segunda-feira, junho 30

Leitura par anjo


 

Galinha cega

Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:

— Frangos BONS E BARATOS!

Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.

— Psiu!

Foi o cavalo que ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.

— Quanto? …Tanto.

Mas puseram-se a discutir exaustivamente os preços. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador brusco.

— Olhe esta franguinha branca. Então não vale? Está gordota… E que bonitos olhos ela tem. Pretotes… Vá lá!

O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:

— Frangos BONS E BARATOS!

Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.

— Olha, Inácia, o que eu comprei.

A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada.

— Olha os olhos. Pretotes…

— É.

— Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.

— É.

No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as penas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava divertidíssimo.

A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.

A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava em seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre rodas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro todo se agitava, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas. Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha visto um fogo de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna… Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.

Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal. Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha… Sujeito cacete. O galo — có, có, có — có, có, có — rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo.

— A melhor galinha, Inácia! Boa à beça!

— Não sei por quê.

— Você sempre besta! Pois eu sei…

— Besta! besta, hein?

— Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto da galinha e fica me amolando.

— Besta é você!

— Eu sei que eu sou.

Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansaram em suas penas brancas, no seu portefirme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A branquinha — era o nome que o dono lhe botara — bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago de milho e repetia o golpe, repetia com desespero, até catar um grão que nem sempre era aquele que visava. O dono correu atrás de sua branquinha, agarrou-a, lhe examinou os olhos.

Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até que ela se fartasse. Mas não conseguiu com o gasto de milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do céu. Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai… Nem por sombra imaginou que era a cegueira irremediável que principiava.

Também a galinha, coitada, não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.

Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto.

Era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se anularia, quietinha, se finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.

Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra.

Queria ver, queria ver! Para depois cantar. As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.

— A coitada está cega, Inácia! Cega!

— É.

Nos olhos raiados de sangue do carroceiro (ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas enormes.

Religiosamente, pela manhãzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. Asbicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro da água. A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar.

Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do poço. Aquela água era como uma bênção para ele. Como a água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura. Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha) que construíra especialmente para ela. De tardinha dava-lhe outra vez milho e água, e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado. Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.

Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delidas lembranças da claridade sumida. No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário.

Ainda tinha liberdade — o pouco de liberdade necessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato.

Em determinadas tardes, na ternura crescente do parati, ele pegava a galinha, após dar-lhe comida e bebida, se sentava na porta do terreiro e começava a niná-la com a voz branda, comovida:

— Coitadinha da minha ceguinha!

— Tadinha da ceguinha…

Depois, já de noite, ia botá-la no poleiro solitário.

De repente os acontecimentos se precipitaram.— Entra! — Centra!

A meninada ria a maldade atávica no gozo do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não chutavam com tanta força como a uma bola, mas chutavam, e gozavam a brincadeira.

O carroceiro não quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta. — Você chicoteou o filho do delegado.

Vamos à delegacia. Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quase que correndo para casa.

— Onde está a galinha, Inácia? — Vai ver.

Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue… Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.

— Não fui eu não! Com certeza um gambá!

— Você não viu?

— Não acordei! Não pude acordar!

Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando: — Me acudam!

Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é paud’água. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho. GOSTOSAMENTE.

De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas 20 horas o sono chegou. Cansado da insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas acordou justamente na hora precisa, necessária. A porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.

Foi se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhadas rápidas o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes, e começou a rir: — Kiss! kiss! kiss!

(Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas por exemplo. Bêbado.)

O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece os surtos de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizado:

— Vai embora, seu tratante!

O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o

bichinho e começou a cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana:

A lua como um balão balança!
A lua como um balão balança!
A lua como um…


E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.
João Alphonsus, “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”

Copacabana 1945

II

A mensagem abortada
de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.

Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.

Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.

Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.

Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.

Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.

Paulo Mendes Campos

A flor de vidro

E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz.
(Zacarias, XIV, 7)



Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante.

— Marialice!

Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta de Rosária ou do seu pensamento.

— Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!

Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça.

Lançou-se pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu entre aleias de eucaliptos, atingindo a várzea.

Marialice saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente:

— Oh, meu general russo! Como está lindo!

Não envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois — sem vaidade, sem ânsia de juventude.

Antes que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que Marialice viera para sempre.
Horas depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o que fizera na sua ausência.

Preferiu responder à sua maneira:

— Ontem pensei muito em você.


A noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô, mas se convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois.

As moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não vieram.

Acordou cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não vendo Marialice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu corpo, porém, perpassava uma seiva nova. Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera.

Ao abrir a porta, deu com Marialice:

— Seu preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio?

Contemplou-a maravilhado, vendo-a jovem e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, desejando lembrar-lhe a noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham se esvanecido.

O roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A manhã mal despontara e o orvalho passava do capim para os seus pés. Os braços dele rodeavam os ombros da namorada e, amiúde, interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem da mata — termo de todos os seus passeios — o sol brilhava intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque. Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade:

— Bruto! Ó bruto! Me espera!

Rindo, sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela:

— Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!


De lá, trouxe-lhe uma flor azul.

Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Eronides avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora.

Mais adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, puxando-lhe os cabelos.

A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero.


Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para si as razões do seu terror.

O final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de tremendo aguaceiro, Eronides levou-a à estação.

Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se dos seus lábios.

O lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os trilhos, paralelos, sumindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável solidão.

Na volta, um galho cegou-lhe a vista.
Murilo Rubião, Obra Completa

Sinfonia de uma noite inquieta

Dormia tudo como se o universo fosse um erro; e o vento, flutuando incerto, era uma bandeira sem forma desfraldada sobre um quartel sem ser.

Esfarrapava-se coisa nenhuma no ar alto e forte, e os caixilhos das janelas sacudiam os vidros para que a extremidade se ouvisse. No fundo de tudo, calada, a noite era o túmulo de Deus (a alma sofria com pena de Deus).

E, de repente — nova ordem das coisas universais agia sobre a cidade -, o vento assobiava no intervalo do vento, e havia uma noção dormida de muitas agitações na altura. Depois a noite fechava-se como um alçapão, e um grande sossego fazia vontade de ter estado a dormir.

Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego"

domingo, junho 29

Serventia dos livros

 


Apaguem as luzes

Apaguem as luzes, estou com medo. Não sabia que existiam criaturas assim, vorazes, na escuridão, cegas a tudo a não ser à própria fome, ou à própria gula, sabe-se lá com que intenção nos caçam tanto assim. Melhor fazer de conta que nunca as vimos e que se as vimos isso ajudou a afastá-las, ao invés (pelo menos é o que a gente espera!) de atraí-las. Banqueiro por dinheiro é tubarão por sangue. Quantas outras coisas existem, afora dinheiro e sangue, que produzam uma tal leminguização do Homo Sapiens?

Lembrei agora a história do cego de nascença que, finalmente curado, ao atravessar as avenidas sentia-se mais seguro quando fechava os olhos, porque não registrava as motos resfolegantes, os ônibus de bote armado, os carros-esporte velozes e indiferentes. Fechava os olhos; e atravessava. Retornava ao lusco-fusco do somente áudio, onde se sentia mais senhor de si.

Melhor deixar as luzes do país bem apagadas. Eu não esperava tanto serpentário espalhado em bairros dos mais belos jardins, em gente do mais branco sorriso, em famílias que ostentam amor e solidariedade na lapela. Melhor ter desligado o P. A., ou ter abaixado a chave no quadro-de-luz, do que permitir que uma tamanha algazarra midiática revelasse o país inteiro a si mesmo, assim, de chofre, ao longo de uma ou duas décadas de pura vertigem, de voo cibernético, de strip-tease desta nação véia diante do espelho.

