terça-feira, dezembro 31

2025 azul

 


Novo Ano

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse no ventre morte, peste e guerra. Morte à senilidade idealista e à retórica embalsamada; peste para um certo código cultural que age sobre os grupos e os transforma em coletividades emocionais; guerra à recuperação da personalidade duma cultura extinta que nada tem a ver com a cultura em si mesma.

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse nos braços a vida, a energia e a paz. Vida o suficientemente despersonalizada no caudal urbano para que os desvios individuais não sejam convite ao eterno controlo e expressão das pessoas; energia para desmascarar o sectarismo da sociedade secularizada em que o estado afetivo é mais forte do que a ação; paz para os homens de boa e de má vontade.
Agustina Bessa-Luís

Acelerar em direção à terra

Eu dizia com frequência a Rosamund que um dos problemas do envelhecimento era a aceleração do tempo. Os dias passavam por nós como "as estações do metrô passavam pelo comboio expresso". Costumava mencionar ‘A Morte de Ivan llich’ para ilustrar isto a Rosamund. Os dias da infância são muito compridos, mas na velhice eles voam "mais rápido do que um mergulhão", como diz Job. E Ivan llich também menciona a súbita ascensão de uma pedra lançada ao ar. "Quando regressa à terra acelera à velocidade de nove metros por segundo." 

Somos controlados pelo magnetismo gravitacional e o universo inteiro está envolvido na sua aceleração quando desce. Se pudéssemos simplesmente trazer de volta os dias cheios que vivemos quando crianças. Mas, sugiro eu, tornámo-nos demasiado familiares com a informação da experiência. A nossa maneira de organizar a informação que cai sobre nós ao estilo ‘gestalt’ — isto é, em formas cada vez mais abstratas — acelera as experiências até um perigoso corrupio, como numa comédia com imagens demasiado rápidas. A nossa necessidade de excreção rápida elimina os pormenores que enfeitiçam, prendem ou retardam as crianças. A arte é um refúgio desta aceleração caótica. O metro na poesia, o tempo na música, a forma e a cor na pintura. Mas nós sentimos que estamos a acelerar em direção à terra, quase a chocar com as nossas sepulturas.
Saul Bellow, "Ravelstein"

Almanaque

Continuarão correndo pro mar
Os rios indiferentes
Ou a transbordar ruinosos os diques
Obras antigas de homens tenazes.
Continuarão as geleiras
A crepitar consumindo o fundo
Ou precipitando repentinas
A extirpar a vida dos abetos.
Continuará o mar a debater-se
Cativo entre os continentes
Sempre mais avaro de sua riqueza.
Continuarão seu curso
Sol estrelas planetas e cometas.
Mesmo a Terra temerá as leis
Imutáveis da criação.
Nós não. Nós, linhagem rebelde
De muito engenho e pouco siso,
Vamos destruir e corromper
Sempre mais depressa;
Logo, logo dilataremos o deserto
Nas selvas da Amazônia,
No coração vivo de nossas cidades,
Em nossos próprios corações.
Primo Levi

O pepino torcido

Quanto mais se envelhece, menos tempo se tem de vida. Sim, mesmo que se morra no dia seguinte. O tempo acelera, um ano dura só um mês e uma década passa num só ano.

Que se há-de fazer? Geralmente acompanha-se com memórias da infância, das férias de Verão que nunca mais acabavam. Nessa altura um dia era uma eternidade. Era bom, não era?

Mas não era. Quando somos pequenos estamos sempre à espera da coisa que se segue, que nunca mais vem. Perdemos tempo a pedir que tudo aconteça mais depressa e a chatear as pessoas que tomam conta de nós. O tempo é comprido por ser chato e por sermos impacientes.

O mal vem daí, da nossa meninice. Éramos pequeninos mas já perdíamos tempo como gente grande. É daí que vem a nossa incapacidade para viver no momento presente. Tanto faz sermos crescidos e chorarmos a falta de tempo como sermos crianças a chorar porque o tempo não passa.

Esperar é rejeitar o presente. É como olhar para os ponteiros do relógio. Não só não os faz andar mais depressa: também nos atrasa. São muitos os relógios disfarçados que andam para aí: écrans de todas as espécies em que os ponteiros são pessoas a fingir que são outras. Neles fixamos os olhos e, sem darmos por isso, a vida vai-se desligando da alma. Depois olhamos para um relógio verdadeiro e apanhamos o susto que merecemos.

Que horas são? Já chegámos? Quando é que acaba a viagem? Quando é que acaba a parte má e começa a boa? As perguntas das crianças são iguais aos remorsos dos velhos. Ambos são desperdícios inúteis.
Miguel Esteves Cardoso

segunda-feira, dezembro 30

Leitora antiga

 


Um tipo divertido

Era a explosão do ano-novo: um caos de barro e de neve, atravessado por mil carroças, cintilando de brinquedos e doces, fervilhando de cobiças e desesperos, delírio oficial de uma cidade grande feito sob medida para perturbar o cérebro do solitário mais arredio.

Em meio a essa zoeira e barafunda, um asno trotava alerta, fustigado por um campônio armado de chicote.

Quando o animal estava prestes a fazer a curva numa esquina, um belo senhor de luvas, sapatos reluzentes, cruelmente engravatado e que mal se mexia no seu traje todo novo inclinou-se solene diante da humilde besta e lhe disse, tirando o chapéu:

– Feliz ano-novo!

Em seguida virou-se na direção de sabe-se quem, pleno de satisfação, como para colher os cumprimentos que lhe seriam prestados pelos amigos.

O asno passou reto pelo belo tipo, e continuou a correr zeloso conforme lhe era exigido pelo dever.

Quanto a mim, fui tomado de uma raiva inexprimível daquele magnífico imbecil, que me pareceu concentrar em si o verdadeiro espírito da França.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"

Como longa despedida


Meu avô, aquele que construía casas, era de Castelo Branco. Fez habitações para toda a gente menos para ele. Não sei se alguma vez lhe passou pela cabeça que viria a ter um neto também construtor, construtor de coisas pequenas, frágeis, leves. Ele usava o granito como material, as suas casas estão ainda de pé; o neto trabalha com poeira, sem nenhuma pretensão de desafiar o tempo.
Eugénio de Andrade

Canções da inocência, canções da experiência

Sempre que vou ao exterior por períodos mais ou menos longos, até mesmo a trabalho, e me transformo num ser sem raízes em ambiente desconhecido, tomo uma medida que me ajuda a enfrentar eventuais crises ou ao menos a preservar o equilíbrio emocional. Tal medida consiste apenas em levar comigo os livros que eu lia antes de partir. Neste momento, por exemplo, estou realmente sozinho em terra estranha, mas venho conseguindo me recompor dos efeitos de sustos, exasperações e melancolia que me acometem ao continuar a leitura dos mesmos livros que lia poucos dias antes em Tóquio. Nesta primavera, viajei pela Europa.

Ou melhor, eu e uma equipe de televisão cobrimos às pressas a rota de Viena a Berlim, em cujo percurso não encontrei nenhum sinal de verde, já que não havia brotos nas árvores, e em matéria de flores vi apenas as que desabrocham antes das próprias folhas, como as forsítias de agressivo amarelo e os açafrões, cujos botões também desprovidos de folhas despontam diretamente sobre a terra. Na viagem, levei comigo quatro livros de Malcolm Lowry da coleção Modern Classics, da Editora Penguin, escritor que eu vinha lendo de maneira ininterrupta nos últimos dois ou três anos. Aliás, não só lendo como também cuidando de anotar as metáforas que essa leitura fazia explodir em minha mente para, com base nelas, escrever uma série de peças curtas. Eu decidira ler mais uma vez esse autor ao longo da viagem e ao fim dela dizer: "Muito bem: agora, o ciclo Lowry está encerrado para mim". Em seguida, daria os livros de presente a meus companheiros de viagem. Em minha juventude, nunca fui capaz de me ater por muito tempo à leitura de um único escritor, premido como me sentia pela ansiedade. Uma vez passada a idade madura, porém, percebo afinal a existência de um grupo de autores sobre o qual gostaria de focalizar a atenção desde a velhice até o momento de minha morte. Eis por que sou às vezes obrigado a encerrar o ciclo de leitura de alguns autores dessa maneira deliberada. No decorrer desta viagem em que me desloquei por diversos pontos num ritmo vertiginoso nunca antes experimentado por mim - mas durante a qual, apesar de tudo, consegui manter agradável relacionamento com a equipe televisiva, que se movimentava de acordo com a peculiar lógica dessa profissão - fui, portanto, lendo um a um, no interior de aeroplanos e de trens, ou ainda em quartos de hotéis, os livros de Lowry que eu grifara com tinta vermelha em inúmeras ocasiões anteriores. E então, momentos antes de o trem chegar a Frankfurt, onde a tarde caía, tive a oportunidade de me sentir uma vez mais fortemente atraído por um trecho do romance Forest Path to the Spring (Uma passagem para a fonte na floresta), na minha opinião uma das obras mais belas de Lowry, em que o narrador, ele próprio escritor e compositor, eleva uma prece rogando inspiração divina. Digo uma vez mais atraído porque, embora a prece já me houvesse impressionado vivamente numa leitura anterior a ponto de me fazer citar sua metade inicial num de meus romances, o que atraíra dessa vez minha atenção tinha sido a metade final, isto é, o trecho que se segue àquele que antes me parecera tão importante. Frustrado em sua tentativa de compor uma música que teria por tema um mundo novo onde o próprio narrador renasceria, ele clama "ó Senhor meu Deus", e suplica: "Eu, repleto de pecados, não consigo me livrar dos maus pensamentos, mas permiti-me ser verdadeiramente vosso servo transformando esta obra em coisa grandiosa e bela, e se meus motivos são obscuros, e as notas dispersas e com freqüência inexpressivas, ajudai-me por favor a ordená-las, or I'm lost...". E foi essa quase meia linha final transcrita acima na língua original que, realçada é claro pelo contexto, atraiu minha atenção de maneira particular. Senti que recebia um sinal: "Vamos, é chegada a hora de se despedir de Lowry e de mergulhar num novo mundo, onde deverá permanecer alguns anos outra vez", dizia a voz, talvez de um patrono, a me indicar com gentileza mas claramente o conjunto das obras de certo poeta... 

