terça-feira, setembro 29
O projetor
No fim de semana chuvoso, o azar de descobrir um defeito no aparelho de som. Comprara alguns DVDs, inclusive a "Missa de Angelis" gravada na Abadia de Solésmes, raridade que procurava há anos. O jeito foi arquivar o desejo de ouvir música.
Fui mexer nuns velhos guardados e descobri o antigo projetor de slides, que julgara desativado. Bastou apertar a lâmpada e ele funcionou. Troquei de brinquedo e arrumei a cangalha num quarto vazio, onde a parede branca esperava as imagens descoloridas de um outro tempo, que vieram mansamente, trazendo farrapos do passado, subitamente iluminados –e tão verdadeiros, tão cruéis em sua verdade, em seu momento que não volta mais.
Aquele sujeito não me é estranho, mas, honestamente, não me lembrava dele. Está um pouco mais magro, o bigode é menos grosso, os cabelos mais fartos e escuros, mas o cachimbo é o mesmo, deve estar no meio dos outros lá na sala. Sim, sou eu mesmo, sentado na amurada de um rio, o tempo descoloriu a paisagem em volta, pode ser o Tibre ou o Vistula, o Sena ou o Tamisa, talvez seja mesmo o Danúbio, numa Viena que me deslumbrou.
Recordações de viagens, escombros de matérias para uma revista, e, no meio de tudo, os instantes de uma casa –a minha casa– no sofá de couro está deitada a mulher, o ângulo da foto mostra-lhe as pernas, grande parte das coxas. Por milagre –ou talvez castigo–, as cores ainda estão vivas e fortes. Devia ficar olhando para sempre aquela foto, tão real e minha –e já fantasma e alheia.
Não devia estar fuçando o passado, perdi a vontade de continuar. Guardei os slides, pensei em jogá-los fora, mas tive pena de mim mesmo e resolvi conservá-los no mais obscuro de mim mesmo. Lúcido e só, amaldiçoei o projetor, cúmplice da memória que ainda dói.
Carlos Heitor Cony
Aquele sujeito não me é estranho, mas, honestamente, não me lembrava dele. Está um pouco mais magro, o bigode é menos grosso, os cabelos mais fartos e escuros, mas o cachimbo é o mesmo, deve estar no meio dos outros lá na sala. Sim, sou eu mesmo, sentado na amurada de um rio, o tempo descoloriu a paisagem em volta, pode ser o Tibre ou o Vistula, o Sena ou o Tamisa, talvez seja mesmo o Danúbio, numa Viena que me deslumbrou.
Recordações de viagens, escombros de matérias para uma revista, e, no meio de tudo, os instantes de uma casa –a minha casa– no sofá de couro está deitada a mulher, o ângulo da foto mostra-lhe as pernas, grande parte das coxas. Por milagre –ou talvez castigo–, as cores ainda estão vivas e fortes. Devia ficar olhando para sempre aquela foto, tão real e minha –e já fantasma e alheia.
Não devia estar fuçando o passado, perdi a vontade de continuar. Guardei os slides, pensei em jogá-los fora, mas tive pena de mim mesmo e resolvi conservá-los no mais obscuro de mim mesmo. Lúcido e só, amaldiçoei o projetor, cúmplice da memória que ainda dói.
Carlos Heitor Cony
Ideia à procura de parceiros
A Bambucicloteca é uma bicicleta de bambu que costuma carregar mais de uma centena de livros para parques de Porto Alegre nos finais de semana. Cristiane Cubas, uma das idealizadoras do projeto, concorda que a manutenção em longo prazo é uma das maiores dificuldades de ideias como essa: "A Bambucicleta funciona desde 2013. Já tivemos oito mediadores de leitura, mas hoje somos quatro. Neste ano, estamos em busca de meios para que o projeto se mantenha pleno ao longo do tempo".
Agora só leio livros escritos por mulheres
Em março tropecei com um artigo que encorajava a parar de ler livros escritos por homens brancos,heterossexuais e cisgêneros [“não trans”] durante um ano. Na hora, achei um exagero. Pensei: “Bom, eu leio muitas autoras, por exemplo”. Disse isso em voz alta. Meu parceiro me olhou. Levantamo-nos do sofá e fomos olhar lombadas nas estantes.
Olhamos uns duzentos livros até nos convencermos. Cerca de trinta tinham sido escritos por mulheres. Eu não podia acreditar.
Naquele momento eu decidi que, por um tempo, leria apenas livros escritos por mulheres. Eu achei mais fácil do que me por a averiguar se um autor ou autora é gay, negro ou transexual; para saber se é mulher, o nome costuma bastar. As mulheres são metade da população (além disso, “minha” metade!); leio cinquenta livros por ano, como é possível que eu quase não leia nada escrito por mulheres?
Olhamos uns duzentos livros até nos convencermos. Cerca de trinta tinham sido escritos por mulheres. Eu não podia acreditar.
Naquele momento eu decidi que, por um tempo, leria apenas livros escritos por mulheres. Eu achei mais fácil do que me por a averiguar se um autor ou autora é gay, negro ou transexual; para saber se é mulher, o nome costuma bastar. As mulheres são metade da população (além disso, “minha” metade!); leio cinquenta livros por ano, como é possível que eu quase não leia nada escrito por mulheres?