A Web tornou-se a tela íntima e pública dos nossos pensamentos, desde o melhor que há nos artigos ao pior que há nos comentários. Antes você tinha o cinema, aquela telona gigantesca. De repente, do lado oposto você tem cem mil telinhas, como se fosse aquelas histórias de Marc Laidlaw sobre uma parede com cem apartamentos, em dez camadas de dez. É mundo demais, realidade demais, vampirismo curitibano demais, nelsonrodriguismo demais. O “cerumano” não pode ser tão previsivelmente real assim. Apaguem já essa luz.

Eu preferiria aquelas elegias melancólicas que falam do fim do mundo como um lento e imperceptível anoitecer. Deixar a vida aos poucos, como o ficando-reto de uma onda, não com a guilhotina súbita de um interruptor.

Tive um susto danado com o que vi, obrigado por terem desligado. Bem, continuo vendo tudo à minha frente. Engraçado isso. Acho que deve ser o conhecido fenômeno da persistência retiniana, que mantém vivo, por frações de segundo, o lampejo do entrevisto. Engraçado. O lampejo ainda não sumiu. Mesmo com as luzes apagadas, consigo ver tudo. Não é como se estivesse vendo mesmo, pra valer, luz acesa olhos abertos. É um fantasma do que eu vi, mas ele é tudo que minha lembrança é capaz de ver agora.
Braulio Tavares

O mundo lá fora não é lugar para os inseguros

Saudação a Rodolfo Walsh (1927-1977) e Wander Piroli (1931-2006), gente do jornalismo feito no corpo a corpo com a vida.

Para Liliane Pelegrini

Certa vez, na fase mais aguda do golpe, por conta do envolvimento em agitações no meio estudantil, precisei me refugiar por um tempo em Belo Horizonte. E tive uma garota na cidade. Uma garota cujo nome nunca fiquei sabendo.

Ela passou para me apanhar na rodoviária num começo de noite chuvoso e abafado, dirigindo um fusca bege com um dos para-lamas amassado, porém limpo, cheiroso, talvez o carro mais asseado em que entrei na vida. Num dos vidros laterais, um adesivo de uma chapa que concorria ao diretório acadêmico da Faculdade de Direito; no oposto, o escudo do Atlético — era a época em que reinava em Minas sua majestade o rei Dadá I e único.

Eu havia decidido sair de São Paulo de ônibus, durante o dia, calculando que o aeroporto estaria mais vigiado do que a rodoviária. Eu estava queimado, não ia demorar para minha foto começar a aparecer nos cartazes de gente procurada. Na verdade, todos os envolvidos na ação do Sete de Setembro já tinham sido identificados, as quedas podiam começar a qualquer momento. Pouca gente sabia que eu me esconderia em BH até a poeira baixar.

Vi a garota logo que desembarquei com uma bolsa a tiracolo e um exemplar da revista Intervalo debaixo do braço. Estava parada no acesso à área de saída, com uma revista idêntica nas mãos. Era jovem, bem jovem. Jeans, camiseta, óculos de grau. O cabelo pintado de loiro. Militante secundarista, pelo que eu sabia. Parecia mais um assunto do juizado de menores do que dos grupos de repressão. Me chamou de Professor desde o princípio, então nem precisei confirmar o codinome que vinha usando. O nome-de-guerra dela era Laura.


No carro, pediu que eu mantivesse a cabeça abaixada, para não reconhecer o trajeto. Uma medida supérflua: era minha primeira vez na cidade, não fazia a mínima ideia de nada. Mantive os olhos nos sapatos que Laura usava, com os cadarços desamarrados, um tanto masculinos, embora houvesse graça e leveza na maneira como ela alternava os pés nos pedais do fusca.

Pouco falamos. Ela dirigia concentrada no fluxo vagaroso de veículos, e demorou até encontrar uma vaga para estacionar. Quando conseguiu, deduzi, pelo movimento intenso de gente e pela presença de bares, lojas e hotéis, que estava em algum ponto da região central. Caminhamos até uma esquina, evitei ler o nome da rua numa placa. Laura apontou um sobrado verde do outro lado da avenida. Uma pensão.

É provisório, só pra resolver essa emergência.

E me estendeu um papel com um número anotado.

Decore e jogue fora. Se precisar de alguma coisa, tem um orelhão na esquina.

Riu com um encanto juvenil.

Tá funcionando, eu testei. Só precisa de ficha.

E me entregou um punhado delas.

Depois, me deu a mão pequena e quente, desejou sorte e aguardou que eu atravessasse a rua, em meio ao tráfego indócil, e tocasse a campainha da casa. Quando abriram a porta, olhei para trás. Laura havia sumido.

Me fizeram entender que aquela pensão funcionava também como um rendez-vous as risadas e o movimento contínuo de homens e mulheres que eu ouvia no corredor, depois que me instalei num quarto nem sujo, nem limpo no andar de cima. O banheiro era coletivo.

Fiquei deitado no escuro, insone, ardendo ainda na adrenalina da viagem, tentando pensar em coisas boas para não lembrar das ruins. Numa das paradas do ônibus, cismei que um dos passageiros me observava. Um cara fortão, com cabelo de reco e ares de cana. Disfarçou quando notei que me espiava no espelho à nossa frente, enquanto lavava as mãos na pia do banheiro. A paranoia pesava bem mais que minha bagagem.

Pode ser medido em minutos, e não mais de trinta, o tempo que consegui dormir, antes que um estrondo na porta me pusesse sentado na cama, alerta. Na bolsa eu levava documentos falsos e um .38 que nem sabia usar direito. Preferi recolher e vestir a calça que estava sobre a cadeira; não seria nada elegante sair à rua algemado só de zorba, se fosse capturado vivo.

Outro esbarrão na porta. Iam invadir o quarto. Considerei a janela entreaberta, que dava para a rua molhada e escura lá embaixo, a anos-luz de distância. Garantia de fraturas múltiplas e/ou morte.

Então ouvi a voz da mulher tentando acalmar o homem. Discutiam na porta do quarto. Bêbados. Até que se afastaram pelo corredor, o que não serviu para me trazer alívio. Continuei sentado na cama, assombrado pela súbita lembrança de que, no curto tempo que consegui desligar, tinha sonhado com crianças dilaceradas. Não dormi mais depois disso.

Assim que o dia clareou, desci à rua, comprei o Estado numa banca e entrei num bar de esquina, em busca de um café. Ocupei um lugar na ponta do balcão, de onde podia examinar à vontade a fauna presente no recinto. O movimento era intenso, gente miúda a caminho do trabalho, um ou outro egresso da farra noturna, uns engravatados. A funcionária que anotava os pedidos nas mesas me olhou e sorriu com simpatia. A chuva lá fora tinha parado e a manhã prometia mais um dia abafado.

Folheei o jornal, não encontrei nada que interessasse. As notícias falavam de um país diferente daquele que se degradava ao meu redor. Até o horóscopo mentia.

Um sujeito vestido com um macacão de um posto de gasolina encostou-se ao meu lado no balcão, sobre o qual depositou algumas moedas. Foi a senha para que o balconista, sem nem mesmo trocarem um bom-dia, servisse a ele um copo americano com quatro dedos de cachaça, consumida em dois goles rápidos, arrematados por uma careta. Saiu sem dizer adeus.