Era noite de domingo, e recrutas que tinham voltado para casa na sexta-feira estavam de partida outra vez para suas bases. Enfileirados junto às janelas no corredor do vagão-dormitório, alguns jovens soldados que mais pareciam estudantes despediam-se da cidade arrancando um som alto e prolongado de pequenas trombetas providas de válvulas de compressão, enquanto diversos outros, que ainda continuavam na plataforma, eram persuadidos a embarcar por suas namoradinhas de ar adolescente. Casais abraçavam-se ainda uma última vez com pena de se separar. E o fato de eu próprio ter desembarcado no meio dessa multidão confusa constituiu-se também em mais um motivo para aclarar a minha própria idéia de despedida. Ao sair da estação rumo ao hotel, eu já levava comigo as obras completas de William Blake editadas pela Oxford University Press num único volume, que eu comprara na livraria da estação ferroviária enquanto esperava a equipe televisiva descarregar o numeroso equipamento. E depois de muitos anos, mais de dez, talvez, tornei a me concentrar na leitura de Blake a partir dessa noite. Abri o livro e a primeira página trazia os seguintes versos: "Pai! Pai! Aonde vais?/ Ah, não andes tão depressa./ Fala, pai, com teu filhinho/ senão me perderei...". Esta última linha, na língua original, é "or else I shall be lost". Eu havia traduzido o trecho acima catorze anos atrás - (após cuidadoso exame dei-me conta de que na verdade mais tempo transcorrera além dos "muitos anos, mais de dez, talvez" mencionados acima, e que nos últimos tempos venho incorrendo com freqüência em erros semelhantes ao relatar fatos passados) - e o inserira num romance escrito na época com o intuito de superar uma crise especialmente grave surgida entre mim, o pai, e meu primogênito deficiente. E não seria o fato de estar naquele momento pressentindo a aproximação de nova crise semelhante entre mim e meu filho a razão de me sentir atraído pelo universo desse poeta que sobre mim exercera influência tão especial, e de a ele tentar retornar? Caso contrário, por que haveria eu de sentir vínculo tão íntimo entre as frases "Or I am lost", de Lowry, e "Or else I shall be lost", de Blake? Insone numa cama de hotel em Frankfurt, apaguei inúmeras vezes a luz da cabeceira enquanto meus pensamentos inquietos acabavam sempre por retornar ao livro de Blake, em cuja capa vermelha havia o desenho em preto de um homem nu prestes a tombar. Por ocasião do nascimento do meu primogênito, que veio ao mundo com malformação craniana, eu havia escrito um romance em que citava uma frase de Blake. Hoje, pergunto-me com certo assombro como é que me fora possível ter na memória essa passagem de Blake numa época em que, jovem ainda, meu repertório de livros lidos era insignificante e, além do mais, juntar a essa citação a descrição de uma xilogavura do próprio Blake constante no livro Viagem ao Egito, cujo tema é a peste. "Sooner murder an infant in its cradle than nurse unacted desires..." Melhor matar uma criança no berço do que acalentar suas ambições incipientes, traduzi eu há vinte anos, época em que escrevi esse romance. Pois a estrofe final de "O menino perdido" em Canções da inocência que citei acima diz: "A noite estava escura, o pai ausente/ O menino ao sereno se molhou/ O pântano era fundo, ele chorou/ E a névoa se esvaiu completamente". Março chegava ao fim, mas em Frankfurt ainda havia névoa ao entardecer. Dentro de duas ou três semanas seria Páscoa, data em que o povo europeu comemora morte e renascimento entrelaçados em grotesco realismo, e que até então eu só conhecia conceitualmente; naquele momento, porém, senti compreender pela primeira vez por que esse povo aguarda a data com tanta ansiedade e a festeja com tamanha pompa. Tais eram meus pensamentos enquanto contemplava, da janela onde fui parar, insone, as ruas ornadas por gigantescas castanheiras-da-índia, em cujos galhos não havia ainda sinal de brotação e em cujas copas negras e nuas a névoa enroscada aninhava a luz proveniente das lâmpadas dos postes.
Kenzaburo Oe, "Jovens de um novo tempo, despertai!"

Anos

Do que eu era então não resta nada: apenas homem, era ainda um menino. Eu sabia há muito tempo, mas tudo aconteceu no final do inverno, uma tarde e uma manhã. Vivíamos juntos, quase escondidos, em uma casa que dava para uma avenida. Silvia me disse naquela noite que eu tinha que ir, ou ela iria: já não tínhamos nada que fazer juntos. Supliquei que deixasse que tentássemos de novo, estava deitado ao seu lado e a abraçava. Ela me disse:
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– Para quê? – Falávamos com a voz baixa, às escuras.

Logo Silvia dormiu e eu fiquei até de manhã com um joelho colado ao seu. A manhã apareceu como sempre havia aparecido e fazia muito frio; Silvia tinha o cabelo sobre os olhos e não se movia. Na penumbra eu olhava passar o tempo, sabia que passava e corria e que lá fora havia névoa. Todo o tempo que havia vivido com Silvia naquele quarto era como um só dia e uma noite, que agora terminava pela manhã. Então compreendi que nunca voltaria a sair comigo por entre a névoa fresca.


Era melhor que me vestisse e partisse sem despertá-la. Mas agora tinha uma coisa em mente para lhe perguntar. Esperei, tentando adormecer.

Quando despertou, Silvia me sorriu. Seguimos conversando. Ela disse:

– É bonito ser sincero, como nós.

– Oh, Silvia! – sussurrei -, que farei ao sair daqui? Para onde irei?

Era isto que tinha para lhe perguntar. Sem tirar a nuca do travesseiro, ela sorriu de novo, beatífica:

– Bobo – disse – irá para onde quiser. Não é fabuloso ser livre? Conhecerá muitas garotas, fará todas as coisas que quiser. Palavra que te invejo!

Agora a manhã enchia o quarto e só havia um pouco de calor na cama. Silvia esperava paciente.

– Você é como uma prostituta – disse a ela – e sempre foi.

Silvia não abriu os olhos.

– Sente-se melhor por me dizer isto? – me disse.

Então fiquei ali como se ela não estivesse, olhava o teto e chorava sem ruído. As lágrimas me enchiam os olhos e corriam sobre a almofada. Não valia a pena que notasse. Muito tempo passou, e agora sei que aquelas lágrimas mudas foram a única coisa de homem que fiz com Silvia; sei que chorava não por ela, senão porque havia entrevisto meu destino. Do que eu era então não restou nada. Apenas que havia compreendido quem seria no futuro.

Depois Silvia me disse:

– Já basta. Tenho que me levantar.

Levantamo-nos juntos, os dois. Não a vi se vestir. Fiquei logo de pé, na janela; e olhava vislumbrando as plantas. Detrás da névoa estava o sol, o sol que tantas vezes havia entibiado o quarto. Também Silvia se vestiu rápido, e me perguntou se não levaria minhas coisas. Disse que primeiro queria esquentar o café, e acendi o fornilho.

Silvia, sentada na borda da cama, começou a fazer as unhas. No passado sempre as fez na mesa. Parecia absorta e o cabelo lhe caía continuamente sobre os olhos. Então sacudia a cabeça e se liberava. Eu perambulei pelo quarto e recolhi minhas coisas. Fiz um amontoado sobre uma cadeira e de repente Silvia levantou e correu para apagar o café que derramava.

Depois peguei a maleta e coloquei as coisas. Enquanto isso, por dentro me esforçava em recolher todas as recordações desagradáveis que tinha de Silvia: suas futilidades, seus mal-humores, suas frases irritantes, suas rugas. Isso me levava de seu quarto. O que deixava era uma névoa.

Quando terminei, o café estava pronto. O tomamos em pé, junto do fornilho. Silvia disse algo, que neste dia iria ver um sujeito, para falar de um assunto. Pouco depois deixei a xícara e parti com a maleta. Lá fora a névoa e sol cegavam.

Cesare Pavese

domingo, dezembro 29

Leitura iluminada

 


Momentos de humanidade

Os romances nunca serão totalmente imaginários nem totalmente reais. Ler um romance é confrontar-se tanto com a imaginação do autor quanto com o mundo real cuja superfície arranhamos com uma curiosidade tão inquieta. Quando nos refugiamos num canto, nos deitamos numa cama, nos estendemos num divã com um romance nas mãos, a nossa imaginação passa o tempo a navegar entre o mundo daquele romance e o mundo no qual ainda vivemos. O romance nas nossas mãos pode-nos levar a um outro mundo onde nunca estivemos, que nunca vimos ou de que nunca tivemos notícia. Ou pode-nos levar até às profundezas ocultas de um personagem que, na superfície, parece-se às pessoas que conhecemos melhor. 

