segunda-feira, outubro 21

Apicultor

 


Sobre poesia

Não têm sido poucas as tentativas de definir o que é poesia. Desde Platão e Aristóteles até os semânticos e concretistas modernos, insistem filósofos, críticos e mesmo os próprios poetas em dar uma definição da arte de se exprimir em versos, velha como a humanidade. Eu mesmo, em artigos e críticas que já vão longe, não me pude furtar à vaidade de fazer os meus mots de finesse em causa própria – coisa que hoje me parece senão irresponsável, pelo menos bastante literária.

Um operário parte de um monte de tijolos sem significação especial senão serem tijolos para – sob a orientação de um construtor que por sua vez segue os cálculos de um engenheiro obediente ao projeto de um arquiteto – levantar uma casa. Um monte de tijolos é um monte de tijolos. Não existe nele beleza específica. Mas uma casa pode ser bela, se o projeto de um bom arquiteto tiver a estruturá-lo os cálculos de um bom engenheiro e a vigilância de um bom construtor no sentido do bom acabamento, por um bom operário, do trabalho em execução.


Troquem-se tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de arquiteto, engenheiro, construtor e operário, e aí tendes o que é poesia. A comparação pode parecer orgulhosa, do ponto de vista do poeta, mas, muito pelo contrário, ela me parece colocar a poesia em sua real posição diante das outras artes: a de verdadeira humildade. O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra.

Sua função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero lucubrador de versos.

O material do poeta é a vida, dissemos. Por isso me parece que a poesia é a mais humilde das artes. E, como tal, a mais heroica, pois essa circunstância determina que o poeta constitua a lenha preferida para a lareira do alheio, embora o que se mostre de saída às visitas seja o quadro em cima dela, ou a escultura no saguão, ou o último long-playing em alta- fidelidade, ou a própria casa se ela for obra de um arquiteto de nome. E eu vos direi o porquê dessa atitude, de vez que não há nisso nenhum mistério, nem qualquer demérito para a poesia. É que a vida é para todos um fato cotidiano. Ela o é pela dinâmica mesma de suas contradições, pelo equilíbrio mesmo de seus pólos contrários. O homem não poderia viver sob o sentimento permanente dessas contradições e desses contrários, que procura constantemente esquecer para poder mover a máquina do mundo, da qual é o único criador e obreiro, e para não perder a sua razão de ser dentro de uma natureza em que constitui ao mesmo tempo a nota mais bela e mais desarmônica. Ou melhor: para não perder a razão tout court.

Mas para o poeta a vida é eterna. Ele vive no vórtice dessas contradições, no eixo desses contrários. Não viva ele assim, e transformar-se á certamente, dentro de um mundo em carne viva, num jardinista, num floricultor de espécimes que, por mais belos sejam, pertencem antes a estufas que ao homem que vive nas ruas e nas casas. Isto é: pelo menos para mim. E não é outra a razão pela qual a poesia tem dado à história, dentro do quadro das artes, o maior, de longe o maior número de santos e de mártires. Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos domésticos, a filha pobre na família das artes, e um elemento de perturbação da ordem dentro da sociedade tal como está constituída.

Diz-se que o poeta é um criador, ou melhor, um estruturador de línguas e, sendo assim, de civilizações. Homero, Virgílio, Dante, Chaucer, Shakespeare, Camões, os poetas anônimos do Cantar de Mío Cid vivem à base dessas afirmações. Pode ser. Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani – que se fosse vivo seria multimilionário como Picasso – podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram antes e depois dele. Mas eu acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o seu filé em troca de um soneto ou uma balada. Por isso me parece que a maior beleza dessa arte modesta e heroica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida. Seu único patrão é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e tranquilidade.

Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

As bibliotecas

As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar. Os livros são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver que existe para depois do que não se vê. O leitor entra com o livro para depois do que não se vê. 

O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.


Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram, choram, imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem crianças. Os livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as ouvir rir e para as fazer brincar.

Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e o baixo, a esquerda e a direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar.

As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante. E há invariavelmente quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé.

Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito.

Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito.

As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros não têm vertigens. Eles gostam das pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais altas.

Depois da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores são tão obstinados com a leitura que nem se lembram de usar candeeiros de verdade. Tentam ler só com a luz própria dos olhos, colocam o livro perto do nariz como se estivesse a cheirar. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Lêem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.

Já vi gente a sair de dentro dos livros. Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das histórias e vestem-se à pressa com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes. Muita gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes para tratar. Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar apoio. Alguns livros obrigam-nos a pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.

Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor.

Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor.

Valter Hugo Mãe, "Contos de cães e maus lobos"

Fragmento 33

Como português, neto de Vicente, não tenho futuro. Encerrado na água-furtada de São Jorge, indago se teria sido no passado um navegante ou um poeta que mesmo sem o dom da escrita, semeara em torno palavras incandescentes, todas sem dono.