Bem nessa hora reparei no rapaz do ônibus parado em frente à banca, de papo com o jornaleiro. Era ele? Não dava para ter certeza. Porém parecia muito, com a diferença de que agora usava um boné. Por que ele não me abordava e acabava com aquilo de uma vez? Na certa, por interesse nas minhas conexões na cidade. Lamentei ter deixado o revólver no quarto.

Paguei a conta e saí do bar. Enquanto atravessava a avenida, me voltei na direção da banca de jornais. O homem agora me observava sem nenhuma preocupação em dissimular. Acelerei o passo e, ao invés de retornar à pensão, segui direto até o orelhão na esquina oposta.

Laura surgiu com seu fusca para me pegar uma hora depois. Parecia mais velha num vestido verde e com o cabelo contido por uma fita — raízes castanhas brotavam em meio aos fios loiros pedindo retoque. Para facilitar o acesso aos pedais, ela suspendeu o vestido acima dos joelhos, descobrindo uma boa porção das coxas morenas. Aquilo mexeu comigo — fazia meses que eu não ficava com uma mulher. Eu não conseguia parar de olhar. Laura percebeu, sorriu de um jeito discreto.

Comentei que havia um cara me seguindo, desde São Paulo. Ela tirou por um segundo do trânsito e pôs sobre mim os olhos que as lentes dos óculos tornavam maiores, e havia ali astúcia e um leve estrabismo. Laura espiou no espelho retrovisor a rua vazia atrás de nós.

Já vamos saber.

Ela diminuiu a velocidade, parou o carro debaixo de uma árvore, puxou o freio de mão. E ali aguardamos por algum tempo, tensos, Laura atenta ao retrovisor, eu pensando no trezoitão dentro da bolsa aos meus pés. Um fruto se desprendeu do galho e ricocheteou no capô do fusca, provocando um sobressalto nos dois. Laura riu, de nervoso, depois ficou séria.

Tem certeza que estão te seguindo?

Eu não tinha como saber, e disse isso. Talvez fosse só paranoia mesmo. Uma kombi passou devagar pela rua, anunciando produtos de limpeza num alto-falante.

Você estava na ação do Sete de Setembro, não é? O que aconteceu, afinal?

O companheiro responsável pelos explosivos cometeu algum erro — a bomba explodiu antes da hora.

Naquele dia, eu estava posicionado a uma certa distância, dando cobertura, quando escutei a detonação e tudo ficou tomado pela fumaça. Tumulto, gritos, correria. O palanque onde discursariam as autoridades, que ainda nem haviam chegado, veio abaixo e virou um amontoado de madeira e ferro retorcido. Na confusão, muita gente acabou pisoteada. Duas crianças que estavam nas proximidades foram atingidas e não resistiram. Com a explosão, o companheiro que instalava a bomba perdeu um dos braços.

Pensando bem, ele teve sorte, comentei, morreu a caminho do hospital. Imagine o que fariam com ele se tivesse sobrevivido.

Laura ouviu o relato em silêncio. Então endireitou o corpo no assento e deu a partida no carro.

Bom, se tinha alguém te seguindo, acho que a gente conseguiu despistar. Vamos embora.

A casa para onde fui levado ficava numa rua sem calçamento, num bairro operário na parte alta da cidade. Era uma construção simples, sem acabamento, com um jardim descuidado na frente, no meio do qual estava fincada uma placa de “Vende-se”. O telefone de contato anunciado era o mesmo que eu havia memorizado.

Com exceção de um colchonete apoiado diretamente no chão de cimento do quarto e de um espelho preso numa das paredes, não havia qualquer móvel no interior da casa. Sobre a pia da cozinha, alguém tinha deixado um exemplar do livro A erva do diabo, então na moda, numa edição de bolso bastante manuseada. Laura vistoriou o banheiro, um cubículo apertado onde um cano fazia as vezes de chuveiro.

Evite fazer barulho, recomendou, enquanto caminhava em direção à porta. Volto mais tarde pra lhe trazer comida.

Assim que ela se foi, saí ao quintal que existia nos fundos, uma faixa de terra estreita dominada pelo matagal alto e protegida por um muro com cacos de vidro no topo. Uma péssima rota de fuga, em caso de necessidade. Além do muro, no quintal vizinho, alguém ouvia música no rádio no volume máximo. Depois, passei um tempo lendo as peripécias do índio Don Juan no livro do Castañeda. Laura me pegou cochilando no colchonete, quando chegou com a comida, no começo da noite.

Virou uma rotina nos dias seguintes: eu passava um longo tempo no quintal, ouvindo os acontecimentos do mundo no rádio do vizinho. Vigiava a rua e seu escasso movimento de gentes e carros. E dormia boa parte das horas restantes, com o 38 sob o colchonete. No fim da tarde, Laura aparecia com as marmitas que comprava num bar e, enquanto eu comia, conversávamos sobre a situação. Aquela era uma guerra perdida, a gente sabia. Nossa principal tarefa vinha sendo cuidar da sobrevivência a qualquer custo.

Não lembro direito como foi, mas um dia estávamos sentados lado a lado no colchonete, encostados na parede, e aconteceu: de repente, a gente se olhou nos olhos e, sem dizer uma palavra, se agarrou. A partir desse dia, passei a esperar a chegada de Laura com um outro tipo de fome.

Ela era mais velha do que aparentava, inclusive já tinha sido casada — seu companheiro, também militante, estava desaparecido fazia quase um ano.

A história durou até o dia em que ela me entregou, junto com as marmitas, um cartaz dobrado. E lá estava minha foto entre os “terroristas procurados”. A organização havia decidido que era hora de me tirar do país. Foi a última vez que estive com Laura. Na madrugada seguinte, uma kombi passou para me recolher, dando início a uma fuga que terminou, uma semana depois, no Chile, onde me exilei.

Só retornei ao Brasil oito anos depois. E por mais que tenha tentado, nunca consegui apurar a verdadeira identidade de Laura ou o que aconteceu com ela. Às vezes, acho que tudo aquilo não passou de um sonho. Já voltei a Belo Horizonte mais de uma vez. Numa delas, experimentei ligar para o número que memorizei tantos anos atrás. Atendeu numa ótica.

Talvez tenha mesmo sido apenas um sonho. Mais um dos vários que terminaram em pedaços.

Nada nos satisfaz

Se ocasionalmente nos ocupássemos em nos exa­minar, e o tempo que gastamos para controlar os outros e para saber das coisas que estão fora de nós o empregás­semos em nos sondar a nós mesmos, facilmente sentiríamos o quanto todo esse nosso composto é feito de peças frágeis e falhas. Acaso não é uma prova singular de imperfeição não conseguirmos assentar o nosso contentamento em coi­sa alguma, e que, mesmo por desejo e imaginação, esteja fora do nosso poder escolher o que nos é necessário? Dis­so dá bom testemunho a grande discussão que sempre houve entre os filósofos para descobrir qual é o soberano bem do homem, a qual ainda perdura e perdurará eterna­mente, sem solução e sem acordo: Enquanto nos escapa, o objeto do nosso desejo sempre nos parece preferível a qualquer outra coisa; vindo a desfrutá-lo, um outro desejo nasce em nós, e a nossa sede é sempre a mesma. (Lucrécio).