Estou a chamar a atenção para cada uma dessas possibilidades isoladas porque há uma visão que acalento, de tempos a tempos, que abarca os dois extremos. Às vezes tento conjurar, um a um, uma multidão de leitores recolhidos num canto e aninhados nas suas poltronas com um romance nas mãos; e também tento imaginar a geografia de sua vida quotidiana. E então, diante dos meus olhos, milhares, dezenas de milhares de leitores vão tomando forma, distribuídos por todas as ruas da cidade, enquanto eles leem, sonham os sonhos do autor, imaginam a existência dos seus heróis e veem o seu mundo. E agora esses leitores, como o próprio autor, acabam por tentar imaginar o outro; eles também se põem no lugar de outra pessoa. E são esses os momentos em que sentimos a presença da humanidade, da compaixão, da tolerância, da piedade e do amor no nosso coração: porque a grande literatura não se dirige à nossa capacidade de julgamento, e sim à nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro.
Orhan Pamuk

As máquinas mortais

Não são robôs musculosos, schwarzeneggerianos, armados de espingardas-doze. São, é claro, as maquininhas aparentemente benignas que usamos: notebooks, celulares, iPads, desktops, mainframes... Para o documentarista James Barrat, em seu livro Our Final Invention: Artificial Intelligence and the End of the Human Era, está se aproximando aquele momento que alguns escritores de FC chamam A Singularidade, quando as inteligências artificiais criadas pelo homem superarão a inteligência da nossa espécie. Pode ser um upgrade cósmico de integração a uma inteligência universal; mas pode ser o momento em que as máquinas simplesmente tomarão a decisão de nos descartar.

Robert Crumb

Um artigo de Greg Scoblete (http://bit.ly/1jtH1Yc) avalia com elas nos eliminarão: “Pensem no mundo de hoje. Vírus de computador viajam pelo ar. Nossas casas, carros, aviões, hospitais, refrigeradores, fornos, estão conectados a uma “Internet de objetos” que não cessa de se ampliar valendo-se da banda larga sem fio. Estamos cada vez mais integrando elementos eletrônicos aos nossos corpos. Vamos extrapolar essas tendências para 2040: a Super-Inteligência Artificial surgirá num mundo cada vez mais dependente do virtual, e vulnerável a ele.”

À inevitável pergunta: ”Mas por que essa Super-Inteligência iria querer nos eliminar?” Scoblete responde: “Computadores, como os humanos, precisam de energia. Numa competição por recursos energéticos as máquinas se preocupariam tão pouco em nos conceder acesso a eles quanto nós nos preocupamos com a próxima refeição de uma formiga.”

A preocupação procede, e o livro de James Barrar sugere um cenário interessante para a literatura. Para ele, no momento em que essa Super-Inteligência Artificial for criada, não teremos como controlá-la porque ela terá a tendência a se retroalimentar e aumentar exponencialmente sua própria potência e seu alcance. “O tempo necessário para que ela nos deixe tão minúsculos quanto as formigas pode ser uma questão de dias, se não de simples horas, depois de ser criada. Pior: os cientistas humanos podem nem perceber que criaram essa Super-Inteligência, até ser tarde demais para contê-la”.

E agora digo eu: já a criamos. Ela já existe. Ela já se exprime, numa linguagem digital balbuciante, mas onipresente. Ela produz, com o auxílio inconsciente de funcionários humanos, os programas de TV de hoje, os noticiários de hoje, os filmes de hoje, as crises financeiras de hoje. Para ela, os próximos 50 anos serão os 5 segundos de que precisou para provocar o suicídio coletivo dos ácaros que a criaram e que agora se tornaram desnecessários e incômodos. (Ela permitirá a publicação desta inútil denúncia.)

Viagem à volta do meu criado-mudo


Do alto das minhas pilhas de livros, trinta e nove anos de leituras atrasadas me contemplam. Os montes inexplorados — meus himalaias particulares — me fitam e eu, planejando viver mais oitenta e cinco invernos, peço calma a eles e paciência aos deuses para com este humilde pecador.

Meu motor de explosão necessita de livros como carburante, o que me levou a juntá-los desde criança. Lá pelos meus 10 ou 12 anos, confrontado com a dura realidade do mundo cruel, tragicamente deixei de lado um futuro como desbravador do Velho Oeste ou astronauta e passei a me dedicar a uma das poucas atividades em que tenho tido sucesso, a acumulação indiscriminada de livros (isso depois de brevemente também ter considerado tornar-me poeta tuberculoso para viver cercado de belas mulheres sempre dispostas a atender aos meus desejos de moribundo, pois que compungidas com a minha situação de artista incompreendido e privado de leituras por ter colocado os livros no prego). Aos 20 anos, a coisa já era patológica (escreveu Paul Nizan: “Eu tinha vinte anos. Não me venham dizer que é a mais bela idade da vida”). Por ter 20 anos, porém, em algum momento os livros disputaram espaço com os líquidos olhos verdes de Patrícia, mas o excesso de leituras desordenadas me deixara ciente de que eles viriam, causariam os estragos costumeiros e inescapáveis dos líquidos olhos verdes e iriam embora — portanto, a ordem natural das coisas seguiu o seu curso próprio: os olhos verdes se esfumaram, os livros permanecerem e depois houve outras Patrícias. De qualquer modo, tudo ficou ainda mais fácil quando me convenci de que, naquela trágica idade de 20 anos, já tinha os 39 que só alcancei efetivamente neste ano (e agora, supostamente com 39, sei que tenho na verdade 54 anos).James Joyce

Creio modestamente que tenho sido bem-sucedido nesta faina — síndrome de Diógenes literária — de acumulação: diariamente verifico as novidades e faço as minhas compras. Compro, logo existo, e cada livro que há no mundo é uma espécie de baleia branca pessoal que perseguirei até o fim dos meus dias — tratem-me por Ishmael. E vocês sabem: se o trabalho é a perdição das classes bebedoras, a internet é a nêmesis das finanças das classes ledoras — compro livros, novos e usados, dos mais estranhos países e nas mais extravagantes línguas (li em algum site na internet que há até uma palavra japonesa para o ato de empilhar livros ainda não lidos, “tsundoku”. Não sei se procede, mas, se non è vero, è ben trovato). Em suma, compro livros como um hipocondríaco compra remédios. Não exagero, pois falo ex cathedra: sendo eu mesmo hipocondríaco, adquiro livros com um furor que só igualo quando me automedico. Meu ideal, confesso, seria uma livraria ao lado de uma farmácia para que eu pudesse checar as mais recentes publicações da Companhia das Letras e em seguida conferir os lançamentos da Aché e da Pfizer (fazendo crescer, inclusive, a minha lista de leituras com bulas de remédios, sempre instrutivas — sabem vocês que o uso de medicamento “por via de administração não-recomendada gera a não-obtenção do efeito desejado”?). Mas tudo isso é digressão: comprados patologicamente ou não, os livros aí estão e é preciso lê-los — ou empilhá-los. (Se os comedidos leitores por acaso se perguntam como alguém se converte em bibliomaníaco ou bibliólatra, respondo: por azar, é claro. Vejam o meu caso: não posso afirmar se tantos livros me desasnaram, mas com certeza sei que me levaram à bancarrota. Mas que fique bem claro: os livros são o meu refúgio e não uma fuga da vida, pois que, tal como aquele portuga famoso, vivi, estudei, amei e até cri.)

Neste mundo moderno, contudo, se é certo que a praça é do povo e o céu é do condor, os cadernos de cultura dos jornais são dos cinéfilos e dos aficionados aos quadrinhos. A leitura vai se transformando em atividade de excêntricos. Mas, dito isso, ou apesar disso, espanto-me: há livros — e há leitores! O mundo editorial ainda gira. Sim, caros e panglossianos leitores: eppur si muove. As editoras seguem publicando seus livros e as livrarias vivem atulhadas (com todos se amontoando, nas ditas megastores, nos três únicos banquinhos colocados à disposição dos distintos fregueses, que em tempos de outrora sempre tinham razão — mais où sont les neiges d’antan?). Tudo isso, claro, para desgosto dos jornalistas culturais que pretendem explicar as engrenagens do mundo com o último filme argentino ou com a mais recente coletânea de algum quadrinista (existe essa palavra?) do Cazaquistão ou de Chatne.

O problema é que toda essa turma que lota as livrarias às vezes parece frequentá-las apenas para comprar revistas ou tomar despreocupadamente os escassos assentos, o que me leva a crer que caminhamos a passos largos para o inevitável dia em que alguém nos dirá, como Henry Morton Stanley a David Livingstone e com indisfarçável estranheza, “Um leitor, I presume”. Mas por ora, como esse dia apocalíptico ainda não se nos apresentou (gostaram do uso dos pronomes, acacianos leitores?), podemos ainda nos dedicar a esta atividade prazerosa e que tanta irritação causa aos chatos: acumular livros para leitura enquanto a indesejada das gentes não chega. E em verdade vos digo: coletando dados para este artigo, posso afirmar (estupefato, registro), com base nas minhas inspeções empíricas, que ainda não somos um deserto de homens e de ideias (e se houver a mínima possibilidade de viramos um deserto de mulheres, a opção viável será o suicídio). Pois você se reconhece aqui, pródigo leitor? Sim, você aí, com livros amontoados pela casa, parentes irritados com a falta de espaço, rombo nas finanças por causa de tantos volumes comprados, doenças respiratórias causadas pelo acúmulo de poeira nos livros e tiques nervosos em razão do excesso de informações inúteis. Você, que há não muito tempo seria louvado pela cultura, mas que hoje é apenas considerado obsessivo-compulsivo e faz tratamento psiquiátrico. Você, o incompreendido.