Sob o abrigo da imaginação, que é minha morada, percorro as vielas pisadas pelos miseráveis que me antecederam em Lisboa. Em frangalhos, eles, como eu, lusos anônimos que morreram sem deixar pistas, e apiedo-me. Nestes momentos consola-me ter lido de forma quase desumana o poeta maior da língua, sob a vigília do professor Vasco, que não sei se ainda vive, a quem nunca paguei tributo por me ter ofertado Camões e o Infante D. Henrique.

O poema interminável de Camões que encerra nossa história, apontado pelo professor como salvador da pátria, infernizou-me no início. Segundo o mestre, havia da parte do vate o deliberado propósito de erigir um inexpugnável muro em torno com o propósito de ser galgado e vencido com garra e então chorar. Graças ao Infante ter confirmado a grandeza das aventuras marítimas, o poema de Camões poupou-me do sacrilégio de odiá-lo. Isso constato nos dias de agora, e mais tarde, o significado de ser parte desta lamurienta humanidade.

À noite, ora jovem e ora velho, forçado pelos anos, gostava de esticar o corpo no colchão e apagar os indícios da vida. Como fosse, eu trazia o estigma do vencido, ciente, no entanto, de ter salvo do naufrágio o longo poema da lavra de Camões que não escrevi. Esquecido ele de resgatar da morte a escrava Bárbara.

Releguei, como ele, as mulheres à perdição. Em prol de Os Lusíadas prestes a ser concluído, deveria ela ter sobrevivido. Logo quando estava o poeta a embarcar em uma viagem que o levaria alhures, até ocorrer o naufrágio. Mas como ele, ao salvar-se e deixar Bárbara sucumbir, também terei eu feito ao longo da vida as escolhas corretas, privei-me de critério moral?

Fui débil sempre, uma franqueza vinda da mãe que me odiava. Não tenho, porém, como redimir-me. Salvar a mim e a Bárbara. Sem troféu, pois, sigo para o inferno. Nada sou além de mim mesmo. Caso em meio a um surto proclame ser Camões, nada roube dele. É um direito conferido a qualquer português. Quem nasceu onde seja desta terra ganhou do Poeta um certificado de senhor da língua.

Com certo rasgo de euforia, eu amanhecia no mercado à procura de trabalho, pronto a oferecer o corpo jovem. Extraía então as escamas, as guelras, as vísceras dos peixes que, antes de serem colhidos pelas redes, debateram-se agônicos em nobre batalha. E tão briosos foram que mereciam ser inscritos nos frontispícios da história. 

Nélida Piñon, "Um dia chegarei a Sagres"

sexta-feira, outubro 18

Busca arqueológica

 


Rua do passado

Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O des­tino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de-riba da água do mar. Mamãe-Velha lembrava sempre com orgu­lho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direi­tamente o produto do seu trabalho.

E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O nasci­mento dos meninos. O balanço da criação. O traba­lho das hortas e a fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A ansiedade quando chegavam cartas. Os melhora­mentos a pouco e pouco introduzidos com os dóla­res que recebíamos. Mamãe deslisava como uma sombra silenciosa no trafêgo da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a sua gente descompondo.

Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde Mamãe fazia a despensa, e que nos dias de chuva servia para abrigar as gali­nhas da criação. Encostada à casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu teto retangular, inclinado para drenar a água, um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe.

Baltasar Lopes, "Chiquinho"

A margarida enlatada

Foi de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro, quando viu um canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do paletó.

Diga-se em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida.

No dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:

Ponha uma margarida na sua fossa

Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:

O índice de poluição dos rios é alarmante.
Não entre nessa.
Ponha uma margarida na sua fossa.


Ou

O asfalto ameaça o homem e as flores.
Cuidado.
Use uma margarida na sua fossa.


Ou

A alegria não é difícil.
Fique atento no seu canto.
Basta uma margarida na sua fossa.


Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As chamadas continuavam.

O índice de suicídios no país aumentou em 50%.
Mantenha distância.
Há uma margarida na porta principal.

Contratos. Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão.

As prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:

margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno. Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.

Em seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:

Margarida já era, amizade.
Saca esta transa:
O barato é avenca.


Não demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e incinerou-o.

Só depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.

Ele perguntou:

– Procura margaridas?

Ela respondeu:

– Já era.

Ele perguntou:

– Avencas?

Ela respondeu:

– Falou.

Caio Fernando Abreu, "O novo conto brasileiro"

Minha rua querida

Era estreita a nossa rua. No verão de céu azul, os raios de sol coavam a manhã fresca. Não existiam fronteiras em nossa rua, pelo menos no quarteirão onde eu morava. As famílias pareciam uma só, tamanha a intimidade que existia entre elas. Havia convívio harmonioso entre os vizinhos, fosse dia de festa ou de tristeza.