Não importa o que venhamos a conhecer e des­frutar, sentimos que não nos satisfaz, e perseguimos cobi­çosos as coisas por vir e desconhecidas, pois as presentes não nos saciam; em minha opinião, não que elas não te­nham o bastante com que nos saciar, mas é que nos apo­deramos delas com mão doentia e desregrada: Pois ele viu que os mortais têm à sua disposição praticamente tudo o que é necessário para a vida; viu homens cumulados de riqueza, honra e glória, orgulhosos da boa reputação de seus filhos; e entretanto não havia um único que, em seu foro íntimo, não se remoesse de angústia e cujo cora­ção não se oprimisse com queixas dolorosas; compreendeu então que o defeito estava no próprio recipiente, e que esse defeito corrompia tudo de bom que fosse colocado de fora em seu interior (Lucrécio).

O nosso apetite é indeciso e incerto: não sabe con­servar coisa alguma, nem desfrutar nada da maneira certa. O homem, julgando que isso seja um defeito dessas coi­sas, acumula e alimenta-se de outras coisas que ele não sabe e não conhece, em que aplica os seus desejos e espe­ranças, honrando-as e reverenciando-as; como diz César: Por um vício comum da natureza, acontece termos mais con­fiança e também mais temor em relação às coisas que não vimos e que es­tão ocultas e desconhecidas.
Michel de Montaigne, "Ensaios"

Igual-desigual


Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol
são iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade, "A Paixão medida"

Calor humano

Não, não fazia vermelho. Era quase de noite e estava ainda claro. Se pelo menos fosse vermelho à vista como o era intrinsecamente. Mas era um calor de luz sem cor, e parada. Não, a mulher não conseguia transpirar. Estava seca e límpida. E lá fora só voavam pássaros de penas empalhadas. Mas era um calor visível, se ela fechava os olhos para não ver o calor, então vinha a alucinação lenta simbolizando-o: via elefantes grossos se aproximarem, elefantes doces e pesados, de casca seca, embora molhados no interior da carne por uma ternura quente insuportável; eles eram difíceis de se carregarem a si próprios, o que os tornava lentos e pesados.

Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível – que era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E “eu te amo” era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.

Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros – e sobretudo boca voraz de nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada.

Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. “Eu vos amo, pessoas”, era frase impossível. A humanidade lhe era como uma morte eterna que no entanto não tinha o alívio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto tempo sem água e que virara ferro enferrujado. Há dois dias faltava água na cidade. Nada jamais fora tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus olhos diamantes, e de vibração parada. E Deus? Não. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito.

Enquanto isso era verão. Verão largo como um pátio vazio nas férias da escola. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no seu homem? Não, farpa na sola do pé. Filhos? Quinze filhos dependurados, sem se balançarem à ausência de vento. Ah, se as mãos começassem a se umedecer. Nem que houvesse água, por ódio não tomaria banho. Por ódio não havia água. Nada escorria. A dificuldade é uma coisa parada. É uma joia-diamante. A cigarra de garganta seca não parava de rosnar. E Deus se liquefez enfim em chuva? Não. Nem quero. Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível.

Sensível? Não se sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte parada, é a eternidade, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos da punição. Agora é a indiferença de um perdão. Não há mais julgamento. Não é o perdão depois de um julgamento. É a ausência de juiz e de condenado. E a morte, que era para ser uma única boa vez, não: está sendo sem parar. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio enxuto, quero é isto mesmo, que não chova.

E exatamente então ela ouve alguma coisa. É uma coisa também enxuta que a deixa ainda mais seca de atenção. É um rolar de trovão seco, sem nenhuma saliva, que rola mas onde? No céu absolutamente azul, nem uma nuvem de amor.

Deve ser de muito longe o trovão. Mas ao mesmo tempo vem um cheiro adocicado de elefantes grandes, e de jasmim da casa ao lado. A Índia invadindo, com suas mulheres adocicadas. Um cheiro de cravos de cemitério. Irá tudo mudar tão de repente? Para quem não tinha nem noite nem chuva nem apodrecimento de madeira na água – para quem não tinha senão pérolas, vai vir a noite, vai vir madeira enfim apodrecendo, cravo vivo de chuva no cemitério, chuva que vem da Malásia? A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Ela não percebe, a mulher, que o tremor é seu, como não percebera que aquilo que a queimava não era a tarde encalorada e sim o seu calor humano. Ela só percebe que agora alguma coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite. Mas não suporta a espera de uma passagem, e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz em duas lágrimas. E enfim o céu se abranda.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

sábado, junho 28

Encaixotado

 


Três homens na estrada

O encarregado do posto de lubrificação, sozinho àquela hora, estranhou os vultos que vinham a pé, na estrada. O sol nascia; apenas alguns caminhões passavam, transbordando de legumes. Os três homens caminhavam sem pressa, no leito da rodovia, indiferentes ao risco. Motoristas jogavam-lhes palavrões, sem que eles se importassem. Estavam vestidos de maneira inabitual, um de vermelho, outro de verde, outro de roxo; as roupas se assemelhavam a túnicas, dessas que o rapaz da lubrificação estava acostumado a apreciar em filmes de Victor Mature e vira uma só vez na vida real, quando passou por ali, rumo a São Paulo, o carro do embaixador da Índia, e uma jovem morena descera para contemplar a paisagem.

Como os estranhos parassem diante do posto, teve vontade de aproximar-se e perguntar o que desejavam. Mas deteve-se. Eram três, ele estava desarmado, não sabia que espécie de gente era aquela.


O mais alto deles ficava ainda mais esguio olhando para o céu, como quem indaga o tempo. Os outros miravam um ponto vago, esperando decerto que ele comunicasse o resultado da inspeção. Não houve palavras, entretanto. O homem comprido, de vermelho, baixou a cabeça e fitou por sua vez os companheiros. Entendiam-se pelo olhar, era evidente. Não careciam de palavras, ou temiam empregá-las. Tratava-se, realmente, de indivíduos suspeitos.

Mas a suspeição que irradiavam era de natureza especial. O rapaz do posto — já é tempo de chamá-lo Marcos, pois assim fora batizado e registrado — imaginara no primeiro instante que fossem ladrões. Depois, pela excentricidade dos trajes, supusera-os simplesmente loucos. Agora percebia neles a majestade, ao mesmo tempo gloriosa e simples, de personagens de histórias da infância, no Nordeste, quando Carlos Magno ia com ele morro abaixo morro acima, e Rolando e d. Pedro i enchiam o ar com o retintim de espadas românticas.

Não sabendo como falar-lhes, nem recebendo deles qualquer pedido, Marcos estendeu-lhes um copo d’água, que um bebeu devagar, embora o rosto fosse sede pura. Os outros dois fizeram o mesmo, sucessivamente. Agradeceram com os olhos, e foram-se.

Ao chegarem os colegas de trabalho, Marcos, pressentindo a importância do encontro, não quis contar-lhes nada. E eles vinham justamente fazendo troça dos tipos encontrados em caminho, que davam dor de cabeça aos motoristas. Nunca se xingara tanto numa estrada do Rio. Pois os três caminhavam para o Rio de Janeiro, sempre consultando o espaço.

O ônibus freou brusco, para não amassá-los. O motorista quis descer justamente para amassá-los, na raça. Entre os passageiros, as definições variavam: eram contratados de casa comercial, em promoção de festas; tinham bebido demais e erravam a esmo; não, são figuras de rancho ensaiando para Carnaval; ou palhaços de circo, descansando. Fugiram do hospício; são doidos mansos; pois sim, experimenta bulir com eles. Desceram do foguete interplanetário, numa praia fluminense. Marcianos? Isso não: uniformes russos, meu velho.