María Barrios |
E lá fui eu para a minha pilha de livros a ler e primeiramente retirei os livros escritos por uma autora (12 de 40). Em seguida, pedi recomendações no Twitter. E a partir daí comecei, simplesmente, a prestar atenção e anotar nomes.
Já se passaram seis meses e li cerca de vinte títulos escritos por mulheres. Não tenho nenhuma data prevista para terminar essa pequena experiência, ainda falta tanto por ler! E isso não me custou trabalho algum. No começo pensei que seria muito difícil abrir mão dos meus autores favoritos, ou que me custaria encontrar boas autoras nos gêneros que eu mais gosto, como ficção científica; não aconteceu nada disso. Não sinto que esteja renunciando a algo, mas sim que se abriu diante de mim um panorama totalmente novo que me surpreende a cada dia.
Minha descoberta foi, sem hesitação, Alice Munro (que vergonha, “descobrir” uma vencedora do prêmio Nobel de 85 anos); passei todo o verão imersa em seus relatos, extremamente comovida com histórias que pensava que não poderiam me interessar de forma alguma (O Canadá rural do período entre guerras? Que chatice!). Na ficção científica, a vietnamita Aliette de Bodard escreveu-me um mundo pungente de naves espaciais astecas e colônias chinesas na América do Norte. As super-heroínas de quadrinhos de G. Willow Wilson e Kelly Sue DeConnick me fizeram rir e me deliciar como uma adolescente. Eu tenho, de repente, um punhado de escritoras novas que vou recomendando com entusiasmo a todo mundo por aí, e quando vejo algum título de um escritor que eu gosto, penso, “Bah! Haverá tempo...” e volto à minha mulherada.
(Cuidado, as escritoras não são seres de luz pura e também fazem livros péssimos, como a trilogia Divergente, que torna Jogos Vorazes uma obra-prima literária...).
Mas existe realmente uma diferença entre a literatura escrita por homens e por mulheres? Acho que sim. Para começar, parece que as mulheres escrevem mais sobre mulheres. Há mais protagonistas do sexo feminino, e como há mais, são mais variadas, e como são mais variadas, são mais interessantes, mais humanas, mais de verdade. Estamos acostumados a que os protagonistas de quase tudo sejam homens e superamos esse detalhe para nos identificar com nossos personagens favoritos, mas é tão, tão refrescante abrir um livro e encontrá-lo cheio de mulheres de todos os tipos!
Teria encontrado todas essas novas abordagens, novos mundos, pontos de vista de personagens novos, simplesmente obrigando-me a ler autores novos, sem importar se são homens ou mulheres? A intuição me diz que não, que há algo mais, e penso continuar a ler até isso ficar claro. Em todo caso, não quero perder aquilo que metade da população tem a contar, e depois de tantos anos lendo homens com apenas algumas exceções, creio que posso continuar a ler escritoras por muito, muito tempo.
Ainda estou pendente de ampliar um pouco a experiência e começar a prestar atenção aos outros aspectos mencionados no início. Agora eu tenho certeza que valerá a pena afastar-me um pouco mais dos mesmos livros e autores de sempre e tomar emprestadas outras perspectivas com as quais observar o mundo.
Minha descoberta foi, sem hesitação, Alice Munro (que vergonha, “descobrir” uma vencedora do prêmio Nobel de 85 anos); passei todo o verão imersa em seus relatos, extremamente comovida com histórias que pensava que não poderiam me interessar de forma alguma (O Canadá rural do período entre guerras? Que chatice!). Na ficção científica, a vietnamita Aliette de Bodard escreveu-me um mundo pungente de naves espaciais astecas e colônias chinesas na América do Norte. As super-heroínas de quadrinhos de G. Willow Wilson e Kelly Sue DeConnick me fizeram rir e me deliciar como uma adolescente. Eu tenho, de repente, um punhado de escritoras novas que vou recomendando com entusiasmo a todo mundo por aí, e quando vejo algum título de um escritor que eu gosto, penso, “Bah! Haverá tempo...” e volto à minha mulherada.
(Cuidado, as escritoras não são seres de luz pura e também fazem livros péssimos, como a trilogia Divergente, que torna Jogos Vorazes uma obra-prima literária...).
Mas existe realmente uma diferença entre a literatura escrita por homens e por mulheres? Acho que sim. Para começar, parece que as mulheres escrevem mais sobre mulheres. Há mais protagonistas do sexo feminino, e como há mais, são mais variadas, e como são mais variadas, são mais interessantes, mais humanas, mais de verdade. Estamos acostumados a que os protagonistas de quase tudo sejam homens e superamos esse detalhe para nos identificar com nossos personagens favoritos, mas é tão, tão refrescante abrir um livro e encontrá-lo cheio de mulheres de todos os tipos!
Teria encontrado todas essas novas abordagens, novos mundos, pontos de vista de personagens novos, simplesmente obrigando-me a ler autores novos, sem importar se são homens ou mulheres? A intuição me diz que não, que há algo mais, e penso continuar a ler até isso ficar claro. Em todo caso, não quero perder aquilo que metade da população tem a contar, e depois de tantos anos lendo homens com apenas algumas exceções, creio que posso continuar a ler escritoras por muito, muito tempo.