No tempo das férias escolares, havia nos passeios jogo de tampilha, pião e leilão de brinquedos. Jogar bola de gude ou bola era no meio da rua. Natural que durante o jogo surgissem disputas acaloradas, bate-boca, empurrões e até briga. Em pouco tempo tudo voltava ao normal. Os dias retomavam a sua temperatura agradável, como se nada de mais houvesse acontecido entre os que brigavam durante o jogo de futebol. Agora de vez em quando um nariz podia ficar quebrado, ao receber um murro bem dado, só porque o amigo foi cair na besteira de ficar teimando e dizendo que ali na rua o estilingue mais certeiro não era o do meu irmão Orlando. No fim da tarde, o irmão chegava com a capanga cheia de passarinhos, eram abatidos com bala de estilingue no Jardim da Prefeitura ou em alguma roça próxima à cidade. O irmão no estilingue era mesmo um campeão. Ninguém ali na rua duvidasse da pontaria dele. Cada balaço que ele desferia acertava em passarinho pousado até em cocuruto de árvore alta.


Nossa rua ficava impregnada de um aroma verde, quando o homem passava com o tabuleiro de verduras na cabeça. Os ares coloridos, todos os dias, com o roxo da beterraba, o verde do repolho e o laranja da cenoura.

Era iluminada com a gritaria dos companheiros. Zoada havia de canto a canto. Corneta, apito, bangue-bangue, jogo de bola, pião rodava na mão e no chão.

Do que eu mais gostava era do jogo de bola. Quando a mulher gorda chegava no batente da porta, segurando a bola, que ela no mesmo instante furava, não encontrava um menino sequer pra perguntar quem foi o pestinho que acertou daquela vez a sua vidraça, dando-lhe outra vez um prejuízo danado.

Cedo, no outro dia, os companheiros voltavam ao jogo com bola de pano. Os lances aguerridos, rosto vermelho e suado, cabelos assanhados. Palavrão, bate-boca e, aos gritos, a comemoração da vitória.

A vidraça da janela de algum dos moradores de nossa rua não deixaria de ser acertada.

Ó que saudade da minha rua! Hoje, vejo-a estreita e nem tão comprida. Outrora tão grande para mim e os companheiros.

O mundo ali cabia dentro das cores da verdura no tabuleiro.

Bastava-se no leilão dos brinquedos, troca de gibi ou figurinhas do álbum de artistas do cinema americano, bala de estilingue nos quintais frutíferos, pra não se falar no jogo de bola.

Ah, viver era uma canção verde como verde todos os dias a gente ouvia a voz do verdureiro.

Verde na voz dos companheiros colhendo coentro nos passeios.

Abóbora nas valetas.

Couve-flor nos calçamentos.

quinta-feira, outubro 17

O leitor

 


Noite

À noite era um pouco melhor. Podia passar cuidadosamente as mãos pela realidade, alisando-a para a observar com a esperança de, um dia, obter dela uma perspectiva geral, como se examinasse uma tapeçaria inacabada e multicolor cujo padrão oculto e intrincado poderia porventura deslindar, mais cedo ou mais tarde. No silêncio noturno, recordava-se das vozes que ouvira durante o dia e, com um pouco de paciência, desemaranhava-as umas das outras como fios de um novelo. Podia pensar com toda a calma nas palavras, sem temer o aparecimento de novos termos antes que a noite terminasse. Naquela fase da sua vida, a noite só com muita dificuldade apartava os dias, e se abrisse com um sopro um buraco nas trevas – como se desembaciasse uma vidraça coberta de gelo –, a manhã penetraria nos seus olhos muitas horas antes do tempo devido.

Tove Ditlevsen, "Os Rostos"

Os óculos

O velho e austero doutor Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, tem uma espinhosa missão a cumprir junto da pálida e formosa Clarice... Vai examiná-la: vai dizer qual a razão da sua fraqueza, qual a origem daquele depauperamento, daquela triste agonia de flor que murcha e se estiola.

A bela Clarice!... É casada há seis meses com o gordo João Paineiras, o conhecido corretor de fundos, — o João dos óculos —, como o chamam na Praça por causa daqueles grossos e pesados óculos de ouro que nunca deixam o seu forte nariz de ventas cabeludas. Há seis meses ela míngua, e emagrece, e tem na face a cor da cera das promessas de igreja — a bela Clarice. E — ó espanto! — quanto mais fraca vai ficando ela, mais forte vai ficando ele, o João dos óculos, — um latagão que vende saúde aos quilos. Assusta-se a família da moça. Ele, com seu imenso sorriso, vai dizendo que não sabe... que não compreende... porque, enfim, — que diabo! — se a culpa fosse sua, ele também estaria na espinha...

E é o velho e austero Dr. Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, um poço de ciência e discrição, quem vai esclarecer o mistério. Na sala, a família ansiosa espia com rancor a gorda face do João impassível. E na alcova, demorado e minucioso exame continua.

Já o velho doutor, com a cabeça encanecida sobre a pele nua do peito da enferma, auscultou longamente os seus pulmões delicados: já, levemente apertando entre os dedos aquele punho macio e branco, tateou o pulso, tênue como um fio de seda... Agora, com o olhar arguto, percorre a pele da bela Clarice — branca e cheirosa pele — o colo, a cinta, o resto... De repente — que é aquilo que o velho e austero doutor percebe na pele, abaixo... abaixo... abaixo do ventre?... Leves escoriações, quase imperceptíveis arranhaduras avultam aqui e ali vagamente... nas coxas...