Marcos trabalhou o dia todo com o pensamento naqueles três homens diferentes que, sem nada falar, lhe insinuaram muitas coisas. Não eram propriamente nobres, se bem que na poeira das vestes se entremostrasse nobreza. Em seu entendimento singelo, Marcos apreendia o recolhimento deles, sentia-os empenhados numa busca infatigável e serena, que não se faz por meio de perguntas. Eram ridículos talvez, exatamente porque não tinham qualquer relação com o lugar por onde passavam, não se serviam de nada que hoje em dia se usa para viajar. De onde vinham, por que vinham, o empregado de um posto de gasolina seria incapaz de saber. Mas sabia intuitivamente que levavam consigo uma alta obrigação.

No dia seguinte, Marcos leu no jornal que foram presos na Penha três indivíduos trajados de modo grotesco, ao atravessarem a linha férrea. Pareciam estrangeiros, nada carregavam, nada souberam responder. O delegado solicitara um intérprete da Polícia Técnica, mas não fora atendido porque era meio- feriado, com expediente suspenso para que toda gente fosse assistir, no Maracanã, com a presença das autoridades, à festa da recepção simbólica aos Três Reis Magos.

Carlos Drummond de Andrade

Mudou o tempo

O mercado havia mudado; hoje em dia havia mais escritores do que leitores. Todo mundo falava ao mesmo tempo e ninguém escutava, como num manicômio. Os únicos livros que as pessoas liam eram livros de dieta, de culinária ou de exercícios físicos. As pessoas não queriam melhorar o mundo, só queriam corpos melhores.

Hanif Kureishi, "A última palavra"

Como um rio

Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.

E de levar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade das funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, sabe seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.

Thiago de Mello, "Mormaço na floresta"

Aceitação da luta

Estive pensando muito na fúria com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?

Quero que abras os olhos, Eugênio, que acordes enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com urna tira de papel. Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo, que não trabalham nem fiam, e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles.

Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar deitados à espera de que tudo nos caia do céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso, nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.

Não penses que estou fazendo o elogio do puro espírito contemplativo e da renúncia, ou de que o povo deva viver narcotizado pela esperança da felicidade na "outra vida". Há na terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos que fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as armas do amor e da persuasão. Considere a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de ação e não um puro contemplativo.

Quando falo em conquista, quero dizer a conquista de uma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, através do espírito de cooperação.

E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo. Refiro-me, sim a aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há de levar.

Erico Verissimo. "Olhai os lírios do campo". 

sexta-feira, junho 27

Inquisição moderna

 


A transfiguração pela poesia

Creio firmemente que o confinamento em si mesmo, imposto a toda uma legião de criaturas pela guerra, é dinamite se acumulando no subsolo das almas para as explosões da paz. No seio mesmo da tragédia sinto o fermento da meditação crescer. Não tenho dúvida de que poderosos artistas surgirão das ruínas ainda não reconstruídas do mundo para cantar e contar a beleza e reconstruí-lo livre. Pois na luta onde todos foram soldados - a minoria nos campos de batalha, a maioria nas solidões do próprio eu, lutando a favor da liberdade e contra ela, a favor da vida e contra ela - os sobreviventes, de corpo e espírito, e os que aguardaram em lágrimas a sua chegada imprevisível, hão de se estreitar num abraço tão apertado que nem a morte os poderá separar. E o pranto que chorarem juntos há de ser água para lavar dos corações o ódio e das inteligências o mal-entendido.


Porque haverá nos olhos, na boca, nas mãos, nos pés de todos uma ânsia tão intensa de repouso e de poesia, que a paixão os conduzirá para os mesmos caminhos, os únicos que fazem a vida digna: os da ternura e do despojamento.

Tenho que só a poesia poderá salvar o mundo da paz política que se anuncia - a poesia que é carne, a carne dos pobres humilhados, das mulheres que sofrem, das crianças com frio, a carne das auroras e dos poentes sobre o chão ainda aberto em crateras.

Só a poesia pode salvar o mundo de amanhã. E como que é possível senti-la fervilhando em larvas numa terra prenhe de cadáveres. Em quantos jovens corações, neste momento mesmo, já não terá vibrado o pasmo da sua obscura presença? Em quantos rostos não se terá ela plantado, amarga, incerta esperança de sobrevivência? Em quantas duras almas já não terá filtrado a sua claridade indecisa? Que langor, que anseio de voltar, que desejo de fruir, de fecundar, de pertencer, já não terá ela arrancado de tantos corpos parados no antemomento do ataque, na hora da derrota, no instante preciso da morte? E a quantos seres martirizados de espera, de resignação, de revolta já não terão chegado as ondas do seu misterioso apelo?

Sofre ainda o mundo de tirania e de opressão, da riqueza de alguns para a miséria de muitos, da arrogância de certos para a humilhação de quase todos. Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço. Sofre o mundo da transformação das mãos em instrumentos de castigo e em símbolos.

De força. Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões.

A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz. Parece tão vago, tão gratuito, e no entanto eu o sinto de maneira tão fatal! Não se trata de desencantá-la, porque creio na sua aparição espontânea, inevitável. Surgirá de vozes jovens fazendo ciranda em torno de um mundo caduco; de vozes de homens simples, operários, artistas, lavradores, marítimos, brancos e negros, cantando o seu labor de edificar, criar, plantar, navegar um novo mundo; de vozes de mães, esposas, amantes e filhas, procriando, lidando, fazendo amor, drama, perdão. E contra essas vozes não prevalecerão as vozes ásperas de mando dos senhores nem as vozes soberbas das elites. Porque a poesia ácida lhes terá corroído as roupas. E o povo então poderá cantar seus próprios cantos, porque os poetas serão em maior número e a poesia há de velar.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto, Obras Completas

Dia da natureza

Hoje eu queria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações...hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se.

Cecília Meireles

O terrível ancião

Era intenção de Angelo Ricci, Joe Czanek e Manuel Silva fazerem uma visita ao Velho Ruim. Esse ancião morava sozinho em uma casa antiquíssima na Rua d’Água, perto do mar, e tinha a reputação de ser ao mesmo tempo muito rico e muito frágil. Tratava-se de uma combinação de qualidades muito atraentes para homens da profissão dos senhores Ricci, Czanek e Silva, que ganhavam a vida praticando aquela atividade que o tempo dignificou: o roubo.

Os habitantes de Kingsport diziam e pensavam muitas coisas sobre o Velho Ruim que, em geral, o mantiam a salvo das atenções de cavalheiros como o Sr. Ricci e seus companheiros, apesar do fato quase certo de que ele ocultava uma fortuna de grandeza indefinida em algum local de sua morada bolorenta e venerável. Com efeito, era pessoa estranhíssima, de quem se acreditava ter sido no passado capitão de clípere das Índias Orientais; era tão velho que ninguém se lembrava do tempo em que era jovem, e tão taciturno que poucos conheciam seu verdadeiro nome. Entre as árvores retorcidas do pátio fronteiro de sua vetusta e desleixada vivenda, ele conservava uma estranha coleção de grandes pedras, agrupadas de maneira esquisita e pintadas de modo a se assemelharem aos ídolos de um obscuro templo oriental. Essa coleção afugentava, amedrontados, a maioria dos meninos que gostavam de implicar com o Velho Ruim por causa de seus cabelos e de sua barba branca, ou de quebrar as janelas de pequenas vidraças de sua casa com perversos petardos. No entanto, haviam outras coisas que assustavam as pessoas mais velhas e mais curiosas que às vezes se esgueiravam até a casa para olhar pelas vidraças empoeiradas.