Ainda estou pendente de ampliar um pouco a experiência e começar a prestar atenção aos outros aspectos mencionados no início. Agora eu tenho certeza que valerá a pena afastar-me um pouco mais dos mesmos livros e autores de sempre e tomar emprestadas outras perspectivas com as quais observar o mundo.
segunda-feira, setembro 28
A essência
Csok İstvan Quando leio um livro tenho a impressão de lê-lo somente com os olhos, mas de vez em quando deparo com trecho, talvez apenas uma frase, que tem uma significação para mim, e ele torna-se parte de mim; tirei do livro tudo o que me é de alguma utilidade, e não posso extrair mais, ainda que o releia uma dúzia de vezes.Veja, parece-me que cada um de nós se assemelha a um botão de flor fechado, e a maior parte do que lê e faz não faz efeito nenhum; mas há certas coisas que têm uma significação particular para a gente, e elas abrem uma pétala; e as pétalas abrem uma por uma, e no final a flor está aí.William Somerset Maugham (1874 - 1965)
Biografias, A Vida Como Ela Foi
O programa do SescTV traz o jornalista e escritor Ruy Castro, autor de obras sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda e contextualiza a história da arte de biografar.
Bibliotecas
Quem tiver uns livros em casa, guarde-os. São pedaços de História. Podem desaparecer. Podem também salvar
Alguns dos nossos fundadores trabalharam nela e inventaram uma parte da nossa cultura, a que, dizem hoje alguns, perdeu sua força e vai para as gôndolas de perfumaria no megamercado do mundo. Custa crer. Se ela não tivesse sido incendiada, bastaria ir lá, intoxicar-se com o ar de séculos de poeira acumulada, respirar a História e desmentir essa profecia. Mas ela de fato foi incendiada. Setecentos mil livros! Vale a pena pararmos um pouco nossas correrias e olhar com veneração para essa fogueira. Nela ardem também outras bibliotecas, aposentam-se da vida outros livros. É triste. E tem um sabor de símbolo nessa época voraz de informação. A época do Kindle, biblioteca portátil.
Pensem que Ptolomeu, o grande astrônomo que defendeu a ideia de que a Terra era o centro do universo, trabalhou lá. Como, antes dele, Aristarco de Samos, que, ao contrário, postulava o sol como centro, e a Terra como humilde circuladora em torno da sua estrela. Não lhe deram ouvidos. Mas seu livro ficou lá, mudamente dando testemunho da verdade. Foi copiado. Escapou assim do incêndio. E cimentou parte do mundo que é o nosso. E Arquimedes? Também ele trabalhou ali. Pode ter encontrado entre suas prateleiras e armários a ideia extraordinária de com uma alavanca e um apoio mover o mundo. A biblioteca de Alexandria era uma alavanca. E um apoio. Moveu o mundo antigo, pai e mãe do nosso. E Euclides, cujo nome por vinte e três séculos, até o nosso XIX, foi sinônimo de matemática. Euclides também. Como Galeno, que frequentou aquelas salas e foi longamente o mestre da medicina. A mim encanta Hipatia. Foi diretora da Biblioteca, astrônoma e matemática. Mas, sobretudo, até o século XX, a única filósofa registrada na nossa corporação. A única mulher filósofa. É incrível. A filosofia é mulher. A solitária Hipatia aponta um dedo acusador para a nossa cultura de machos. Era pagã. Foi morta por cristãos durante uma sublevação. Também isso fala mal de nós. Devíamos pensar um pouco nessas coisas no tempo em que as bibliotecas, dizem, vão em breve se tornar obsoletas. Cabem num Kindle.
Interior imaginado da Biblioteca de Alexandria, gravura de O.Von Corven |
O incêndio da biblioteca de Alexandria é de autoria incerta. Já foi atribuído a Júlio César, e estaria envolvido na história de amor do cônsul romano com a rainha Cleópatra do Egito. Amor e poder, incêndio na certa. A história mais cenográfica é a da queima ordenada pelo governador do Egito logo depois da sua conquista pelo califa Omar. Teria sido em 646. E não um incêndio qualquer: os papiros e pergaminhos teriam sido levados para as caldeiras que esquentavam os banhos públicos e queimado lentamente, esquentando a água, dias a fio. Não tanto o incêndio do prédio: a biblioteca ela mesma, os livros, combustível para a água quente dos alexandrinos. Que imagem! Que sofrimento. Mas o mais provável é que o imperador romano a tenha incendiado de fato 50 anos antes, em 595, como ato de guerra. Guerras, destinos mortais de bibliotecas? Em todo caso, feridas no corpo da nossa história. A Inquisição e o Terceiro Reich também queimaram algumas.
Bibliotecas não apenas guardam. Também geram. Quando, no século IX, Carlos Magno quis restaurar o Império do Ocidente destruído pelos germânicos, precisou de livros. A Europa conservara sua memória nas grandes bibliotecas dos mosteiros da Irlanda. Vieram, os monges e os livros. E a Europa começou de novo. E as universidades foram criadas — em torno de bibliotecas. A Universidade de Paris depois se chamou Sorbonne porque o colégio criado por Robert de Sorbon para moradia e lugar de trabalho para estudantes pobres tinha muitos livros. Os livros criaram a Sorbonne. Era assim, então.
Hoje bibliotecas não merecem mais a admiração quase religiosa dos tempos passados. A nossa cultura transforma-se rapidamente numa experiência de estocagem e uso de informação. Arquivamento e consumo. Temos o Kindle. O Kindle é, não haja a menor dúvida, uma das maravilhas da nossa civilização tecnológica. Cabem nele a biblioteca de Alexandria e a dos mosteiros irlandeses, talvez. É verdade. Mas não tem maciez. Não cheira. Não se desfaz, como os livros velhos. Não vive.