Pois leio. Lemos. À moda de Xavier de Maistre, olho as minhas cambaleantes estantes e vejo, por exemplo, muitos, muitos livros sobre guerra. Faço parte daquele time que, mesmo sendo incapaz de decorar os nomes dos donatários das capitanias hereditárias, sabe dizer a ordem cronológica das conquistas militares dos Aliados depois do Dia D. Aliás, pergunto-me: por que nós homens somos visceralmente ligados à Segunda Guerra? Bem, tenho muitas teorias a respeito, confusas e contraditórias, mas as deixarei para outro momento, pois o fato é que a Segunda Guerra é uma história, teorias complexas à parte, fascinante por conta dos seus muitos momentos de heroísmo e canalhice, o que é uma resposta satisfatória ao problema posto (q.e.d, se me permitem). Percebam sua magnitude: homens brilhantes como Churchill, Roosevelt, De Gaulle, Stálin e Hitler, todos com sua húbris (o brilhantismo não exclui a canalhice, é evidente). Generais da estirpe de Patton e Rommel. Resistência, como no gueto de Varsóvia e nos últimos dias da ocupação alemã em Paris. A orgulhosa França batida e vendo a ignomínia dos franceses que colaboraram com os nazistas, mas também sabendo honrar aqueles que resistiram, muitas vezes apenas com pequenos atos cotidianos (não percam, francófilos leitores, o discurso — está no YouTube — de André Malraux recebendo o corpo de um dos líderes da Resistência no Panthéon: “Entre ici, Jean Moulin, avec ton terrible cortège. Avec ceux qui sont morts dans les caves sans avoir parlé, comme toi; et même, ce qui est peut-être plus atroce, en ayant parlé; avec tous les rayés et tous les tondus des camps de concentration, avec le dernier corps trébuchant des affreuses files de Nuit et Brouillard, enfin tombé sous les crosses; avec les huit mille françaises qui ne sont pas revenues des bagnes, avec la dernière femme morte à Ravensbrück pour avoir donné asile à l’un des nôtres. Entre, avec le peuple né de l’ombre et disparu avec elle — nos frères dans l’ordre de la nuit…”).

Como devem ter percebido os meus nietzschianos leitores, tudo muito humano, demasiado humano. Mas houve mais, muito mais: Anne Frank no seu esconderijo, durante anos, em Amsterdã. Von Choltitz, o general alemão que desobedeceu à ordem de Hitler para destruir Paris. Pessoas que deram fuga aos judeus; judeus vivendo em florestas, formando comunidades clandestinas. Londres resistindo heroicamente durante meses sob bombardeios diários. Sim, foi qualquer coisa de grandioso, principalmente se tudo é comparado às nossas medíocres vidinhas. E Churchill, anglófilos leitores, quase vencido, sofrendo as pressões do próprio gabinete para aceitar a dominação da Europa por Hitler em troca da sobrevivência da Grã-Bretanha, mas ainda assim tentando convencer — e convenceu — os britânicos e o mundo de que deveriam lutar e que, se perdessem, teriam lutado por uma boa causa, teriam defendido a civilização contra a barbárie. Impossível não se emocionar com os seus discursos (que o ajudaram a ganhar o Nobel de Literatura): “Eu diria ao Parlamento, como disse para aqueles que se juntaram a este governo: nada tenho a oferecer exceto sangue, trabalho, lágrimas e suor”. Ou: “Mas, se nós falharmos, o mundo inteiro — inclusive os Estados Unidos, inclusive todos os que conhecemos e com quem nos importamos — irá afundar no abismo de uma nova era de trevas, tornada mais sinistra e talvez mais prolongada pelas luzes da ciência pervertida. Vamos, portanto, nos unir em torno de nossos deveres. E saber que, se o Império Britânico durar ainda mil anos, os homens ainda dirão: ‘Este foi o seu melhor momento’”. (Tenho certeza, belicosos leitores, de que fui soldado britânico ou maquisard em outra vida.) Em resumo: a Segunda Guerra é como um grande livro (já que estamos a falar de livros), o melhor e o pior do ser humano estão nela.

Mas me perdi. Perco-me sempre, é o meu fado. Volto às pilhas, que muitas vezes me desesperam. Como escrevi, os livros sobre guerras são muitos, e agora os montes aumentam ainda mais com o centenário da Primeira Guerra. Mas dobro à direita em um monte que tem no topo “O Levante de 44”, de Norman Davies (Record), e posso agora dizer que vejo uma cordilheira de ficção — antiga, porém. Realmente, a cada ano aparecem supostos novos fenômenos da literatura incensados pelos resenhistas, geralmente autores jovens e estreantes e também geralmente de parcos talentos. Estimulados por essa crítica sabuja, os leitores reagem como o cão de Pavlov: babam. Leio-os e me pergunto: agora é regra causar bocejos nos leitores? Não sei se todos os novos escritores cursaram as ditas oficinas de escrita, mas o fato é que seus textos são muito semelhantes, quase intercambiáveis entre si, o que não os impede de assim mesmo sempre ganhar resenhas favoráveis. E não é preconceito contra autores jovens: Jonathan Safran Foer, por exemplo, publicou um livro notável antes de completar 30 anos, “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto” (Rocco, 2006). Quiçá perguntem os meus leitores, que sabem a importância de ser prudente e talvez estejam agastados com minha intolerância a tanta sabujice, se quero impor minha opinião ao mundo. Sim, quero, do contrário não a publicaria, mas com certeza eu não gostaria de debater sobre isso: detesto toda espécie de debates, são sempre vulgares e, o que é pior, muitas vezes convincentes, já o disse minha tia Bracknell. De qualquer maneira, ressalvo que não sou crítico de literatura e que, como escrevi anteriormente em outro artigo, classifico os livros de acordo com minhas preferências estéticas nas categorias “Não Entendi”, “Gostei”, “Não Gostei” e “Não Sei Se Gostei”. Pois muitos dos livros dos novos ficcionistas, apesar de que não achey nelles cousa algûa escandalosa nem contrária â fe & bôs costumes, foram por mim classificados em “Não Gostei”, subcategoria “Definitivamente Ruim”, ou em outra categoria, “Suspeito Que Não Vou Ler”. (Dizem que alguns desses escritores são fortes candidatos ao Nobel — credo quia absurdum.)

A ficção de qualidade estaria mesmo cumprindo a profecia de morte que lhe fizeram tantas vezes? Já soou realmente o sempre anunciado dobre fúnebre do romance? Não sei, caras cassandras, mas me ocorreu que temos tido melhores relançamentos que primeiras edições. Por exemplo, Faulkner, o grande Faulkner, cuja obra vem sendo relançada aos poucos no Brasil e que vai se firmando, na minha lista de preferências, como o maior escritor do século 20 (Proust é, por assim dizer, um escritor do século 19). A Cosac Naify andou mesmo prometendo uma nova tradução de “Absalão, Absalão”, para mim o seu melhor livro — uma escolha difícil —, mas, até o momento em que alinhavo estas mal traçadas, neca de publicá-la. Há ainda as novas traduções de clássicos; vejo vacilante sob o peso de muitos outros livros o novo (?) “Ulysses”, marco literário canônico de James Joyce que ganhou, em 2012, a terceira grande tradução no Brasil, agora de Caetano W. Galindo, depois das anteriores e competentíssimas versões de Antônio Houaiss e Bernardina da Silveira Pinheiro. Foi publicado em conjunto pela Penguin e pela Companhia das Letras, parceria notável surgida há algum tempo, e é imperdível mesmo para quem já tem as outras versões. E por que cargas d’água alguém teria três traduções do mesmo livro? Ora, realmente não sei bem, mas, para de algum modo explicar isso, digamos que insondáveis são os caminhos do Senhor. Há quem toque berrante como hobby, há quem tenha aquários e se divirta alimentando peixes, existe até quem gaste os tubos para montar verdadeiras boates nos seus carros. Já eu tenho as três traduções brasileiras de “Ulysses” e uma espanhola, além do texto original em inglês. Meu temperamental criado-mudo, portanto, prefere os clássicos — e ainda exige que eu me aproxime deles de joelhos.

Já os livros de poesia, empilho-os separadamente para rápido acesso, pois é preciso às vezes um refrigério, até porque janeiro, e não abril, é o mais cruel dos meses, e portanto deve-se dar rédeas à imaginação para que se possa superá-lo incólume. O negócio é o seguinte: o camarada se cansa do ramerrão das vistas da planície da prosa em excesso e resolve espairecer. Há suprimentos para a tarefa: tanta, tanta boa poesia para quem quiser tomar novos ares em píncaros mais altos (ando lendo poesia goiana, daí o uso de “píncaros”), pois não é possível viver como um Esteves sem metafísica. Walt Whitman, Dante, Baudelaire, Drummond: minhas pilhas são cosmopolitas. Já àquele que não gosta de poesia, eu e Rilke apenas dizemos: precisas mudar de vida.

Tenho andado fascinado com relatos de viagem, talvez o tema literário mais em ascensão do momento (ao lado do sado-masô soft, é claro, e dos livros em que filósofos são usados para ajudar os atrapalhados leitores nas mais diversas atividades, tipo “Cozinhando com Sêneca” ou “Aprendendo a Vender com Heidegger”). Nos países de língua inglesa é uma tradição respeitada, pois histórias de viagem têm um apelo imediato para nós, é certo, já que estamos sempre palmilhando vagamente — ou planejando palmilhar — uma estrada pedregosa de Minas. Leio esses relatos com a avidez de quem não conseguirá fazer todas as viagens que planeja. Mas, sobretudo, leio-os porque é preciso confirmar a existência de Isfahan — realmente existe ou esse nome apenas surge inesperado dos entulhos acumulados das minhas leituras da adolescência? E existem também nenúfares, samovares e caravançarais, palavras que me perseguem dos mesmos debris de leituras absurdas e lembranças improváveis? Onde, afinal, encontro cimitarras e seljúcidas? Cheio de dúvidas desse tipo, eu e meu criado-mudo constatamos felizes que tem surgido bom material nessa área: há alguns Montes Roraima de narrativas de viagem no meu quarto (para quem quer se iniciar nesse rito, sugiro Paul Theroux, Willian Dalrymple, Jan Morris e Patrick Leigh Fermor, que são os autores que mais aparecem nas minhas cordilheiras, mas mesmo gente do tipo de Henry James e Graham Greene escreveu sobre viagens). Evito apenas aqueles livros que seguem uma onda que me desagrada: todos agora voltaram a viajar para o Oriente em busca de um Graal que a corrompida civilização ocidental supostamente não mais poderia fornecer, fato que me causa estranheza e pena: é preciso avisar a essa turma que está procurando por Katmandu com cinquenta anos de atraso. Confesso que hippies tardios e o Oriente, às vezes, ou quase sempre, me exasperam (“O Oriente”, disse-o algum sábio, não sei se Kant ou Cantiflas, “é o ópio do ocidental decadente e desocupado”). Meu cosmopolitismo de pobre anseia por Paris, Madri, Londres e Roma.