Diziam essas pessoas que sobre uma mesa no andar térreo viam-se várias garrafas singulares, cada uma delas tendo em seu interior um pedacinho de chumbo suspenso por um fio, à guisa de pêndulo. E diziam que o Velho Ruim conversava com essas garrafas, dirigindo-se a elas por nomes como Jack, Cicatriz, Tomazão, Zé Espanhol, Peters e Imediato Ellis, e que sempre que falava a uma das garrafas, o pequenino pêndulo de chumbo em seu interior produzia certas vibrações claras, como se respondesse. Aqueles que tinham visto o Velho Ruim, alto e macérrimo, mantendo essas esquisitas palestras não procuravam olhá-lo de novo. Mas Angelo Ricci, Joe Czanek e Manuel Silva não tinham sangue de Kingsport; pertenciam àquela geração alienígena, nova e heterogênea, que se situava fora do cativante círculo da vida e das tradições da Nova Inglaterra, e viam no Velho Ruim tão somente um barbudo trôpego e quase caduco, incapaz de caminhar sem a ajuda de sua bengala nodosa e cujas mãos magras e débeis tremiam deploravelmente. A seu modo, na verdade até compadeciam-se daquele sujeito solitário e impopular, de quem todos fugiam e para quem os cães ladravam de maneira singular. Entretanto, trabalho é trabalho, e para um ladrão que dedicou sua alma à profissão há uma atração e um desafio em um homem idoso e débil que não tinha conta no banco e que pagava suas poucas compras na loja da cidade com ouro e prata da Espanha, cunhada há dois séculos.

Os senhores Ricci, Czanek e Silva escolheram para sua visita a noite de 11 de abril. O senhor Ricci e o senhor Silva deveriam entrevistar-se com o infeliz cavalheiro, enquanto o senhor Czanek esperaria, a eles e à sua carga, presumivelmente metálica, com um carro na Rua do Cais, ao lado do portão do alto muro nos fundos da casa do ancião. Foi o desejo de evitar explicações desnecessárias no caso de inesperadas intrusões da força policial que levou a esse planos de partida serena e sem alarde.

Tal como combinado, os três aventureiros puseram-se a caminho separadamente, a fim de evitar quaisquer suspeitas malévolas posteriores. Os senhores Ricci e Silva se encontraram no portão de entrada da casa, na Rua d’Água, e embora não gostassem nada da maneira como a lua brilhava, iluminando as pedras pintadas através dos galhos florescentes das árvores retorcidas, tinham coisas mais importantes em que pensar além de tolas superstições. Temiam que fossem obrigados a tarefas desagradáveis para obrigar o Velho Ruim a se mostrar loquaz a respeito de seu tesouro de ouro e prata, pois os velhos lobos-do-mar são notavelmente cabeça-dura e avarentos. Mas, afinal, ela era velhíssimo e debilíssimo e havia dois visitantes.

Os senhores Ricci e Silva eram experientes na arte de persuadir pessoas obstinadas, e os gritos de um homem fraco e excepcionalmente venerável poderiam ser abafados com facilidade. Assim refletindo, chegaram até uma janela iluminada e ouviram o Velho Ruim conversar infantilmente com suas garrafas com pêndulos. Depois, colocaram máscaras e bateram cortesmente na porta de carvalho, manchada pelo tempo.

A espera pareceu interminável ao Sr. Czanek, que se remexia, impaciente, no carro coberto junto ao portão dos fundos da casa do Velho Ruim, na Rua do Cais. Tinha o coração mais sensível do que o dos comuns mortais, e não apreciou em nada os gritos medonhos que ouviu na casa antiga, pouco depois da hora aprazada para a visita. Não havia ele recomendado aos colegas que mostrassem a maior gentileza possível para com o patético ex-capitão? Nervoso, ele vigiava aquela estreita porta de carvalho no muro revestido de hera. Frequentemente consultava o relógio e se admirava com a demora.

Haveria o ancião morrido antes de revelar onde ocultara seu tesouro, tornando forçosa uma busca rigorosa? Ao Sr. Czanek não agradava esperar tanto tempo no escuro e em tal local. Percebeu então passadas suaves ou arrastar de pés no caminho do outro lado do portão, ouviu que abriam de leve a tranca enferrujada e viu a porta, estreita e pesada, abrir-se para o lado de dentro. E à luz pálida da única luz da rua, esforçou-se para ver o que os colegas tinham trazido de dentro daquela casa sinistra, que parecia agora maior do que nunca.

Entretanto, ao olhar, não viu aquilo que havia esperado; pois não eram seus camaradas que estavam ali, mas apenas o Velho Ruim, apoiado serenamente em sua bengala nodosa e tendo nos lábios um sorriso tétrico. O Sr. Czanek jamais havia notado a cor dos olhos daquele homem; eram amarelos.

Coisas pequenas causam considerável agitação em cidadezinhas, e foi por isso que a gente de Kingsport falou durante toda aquela primavera e todo aquela verão a respeito dos três corpos que haviam sido trazidos pela maré, impossíveis de identificar, horrivelmente dilacerados, como por obra de muitos cutelos, e horrivelmente mutilados, como que pisados por muitas botas cruéis. E algumas pessoas até se detiveram a falar e fatos triviais como o carro abandonado que havia sido encontrado na Rua do Cais, ou de alguns gritos notavelmente inumanos, provavelmente de algum animal extraviado ou de um pássaro migrante, ouvido de noite por cidadãos despertos. Mas por todo esse disse-me-disse ocioso de cidade pequena, o Velho Ruim não demonstrou qualquer interesse. Era, por sua própria natureza, pessoa reservada, e quando se é idoso e débil, as reservas naturais sem dúvida redobram. Ademais, um lobo-do-mar tão entrado em anos só podia ter sido testemunhas de vintenas de fatos muito mais excitantes, nos dias longínquos de sua juventude já esquecida.

H.P Lovecraft

quinta-feira, junho 26

Luz do livro

 


Emergência


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
— para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.
Mario Quintana

Solange, a namorada

Todas as moças perdiam para Solange. Nenhuma podia competir com ela em matéria de namoro. Os rapazes da cidade só alimentavam uma aspiração: que Solange olhasse para eles. Desdenhavam todas as outras, ainda que fossem lindas, cheias de graça e boas de namorar. Namorar Solange, merecer o favor de seus olhos: que mais desejar na vida?

A nenhum deles Solange namorava. Era uma torre, um silêncio, um abismo, uma nuvem. Sua família inquietava-se com isto e pedia-lhe que pelo amor de Deus escolhesse um rapaz e namorasse. O vigário exortou-a nesse sentido. O prefeito apelou para os seus bons sentimentos. Ninguém mais casava, a legião de tias era assustadora. Temia-se pela ordem social.

O desaparecimento de Solange até hoje não foi explicado, mas dizem que em carta endereçada à família ela declarou que, para ser a namorada em potencial de todos, não podia ser namorada de um só, mesmo que sucessivamente trocasse de namorado. Estava certa de que exercia uma função de sonho, que a todos beneficiava. Mas se não era assim, e ninguém compreendia sua doação ideal a todos os moços, ela decidira sumir para sempre, e adeus.

Adeus? Ignora-se para onde foi Solange, mas aí é que se converteu em mito supremo, e nunca mais ninguém namorou na cidade. As moças envelheceram e morreram, a igreja fechou as portas, o comércio definhou e acabou, as casas tombaram em ruínas, tudo lá ficou uma tapera.