Marcio Tavares D’amaral
domingo, setembro 27
A mágica do autor
Evelyn Page |
Sempre li bem em francês, que estudei na adolescência. Mas tenho um sotaque pavoroso nas línguas que aprendi: espanhol, inglês, francês, como contei. Morei no México, nos Estados Unidos, viajei muito. Na hora de falar, um pavor. Deve ser coisa de família: minha avó veio adolescente para o Brasil e até o fim da vida falava português com um sotaque espanhol absurdo. Disse isso para contar que voltei a estudar francês. Aulas em torno de literatura, pedi. Ele escolheu o livro Um roman russe, de Emmanuel Carrère. Chegou a mim por acaso, portanto. Mas assim funciona um aspecto misterioso da vida do autor. O livro certo chega na hora certa. Lá pelas tantas, Un roman russe fala do avô do próprio escritor. Um filósofo que fala cinco línguas, da Geórgia, que, ao emigrar para a França, trabalha como motorista de táxi. E vive a insatisfação de não poder ser mais reconhecido como filósofo. Eu estava travado com um personagem de minha próxima novela, Candinho (título provisório). Exatamente um filósofo não valorizado. Marco Nanini já aceitou o papel! E, de repente, as emoções de um livro que nada tem a ver com minha história me instigaram em relação a meu próprio personagem. Parece mágica!
Sou rato de livraria. Viciado em livros, acabo comprando mais do que leio. Em um processo criativo, parece que minha mão é conduzida exatamente para um livro inspirador. Vejam bem, as histórias nunca são parecidas. Dou um exemplo: quando estava escrevendo Verdades secretas, reli alguns contos do francês Guy de Maupassant. Ele fala muito do universo das prostitutas em Paris, no século XIX. Um de seus contos, “Yvete”, trata de uma jovem criada num bordel que pertence a sua mãe. E que tenta o suicídio quando se vê diante da opção de seguir o mesmo caminho materno. Salva, já se percebe que será prostituta. Nada a ver com a minha Angel, portanto, que vem de uma família de classe média, moralista. Mas a emoção narrada por Maupassant me tocou. É a angústia de uma jovem diante da possibilidade de vender seu corpo. Já vi acontecer com outros autores. O próprio Chico Buarque criou Geni, da Ópera do malandro, que tem um parentesco com Bola de Sebo, de Guy de Maupassant. Palmas para Chico, que criou uma Geni diferente e, ao mesmo tempo, capaz de transmitir emoções igualmente intensas.
Eu conheço autores que se inspiram no cinema americano de décadas passadas. Grandes autores. Nos últimos tempos, inventou-se a palavra “releitura” para explicar o uso de fontes de inspiração. Por isso mesmo, sinto arrepios quando alguém me procura, diz que tem um texto, que já registrou na Biblioteca Nacional. Eu me recuso a ler. Explico:
– Se eu ler, e mais tarde tiver uma ideia ligeiramente parecida, você vai me processar. Se eu não ler, saberá que foi coincidência.
O pior é que não há coincidências. Há teses literárias que dizem existir somente pouco mais de 20 tramas contadas ao longo de toda a história. Essas tramas são como um alfabeto: articuladas de uma maneira ou de outra, se tornam originais. Shakespeare nunca escreveu uma história inventada por ele mesmo. Lançou mão de lendas, contos. Só que na época não havia essa questão de propriedade intelectual. Senão, ele não teria passado da primeira peça. Homero também não teria cantado os versos da Odisseia e da Ilíada, pois são um apanhado de lendas e poemas preexistentes. Boa parte das histórias segue estruturas básicas, é fato. Histórias espíritas, por exemplo, sempre partem de alguém que morre e retorna em outra existência para resgatar algo da vida anterior: um amor, um erro, um crime. O próprio Gabriel García Márquez reconheceu que, para escrever Cem anos de solidão, inspirou-se na estrutura de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Eu tenho certeza de que Márquez deve ter lido O tempo e o vento por acaso, ou quase. Leu e aí se inspirou para sua obra máxima. A verdade é que um autor “conversa” com outro, do passado. Essa é a mágica do autor: a presença viva da literatura, do cinema, da televisão em sua cabeça. Sempre me perguntam de onde vem minha inspiração. Tenho duas respostas. A primeira é uma lenda indígena segundo a qual haveria um lago. No fundo desse lago, pedras, que constituem todo o tesouro da imaginação humana. O autor “mergulha” nesse lago imaterial e resgata uma pedra. Sua história.
Mas há também outra explicação importante. Também é preciso responder:
– Sou apenas o elo de uma corrente.
Amantes do 'bibliohalterofilismo'
Alguns apreciam os livros pelo volume, como se fossem escritos mais para exercício dos braços que do espírito
Baltasar Gracián y Morales
Assim começa o livro...
Prólogo geral
Desfez março e a secura da estiagem,
Banhando toda a terra no licor
Que encorpa o caule e redesperta a flor,
E Zéfiro, num sopro adocicado,
Reverdeceu os montes, bosques, prados,
E o jovem sol, em seu trajeto antigo,
Já passou do Carneiro do Zodíaco,
E melodiam pássaros despertos,
Que à noite dormem de olhos bem abertos,
Conforme a Natureza determina
— É que o tempo chegou das romarias.