O velho e austero doutor Ximenes funga uma pitada, coça a calva, olha fixamente os olhos da sua doente, toda alvoroçada de pudor:

— Isto que é, filha? Pulgas? Unhas de gato?

E a bela Clarice, toda de confusão, enrolando-se no penteador de musselina como numa nuvem, balbucia, corando:

— Não! Não é nada... não sei... isto é... talvez seja dos óculos do João...
Olavo Bilac

O corvo de Mizzaro

Certos pastores desocupados, galgando um dia as montanhas de Mizzaro, surpreenderam, no ninho, um enorme corvo que estava chocando os ovos, pacificamente...

— Ó basbaque, que fazes aí? Vejam só: chocando os ovos! Isso é serviço de tua mulher, basbaque!

Não é de crer que o corvo deixasse de dar as suas razões; deu-as, e numa linguagem de corvo, gritando. Contudo, ninguém o ouviu. Os tais pastores levaram o dia inteiro torturando-o com as suas pilhérias, até que um deles resolveu levá-lo consigo para a aldeia. Mas no dia seguinte, não sabendo o que fazer deste corvo enorme, dependurou-lhe, como lembrança, um guizo de bronze ao colo e o libertou de novo:

— Goza!

Só mesmo o corvo é que poderá saber a impressão que lhe causou aquele guizo sonoro, porque o arrastou consigo para o céu. Vendo-o voar, voar amplamente, cada vez mais alto, dir-se-ia que ele estivesse satisfeito, já agora esquecido do ninho e da mulher.

— Dim dimdim, dim dimdim...

Os camponeses que trabalhavam debruçados sobre a terra, ouviam aqueles guizos e erguiam o pescoço; olhavam aqui, ali, pela planície imensa que se estendia sob o incêndio do sol:

— Que é que está tocando? De onde vem esse som?

Mas se não havia vento, de que igreja distante podia chegar até eles esse bimbalhar festivo?

Supunham tudo menos que fosse um corvo no azul do céu.

— Espíritos! — pensou Ciché, que trabalhava sozinho numa herdade, atento a desencavar conchas em torno de alguns frutos de amendoeira, a fim de enchê-las de estrume. E fez-se o sinal da cruz. Porque ele acreditava piamente na existência de espíritos. Fizera experiências em outras ocasiões. E até ao voltar, certa noite, do campo, pela estrada que margeia as Fornaci extintas, que era onde eles moravam, no dizer de todos, ouviu que o chamavam. — Ciché! Ciché! E sentiu que os cabelos se eriçavam sob o boné.

Aquele bimbalhar ele o ouvira a princípio, à distância, depois mais perto, e depois novamente à distância. Em redor não havia viva alma: campo, árvores e plantas, que não falavam, sentiam, que com a sua impassibilidade tinham aumentado o seu espanto. À hora da merenda, que consistia num pedaço de pão e numa cebola, que trouxera de casa e que deixara dependurada numa sacola, perto dele, junto com o paletó, a uma árvore de oliveira, não encontrou a cebola; encontrou apenas o pedaço de pão. E foi assim durante três dias em seguida.

Não disse nada a ninguém, porque sabia que quando os Espíritos começam a atormentar uma pessoa, ai de quem se lamente! Fazem pior.

— Não me sinto bem — respondia Ciché, ao voltar de tarde para casa, à mulher que lhe perguntava a razão daquele seu aspecto transtornado.

— Mas, ao menos, coma! — observava-lhe a companheira, vendo que ele engolia duas ou três colheradas de sopa, uma após outra.

— Sim, como! — Mastigava Ciché, em jejum desde a manhã e com ódio por não poder abrir-se com a esposa.

Até que por todo o campo se espalhou a notícia daquele corvo ladrão que andava tocando o guizo pelo céu.

Ciché teve a desdita de não rir do caso como os demais camponeses, que também andavam com apreensões.

— Prometo e juro — disse ele — que me pagará caro a brincadeira!

E que fez? Trouxe na sacola, junto com o pedaço de pão e a cebola, quatro favas secas e quatro costuradas a barbante. Assim que chegou à herdade, tirou selim ao asno e o soltou pelo campo, livremente. Ciché falava com o asno como se fala com um cristão; e o asno, ora erguendo esta, ora erguendo aquela outra orelha, de quando em quando rugia, como se lhe respondesse a seu modo.

— Vá, Chico, vá — disse-lhe nesse dia Ciché. — E esteja atento, porque nos divertiremos!

Furou as favas; amarrou as quatro costuradas a barbante no selim, e as colocou em terra sobre a sacola. Depois afastou-se para começar a trabalhar.

Passou uma hora; passaram duas. De quando em quando, julgando ouvir o som da campainha pelo ar ele erguia o corpo e aprumava as orelhas. Nada. E continuava de movo a carpir.

