quarta-feira, dezembro 18

Nascimento

“Demora tanto, de Natal a Natal”... — queixava-se uma velhinha, das do Asilo, durante a festividade. Ainda pior, nesse prazo entremeavam-se os meses do tempo-de-frio, que amedrontam, assim como o vir de calores em excesso. Muitos dos recolhidos não podiam esperar dezembro, partiam para além, davam a alma. Todos lá não passavam de tênues sobreviventes, penduradinhos por um nada, apagáveis a qualquer sopro. — “A Sra. então não podia fazer por ano dois Natais?” — pois, queria aquela, conversadamente. Tinha de perguntar, já já, agora, que senão logo lhe esquecesse propor a ingente providência.

Simples se repetia a festa, voto de caridade, para dar maior realce a Deus; e uma demão de sonho. Aos resguardados hóspedes, reanimava com a expectação, o Natal sendo o que tocava a junto tempo a todos, o Natal era o que mais acontecia.

Tinham galinha ao almoço, divertido e aumentado; lembrava-lhes comer carne de porco, mas que fora em definitivo revogada, pois devido a que as enfermarias se enchiam, enquanto diversos iam para a extrema-unção e o enterro. Provavam sobremesas gostosas, abriam-se para eles garrafas de refrescos. Alguns permaneciam meio encolhidos, no receio de molharem as roupas. Ou calavam quantas habituais dores, nos quadris e entrecostelas, nas pernas: quando alto respondiam, ásperos, seria aproveitando correto modo de desabafo, substituição do gemer. Vários se tapavam também de surdez, em vários graus.

Por esses motivos, e mais os demais, adivinháveis, pronto-se agastavam, contestando e implicando, não era próprio da idade fornecê-los de simpatia humana, antes uma reima de desgosto essencial, em função de acrimônia. Desconfiavam-se reciprocamente. Também ideado não honrassem o fato da Natividade, culminador, aqui e, trans os séculos, em longes país e tempo. Apenas abençoavam, como a um risonho brinquedo, o Menino Jesus. Mesmo das antigas pessoas conhecidas e amadas, por certo só lhes restassem, infusas na memória, as silhuetas mais longas.

Mas aguardavam as dádivas. Tudo então parecia invento.

Armava-se no meio do salão-grande um estrado, onde ficava a Diretora, mais outras pessoas de fora, mocinhas e moças que operavam a distribuição; as que vinham lá com gentil benevolência e coração de esquentar invernos. Nas cadeiras, por filas, os velhos e velhas jubilados sentavam-se, em volta. Tão passados, alguns, que com infinito cuidado tinham de ser colocados nos respectivos assentos.

Até macróbios casais, pares para bodas de brilhantes. — “Minha boa Irmã...” — um velhote pedia, mansamente irado — “...mande minha mulher me dar atenção, ela está só conversando com esse aí outro sujeito...” — e ainda proferia que nem por muito parava caduco, e que era o marido dela, por ordem de Deus. Mas sua velhota sorrindo justificou-se, não o desamparava, apenas a cadeira é que ficara meio entortada para lá, ela não podia dar jeito. A irmã corrigiu-lhe a posição, voltou-a mesmo um pouco para o lado conjugal, a velhinha era anacrônica boneca, móvel assim, obedientemente.

Era decerto uma feita misturada assembleia, onde brancos e escuros, o de dizível família e o rústico ou gentuço, o antes remediado e o que pobrezinho sempre, da miséria cristã. Igualavam-se, porém, em gelhas, cãs, murchidão, agruras, como se a velhice tivesse sua própria descor, um odor, uma semelhança: sagradas as feições pela fadiga e gasto, vida cumprida.

Enfim palpitavam de insofrimento, querendo: as trêmulas mãos paralelas — no apanhar seu regalo — cada um com esperançazinha de que diferente e melhor que os outros, festejavam-se-lhes os olhos. Os presentes de pequena valia, sabonetes, espelhos miúdos, qualquer tutaméia ou til, embrulhados em lenços grandes, dos que são uso de velhos, de que as velhinhas gostam.

— “O meu, o meu?!” — indagava a já ceguinha nublada, do lenço-grande que Papai Noel e o Menino Jesus lhe estavam dando. Seu gosto era por um amarelo, com pintinhas vermelhas — atendia a que recordações?

Exultando outra: — “E é uma menina, meu Deus! é uma menininha loura, que vem me entregar o mimo!...” — frequentava com fadas.

Soavam antiquados risos, todos reenriquecidos, então, e assim, passeava-se o adejo do Natal, entre bandeirinhas jucundas, idosas, em avenidas de flinflas flores.

A cerimônia terminada, se deu fé de uma coisa, sua notícia perpassou pelas sutis vividas criaturas, algo a chamejar-lhes a atenção. Era a respeito de uma, tão desditosinha anciã, que, pouco antes — logo na santificada data de regozijos, naquela hora, esperada o ano inteiro — não escolhera para grave adoecer.

Soube-se, ela estava em sua cama, reperdida dos sentidos, extremamente só. Talvez com apenas uns minutos creditados, podia retombar toda para o lado de lá, a qualquer momento. Tinham deixado seu presente, seu lenço, ali à beira, a ver se ela voltaria a si, nem que por intervalo, para o ver, apalpar e apreciar.
Oh, isso logo passava a fazer parte do Natal, isso era o que era preciso! Aquela pousava como num berço, quietalma, era mesmo, estava pronta para o milagre, um milagrinho, prodígios.

Alvoroçavam-se, queriam ir todas e todos para lá, andando por si ou carregados, cá fora se ajuntavam, cochichavam, comentavam, simulânimes, com tenaz graça; se os deixassem entupiam o pequeno quarto. Se bem que sem nenhum descuido se agarrassem com seus enrolados presentes, só por ora se distraíam deles. Era um equilíbrio, se abriam ao que pintado maior em todas as estampas, tlintassem sinos, noel, natal, o presépio se alumiasse, tinidamente.

Sim — que a velhinha, dormedormindo, fugazmente despertasse, o necessário instante, lúcida entre duas mortes, isto é, que pudesse receber seu regalo e dom, antes de continuar.

Guimarães Rosa, "Ave, palavra"

Nenhum comentário:

Postar um comentário