E lá se vão expertos palmeirins
Rumo a terras e altares e confins;
Da vária terra inglesa, gente vária
Põe-se a peregrinar à Cantuária
Onde jaz a sagrada sepultura
Do mártir que lhes deu auxílio e cura.
Naquele tempo, estando eu hospedado
Em Southwark, na Estalagem do Tabardo,
Pronto a seguir, em devoção, sozinho,
Na próxima manhã, no meu caminho,
Eis que de noite, unidos em viagem,
Chegam uns vinte e nove a essa estalagem;
Gente variada, todos peregrinos,
Ajuntados no acaso dos caminhos,
Rumando à sepultura milagreira.
Eram amplos os quartos e as cocheiras,
E descansamos em total conforto.
E para resumir, com o sol posto,
A todos eles eu já conhecia,
E conversando, uni-me à companhia.
E combinamos levantar co’os galos
E partir ao lugar de que vos falo.
Pra aproveitar o tempo da conversa,
Antes de dar ao conto início e pressa,
É justo que eu lhes faça a descrição
Dos viajantes todos, e a impressão
Que tive de seus ares e trejeitos
E a posição que ocupam por direito
E tudo o mais, do traje ao adereço.
E por um Cavaleiro, então, começo.
Um cavaleiro havia, de alma pura;
E desde suas primeiras aventuras,
Nas leis do heroico código vivia
— Liberdade, verdade e cortesia.
Mil guerras, bem servindo ao seu senhor,
Lutou, inigualado no valor.
Por toda a cristandade e entre pagãos,
De honor cobriu-se, em suma distinção.
No cerco pelejou de Alexandria;
Em conselhos não raro presidia
Nações em armas nos fortins da Prússia;
Andou na Lituânia, andou na Rússia
Mais do que outro cristão jamais ousara.
Lutou no reino mouro de Granada
No cerco de Algecira; e a Belmaria
Tomou, depois Aigai, logo Atalia.
sábado, setembro 26
Os livros podem ser sempre os mesmos
Somos modificados pelas experiências reais e fictícias que vivenciamos ao longo do tempo. Por isso, a perspectiva, quando se relê qualquer livro, já será diferente. É comum que se passe a gostar de uma obra que, na época, não apreciamos por falta de compreensão. Ou o contrário: que uma obra pela qual éramos fissurados perca a graça após alguns anos, por causa da maturidade crítica adquirida. Só ao evocar lembranças de antigas leituras, certas vezes podemos perceber o quanto nossa maneira de pensar era outra!
Há também o caso de, a cada releitura, encontrarmos novos elementos não captados antes. Passamos a enxergar os detalhes, somamos nossos novos conhecimentos ao conteúdo inalterado do livro. Umberto Eco sabiamente percebeu que toda literatura é uma obra aberta, com infinitas possibilidades de leitura. A cada época e de acordo com cada leitor, ela será analisada e sentida de maneira diversa.
Portanto, cada releitura é uma redescoberta. Nossos livros de cabeceira jamais se esgotam, disponíveis a novas aventuras no momento em que estivermos preparados. Outras chances também podem ser dadas aos livros rejeitados no passado. Talvez passemos a valorizá-los agora. Talvez continuemos com uma impressão ruim, porém provavelmente por razões diversas. Até as obras que odiamos nos ensinam e nos modificam. Até as obras consideradas de pouca qualidade. Por isso talvez algumas pessoas resistam tanto a se apegar à leitura. Exercício perigoso esse, que nos faz entrar em contato com nosso universo interior e refletir sobre a vida. Amadurecer é um processo doloroso, bem entendido. Doloroso, porém recompensador. Adquirir maior consciência sobre si mesmo e o mundo ajuda a lidar com os desafios da vida de maneira mais confiante e fruí-la de modo mais sensível. Ou pode-se permanecer no terreno raso e ilusoriamente feliz. Cada escolha tem seu preço.
A literatura é um mar sem fim no qual podemos mergulhar sem correr o risco de morrermos afogados; boiamos, à deriva, em meio às ondas de diferentes intensidades. Nunca mergulhamos nas mesmas águas literárias mais de uma vez. Porque nos renovamos a todo instante e a literatura também. E você, leitor, certamente não será o mesmo após ler este texto, menos ainda após relê-lo um dia, se o fizer. Nem eu. Um brinde à mudança!
Nicole Ayres Luz
Queda na produção latina de livros
(Fonte: EFE Brasil)
Cadernos de livros: mais um que se foi
Desde a semana passada o caderno Prosa & Verso, d’O Globo, foi reduzido a duas páginas dentro do Segundo Caderno do jornal. Não sabemos quanto tempo isso irá durar até que seja definitivamente extinto. Não é o primeiro – nem será o último. Por aí ainda restam alguns poucos suplementos de livros nos jornais diários. De memória, lembro dos óbitos pranteados abundantemente em cada ocasião, do Ideias (do Jornal do Brasil – esse foi o mais radical, pois o jornal também só existe online como uma pálida sombra do que foi), o Folhetim, e o Sabático, do Estadão (que já era a undécima encarnação do antigo Suplemento Literário). Isso sem falar na longínqua extinção dos “rodapés”, que até a década de 1960 sobreviviam aqui e ali, e que começaram como misto de coluna de opinião e crítica literária, em épocas remotas, quando os jornais se sustentavam no prestígio de quem os escrevia (além de serem claramente jornais de facções políticas).