Chegou a hora da ceia. Perplexo, sem saber se havia de ir logo ao pão ou esperar ainda um pouco, Ciché por fim se decidiu; vendo, porém, tão bem preparada a cilada, resolveu não mexer nela. Nisto, ouviu claramente um tinido distante. Ergueu a cabeça:

— Ei-lo!

E quieto e inclinado, com o coração que lhe pulsava violentamente, deixou o lugar e se escondeu ao longe.

Mas o corvo, como se se estivesse deliciando com o som da campainha, voava, voava, revoava, sempre no alto, cada vez mais alto e não tratava de descer.

— Desconfio que me está vendo — pensou Ciché; e ergueu-se para ir esconder-se mais longe.

O corvo continuou voando sem dar demonstrações de que pretendia descer. Ciché estava com fome, mas mesmo assim não queria dar-se por vencido. Pôs-se de novo a carpir. Espera, espera, e o corvo sempre no alto, como se estivesse fazendo de propósito. Esfomeado, com o pão a dois passos dali, meus senhores, e sem poder pegá-lo! Ciché remoia-se todo por dentro, mas resistia, indignado, obstinado.

— Hás de descer! hás de descer! Também tu hás de ter fome!

O corvo, entretanto, do alto do céu, com o som da campainha, parecia que lhe respondia irônico:

— Nem tu nem eu! Nem tu nem eu!

Passou-se assim o dia. Ciché, exasperado, desafogou-se com o asno, tornando a meter-lhe o selim, de que pendiam, como um adorno de novo gênero, as quatro favas. E enquanto caminhava, mordeu indignado aquele pão, que fora o seu suplício o dia inteiro. A cada mordida, soltava um palavrão para o corvo: — carrasco, ladrão, traidor... — porque não se deixara prender na cilada.

Mas no dia seguinte tudo correu bem.

Armada a cilada das favas com o mesmo cuidado, pusera-se a trabalhar quando ouviu um bimbalhar convulso ali perto e um grasnar desesperado, entre um furioso sacudir de asas. Foi ver o que era. O corvo estava ali, preso pelo barbante que lhe saía do bico e o estrangulara.

— Ah, caíste? — gritou-lhe ele, aferrando-o pelas asas enormes. — É boa a fava? Agora é a minha vez, besta feroz! Vais ver.

Cortou o barbante e, para começar, aplicou dois piparotes na cabeça do corvo.

— Este pelo medo e este pelo jejum!

O asno que não estava muito disposto a arrancar as ervas do caminho, ouvindo grasnar o corvo saiu correndo, em disparada, assustado. Ciché fê-lo parar com um grito e de longe lhe mostrou a besta negra:

— Ei-lo aqui, Chico! Prendemo-lo! Amarrou-o pelos pés, dependurou-o na árvore e voltou ao trabalho. Enquanto carpia, pôs-se a pensar na desforra. Ter-lhe-ia cortado as asas, para que não pudesse nunca mais voar; depois o entregaria aos filhos e as crianças da vizinhança para que se divertissem à custa dele. E ria, ria, entre dentes.

Ao anoitecer, colocou o selim no asno, desamarrou o corvo e prendeu-o pelos pés ao rabicho do asno; cavalgou e se pôs a caminho de casa. A campainha amarrada ao pescoço do corvo, começou a tilintar. O asno eriçou as orelhas e se pôs em pé.

— Vamos! — gritou-lhe Ciché, dando um soco na cabeça do animal.

E o asno se pôs de novo a caminho, não muito conformado com aquele som insólito que acompanhara o seu lento trotear sobre a poeira da estrada.

Ciché começou a pensar que desse dia em diante ninguém mais havia de ouvir bimbalhar no céu o corvo de Mizzaro. Tinha-o ali e não dava mais sinal de vida.

— Que fazes? — lhe perguntou, virando-se e dando-lhe uma chicotada. — Estás dormindo?

O corvo, em resposta ao látego:

— Cráh!

Diante dessa voz inesperada, o asno estacou de golpe, com as orelhas estendidas.

Ciché explodiu numa risada.

— Vamos, Chico! De que te assustas?

E com a corda bateu na orelha do asno. Pouco depois, de novo, repetiu a pergunta ao corvo:

— Adormeceste?

E uma chicotada mais forte. E o corvo, por sua vez, mais forte ainda:

— Cráh!

Mas desta vez o asno deu um salto e saiu em disparada. Em vão Ciché, com toda a força dos braços e das pernas, procurou detê-lo. O corvo, sacudido naquela corrida desenfreada, começou a grasnar como um desesperado: e quanto mais grasnava tanto mais o asno corria, espantado.

— Cráh! Cráh! Cráh!

Ciché gritava, por sua vez, puxava a rédea, puxava, mas já agora as duas bestas pareciam enfurecidas pelo espanto que se incutiam mutuamente, uma grasnando e a outra fugindo. Ecoou, durante certo tempo, dentro da noite, a fúria daquela corrida desenfreada; ouviu-se depois um formidável tombo, e mais nada.

