morre mais de parto, de apendicite, de hérnia. Fora das faixas de grande pobreza, baixam muito os índices de mortalidade infantil. A tuberculose, a grande Peste Branca, ficou para trás, contemporânea da Dama das Camélias. Até lepra hoje se cura. Os males da velhice são combatidos com êxito e o milagre da ponte de safena já se faz nos hospitais públicos, deixando de ser privilégio dos ricos.

E quando a ciência se mostra ainda impotente, como acontece com o câncer e com a Aids, os sábios enfrentam com tal gana o desafio que, com certeza, em breve o vencerão.


E agora eu pergunto: estará mesmo dentro dos planos de Deus tanta gente pululando na fase da terra? Mais de um bilhão de chineses, por exemplo, estriam previstos no Gênese, quando o Senhor contemplou a sua criação e achou que tudo estava bem? Não haverá chineses demais, e russos, e americanos, e indianos – e brasileiros?

Os criadores de gado e de outros bichos sabem que não se pode ter rebanho acima das possibilidades de pasto. Passando certo limite, tem que vender, mandar para o corte, embora com uma dor no coração. Então nós, que somos o rebanho do Senhor, não teremos excedido as possibilidades do nosso sustento, não careceremos de ser reajustados? Como Deus não dendê corpos (o próprio Diabo só se interessa por almas), Ele então suscita epidemias, terremotos, enchentes, revoluções, guerras. E como tem conosco o compromisso de nos permitir o livre-arbítrio, deixa que a podagem a façamos nós mesmos – e por isso é ela tão imperfeita. Guerras por exemplo: são um método seguro de fazer com que minguem populações. Mas em vez de se recrutarem os inúteis, os descartáveis, os velhos, os estropiados, os frágeis – não: convoca-se para a guerra a fina flor da população, os que estão no esplendor da juventude. Idade entre 18 e 25 anos, boa altura, boas proporções, saúde perfeita. Nem os míopes são aceitos. Dentes impecáveis, como se nas guerras de hoje ainda se brigasse às dentadas. Exemplares perfeitos, hígidos – pra quê? Para fazer deles carne de canhão. Parece que as juntas do recrutamento militar não têm ideia da crueza da guerra; só cuidam de bonitos soldadinhos em parada. Por mim, em caso de guerra, afora os especialistas indispensáveis (que, no caso, precisam é de bons cérebros, não de higidez física), pegaria para carne de canhão somente os dispensáveis, os que são um peso para si e para os outros e – por que não? – os velhos como nós. Passou dos 70, está automaticamente alistado. O prejuízo não seria tão grande, nós já estamos mesmo na hora do ajuste de contas. Nos romances de cavalaria há sempre a figura do velho herói que, somando as cansadas forças ao imperecível valor, ganha a vitória com o seu sacrifício. Lembram-se da última campanha do Cid Campeador? Até depois de morto venceu o combate, correndo à frente no seu corcel de guerra, atado numa grade que o sustinha à sela, preso na mão esquerda o pendão de batalha. Pois há muito velho por aí, ansioso por acabar em glória, numa façanha assim.

E então ficariam só os moços, os belos, os saudáveis, para repovoar a terra.
Rachel de Queiroz

Por um pé de feijão

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

– Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

– Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:

– Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.
Antônio Torres, “Meninos, Eu Conto”