Carlos Drummond de Andrade, "Contos Plausíveis"

Mundo engraçado

O mundo está cheio de coisas engraçadas; quem se quiser distrair não precisa ir à Pasárgada do Bandeira, nem à minha Ilha do Nanja; não precisa sair de sua cidade, talvez nem da sua rua, nem da sua pessoa! (Somos engraçadíssimos, também, com tantas dúvidas, audácias, temores, ignorância, convicções...)

Abre-se um jornal – e tudo é engraçado, mesmo o que parece triste. Cada fato, cada raciocínio, cada opinião nos faria sorrir por muitas horas, se ainda tivéssemos horas disponíveis.


Há os mentirosos, por exemplo. E pode haver coisa mais engraçada que o mentiroso? Ele diz isto e aquilo, com a maior seriedade; fala-nos de seus planos; de seus amigos (poderosos, influentes, ricos); queixa-se de algumas perseguições (que aliás, profundamente despreza); às vezes conta-nos que foi roubado em algum quadro célebre ou numa pedra preciosa, oferecida à sua bisavó pelo Primeiro Ministro da Cochinchina. O mentiroso conhece as maiores personalidades do Mundo – trata-as até por tu! Seus amores são a coisa mais poética do século. Suas futuras viagens prometem ser as mais sensacionais, depois dessas banalidades de UIisses e Simbad... Certamente escreverá o seu diário, mas não o publicará jamais, porque é preciso um papel que não existe, um editor que ainda não nasceu e um leitor que terá de sofrer várias encarnações para ser digno de o entender.

Em geral os mentirosos são muito agradáveis, desde que não se tome como verdade nada do que dizem. E esse é o inconveniente: às vezes, leva-se algum tempo para se fazer a identificação. Uma vez feita, porém, que maravilha! – é só deixá-los falar. É como um sonho, uma história de aventuras, um filme colorido.

Há também os posudos. Os posudos ainda são mais engraçados que os mentirosos e geralmente acumulam as funções. O que os torna mais engraçados é serem tão solenes. Os posudos funcionários são deslumbrantes! Como se sentam à sua mesa! Como consertam os óculos! Que coisas dizem! As coisas que dizem são poemas épicos com a fita posta ao contrário. Não se entende nada – mas que diapasão! Que delicadas barafundas! Que sons! Que ritmos! Seus discursos e as palmas que os acompanham conseguem realizar o prodígio de serem a coisa mais cômica da terra pronunciada no tom mais sério, mais grave, mais trágico – de modo que o ouvinte, que rebenta de rir por dentro, sofre uma atrapalhação emocional e consegue manter-se estático, paralisado, equivocado.

Os posudos, porém, são menos agradáveis que os simples mentirosos. Os mentirosos têm um jeito frívolo, como se andassem acompanhados de um criado que anunciasse: "Não creiam em nada do que o meu amo diz!" Mas os posudos levam um séqüito de criados, todos posudos também, que recolhem nas sacolas, grandes e pequenas gorjetas, porque uma das qualidades do posudo é andar sempre com muito dinheiro – que não é seu!

Cecília Meireles

No dia da cor vermelha

Mistério , vai-te, esmagas-me! Ah, partir
Esta cabeça contra aquele muro.

Fernando Pessoa, “Fausto”

Ainda não tinha vestido totalmente o vermelho, já os gritos lhe chegavam.

Ouviam-se distintamente. Seria fácil localizá-los. Gritos estrídulos, misturados com o retinir do metal e o silvo de imprecações, espalhando-se sem ordem e rigor. E eis que apareciam algumas palavras. Erguiam- se em altaneiro porte, estrebuchando conflito, apesar de minadas pela doença que lhes deformava o corpo e dominava a mente.

Volúpia. Dinheiro. Insurreição. Ganância . Soberba. Lucro. Uma plataforma de palavras afins , organizada em hordas cruéis a subjugar outras de significantes mais nobres. Esgrimiam-se apesar da beleza que o encarnado, o vermelho pode incorporar.

O tempo da riqueza pela riqueza enchera as cabeças de cifrões. E era do dinheiro o maior poder. O maior sortilégio daquele tempo. Como estancar tal perfume ?

Enquanto discorria, as palavras sucumbiam em aflitiva luta pela sobrevivência. O jugo das mais fortes oprimia as mais discretas, as mais límpidas, embora estas não se permitissem morrer. Gritavam em surdina, em nítido contraste com a estridência dos opressores que enchia o ar.

Começaria pela fome, pela pobreza, pelo desespero, pelo desemprego, pelo abandono, pela velhice, pela natalidade, pela saúde, pela paixão, pela felicidade. Todas eram importantes. Todas acorriam à sua passagem numa súplica justificada . Escapava-lhe, porém, a mais valiosa. Aquela que seria capaz de redimir, aquela cuja força regeneradora era reconhecida: a Dignidade.

Ainda não a vira. Não a distinguira entre os gritos. Onde estaria? Que seria dela?

Procurou-a.

Ofegante, inanimada esmorecia com o peso da ganância que a violentava num esforço heroico, enquanto as forças ainda lhe pertenciam. Numa Travessa sem nome, estavam em titânica desvantagem. A ganância era um manto púrpura a esmagar a túnica vermelha da Dignidade. Que fazer perante tão rude inconformidade?

Socorreu-se dos sons e fez ouvir Wagner. O triunfo exige sempre um faustoso manto. O poder da ilusão prevalece nos espíritos néscios onde reina a ganância.

Fiel à força da sedução, da vã glória, o manto ergueu-se e a dignidade libertou-se daquele vil peso. Vinha combalida, desgastada pelo espezinhamento constante dos poderosos que, de ganância em ganância, tinham transformado o mundo num mercado de agiotas.

Mundo onde os nomes eram traduzidos por algarismos e as palavras esqueciam a força da nomeação. Mundo onde os adjectivos se colavam aos números como cola que pega e se acomoda em território alheio.

Ao afinar aquela palavra, seria como recuperar a alma adormecida da humanidade, como restabelecer o primeiro direito universal do Homem.

Concentrou-se. Começou a afiná-la. Agora, já era o génio de Mozart que se ouvia. Quando afinava as palavras trazia a música nos ouvidos. Que poder tinham os sons. Os movimentos molto allegro e andante da Sinfonia nº 40 ressoavam e imperavam. Como o contagiavam em inspiração e perícia.

Redesenhou, limpou, envernizou, curou aquela enorme palavra.

Num longo vestido vermelho vivo, ela olhou-o e sorriu-lhe deslumbrante. E com ela de pé, firme e robusta , outras vieram animadas pela metafísica, pela semântica, pela música de Mozart ou pela simbologia do vermelho que nunca deixa de acolher quem vem por bem.

Todas as palavras que se solidarizavam, que se irmanavam chegavam céleres.

Apresentavam-se radiosas, vestidas no mais brilhante vermelho renovado. Vinham em fraterna celebração, coligadas por uma profunda comunhão identitária.

Ao restaurar a Dignidade , tudo se precipitara. Tudo se congregara.

Naquele dia, o caminho estava feito.

Maria José Vieira de Sousa, "O Afinador de Palavras"

quarta-feira, junho 25

Banho com leitura

 


Cadê meu bistrô?