Não nos esqueçamos dos livros de história, pois não queremos repetir o passado por não conseguir recordá-lo, não é mesmo? Tenho afeição especial por eles. Na velha casa de minha família no Setor Sul, depois de ter assaltado a sabedoria e o prazer nos livros que eram mantidos num cômodo nos fundos do lote (muitos livros acumulados por meus pais, ambos leitores infatigáveis), foi aos livros de história que voltei para as primeiras releituras. Gostava tanto deles que até copiava trechos enormes, criando um hábito de leitura que, não sabia à época, ira se transformar em razão de vida. Ai de mim.

Pois vejo com o canto dos olhos, com medo de encarar tantas promessas de leituras ainda não cumpridas, pilhas que me exigirão anos de treino de presbiopia. Sobre uma pilha, “As Famílias que Construíram Roma: um Guia Histórico e Cultural”, de Anthony Majanlahti (Seoman). Estou apenas iniciando sua leitura, mas ele já evocou lembranças da leitura antiga de “Amor a Roma”, do grande Afonso Arinos de Melo Franco, e dos desvãos da minha memória surgem sombras de histórias dos Chigi, Collona, Della Rovere, Borghese e de outras famílias romanas tradicionais, e daí me imagino com Lucrécia Bórgia envenenando com cantarela algum Orsini conspirador — afinal, civis Romanum sum. Leitura obrigatória, como percebem. (Para os que apreciam: saiu em DVD a série “Os Bórgias”, que tem Jeremy Irons tentando interpretar o Papa Bórgia, Alexandre VI, mas conseguindo ser apenas Jeremy Irons.) Meus Apalaches também me mostram que me interesso pela história da gripe espanhola, de cidades europeias, da CIA, da queda de Roma, das Cruzadas, da vida íntima das pessoas na Idade Média and so on… Tristes trópicos, triste vida de curiosidades difusas.

Sigo adiante, pois ler é preciso, viver não é preciso. Outra olhada envergonhada de relance nas pilhas e percebo que me dedico seriamente à leitura de biografias, memórias, diários e coletâneas de cartas, pois, como o degas aqui vive atarefado com picuinhas processuais, preso eternamente numa espécie de Ilha das Abelhas Diligentes (ao Google, desinformados leitores), o jeito é me desoprimir vivendo vidas alheias. Uma espécie de transubstanciação de minha vida apagada em outra, mais aventurosa e recheada de eventos feéricos, para usar um adjetivo (de modo errado, imagino) que há anos não ouço, já que a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são. Portanto, se quiserem me obsequiar, deem-me biografias, pois leio até as dos tipos mais obscuros — este vosso criado agradece. Sei que não estou sozinho: críticos de respeito, como Harold Bloom, Wilson Martins e Oprah também apreciam biografias e memórias. Pois ando, como sempre, às voltas com releituras de Pedro Nava, que é presença obrigatória e eterna nas minhas pilhas e que a Companhia das Letras, de novo ela, está republicando, agora com estudos que esclarecem sua escrita, pois seus livros são uma espécie de grande museu — um Louvre — que pede repetidas visitas. O velho Nava é minha obsessão: fecho as páginas dos seus livros e eles continuam sussurrando nos meus ouvidos. Uma sinfonia mineira e carioca, alguém já disse, ou uma sinfonia brasileira, melhor dizendo, uma vez que as memórias de Nava são as memórias de todos nós (com eles, minhas madeleines, volto à perdida Palmeiras de Goiás de minha infância, repleta de tias e tios safra entre-guerras). Quem não as conhece que trate logo de as ler e se diluir nesse cante hondo lancinante sobre a vida e a morte (Nava, ao contrário de outros memorialistas, não minimiza o seu lado escuro, pois que o tem, assim como vocês e eu – eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil).

Por falta de romantismo na vida cotidiana, há nas pilhas — vacilantes como o próprio tema — dois livros, por assim dizer, de “filosofia do amor”: “Amor: uma História”, de Simon Ray (Zahar), e “Em Defesa do Amor”, de Cristina Nehring (BestSeller), este último, na verdade, mais uma análise literária que filosófica, centrada nos amores e na correspondência de artistas, principalmente escritores e literatos. Se Eros é uma criança travessa e o amor, como na ópera, “est un enfant de Boheme/Il n’a jamais, jamais connu de loi”, um pouco de literatura sobre o tema talvez ajude os desafortunados, e as conclusões desses dois livros com certeza o farão, pois, para dizer pouco, são no mínimo surpreendentes.

Tenho algumas estantes de livros sobre livros, é uma das minhas manias (não se apressem a explicar isso, freudianos leitores: também tenho estantes com guias de viagem para lugares aos quais jamais irei e outras com livros de amadores — à falta de palavra melhor —, tipo coletâneas de poesia de funcionários públicos, contos de velhos advogados do interior, coisas assim. Quanto mais amadora a edição e quantos mais erros de português houver, mais saborosa é a leitura). Terei tempo? Dizem que Winston Churchill lia um livro por dia inclusive enquanto tentava salvar o mundo do nazismo; já eu estou distante dessa marca e apenas tento salvar o mundo de mim mesmo. Receio então que não terei tempo: os próprios livros de Churchill sobre a Segunda Guerra estão na minha pilha desde 1993 (e estão sendo lidos!).

Em todas as pilhas e em todos os cantos do quarto e da minha vida, Freud. A Companhia das Letras segue publicando a obra completa do austríaco, agora traduzida, pela primeira vez no Brasil, diretamente do alemão, e a nova tradução mostra que Freud, além de ser o pai da psicanálise, era também um magnífico escritor (o polêmico Harold Bloom colocou-o na sua lista de cem escritores geniais). Não sei se concordarão comigo os recalcados leitores, pois eu aprecio sobremaneira o tema: que me perdoem os muito sãos, mas psicanálise é fundamental — se não no divã, ao menos lendo livros sobre o assunto (apesar de que, Faulkner já o notara, Melville a Moby Dick não leram Freud).

Percebo que há livros de difícil classificação, como, da Editora Senac, “Os Hotéis Literários: Viagem ao Redor da Terra”, de Nathalie H. de Saint Phalle (que nome é esse, minha filha?). A autora conta histórias de livros e escritores que se passam em hotéis do mundo todo. É um guia de hotéis ou uma espécie de crônica literária? Leio-o com raiva porque a jornalista, que imagino francesa, furtou-me uma de minhas melhores ideias para livros que nunca escreverei, mas também com nostalgia que me faz lembrar os hotéis que já conheci, como aquele, numa das vilas de Cinque Terre, onde não encontrei a Ava Gardner que sofregamente buscava, e ainda com apreensão por causa do pouco tempo que me resta para conhecer outros, talvez aquele hotelzinho perdido nas areias quentes do Egito e no qual poderia topar com Anne Baxter enganando o general Rommel — hotel, como sabem os meus saarianos leitores, no qual se passa o filme “Cinco Covas no Egito”, o que me permite fazer uma confissão: sempre ouvia, desde novo, meu pai elogiar esse filme, o que me levou a passar anos a procurá-lo; assim, quando o consegui, senti-me como se tivesse cumprido uma etapa importante do meu crescimento. (Ora, vejam isso, eu havia criticado os cinéfilos e agora mencionei filmes. Não tem importância: é preciso sentir tudo de todas as maneiras e ser sincero contradizendo-se a cada minuto.)

Evidentemente, há livros que só empilho sob pés mancos de mesas. Se Lya Luft, Paulo Coelho ou Ariano Suassuna publicam novos livros, uso-os. Imagino que sim, já que são dados à bibliorreia. Na verdade, alguns deles, como os de Lya Luft, a mais pachecal (o ne plus ultra da platitude tomada por verdade profunda), podem ser lidos com fins desopilantes, apesar da dificuldade com os seus patoás. Com certeza sabem os meus bíblicos leitores que as pragas do Egito foram dez: águas corrompidas, rãs, piolhos, moscas, gafanhotos, trevas, instalações de artistas contemporâneos, antropólogos de esquerda, sociólogos acadêmicos e escritores que escrevem e nada dizem. Há quem diga que qualquer leitura seria boa, pois supostamente levaria a livros de melhor qualidade — bem, eu jamais vi alguém dizer “Vou deixar este Paulo Coelho um pouquinho de lado e dar uma olhada na obra completa de Shakespeare”. Mas quem sou eu para discutir com pedagogos com mestrado e doutorado?

Encerro. E, depois de uma volta completa ao redor dessas pilhas para mim tão sagradas, sei, relendo o que escrevi, que com certeza canso os leitores. Mas, o que é mais grave, lembro-me ainda do Eclesiastes: “No acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor”.

