terça-feira, dezembro 17

Macondo

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídas na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo. Todos os anos, lá pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava sua tenda perto da aldeia e com um grande alvoroço de apitos e tímbalos mostrava as novas invenções. Primeiro levaram o ímã. Um cigano corpulento, de barba indomada e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública do que ele mesmo chamava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos e todo mundo se espantou ao ver que os caldeirões, as caçarolas, os alicates e os fogareiros caíam de onde estavam, e as madeiras rangiam por causa do desespero dos pregos e parafusos tentando se soltar, e até mesmo os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria” — apregoava o cigano com sotaque áspero —, “é só questão de despertar suas almas.” José Arcádio Buendía, cuja desaforada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e muito além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquela invenção inútil para desentranhar ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, avisou: “Para isso, não serve.” Mas naquele tempo José Arcádio Buendía não acreditava na honradez dos ciganos, e trocou sua mula e uma partida de bodes pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para espichar o minguado patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Dentro de muito pouco haverá ouro de sobra para ladrilhar esta casa”, replicou seu marido. Durante vários meses se empenhou em demonstrar o acerto de suas conjecturas. Explorou a região palmo a palmo, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o sortilégio de Melquíades. A única coisa que conseguiu foi desenterrar uma armadura do século XV com todas as suas partes soldadas por uma casca de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcádio Buendía e os quatro homens de sua expedição conseguiram desmontar a armadura, encontraram dentro dela um esqueleto calcificado que levava dependurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher.


Em março os ciganos voltaram. Dessa vez traziam uma luneta e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como sendo o último descobrimento dos judeus de Amsterdã. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram a luneta na tenda. A troco de cinco pesos, as pessoas chegavam até a luneta e viam a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Daqui a pouco, o homem vai poder ver o que acontece em qualquer lugar da terra sem sair de casa.” Num meio-dia ardente fizeram uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca: juntaram um montão de capim seco no meio da rua e puseram fogo por meio da concentração dos raios solares. José Arcádio Buendía, que ainda não tinha acabado de se consolar do fracasso de seus ímãs, concebeu a ideia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas acabou aceitando os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial a troco da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro que seu pai tinha acumulado ao longo de uma vida inteira de privações e que ela havia enterrado debaixo da cama à espera de uma boa ocasião para investi-las. José Arcádio Buendía, entregue por inteiro às suas experiências táticas com a abnegação de um cientista e até mesmo pondo em risco a própria vida, nem tentou consolá-la. Tratando de demonstrar os efeitos da lupa sobre a tropa inimiga, ele se expôs à concentração de raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito a curar. Enfrentando os protestos de sua mulher, alarmada por tão perigosa inventiva, quase incendiou a casa. Passava longas horas em seu quarto, fazendo cálculos sobre as possibilidades estratégicas de sua arma inovadora, até que conseguiu elaborar um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível. Despachou-o para as autoridades acompanhado de numerosos depoimentos sobre suas experiências e de vários maços de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, se extraviou em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer debaixo do açoite das feras, do desespero e da peste, até conseguir um atalho para encontrar as mulas do correio. Apesar de, naquele tempo, a viagem até a capital ser pouco menos que impossível, José Arcádio Buendía prometia tentar chegar lá assim que recebesse ordens do governo, com o objetivo de fazer demonstrações práticas de seu invento diante dos poderes militares e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou pela resposta. No fim, cansado de esperar, lamentou-se com Melquíades do fracasso de sua iniciativa, e o cigano deu então uma prova convincente de honradez: devolveu a ele os dois dobrões em troca da lupa, e além disso deixou uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse tirar bom proveito do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcádio Buendía passou os longos meses de chuva trancado num quartinho que construiu nos fundos da casa para que ninguém perturbasse suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, passou noites inteiras no quintal vigiando os astros e quase contraiu uma insolação por tentar estabelecer o método exato para achar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo de seus instrumentos, chegou a uma noção do espaço que permitiu a ele navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem a necessidade de abandonar seu gabinete. Foi nessa época que adquiriu o hábito de falar sozinho, zanzando pela casa sem se importar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças se arrebentavam de trabalhar na horta cuidando da banana e da batata-doce, do aipim e do inhame, da abóbora e da berinjela. De repente, sem nenhum aviso, sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Passou vários dias feito um enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa uma fieira de assombrosas conjecturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Finalmente, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de um golpe só toda a carga de seu tormento. As crianças haveriam de recordar pelo resto de sua vida a augusta solenidade com que seu pai sentou-se à cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela ferida aberta de sua imaginação, e revelou a elas sua descoberta:

— A terra é redonda feito uma laranja.