No dia seguinte. Ciché foi encontrado, no fundo de um barranco, esfacelado, sob o asno também esfacelado: uma carniça que fumegava sob o sol, entre nuvens de moscas.

O corvo de Mizzaro, negro no azul da formosa manhã, soava de novo pelos céus a sua campainha, livre e feliz.
Luigi Pirandello

Ler às pilhas é o melhor

Não consigo entrar num estúdio de rádio sem pensar em livros. Aquela mesa oval, enorme, vazia, limpíssima, com um buraco no meio, dá-me vontade de ler.

Imagino-me no buraco, em cima de uma cadeira com rodas, a circular por dentro da mesa, cheia de pilhas e mais pilhas de livros novinhos em folha, todos a competir pela minha atenção.

É assim que está a minha sala de estar neste momento, com pilhas de livros por toda a parte, mas sempre à mão dos sofás onde me sento.

Ainda não foram arrumados – o que, em língua livreira, significa esquecidos, sepultados, comprimidos uns contra os outros para nunca mais poderem dançar.

Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de oito livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo deles todos.

Mas é espantosa a quantidade de pilhas que se pode ter à volta de um sofá – sobretudo com a cumplicidade de umas mesinhas e de uns jornais velhos dobrados, para não serem contaminadas pelo chão.

Na leitura – se é que quer mesmo competir com a Internet – o que conta é o acesso. Isso de uma pessoa levantar-se estraga tudo. Quem consulta paga multa. E então quando não se encontra o raio do livro é preciso percorrer as prateleiras com o mandado de busca nas mãos vazias.

O ser humano lida bem com o número oito. É só uma meia dúzia mais dois: o ideal para uma pilha temática. O segredo é saber fazer as pilhas, segundo os autores, ou as urgências, ou os apetecimentos mais frequentes.

Depois, há a disposição das pilhas: a pilha mais perto de si tem de ser um pódio – e todos os dias tem de ser reavaliada, para ver quem merece lá ficar.

Em cada pilha, o livro de cima é o único que tem o direito de mostrar a capa. Tem de ser muito bem escolhido, porque é esse – a preguiça é tramada – em que mais vezes irá pegar.

Claro que as pilhas são temporárias. São umas férias de Verão, antes de ir para o Inverno das estantes.

quarta-feira, outubro 16

Exercício


 

O lampejo

O poema não voa de asa-delta

não mora na Barra
não frequenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.

Come mal dorme mal cheira a suor,
parece demais com o povo:
é assaltante?
é posseiro?
é vagabundo?
frequentemente o detêm para averiguações
às vezes o espancam
às vezes o matam
às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.

O poema se vende
se corrompe
confia no governo
desconfia
de repente se zanga
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.

O poema é confuso
mas tem o rosto da história brasileira:
tisnado de sol
cavado de aflições
e no fundo do olhar, no mais fundo,
detrás de todo o amargor,
guarda um lampejo
um diamante
duro como um homem
e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.
Ferreira Gullar

O vento noroeste

Ou muito me engano (e nesse caso corrija-me o Gabinete de Meteorologia) ou foi mesmo o Vento Noroeste que se pôs desde dez horas de anteontem a soprar sobre a cidade, secando o coração das gentes. O vento desceu subitamente do céu da madrugada, onde brilhava, numa lucidez de entreloucura, grande como uma lágrima da noite, a desvairada estrela da manhã. Primeiro numa rajada fria, que trazia na epiderme farfalhante um pouco do éter das altas regiões de onde chegava. E logo tornou-se morno, depois aqueceu. E partiu à solta, crestando a face lisa da aurora, fazendo crepitar as folhas das árvores, evaporando o mar que inaugurou de verde o dia nascente. A mim secou-me os olhos, a boca e a alma perseguida de insônia, e me tornou áspero o lençol, e me trouxe lembranças secas de vida. Assisti ao dia nascer como se visse um diamante cortar vidro e ficasse inelutavelmente a respirar a poeira implacável do carvão remanescente.

Depois dormi e sonhei. Mas meus sonhos tinham também uma secura de cal. Vi se estorcer em chamas o antigo cadáver de uma moça que morreu tísica e se chamava Alice. Vi homens se arrastando atrás de mulheres sobre um chão de giletes. Vi troncos musculares de fícus arfando em dispnéias vegetais. Vi se queimarem atmosferas enormes em clarões de cloretila. Depois acordei com a boca seca e uma sede de chupar limão verde.

De saída para o Centro, pude sentir o mal que o Noroeste, esse Leviatã dos ventos, estava fazendo à cidade. Na esquina de minha casa tinha desaparecido uma criança, que a mãe buscava em gestos de Guernica. No ônibus (pegara um marcado "expresso") várias pessoas tinham-se esquecido que esses carros são diretos e quiseram saltar em Copacabana, mas o chofer não deixou porque é proibido. A palavra "proibido" ganhou uma tal secura, ao Vento Noroeste, que por um instante eu tive a visão do homem carioca afogado em cinzas. Não podia saltar onde queria, mesmo pagando. A companhia de ônibus não deixava.