Tarde ensolarada, temperatura agradável. Ando pelos bulevares, descanso nos bancos de praça, espio as vitrinas das lojas. Esta é a maneira tradicional, dir-se-ia mediúnica, de receber o espírito de Paris. Não é uma cidade para o turista apressado. Os cafés estão cheios; a multidão nas ruas é colorida, e há em cada rosto uma expressão satisfeita, muito embora se diga que a crise se aproxima (o desemprego em primeiro lugar).


Vou ao La Coupole, só pelo velho hábito, peço cerveja de Munique, um sanduíche de presunto, abro Le Monde, o mundo me cansa, fecho o jornal e me ponho a observar os passantes através da vidraça. Estou ― feliz? tranquilo? ― não sei. Estou. Meia hora atrás, procurando a nova sede da Varig, encontro em frente ao Plaza-Athenée uma gentil senhora muito poderosa no Brasil e bastante estimada em numerosos outros lugares. Dou um doce a quem adivinhar de quem se trata. Ela me apresenta ao mordomo do Plaza e me oferece um uísque. Estou em situação embaraçosa. Minhas roupas de Ipanema, estilo marginal de luxo, agravadas pelo meu boné de veludo azul e pelas minhas botinas de couro de búfalo (sem falar na sacola de couro de vaca onde carrego toda a minha parafernália de vagabundo) ― minhas roupas estão amassadas e, tantos dias jogadas na mala, não cheiram muito bem. Mas o meu status de boêmio, combinado com o de escritor, me dá direito à extravagância comedida. Entro, sento, peço o uísque pela marca e me ponho a conversar com a ilustre senhora ― uma das pessoas mais simpáticas, e sem dúvida a mais modesta que conheço. Quem sabe ela seja a minha patroa e esteja querendo que eu me sinta em Paris como em casa? Quem sabe uma certa organização chamada JB nos deixe à vontade, como em nossa própria casa, em qualquer parte do mundo? Pois é. Se Marx estivesse vivo, o Brasil seria a sua caixinha de surpresas. Despeço-me dela: vou à vida.

Quer dizer, não vou a parte nenhuma, estou sentado em Coupole e constatando que o Coupole não é mais o mesmo bar. Alguma coisa mudou aqui, ou fui eu que mudei, não há nenhuma razão objetiva a justificar tal suposição ― mas quem conhece Paris sabe que é assim. O Coupole não é mais o meu bar, e está acabado.

Preciso comprar umas roupas adequadas à elegância europeia (ou, no meu caso, à deselegância, que varia conforme as estações do ano e também conforme os povos). Visitar os museus, ir ao teatro, ao cinema. Passear ao longo do Sena, de “Bateau-Mouche”.

Pouco adiante do Coupole dou com um pub ― assim mesmo chamado, mas não de todo inglês por causa da varanda, ou terraço. Já que é um pub, peço um uísque. Leio um pouco de Samuel Beckett. Peço um segundo uísque. São sete horas da noite (ainda há claridade no céu) e a partir de agora o estabelecimento começa a trabalhar com refeições. Nunca jantei às sete horas, portanto não é esse o meu bar, que no entanto deve estar em alguma parte, à minha espera, como acontece aqui ― e só aqui.

Escrevo em cartões-postais, termino de ler o Monde, pego um táxi e vou para casa. Fazer o quê? Dormir. Paris é cidade para você entrar nela na maciota. Desde que ainda não encontrei o meu bistrô, só me resta recolher-me aos meus aposentos. Assim faço. Bonne nuit!

José Carlos de Oliveira

De algum ponto além da cordilheira

Há quanto tempo aquela cidade se preparava para a chegada dos bárbaros? Não desde sempre. Mas quase. Por isso as sólidas muralhas mais antigas que muitas casas, e as constantes sentinelas no topo. Viriam da fronteira traçada pela cordilheira, estava escrito, atravessariam com seus animais de duras patas o vale de pedras. E embora a muralha cintasse a cidade por inteiro e houvesse fronteiras em outras direções, só para o lado do vale voltavam-se os olhares das sentinelas. Até que uma manhã, atendendo àqueles olhares que se feriam contra o sol nascente, viu-se a linha do horizonte estremecer, como se abrasada por um vapor. E com o passar das horas, já às beiras do escuro, foi possível dizer, com quase certeza, que sim, havia um remoto mover-se que bem podia significar um avanço.

A notícia correu pelas muralhas, resvalou para as ruas, pátios, casas, passou por todas as bocas com tensão de alarme: eram os bárbaros que vinham. Vinham, é certo, mas como se verificou em seguida, moviam-se muito, muito devagar. Sete dias depois, continuavam longínquos, indistintos. Talvez trouxessem armas pesadas, donde a lentidão da marcha, especulou-se na cidade. Certamente eram numerosos, foi dito, e se não levantavam nuvem de poeira era apenas porque avançavam em solo pedregoso. Quem sabe, esperavam reforços vindos de confins afastados . Fosse como fosse, repetiram todos, encontrariam a cidade pronta para a defesa. Juntaram-se provisões, afiaram-se as lâminas. Em cada casa reforçaram-se portas e janelas. Protegeram-se os poços.

A cidade rangia os dentes, mas os bárbaros não chegavam. Mais de um mês havia sido gasto em preparativos, quando percebeu-se que acampavam na distância, muito além do alcance de tiro e olhar, demasiado longe para permitir um avanço seguro da cavalaria. Estão recompondo suas forças depois da longa marcha, deduziram os chefes militares da cidade. E, como água, a informação escorreu por debaixo de cada porta. Em breve atacarão, deduziram todos.

Nem em breve, nem mais adiante. Os bárbaros pareciam ter esquecido o motivo da sua vinda. Acampados estavam, acampados continuaram, no mesmo lugar. Por um tempo, muito. A bem da verdade, não se mantinham inteiramente imóveis. Deslizavam tão pouco para a frente, expandindo-se apenas como a gota `a qual se acrescenta mais e mais água, que imóveis eram considerados na cidade. De palmo em palmo, entretanto, de pequeno avanço em pequeno avanço, os bárbaros acabaram sendo alcançados pelo olhar. Em dias claros, e sem muito esforço, viam-se do alto da muralha os homens e seus cavalos, as mulheres tirando leite das cabras, as crianças brincando entre as patas dos camelos, o cotidiano sendo gasto. Impossível saber se havia guerreiros, porque um guerreiro sem couraça é apenas um homem, e não se veste couraça fora da batalha. `A noite, a claridade que filtrava das tendas povoava a planície de vagalumes.

Subir nos torreões para observá-los tornou-se uma atração na cidade. E o momento chegou em que , deslizando de nada em nada, os bárbaros com suas tendas e o latir de seus cães estavam ao pé da muralha. Contrariando as previsões, não investiram contra os portões, não pegaram em armas. Talvez nem as tivessem. Estavam ali, tão somente, como antes haviam estado no vale. Eram mais coloridos do que pareciam `a distância, e ruidosos. A música dos seus instrumentos escalava a muralha, perdia-se nas ruas, convidando a destrancar as janelas.

Tendo-os assim tão próximos, com sua algaravia e seus colares de contas, parecia difícil aos habitantes da cidade justificar o medo que os havia precedido. Com certeza são apenas nômades, comentaram entre si os chefes militares. E nas ruas e casas repetiu-se com satisfação, apenas nômades. Não demorou muito para que, certos todos de que algo os nômades teriam para mercadejar, os grandes portões da muralha lhes fossem abertos. Só então foi possível ver que seus dentes eram pontiagudos e recobertos de ferro. Mas já era tarde.
Marina Colasanti