Entretanto, penelopianos leitores, talvez vocês se perguntem: por que tanta leitura? Pois insisto porque creio com convicção sempre renovada que vivemos, todos nós, nossas vidas cheias de som e fúria — significando nada — eternamente à deriva e esperando um Godot que nunca chegará, mas também acredito que, de algum modo, podemos ter a literatura como uma forma de explicar o mundo. Se não é exatamente um consolo — ler muitas vezes machuca —, a literatura talvez seja o mais eficaz instrumento de um adulto para sobreviver relativamente são neste imenso cenário de dementes que é a saga humana (e propósito das citações, também creio que Montaigne e Shakespeare disseram tudo o que era necessário, e o pouco que faltou foi dito por Proust, Joyce e Faulkner). Por isso não capitulo — je ne capitule pas, caros rinocerontes (ao Google, leitores!).

É isso. Longa é a arte e curta é a vida, e talvez por isso o patrício pergunte: e o tempo para ler tudo? Pois é, atarefado leitor, tempus fugit. Matamos o tempo e o tempo nos mata. E também cotidie morimur e nihil morte certius, latinistas leitores. Bem, não sei, a leitura toma tempo e, como se sabe, thinking is a dizzy business. Cada um é cada um, deve ter sido sabiamente dito por algum técnico de futebol, mas para economia de tempo há atividades que podem ser cortadas da vida sem grandes prejuízos. Lembro algumas, mas com certeza existem outras: 1) berrar do alto de prédios depois do futebol (“Chooooora, Parmêra!”); 2) registrar no facebook a cronologia exata dos atos de higiene pessoal e o andamento da vida amorosa; 3) participar de micaretas — em matéria de fuzuê liberado, um carnaval oficial por ano basta (até porque seria muito difícil suportar duas mortes anuais da camélia); 4) fazer exercícios: como li em algum lugar, é melhor ficar com a parte de “mens sana” naquela história de “mens sana in corpore qualquer coisa” — leão não faz exercício, dizia San Tiago Dantas (estou sempre entregando a idade com esse tipo de comentário, mas não adianta fugir disso, como pessoalmente me recomendou o Autregésilo). Sim, esforcemo-nos — yes, we can. (Mas decidam-se rapidamente, prufrockianos leitores: em um minuto apenas há tempo para decisões e revisões que um minuto revoga.)

Encontrado o tempo, persistam: é que os bárbaros chegam hoje. Prego a concórdia e sou pela paz entre os homens e mulheres de boa vontade, mas com essa turma de cinéfilos e leitores de quadrinhos só Guantánamo resolve, pois já vejo as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura, famintas, histéricas e nuas. Quando os vândalos se aproximarem com algum filme iraniano cult, revidaremos declamando a longuíssima “Canção de Mim Mesmo” de Walt Whitman. Se os visigodos inimigos da palavra escrita insistirem em citar a estultícia das pretensas tiradas filosóficas de personagens de histórias em quadrinhos, leremos em voz alta o não menos longo monólogo final de “Ulysses”. Bradaremos contra os hunos e seus obscuros festivais de cinema: ¡no pasarán! Sim, unamo-nos: o que nos resta é proteger estes espaços para os quais podemos fugir do cotidiano caótico e massacrante, os nossos Yoknapatawphas, santuários onde pode prevalecer sem contestação qualquer devaneio literário, e as nossas Pasárgadas, onde somos amigos do rei e podemos decretar sem contestação a superioridade da literatura. Aux armes, citoyens! Andrada! Colombo! Mehr Licht!

Amado Menino de Belém

Contam que nasceu numa manjedoura, em Belém, o berço era de palha. Foi anunciado por uma estrela, no céu toda acesa de Deus. Os bichos cantaram: Jesus nasceu! Jesus nasceu! Os pastores tocavam uma música serena nas suas doces flautas. São José, o pai, o que tinha mãos habilidosas no manejo de enxó, plaina e formão, soube que de agora em diante ia talhar a mais pura fé do seu constante coração. A Virgem Maria, mãe do menino, dizia baixinho: Pobrezinho quando for um homem, de tanto nos amar, vai morrer na cruz.

Os três reis magos foram chegando, vieram de longe, muito longe, atravessaram montanhas e desertos. Traziam, como presente para o menino, mirra, incenso e ouro. Ajoelharam-se, sabiam que não eram dignos de tocar naquela palha. Bastava agora que fizessem o bem ao próximo e seriam alçados aos céus no final de suas vidas. Abelhas com os seus zumbidos de ouro vieram colocar afeto e mel no coração de cada um dos reis.

Contam mais que foi um menino que brincava como qualquer menino. Gostava de ficar sozinho, mirando a linha do horizonte. Quando ficou rapaz, não teve dúvida, havia sido o escolhido pelo Pai entre os humanos para ultrapassar aquela linha no horizonte. Para conseguir a façanha teria que fazer uma mágica em que disseminasse uma rosa na manjedoura dos ares. Juntar todas as mãos numa só mesa onde todos seriam irmãos.

Teve que trazer as sementes dadas pelo Pai para plantar cirandas nas areias do deserto. E assim, em cada ciranda que fazia entre os sofredores do ver e do viver, os sentimentos daquele homem humilde, com ares de profeta, correram nas águas doces do rio, seguiram no vento manso, que soprou a flor sozinha na plantinha do brejo. E foram levados pela borboleta até o lugar onde o amor sempre permanece, fazendo morada nas asas da ternura.

Acharam que sua mensagem batia de frente com o conforto dos donos do poder quando saía por aí de mãos dadas com os excluídos e curava os enfermos. Espalhava a esperança na pobreza dessa terra. Convencia os homens de que viver vale a pena desde que a vida seja exercida numa comunhão em que não haja desigualdade, injustiça, opressão e hipocrisia. Só dependia de nós que a vida fosse como uma dança, sem agressão, os bichos sem matança, a mata livre da queimada, as nuvens despejando a chuva para fertilizar a terra, desprovida do veneno letal da poluição.

Os donos do poder no sistema organizado não perdoaram a afronta. Traçaram o mais pérfido caminho para ele ultrapassar a linha do horizonte, que tanto contemplara quando era criança. Fizeram que carregasse uma cruz pesada. Puseram uma coroa de espinho na cabeça, cuspiram nele, chicotearam. Morra o rebelado, o falso profeta, o demolidor da ordem, o mentiroso fazedor de milagre, alardearam. Os que estavam com raiva nos olhos, perjuro no coração, fúria canina nas veias, investiam, urravam, não se cansavam de pedir que fosse condenado o subversivo do sistema. Ficaram calados quando foi decretada a crucificação. Não aceitaram que no seu lugar ficasse o ladrão, que para ali fora apenado com a crucificação pelos crimes cometidos.

Mas o que se viu, depois de perversa infâmia vinda de uma perseguição sem igual, é que até hoje tocam os sinos do bem na cidade e na campina, só para nos dizer que do menino nascido na manjedoura se fez um homem para ofertar a todos o amor, apesar de receber em troca seguidas pedradas. No final crucificado para que se cumprisse a profecia, o bendito salvador da humanidade veio para nos dizer que era o filho do Pai Eterno, perdoava a todos que não sabiam que a mais difícil prova era a da inocência.

Blem, blem, blem, confirmam até hoje o acontecido os sinos de Belém, dizendo que o Menino Deus veio ao mundo dos humanos por nos querer tanto bem.

quarta-feira, dezembro 25

Leitura no feriado

 


O grande invento do nosso tempo

Desde os tempos da fundação, José Arcádio Buendía construía alçapões e gaiolas. Em pouco tempo encheu de corrupiões, canários, azulões e tiês-sangue não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão atordoante que Úrsula tapou os ouvidos com cera de abelha para não perder o senso da realidade. A primeira vez que a tribo de Melquíades chegou vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreendeu que eles tivessem conseguido encontrar aquela aldeia perdida no marasmo do pantanal, e os ciganos confessaram que tinham se orientado pelo canto dos pássaros.


Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo, arrastado pela febre dos ímãs, dos cálculos astronômicos, dos sonhos de transmutação e das ânsias de conhecer as maravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcádio Buendía transformou-se num homem de aspecto folgazão, descuidado no vestir, com uma barba selvagem que Úrsula conseguia aparar a duras penas com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho sortilégio. Mas até os mais convencidos de sua loucura abandonaram trabalho e famílias para segui-lo quando jogou sobre os ombros suas ferramentas de desbastar matos e bosques e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os grandes inventos.

José Arcádio Buendía ignorava por completo a geografia da região. Sabia que para os lados do oriente estava a serra impenetrável, e do outro lado da serra, a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas — segundo havia contado a ele o primeiro Aureliano Buendía, seu avô — sir Francis Drake se dava ao esporte de caçar jacarés a tiros de canhão, que depois mandava remendar e rechear de palha e despachava para a rainha Elizabeth. Na sua juventude, José Arcádio e seus homens, com mulheres e crianças e animais e todo tipo de utensílios domésticos, atravessaram a serra buscando uma saída para o mar, e ao cabo de vinte e seis meses desistiram da aventura e fundaram Macondo para não ter que empreender o caminho de volta. Era, pois, um caminho que não lhe interessava, porque só podia conduzir ao passado. Ao sul estavam as lagoas cobertas por uma eterna nata vegetal e o vasto universo do pântano grande, que de acordo com o depoimento dos ciganos carecia de limites. Esse pantanal se confundia ao ocidente com uma extensão aquática sem horizontes, onde havia cetáceos de pele delicada com cabeça e torso de mulher, que faziam os navegantes se perderem com o feitiço de suas tetas descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de alcançar o cinturão de terra firme por onde passavam as mulas do correio. De acordo com os cálculos de José Arcádio Buendía, a única possibilidade de contato com a civilização era a rota do norte. Por isso, entregou foices, machados, facões e armas de caça aos mesmos homens que o acompanharam na fundação de Macondo, enfiou numa mochila seus instrumentos de orientação e seus mapas, e lançou-se à temerária aventura.