Precisaria pegar outro ônibus, ou então um lotação, para voltar. Nesse meio tempo já tinham saído várias discussões e na avenida Atlântica houvera um desastre com dois ônibus vermelhos da linha Ipanema: um deles chegara até a beira do passeio, quase a cair na areia, e tinha uma cara sedenta, como se tivesse querido se afogar. Na Glória, a carcaça de outro ônibus que ardera amontoava-se no asfalto. Aquilo lembrou-me, em grande, um esqueleto incinerado que vi no cinema, saindo de um forno, num dos campos de concentração nazista. De vinda para a redação, vi dois homens brigando corpo a corpo. Agrediam-se como cães danados e depois um pegou uma pedra para arrebentar a cabeça do outro, e só por um acaso não acertou.

E agora, escrevendo esta crônica que é a seca expressão da verdade, eu vejo que o Noroeste está querendo secar até a tempestade que se anuncia na tarde erma. Não, que o Vento Noroeste não seque a tormenta que há de desafogar a cidade. Vinde, trovões mensageiros; rasgai o céu, relâmpagos! Que as águas de um novo dilúvio desabem sobre a cidade angustiada e encharquem a terra de lama e as árvores de seiva. Que desçam os raios e sangrem o flanco flácido dos morros e que se rejuvenesça o coração dos homens. Que o ar se rompa em rajadas frescas e se repousem os cabelos das mulheres, frementes de eletricidade.

Que deixem de ranger os papéis da burocracia, sacados pelo Vento Noroeste. Que pare, que pare imediatamente o sopro desta bisnaga de ar quente a soprar sobre a dentina dolorida da cidade. Que venha o Azul, o Azul, o Azul, o Azul!

Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

Uni, duni, tê

Nunca me dei bem com os números. Primeiro, apanhei nas aulas de matemática durante toda a vida escolar. Agora, sofro para decorar telefones, senhas, datas e, principalmente, apartamentos. Batata: chego diante de um prédio, sei que é ali o endereço em que devo ir, mas não decoro o bendito número do apartamento.


Quando há porteiros, o problema pode ser sanado com uma pequena dose de constrangimento. Digo o nome do morador, confesso que esqueci o apartamento dele, recebo um pouco de boa vontade e consigo ser anunciado. Pior é quando fico diante daquele painel de botões, todos com os mesmos números: 101, 102, 103 etc. Na base da sorte, lembro o andar. Também parto para deduções: é nos fundos e, por convenção, os primeiros números contemplam os apartamentos de frente. Logo, é 505, 506, 507 ou 508. Uni, duni, tê…

A violência urbana entra como fator complicador. Quando escolho o apartamento na base do palpite, e erro, quem está ao interfone fica muito desconfiado. Menos quando é uma idosa, que abre a porta sem medo. Mas aí corro outro risco: estou dentro do prédio, mas ainda não sei qual é o apartamento. Em edifícios antigos tudo é mais fácil – as portas já estão repletas de diferenças. Ou tem uma samambaia, ou um vaso com espada de Espada de São Jorge, ou o modelo da grade é diferente, ou tem aquele capacho peculiar… Pior são os edifícios novos e seu padrão rígido de design, tão mais harmônico quanto impessoal. Aí é torcer para que o amigo seja judeu e tenha à direita de sua porta o Mezuzá.

Minha redenção chegou em forma de tecnologia: telefone celular. Em sua agenda, posso colocar nome, números e endereço. Ou basta ligar para o morador e avisar que estou ali na rua, já defronte ao prédio. O celular ainda conta com uma vantagem adicional, que é a de não precisar mais decorar o número do sujeito. Digito o nome e ele já sabe (agora mesmo que desaprendi os telefones dos amigos). Se eu perder o aparelho ou o chip, estou frito.

Em tudo sou diferente dos profissionais de portaria. Para eles, decorar os números é questão de qualidade. Os apartamentos passam a ser uma espécie de sobrenome dos moradores. Se o jardineiro perguntar quem entrou agora mesmo, o porteiro responderá que foi o seu João do 403. Quem? O esposo da dona Maria Rita do 403. Ah, o pai do Julinho do 403! Nem Cunha, nem Santos, nem da Silva. A família (incluindo o cachorro) passa a ser os do 403. E não apenas para consumo interno: se um prestador de serviços perguntar quem é o síndico, dirão o nome do seu Ivo do 607.