Em quase todos os casos, certamente, as extinções se deram no bojo de visitas do famoso passaralho, essa ave de rapina que dizima redações. E o passaralho está trepado no alto do morro, já assuntando suas próximas vítimas.
É fácil jogar a culpa genericamente na ganância e cegueira dos barões da imprensa. Evidentemente eles têm culpa – principalmente pela cegueira – embora a responsabilidade pelos infaustos óbitos não seja exclusiva deles. Mas, sem dúvida, é deles a parcela principal.
Uma parte da “culpa” é frequentemente jogada nas próprias editoras e livrarias, que não publicam anúncios que justificariam a existência dos cadernos. E citam como exemplo os que aparecem nas revistas das redes de livrarias.
Então, vamos com calma.
O preço de anúncios nos jornais é praticamente impossível de ser coberto pela venda de livros. Quando muito, pelos best-sellers. A conta é fácil de fazer. Pelas tabelas atuais, sem descontos nem negociações, um anúncio de dez centímetros por duas colunas sai assim:
Estadão – R$ 22.940 (Caderno 2)
Folha de S.Paulo – R$ 22.580 (Ilustrada)
O Globo – R$ 10.380 – (Segundo Caderno)
Se tivermos um livro com o preço de capa de R$ 80, podemos, generosamente, supor que a verba para marketing equivalha a R$ 4 (correspondente a 5% do preço de capa. Para o editor sai, no mínimo, a 10% do líquido recebido).
A conta é simples. A editora teria que vender 5.735 exemplares no Estadão, 5.645 na Folha de S.Paulo e (incrível!) apenas... 2.595 n’O Globo. Isso apenas para empatar no custo. E, obviamente, não é o suficiente.
O resultado é que as editoras têm preferido fazer acordos com as livrarias para colocar os livros em pilhas nos locais privilegiados e publicar anúncios nas respectivas publicações.
Isso é pago com descontos bonificados e exemplares dos livros. Seja qual for o valor acordado, o custo para a editora é o equivalente ao que a livrarias (ou rede) pagaria líquido pelos exemplares. No caso de um livro de R$ 80, supondo o desconto geralmente praticado para esses grandes clientes, entre 55% e 60% do preço de capa, isso significaria a apropriação de um valor entre R$ 36 e R$ 32. Por um custo certamente menor pelo espaço e pelo anúncio.
Precisa desenhar?
Já faz algum tempo que não leio – em papel – os suplementos do New York Times e do El País (Babelia). Entretanto, mesmo nas versões online, pode-se notar que a publicidade que aparece nesses jornais tem uma parte substancial de produtos que podem interessar a um público mais qualificado: aparelhos eletrônicos, automóveis, leilões de arte e coisas desse tipo. Parece evidente que esses jornais sabem que a publicidade de livros não seria o suficiente para manter a estrutura dos cadernos. De fato, quem publica anúncios de livros, no mercado do EUA, é a Publisher’s Weekly, cujo alvo são os livreiros, e não os compradores finais de livros. E os mega-bestsellers, é caro.
No entanto, tanto nos EUA quanto na Europa parece que existe também uma diminuição dos suplementos propriamente literários.
sexta-feira, setembro 25
Antigamente
Antigamente as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era para tirar o pai da forca e não caíam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passasse a manta e azulava, dando às de vila-diogo. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.
Havia os que tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: “Dominus tecum”. Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias.
Antigamente certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um cabrito, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.
Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.
Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.
Carlos Drummond de Andrade
Lobo Antunes: 'Pessoa me aborrece até a morte'
Os livros devoram as paredes. “Já não cabem. Tenho que mudar para um apartamento maior”. E por que não joga fora algum? “Nunca. A maioria é muito ruim, mas não consigo. Tenho muito respeito pelos livros”. Um dos quartos do apartamento de António Lobo Antunes(Lisboa, 1942) é preenchido apenas com as traduções dos cerca de trinta livros que publicou. No estúdio escreve um professor canadense especializado em sua obra. Na Holanda, seu livroCaminho Como uma Casa em Chamas está na quarta edição, e no Brasil será publicado Não É Meia-Noite Quem Quer (Alfaguara, com previsão de lançamento em 19 de outubro), um retrato da condição humana ambientada na guerra de libertação de Angola. Como em cada uma de suas obras, quando Lobo Antunes escreve, dói; e quando fala, também.
Bibliotecas sobre rodas
Porto Alegre ganhou 3 mil novas bibliotecas nesta semana. São de dimensões modestas, incapazes de acomodar mais do que três ou quatro livros, mas têm muitas qualidades: são móveis, não exigem cadastro nem data de devolução de empréstimos e ainda podem levar o leitor a qualquer ponto da cidade. O projeto Bibliotáxi Poa transforma táxis da Capital em pontos de entrega e coleta de livros.
No Bibliotáxi, cada taxista cadastrado no projeto receberá uma bolsa com livros, que deverá ser suspensa na parte de trás do banco do caroneiro, possibilitando que os passageiros manuseiem os volumes ali guardados. Quem quiser continuar sua leitura em casa poderá ficar com o livro, com a sugestão de devolvê-lo depois da leitura em outro táxi cadastrado.