Nos primeiros dias não encontraram obstáculo apreciável. Desceram pela pedregosa ribeira do rio até o lugar onde anos antes haviam encontrado a armadura do guerreiro, e por ali penetraram o bosque por uma trilha de laranjeiras silvestres. No fim da primeira semana mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e salgar o resto para os próximos dias. Tratavam de adiar com essa precaução a necessidade de continuar comendo araras, cuja carne azul tinha um áspero sabor de almíscar. Depois, durante mais de dez dias, não tornaram a ver o sol. O chão tornou-se mole e úmido, feito cinza vulcânica, e a vegetação ficou cada vez mais insidiosa e se fizeram cada vez mais distantes os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição sentiram-se angustiados por suas recordações mais antigas naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas afundavam em poços de óleo fumegante e os facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por um universo de desassossego, alumbrados apenas por uma tênue reverberação de insetos luminosos e com os pulmões agoniados por um sufocante cheiro de sangue. Não podiam regressar, porque a trilha que abriam enquanto caminhavam tornava a se fechar num instante, com uma vegetação nova que quase viam crescer diante de seus olhos. “Não importa”, dizia José Arcádio Buendía. “O essencial é não perder a direção.” Sempre atento à bússola, continuou guiando seus homens rumo a um norte invisível, até que conseguiram sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada por um ar novo e limpo. Exauridos pela longa travessia, dependuraram suas redes e dormiram pesado pela primeira vez em duas semanas. Quando despertaram, já com o sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de samambaias e palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de seus mastros intactos pendiam fiapos esquálidos do velame, entre cordoalhas adornadas por orquídeas. O casco, tapado por uma resplandecente couraça de rêmoras petrificadas e musgo tenro, estava firmemente cravado num solo de pedras. Toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e de esquecimento, vedado aos vícios do tempo e aos costumes dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um fervor sigiloso, não havia nada além de um espesso bosque de flores.

Achar o galeão, indício da proximidade do mar, estraçalhou o ímpeto de José Arcádio Buendía. Considerava uma ironia de seu travesso destino ter buscado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e penas sem conta, e ter encontrado o mar sem buscá-lo, atravessado em seu caminho como um obstáculo invencível. Muitos anos depois, o coronel Aureliano Buendía tornou a atravessar a região, quando já era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou do galeão foi o esqueleto carbonizado no meio de um campo de amapolas. Só então, convencido de que aquela história não tinha sido uma artimanha da imaginação de seu pai, se perguntou como o galeão tinha conseguido entrar até aquele ponto na terra firme. Mas José Arcádio Buendía não teve essa inquietação quando encontrou o mar, depois de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de distância do galeão. Seus sonhos terminavam diante daquele mar cor de cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios de sua aventura.

— Caralho! — gritou. — Macondo está cercada de água por todos os lados.

A ideia de uma Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo, inspirada no mapa arbitrário que José Arcádio Buendía desenhou quando regressou de sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando de má-fé as dificuldades de comunicação, como castigando-se a si mesmo pela absoluta falta de noção com que escolhera o destino da sua marcha. “Nunca chegaremos a nenhum lugar”, lamentava-se para Úrsula. “Aqui vamos apodrecer em vida, sem receber os benefícios da ciência.” Essa certeza, ruminada vários meses no quartinho do laboratório, levou-o a conceber o projeto de levar Macondo para um lugar mais propício. Só que desta vez Úrsula se antecipou aos seus desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiguinha ela predispôs as mulheres da aldeia contra as veleidades de seus homens, que já começavam a se preparar para as mudanças. José Arcádio Buendía não soube em que momento, nem graças a que forças adversas, seus planos foram se enredando em um emaranhado de pretextos, contratempos e evasivas, até se converterem em pura e simples ilusão. Úrsula observou-o com uma atenção inocente e até chegou a sentir por ele um pouco de piedade, na manhã em que o encontrou no quartinho dos fundos comentando entre dentes seus sonhos de mudança, enquanto colocava nas caixas originais as peças do laboratório. Deixou que ele terminasse. Deixou que pregasse as caixas e com um pincel lambuzado de tinta pusesse suas iniciais em cima, sem fazer reparo algum, mas já sabendo que ele sabia (porque ouviu o que ele dizia em seus monólogos surdos) que os homens da aldeia não o seguiriam em sua aventura. Só quando começou a desmontar a porta do quartinho Úrsula se atreveu a perguntar por que estava fazendo aquilo, e ele respondeu com uma certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, vamos sozinhos.” Úrsula não se alterou.

— Não vamos não — disse ela. — Nós ficamos aqui, porque aqui tivemos um filho.

— Mas ainda não temos um morto — disse ele. — E a gente não é de lugar nenhum enquanto não tem um morto debaixo da terra deste lugar.

Úrsula replicou, com uma suave firmeza:

— Pois se for preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, então eu morro.
José Arcádio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade da sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava jogar uns líquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos de acordo com a vontade dos homens, e onde se vendia por quase nada todo tipo de artefato contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua clarividência.

— Em vez de andar pensando em suas maluquices fantasiosas, você devia é cuidar dos seus filhos — replicou. — Olha só como estão, largados de mão feito os burros.

José Arcádio Buendía tomou ao pé da letra as palavras de sua mulher. Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta ensolarada, e teve a impressão de que só naquele instante haviam começado a existir, concebidos pelo pedido determinado de Úrsula. Alguma coisa então aconteceu dentro dele; algo misterioso e definitivo que o desenraizou do tempo presente levou-o à deriva por uma região inexplorada de recordações. Enquanto Úrsula continuava varrendo a casa que agora tinha certeza de não abandonar pelo resto da vida, ele permanecia contemplando os meninos com um olhar absorto, até que os olhos se umedeceram e ele os secou com o dorso da mão, e exalou um profundo suspiro de resignação.

— Bom — falou. — Diga a eles que venham me ajudar a tirar as coisas dos caixotes.

José Arcádio, o mais velho dos meninos, havia feito catorze anos. Tinha a cabeça quadrada, os cabelos espessos e emaranhados e a personalidade voluntariosa do pai. Embora tivesse o mesmo impulso de crescimento e solidez, já naquele tempo era evidente que carecia de imaginação. Foi concebido e dado à luz durante a penosa travessia da serra, antes da fundação de Macondo, e seus pais deram graças aos céus ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o primeiro ser humano que nascera em Macondo, ia completar seis anos em março. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre de sua mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto cortavam seu umbigo movia a cabeça de um lado a outro reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro. Depois, indiferente aos que chegavam perto para conhecê-lo, manteve a atenção concentrada no teto de sapé, que parecia a ponto de desmoronar debaixo da tremenda pressão da chuva. Úrsula não tornou a se lembrar da intensidade daqueles olhares até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de barro com caldo fervendo. O menino, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava bem posta no centro da mesa, mas assim que o menino deu o anúncio, começou um movimento irremediável rumo à borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espatifou no chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, que o interpretou como sendo um fenômeno natural. Assim foi sempre, alheio à existência de seus filhos, em parte porque considerava a infância um período de insuficiência mental, em parte porque estava sempre absorto demais em suas próprias especulações quiméricas.

Mas desde a tarde em que chamou os meninos para ajudá-lo a desempacotar as coisas do laboratório, dedicou a eles suas melhores horas. No quartinho afastado, cujas paredes foram se enchendo pouco a pouco de mapas inverossímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e a escrever e a fazer contas, e falou a eles das maravilhas do mundo não apenas até onde iam seus conhecimentos, mas forçando a extremos incríveis os limites de sua imaginação. Foi assim que os meninos acabaram aprendendo que no extremo meridional da África havia homens tão inteligentes e pacíficos que sua única distração era sentar e pensar, e que era possível atravessar a pé o mar Egeu saltando de ilha em ilha até o porto de Salônica. Aquelas sessões alucinantes ficaram de tal modo impressas na memória dos meninos que, muitos anos mais tarde, um segundo antes que o oficial dos exércitos regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía tornou a viver a tarde morna de março em que seu pai interrompeu a lição de física e ficou fascinado, com a mão no ar e os olhos imóveis, ouvindo à distância os pífanos e tambores e pandeiros dos ciganos que uma vez mais chegavam à aldeia, apregoando o último e assombroso descobrimento dos sábios de Mênfis.

Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a própria língua, exemplares formosos de pele oleosa e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada alegria, com seus papagaios pintados de todas as cores que recitavam romanças, e a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som da pandeireta, e o mico amestrado que adivinhava o pensamento, e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer as más lembranças, e o emplastro para enganar o tempo, e um milhar de invenções a mais, tão engenhosas e insólitas que José Arcádio Buendía bem que gostaria de inventar a máquina da memória para poder se lembrar de todas elas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente perdidos em suas próprias ruas, aturdidos pela feira multitudinária.

Levando um menino em cada mão para não perdê-los no tumulto, tropeçando com saltimbancos de dentes encouraçados de ouro e malabaristas de seis braços, sufocado pelo confuso bafo de esterco e sândalo que a multidão exalava, José Arcádio Buendía andava feito louco buscando Melquíades em todas as partes, para que lhe revelasse os infinitos segredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários ciganos que não entenderam sua língua. Finalmente chegou até o lugar onde Melquíades costumava plantar sua tenda, e encontrou um armênio taciturno que anunciava em castelhano um xarope para se tornar invisível. Havia tomado de um golpe só uma taça da substância ambarina, quando José Arcádio Buendía abriu caminho aos empurrões entre o grupo absorto que presenciava o espetáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano envolveu-o no clima atônito de seu olhar, antes de se transformar num charco de alcatrão pestilento e fumegante sobre o qual ficou flutuando a ressonância de sua resposta: “Melquíades morreu.”