Úrsula perdeu a paciência. “Se é para ficar louco, pois que fique você, sozinho”, gritou. “Não trate de pregar nas crianças suas ideias de cigano.” José Arcádio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher, que numa explosão de cólera estraçalhou o astrolábio no chão. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens da aldeia e demonstrou a eles, com teorias que para todos eram incompreensíveis, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre rumo ao Oriente. A aldeia inteira estava convencida de que José Arcádio Buendía havia perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr as coisas em ordem. Ele exaltou em público a inteligência daquele homem que através da pura especulação astronômica havia construído uma teoria já comprovada na prática, embora até então desconhecida em Macondo, e como prova de sua admiração deu a ele um presente que haveria de exercer uma influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.

Naquela altura, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Em suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcádio Buendía. Mas, enquanto José Arcádio conservava sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia arruinado por um mal tenaz. Era, na verdade, o resultado de múltiplas e raras doenças contraídas em suas incontáveis viagens ao redor do mundo. Segundo ele mesmo contou a José Arcádio Buendía enquanto o ajudava a montar o laboratório, a morte o seguia por todos os lugares, pisando seus calcanhares, mas sem se decidir a dar o golpe final. Era um fugitivo de todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano. Sobrevivera à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto da Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso, que dizia possuir o código de Nostradamus, era um ser lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e preto, como as asas esticadas de um corvo, e um colete de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas apesar de sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o mantinha enredado nos minúsculos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes percalços econômicos e havia deixado de rir fazia muito tempo, porque o escorbuto tinha arrancado seus dentes. No sufocante meio-dia em que revelou seus segredos, José Arcádio Buendía teve a certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com seus relatos fantásticos. Aureliano, que não tinha mais que cinco anos, haveria de recordá-lo pelo resto da vida do jeito que o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, alumbrando com sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto deixava jorrar pela sua fronte a gordura derretida pelo calor. José Arcádio, seu irmão mais velho, haveria de transmitir aquela imagem maravilhosa, como uma recordação hereditária, a toda a sua descendência. Úrsula, porém, conservou uma lembrança desagradável daquela visita, porque entrou no quarto no momento em que Melquíades quebrou por distração um frasco de bicloreto de mercúrio.

— É o cheiro do demônio — disse ela.

— De jeito nenhum — corrigiu Melquíades. — Está comprovado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto aqui não passa de um pouco de sublimado corrosivo.

Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtudes diabólicas do sulfeto de mercúrio, mas Úrsula não lhe deu importância: levou as crianças para rezar. Aquele cheiro forte de aguarrás ficaria para sempre em sua memória, vinculado à lembrança de Melquíades.

O laboratório rudimentar — sem contar uma profusão de caçarolas, funis, retortas, filtros e coadores — era composto por uma tubulação primitiva, uma proveta de cristal de gargalo comprido e estreito, imitação do ovo filosofal, e um destilador construído pelos próprios ciganos de acordo com as descrições modernas do alambique de três braços de Maria, a Judia. Além dessas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais correspondentes aos sete planetas, as fórmulas de Moisés e de Zósimo para a duplicação do ouro, e uma série de anotações de desenhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem soubesse interpretá-los tentar a fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro, José Arcádio Buendía cortejou Úrsula durante várias semanas, para que o deixasse desenterrar suas moedas coloniais e multiplicá-las tantas vezes quanto fosse possível subdividir o azougue. Úrsula cedeu, como sempre, diante da inquebrantável obstinação do marido. Então José Arcádio Buendía jogou trinta dobrões numa caçarola e os fundiu com raspa de cobre, sulfato de arsênico, enxofre e chumbo. Pôs tudo para ferver em fogo forte num caldeirão de óleo de rícino até obter um xarope espesso e pestilento mais parecido com uma calda banal do que com o ouro magnífico. Em temerários e desesperados processos de destilação, fundida com os sete metais planetários, trabalhada com o mercúrio impenetrável e com o vitríolo do Chipre, e cozida de novo em banha de porco na falta de óleo de nabo, a preciosa herança de Úrsula ficou reduzida a um torresmo carbonizado que não se soltou do fundo do caldeiro.