Criado em São Paulo pelo instituto Mobilidade Verde, em parceria com o Catraca Livre, o Bibliotáxi ganha adeptos em outras regiões do país desde 2011, já tendo também circulado anteriormente em Porto Alegre. Até agora, as tentativas de emplacar o projeto na Capital acabavam esmorecendo com a dificuldade em repor os livros que não eram devolvidos pelos usuários. Agora, no entanto, a empresa Easy Taxi se responsabilizará por abastecer os táxis ao longo do primeiro ano do projeto, a partir de doações próprias, do Banco de Livros e da Secretaria Municipal da Cultura (SMC): serão pelo menos 20 mil livros distribuídos ao longo dos próximos 12 meses.
– É a primeira vez que o Bibliotáxi se torna uma política pública oficial de incentivo à leitura – comenta Renata Borges, coordenadora do Conselho Municipal do Livro e da Leitura. – Iniciativas como essa esbarram na dificuldade de manutenção. Por isso, buscamos parceiros que pudessem dar continuidade à ação ao longo dos meses.
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Criado em São Paulo pelo instituto Mobilidade Verde, em parceria com o Catraca Livre, o Bibliotáxi ganha adeptos em outras regiões do país desde 2011, já tendo também circulado anteriormente em Porto Alegre. Até agora, as tentativas de emplacar o projeto na Capital acabavam esmorecendo com a dificuldade em repor os livros que não eram devolvidos pelos usuários. Agora, no entanto, a empresa Easy Taxi se responsabilizará por abastecer os táxis ao longo do primeiro ano do projeto, a partir de doações próprias, do Banco de Livros e da Secretaria Municipal da Cultura (SMC): serão pelo menos 20 mil livros distribuídos ao longo dos próximos 12 meses.
– É a primeira vez que o Bibliotáxi se torna uma política pública oficial de incentivo à leitura – comenta Renata Borges, coordenadora do Conselho Municipal do Livro e da Leitura. – Iniciativas como essa esbarram na dificuldade de manutenção. Por isso, buscamos parceiros que pudessem dar continuidade à ação ao longo dos meses.
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quinta-feira, setembro 24
Efeitos da leitura
Felix Nussbaum, Quando leio um livro tenho a impressão de lê-lo somente com os olhos, mas de vez em quando deparo com trecho, talvez apenas uma frase, que tem uma significação para mim, e ele torna-se parte de mim; tirei do livro tudo o que me é de alguma utilidade, e não posso extrair mais, ainda que o releia uma dúzia de vezes.Veja, parece-me que cada um de nós se assemelha a um botão de flor fechado, e a maior parte do que lê e faz não faz efeito nenhum; mas há certas coisas que têm uma significação particular para a gente, e elas abrem uma pétala; e as pétalas abrem uma por uma, e no final a flor está aíWilliam Somerset Maugham (1874 - 1965)
Lygia Fagundes Telles vê a China acordar
A China acordou, está acordadíssima. É a constatação que faz Lygia Fagundes Telles em 1960, quando fez parte de uma delegação convidada a visitar o país asiático. O objetivo era mostrar a pessoas do mundo inteiro a transformação pela qual a China havia passado desde que Mao Tse Tung assumira o comando do país, 11 anos antes. Lygia, que nunca foi comunista, seguiu o roteiro oficial da visita, mas estava muito mais interessada em pessoas do que em política. É sobre elas que falaria em crônicas publicadas à época pela “Última Hora” e lançadas em livro apenas em 2011, sob o título “Passaporte para a China: Crônicas de Viagem” (Companhia das Letras), que representa a única incursão da escritora pelo gênero de Rubem Braga.
Mas o livro não é apenas sobre a China, já que, antes de chegar até lá, a escritora fez escala em várias cidades, e sobre cada uma registrou, com sensibilidade, as suas impressões. Assim é que ela passa por Dacar, com os negros mais belos do mundo, pela feminina Paris, por Praga, com o verde mais verde do mundo, por Moscou, de onde não podia sair do hotel, mas tentou fugir para ir à Praça Vermelha, e ainda pela Sibéria, onde uma mulher a ajudou a costurar dois botões que lhe ameçavam cair da blusa. Na medida em que registra a singularidade de cada uma dessas cidades, Lygia também vai reconstruindo as suas próprias memórias afetivas.
Quanado, enfim, chega à China e termina o tormento de suas viagens de avião, ela encontra um país em que a novidade da revolução se mistura com a cultura milenar. Lygia (ou Madame Telezê, como era chamada pelo guia local) encontra no chinês um povo nem melhor nem pior, apenas diferente, a começar pelas janelas, tão difíceis de abrir para um ocidental. Ainda que destaque o grande controle fisionômico do chinês, a escritora observa que ele é um excelente ouvinte, e tão cordial que chega até a se aproximar do baiano.
Mas nem por isso o chinês deixa de estranhar o brasileiro. Lygia se espanta quando não vê um único cachorro ou gato pelas ruas de Pequim, e descobre que os chineses não os tem, porque trazem muitas infecções. As mulheres de lá também não se maquiavam, não se preocupavam com o que chamavam de “ninharias”, já que o fundamental era reconstruir a nação. Não havia nem mesmo namorados, pessoas de mãos dadas andando pelas ruas. Mas o guia tratou de tranquilizar Madame Telezê: desse jeito mesmo, eles eram maior população da terra.
É curioso o relato do encontro de Lygia com os escritores locais, muitos engajados no Partidão, e todos tendo que passar algum tempo nos meios agrícolas, para não perderem contato com o povo e também para se humanizarem. Os próprios políticos se sujeitavam à experiência. Não admira que, perguntada se o regime da China funcionaria no Brasil, a escritora disse que não. O regime da China era bom para a China, onde não faltava constância nem disciplina.