Aturdido pela notícia, José Arcádio Buendía permaneceu imóvel, tratando de superar a aflição, até que o grupo se dispersou convocado por outros artifícios e o charco do armênio taciturno se evaporou por completo. Mais tarde, outros ciganos confirmaram que de fato Melquíades havia sucumbido às febres nas dunas de Singapura, e que seu corpo havia sido arrojado no lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram pela notícia. Estavam obstinados em que seu pai os levasse para conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na entrada de uma tenda que, pelo que diziam, tinha pertencido ao rei Salomão. Tanto insistiram, que José Arcádio Buendía pagou os trinta pesos e os conduziu até o centro da tenda, onde havia um gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, custodiando um cofre de pirata. Ao ser destapado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro só havia um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais a claridade do crepúsculo se despedaçava em estrelas coloridas. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcádio Buendía atreveu-se a murmurar:

— É o maior diamante do mundo.

— Não — corrigiu o cigano. — É gelo.

José Arcádio Buendía, sem entender, estendeu a mão até o bloco de gelo, mas o gigante não deixou. “Para tocar, são mais cinco pesos”, disse. José Arcádio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve por vários minutos, enquanto seu coração se inchava de temor e de júbilo graças ao contato com o mistério. Sem saber o que dizer, pagou mais dez pesos para que seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Arcádio se negou a tocar. Aureliano, porém, deu um passo adiante, pôs a mão e a retirou no ato. “Está fervendo”, exclamou assustado. Mas seu pai não prestou atenção. Embriagado pela evidência do prodígio, naquele momento esqueceu a frustração de seus empreendimentos delirantes e o corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas. Pagou mais cinco pesos e, com a mão no bloco de gelo, como que prestando um depoimento e jurando sobre o texto sagrado, exclamou:

— Este é o grande invento do nosso tempo.
Gabriel García Márquez, "Cem Anos de Solidão"

O vento

O vento é um inveterado ledor de tabuletas. E, com toda aquela sua pressa, é exatamente o contrário do leitor apressado: não salta uma só que seja, não perde nenhuma delas, lê e passa — que o seu destino é passar —, mas guarda uma lembrança vertiginosa de todas, principalmente das verdes, das vermelhas, das de azul mais forte, sem esquecer, ó Van Gogh, as tabuletas amarelas...

Sabes? Passa no vento a alma dos pintores mortos, procurando captar, levar (para onde?) as cores deste mundo.

Que este mundo pode ser que não preste, mas é tão bom de ver!

Msrio Quintana, "Caderno H"

Vivo de luz

Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer.

A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) - é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra.

Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? ... Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior. Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez. A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia.

Raul Brandão, "Se Tivesse de Recomeçar a Vida"

terça-feira, dezembro 24

Bom Natal

 


Natal é nascimento e, portanto, remete a paz e encantamento (Que família não se encanta com o novo membro que chega e fica em paz até o seu primeiro choro?). Palavras pouco vistas no mundo de agora, aquelas reúnem o que chamamos Paraíso. O Natal deve lembrar que durante todo o ano cada dia é um nascimento para se contrapor ao sofrimento.

Crônica de Natal (de novo)

Tenho inveja dos cronistas novos. Não porque eles não sabem que todas as crônicas de Natal já foram escritas e podem escrevê-las de novo. Mas porque podem fazer isto sem remorso.

Tem as infinitas variações sobre problemas encontrados por Papai Noel no mundo moderno (seu trenó levado num assalto, sua dificuldade em se identificar em portarias eletrônicas, protestos de ambientalistas contra o seu tratamento das renas, suspeita de exploração de trabalho escravo, suspeita de pedofilia etc.).

Tem as muitas maneiras de atualizar a história da Natividade (Maria e José em fila do SUS, os Reis Magos chegando atrasados porque foram detidos por patrulhas israelenses ou militantes palestinos, Jesus vítima de uma bala perdida).

Tem as versões diferentes da cena na manjedoura, inclusive — juro que já li esta, se não a escrevi — narrada do ponto de vista do boi.

Todas já foram feitas.

Há tantas crônicas de Natal possíveis quanto há meios de se desejar felicidade ao próximo.

Os cartões de fim de ano são outro desafio à criatividade humana. Pois todas as suas variações também já foram inventadas.

Quando eu trabalhava em publicidade, todos os anos recebia encomendas de saudações de Natal e Ano Novo “diferentes”, porque os clientes não se contentavam em apenas desejar que o Natal fosse feliz e o Ano Novo fosse próspero.

Uma vez sugeri um cartão de Natal completamente branco com a frase “Aquelas coisas de sempre…” num canto, mas acho que este foi considerado diferente demais.

E dê-lhe poesia, pensamentos inspiradores, má literatura e a busca desesperada do diferente.

Um cartão em forma de sapato, de dentro do qual saía uma meia: a meia para o Papai Noel encher de presentes e o sapato para entrar no Ano Novo de pé direito. Coisas assim.

Enfim, tudo isto é apenas para desejar a você aquelas coisas de sempre…

Luís Fernando Veríssimo

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes

Papai Noel no trópico

Meu avô era aquilo que os vencedores na batalha pela vida costumam denominar de um perdedor. Nada do que fazia dava certo, nada. Ainda jovem havia jogado fora a pequena fortuna que recebera de herança; fizera um investimento maluco qualquer e perdera todo o dinheiro. A partir daí, tentou de tudo para sobreviver; foi comerciante, foi corretor de imóveis, foi vendedor de seguros, foi motorista ... Até a astrologia experimentou, mas teve de encerrar a carreira depois que uma cliente, indignada com suas previsões erradas, deu-lhe uns tapas em plena rua. De desastre em desastre os anos iam passando; mesmo sem dinheiro, ele casou. Com a mulher ideal, aliás: minha avó, Isabel, era de uma paciência admirável, e encarava com bom humor as extravagâncias e os insucessos do marido. Tiveram oito filhos porque meu avô, além de tudo, considerava-se um patriarca e olhava com satisfação a sua tribo crescer. A família sobrevivia, principalmente porque vovó era boa costureira e tinha numerosas clientes na alta sociedade, o que lhe dava certa renda. Quanto a vovô, continuava arranjando um bico aqui outro ali.

Um dia recebeu uma oferta inesperada. Um de seus muitos amigos, comerciante relativamente próspero, convidou-o para trabalhar como Papai Noel: ficaria diante da loja, com o traje vermelho característico, convidando os transeuntes a entrar no estabelecimento. A princípio, vovô rejeitou a proposta, com indignação, inclusive: o que é que você pensa que sou, posso ser pobre mas tenho minha dignidade, não vou bancar Papai Noel coisa nenhuma. Mas aí o homem mencionou uma cifra, que não era pequena. Vovô engoliu em seco. Era mais do que lhe tinham pago por qualquer trabalho. Um dinheiro que lhe permitiria oferecer um Natal decente à tribo. Aceitou.

E se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo, rechonchudo, faces rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba, precocemente branca, tornava desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a lenda, é característico do Papai Noel. Só lhe faltava o trenó com as renas, porque o resto todo ele tinha.

Esta semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes, e também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto, cobrava bons cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de renda — e um bom final de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada no dia 25, porque no dia 24 ele trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros presentes junto à árvore de Natal provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos.

Ninguém lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito. Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da encenação; o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na cidade do Nordeste em que viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E vovô era particularmente calorento; quando o termômetro subia, ele sofria.

Normalmente andava só em mangas de camisa, de bermuda e chinelo. Via a fantasia de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por que tenho de vestir essa coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha do Polo Norte; teria, portanto, de usar roupas quentes.

— Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse papel só de camiseta?

Pergunta retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não será agora que as coisas mudarão.

Vovó tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido uma fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por causa da irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a lhe envenenar a vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais irritadiço. Na semana do Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por qualquer coisa. Lá pelas tantas vovó começou a ficar preocupada. Vovô já era um homem idoso, beirava os setenta, e a sua saúde não era das melhores; ela temia que aquilo acabasse prejudicando o homem. Chegou a sugerir que ele parasse de vez; afinal, tanta gente se aposenta, por que não podem se aposentar as pessoas que fazem o papel de Papai Noel? Uma idéia que vovô repelia, indignado. Não era homem de abandonar a luta.

Mas os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um acidente vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado era grave; uma pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia coisas sem sentido. No fim daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a:

— Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca.

Era a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não: afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu papel. Por fim disse que era a noite de 24 de dezembro.

— Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa, continuou:

— Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que responder, e alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais velho — meu pai. Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer.
Meu pai pensou um pouco. Ele era jovem, ainda, e, como vovô, tinha um temperamento fantasioso. De modo que não hesitou:

— Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a fantasia que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e, pouco depois, entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu os olhos, viu aquela figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil sorriso.

— Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer.

Meu pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse pela voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava falando com o Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido:

— Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu?

Não quero ser mais o Papai Noel. Não aguento aquela roupa, sabe? Não aguento. Você, que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas gostarão disso. E eu poderei morrer em paz.

Calou-se, exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez para vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu.

A melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois faleceu.

A consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma das notícias. Outra: Papai Noel nos deixou.

Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.

O pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como ele. E tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura talhada para o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O cargo de Rei Momo do Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma família de gordinhos carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe importante: papai, como vovô, nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança de vovó, era uma mulher prática (e sabia o esforço que lhe custava manter a casa com orçamento apertado), disse que ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as pessoas choravam ao vê-lo na mesma roupa de vovô.

Agora, já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo passando, papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa usar barba postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda inteiramente branca.

Como vovô, papai foi progressivamente detestando a tarefa de bancar Papai Noel.
E pela mesma razão: a roupa é quente demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das crianças é mais importante que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo, me serve como lição de vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que traz alegria e conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha roupa vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o calor.
Moacyr Scliar