Quando os ciganos voltaram, Úrsula havia predisposto contra eles a população inteira. Mas a curiosidade foi mais forte que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a aldeia fazendo um ruído ensurdecedor com tudo que é tipo de instrumento musical, enquanto o pregoeiro anunciava a exibição do mais fabuloso achado dos antigos de Nacianço. E todo mundo foi até a tenda, e mediante o pagamento de um centavo todos viram um Melquíades juvenil, reposto, desenrugado, com uma dentadura nova e radiante. Quem recordava suas gengivas destruídas pelo escorbuto, suas faces flácidas e seus lábios murchos, estremeceu de pavor diante daquela prova determinante dos poderes sobrenaturais do cigano. O pavor se converteu em pânico quando Melquíades tirou os dentes, intactos, engastados nas gengivas, e mostrou-os ao público por um instante — um instante fugaz em que voltou a ser o mesmo homem decrépito dos anos anteriores — e colocou-os outra vez e sorriu de novo com um domínio pleno da juventude restaurada. Até mesmo o próprio José Arcádio Buendía considerou que os conhecimentos de Melquíades haviam chegado a extremos intoleráveis, mas deixou-se levar por um saudável alvoroço quando o cigano explicou a ele, a sós, o mecanismo da dentadura postiça. Aquilo pareceu-lhe ao mesmo tempo tão simples e prodigioso, que da noite para o dia perdeu todo interesse nas investigações de alquimia; sofreu uma nova crise de mau humor, não tornou a comer de forma regular e passava o dia dando voltas pela casa. “No mundo estão acontecendo coisas incríveis”, dizia a Úrsula. “Ali mesmo, do lado de lá do rio, existe tudo que é tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo feito burros.” Quem o conhecia desde os tempos da fundação de Macondo se assombrou com o quanto ele havia mudado debaixo da influência de Melquíades.

No começo, José Arcádio Buendía era uma espécie de patriarca juvenil, que dava instruções para o plantio e conselhos para criar filhos e animais e colaborava com todos, inclusive no trabalho físico, para os avanços da comunidade. E como sua casa foi desde o primeiro momento a melhor da aldeia, as outras foram arrumadas à sua imagem e semelhança. Tinha uma salinha ampla e bem iluminada, uma sala de jantar na forma de terraço com flores de cores alegres, dois dormitórios, um quintal com uma castanheira gigantesca, um jardim bem plantado, com horta e pomar, e um curral onde viviam em comunidade pacífica os bodes, os porcos e as galinhas. Os únicos animais proibidos não só na casa, mas na aldeia inteira, eram os galos de briga.

A diligência de Úrsula andava passo a passo com a de seu marido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, e que em nenhum momento de sua vida alguém ouviu cantar, parecia estar em todas as partes do amanhecer até alta noite, sempre perseguida pelo suave sussurro de suas anáguas rendadas. Graças a ela, os chãos de terra batida, os muros de barro sem caiar, os rústicos móveis de madeira construídos por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde era guardada a roupa exalavam um perfume morno de alfavaca.

José Arcádio Buendía, que era o homem mais empreendedor que a aldeia conheceu e jamais veria outro igual, havia disposto de tal modo a posição das casas que de todas elas era possível chegar ao rio e abastecer-se de água com o mesmo esforço, e traçou as ruas com tanta sabedoria que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Em poucos anos, Macondo foi a aldeia mais arrumada e laboriosa que qualquer outra que seus 300 habitantes tivessem conhecido. Era de verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém tinha morrido.
Gabriel García Márquez, "Cem anos de solidão"

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