Saudade do tempo em que a maioria das pessoas com quem eu me relacionava habitava casas localizadas em bairros. Bastava ir uma única vez e já estaria decorado. E, se fosse o caso de referir, dizia: o Roberto, da casa verde, de esquina. Ou aquela do telhado alto, com janelas brancas, muro marrom. Nada de números, apenas imagens. Muito mais humano! Afinal, quando estou diante do porteiro especulando um apartamento e o morador está em dúvida de quem seja eu, ele não informa o RG. Sempre escuto: é um rapaz magrinho, branquinho, assim meio calvo…

Rubem Penz

Sobre livros e leitura

Podemos interpretar uma pintura ou uma música durante ou após o processo de fruição, mas o objeto artístico é-nos oferecido sensivelmente e de uma forma completa na sua existência física. O livro não. Sem leitura não existe

Livro aberto

Em Matéria Escrita, Gabriel Orozco diz que “um livro fechado não é arte”. De facto, é a leitura que cria o livro e o constrói a partir dos signos de tinta impressos em papel (ou mais vulgarmente em papel). Podemos interpretar uma pintura ou uma música durante ou após o processo de fruição, que é um mecanismo fundamental da arte (a abertura à interpretação), mas o objeto artístico é-nos oferecido sensivelmente e de uma forma completa na sua existência física. O livro não. Sem leitura não existe. Aliás, com a notação musical temos um fenómeno semelhante: a partitura só é música quando é lida e, preferencialmente, executada.

Massimo Recalcati, em A Libro Aperto, escreveu o seguinte: “Um livro fechado é, na verdade, um contra-senso: não é um livro. Como o mar, o livro é uma imagem extraordinária do “aberto”. Abre o mundo em vez de o fechar. Um livro é um mar e não um muro.”


Teoria da cesta

A caça tem uma narrativa que culmina com a morte — bem como a guerra —, resumida em sangue e morte e bravura e crueldade. É fácil transformar uma caçada numa épica história de heróis e grandiosos feitos. A recolha de bagas, folhas, frutos e raízes não. O herói regressa suado e sujo com um mamute às costas ou com uma baleia-branca debaixo do braço, enquanto o recoletor passou o dia a apanhar umas bagas, umas raízes, umas folhas, nada de muito hollywoodesco ou aparentemente cativante, olha, apanhei mais um morango silvestre, e mais outro e mais outro e mais outro. E, no entanto, Ursula k. Le Guin, ao refletir sobre isso, desenvolveu uma teoria literária, a teoria da cesta, uma abordagem alternativa à narrativa convencional do herói e da sua jornada (jornada essa que se baseia sobretudo na ideia de um protagonista individual, o tal herói, sendo este secundado por alguns amigos que servem apenas para assegurar o sucesso do primeiro na sua demanda épica). Na teoria da cesta valoriza-se a cooperação e a contribuição de vários personagens para a narrativa, observam-se as várias interações sociais e comunitárias, as conversas, os pequenos episódios, formando uma teia, um tecido, mais do que uma seta. A cesta é rizomática, não é uma arma que se dispara. Enquanto o herói destrói, se for preciso, meio mundo para assegurar a vitória e uma princesa ou outra, arrasando pelo caminho uma Tróia qualquer, numa trama cheia de relações hierarquizadas, a teoria da cesta, em contrapartida, centra-se numa narrativa de sustentação, onde a cesta é vista como um símbolo da coleta e partilha de recursos para o bem da comunidade, em oposição à conquista individual. Na teoria da cesta não se matam dragões: enfatiza-se uma relação mais gentil ou harmoniosa com a natureza e seus recursos, não havendo muito sangue a correr. E, contudo, este contexto não é isento de tensão, nem tudo é um mar de bagas quando se vive a recolhê-las. A diferença é que há menos espalhafato, os seus eixos são mais discretos, por vezes insidiosos: são os venenos de plantas e cogumelos, de sapos ou escorpiões, são as picadas mortais de insetos, são as doenças, e a contraparte psicológica de tudo isto, a intriga, a mentira, o ciúme, o insulto, a traição, a solidão. O herói também poderá relacionar-se com isto, mas resolve os problemas de forma diferente, por exemplo, prendendo Heitor ao carro de combate, arrastando-o pelo campo de batalha.

Como Darwin tratava os livros e a poesia

Darwin, quando se encontrava perante um calhamaço, não tinha qualquer pejo em rasgá-lo pela lombada, para que fosse manejável, isto é, dividi-lo em dois tomos mais finos, menos pesados. Alem disso, também era capaz de arrancar secções que não lhe interessavam e deitá-las fora. Eu nunca fui capaz de magoar um livro dessa maneira, nem sequer sublinhar, que já me parece uma ofensa suficientemente grande, apesar de ser sensível ao desapego pelo objeto material que Darwin evidenciava.

Há ainda um outro dado mais ou menos inesperado no que concerne aos livros e à leitura. Na sua autobiografia, escrevendo sobre a sua relação com a poesia, Darwin confessou: “Não aguento ler uma linha de poesia. Tentei recentemente ler Shakespeare e achei aquilo tão insuportavelmente aborrecido que me agoniou.”
Afonso Cruz 

terça-feira, outubro 15

leitura a qualquer tempo

 


A vida

A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida...

Quando se vê, passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado..
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava
o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca
dourada e inútil das horas...
Seguraria o meu amor, que está a muito à minha frente, e diria
EU TE AMO...
Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido
à falta de tempo.

Não deixe de ter alguém ao seu lado
por puro medo de ser feliz.

A única falta que terás será desse tempo que infelizmente...
não voltará mais.
Mario Quintana