Mas Lygia gostou mesmo foi de Shangai, a velada e sinuosa Shangai, embora ela não trouxesse lembranças boas aos chineses, pois até pouco tempo era possível perceber ali a humilhação e o sofrimento trazidos pela estrangeiro. Naquela época, no entanto, a cidade já se considerava livre e renascida para uma nova fase de prosperidade. Lygia vai observando à medida em que confronta suas impressões com outras mais antigas, nascidas dos livros e dos filmes.
Claro, a escritora não podia adivinhar o que iria acontecer dali para frente, os rumos que o país iria tomar, a ditadura em que o regime viria se transformar. Seus relatos humanos ajudam a desvendar um pouco mais sobre quem é o homem que mora do outro lado do mundo, e quem ele poderá vir a ser, já que não se sabe até que ponto a China já está totalmente desperta.
Henrique Fendrich
Mas o livro não é apenas sobre a China, já que, antes de chegar até lá, a escritora fez escala em várias cidades, e sobre cada uma registrou, com sensibilidade, as suas impressões. Assim é que ela passa por Dacar, com os negros mais belos do mundo, pela feminina Paris, por Praga, com o verde mais verde do mundo, por Moscou, de onde não podia sair do hotel, mas tentou fugir para ir à Praça Vermelha, e ainda pela Sibéria, onde uma mulher a ajudou a costurar dois botões que lhe ameçavam cair da blusa. Na medida em que registra a singularidade de cada uma dessas cidades, Lygia também vai reconstruindo as suas próprias memórias afetivas.
Quanado, enfim, chega à China e termina o tormento de suas viagens de avião, ela encontra um país em que a novidade da revolução se mistura com a cultura milenar. Lygia (ou Madame Telezê, como era chamada pelo guia local) encontra no chinês um povo nem melhor nem pior, apenas diferente, a começar pelas janelas, tão difíceis de abrir para um ocidental. Ainda que destaque o grande controle fisionômico do chinês, a escritora observa que ele é um excelente ouvinte, e tão cordial que chega até a se aproximar do baiano.
Mas nem por isso o chinês deixa de estranhar o brasileiro. Lygia se espanta quando não vê um único cachorro ou gato pelas ruas de Pequim, e descobre que os chineses não os tem, porque trazem muitas infecções. As mulheres de lá também não se maquiavam, não se preocupavam com o que chamavam de “ninharias”, já que o fundamental era reconstruir a nação. Não havia nem mesmo namorados, pessoas de mãos dadas andando pelas ruas. Mas o guia tratou de tranquilizar Madame Telezê: desse jeito mesmo, eles eram maior população da terra.
É curioso o relato do encontro de Lygia com os escritores locais, muitos engajados no Partidão, e todos tendo que passar algum tempo nos meios agrícolas, para não perderem contato com o povo e também para se humanizarem. Os próprios políticos se sujeitavam à experiência. Não admira que, perguntada se o regime da China funcionaria no Brasil, a escritora disse que não. O regime da China era bom para a China, onde não faltava constância nem disciplina.
Mas Lygia gostou mesmo foi de Shangai, a velada e sinuosa Shangai, embora ela não trouxesse lembranças boas aos chineses, pois até pouco tempo era possível perceber ali a humilhação e o sofrimento trazidos pela estrangeiro. Naquela época, no entanto, a cidade já se considerava livre e renascida para uma nova fase de prosperidade. Lygia vai observando à medida em que confronta suas impressões com outras mais antigas, nascidas dos livros e dos filmes.
Claro, a escritora não podia adivinhar o que iria acontecer dali para frente, os rumos que o país iria tomar, a ditadura em que o regime viria se transformar. Seus relatos humanos ajudam a desvendar um pouco mais sobre quem é o homem que mora do outro lado do mundo, e quem ele poderá vir a ser, já que não se sabe até que ponto a China já está totalmente desperta.
Henrique Fendrich
Literatura eterna ou temporal
Mai Trung Thu |
Penso eu que a literatura pode responder a interrogações, pode tentar responder-lhes, pode simplesmente pô-las e pode nem sequer pô-las. Há a contar com a variedade dos temperamentos literários. Coisa difícil, sei-o por experiência própria, embora deva estar na base de qualquer atitude crítica. Aceitemos, porém, que toda a grande literatura põe interrogações, e lhes procura resposta. Pergunto: Não poderá admitir-se que seja antes às interrogações eternas do homem eterno que a literatura procura responder? Não envelhecerá uma obra de arte precisamente na medida em que só responde às inquietações de uma época? E não perdurará na medida em que, através, ou não, de respostas provisórias a interrogações provisórias, sugere uma resposta eterna a interrogações eternas, exprime inquietações eternas embora de forma pessoal?
Entendamo-nos: Há quem, no homem, antes considere o homem eterno, e quem antes considere o homem temporal. O leitor compreende que chamo homem eterno ao que, no homem, permanece através da diversidade das épocas, dos meios, das circunstâncias históricas, das modalidades individuais; e que chamo homem temporal ao que nele depende destas coisas. Evidentemente, o homem que através da literatura se nos revela é, ao mesmo tempo, um e outro: o temporal e o eterno. Mas a questão é esta: Será antes pelo que nos revela do homem temporal que uma obra dura por humana - ou antes pelo que nos revela do homem eterno? Duram as tragédias de Shakespeare, ou as comédias de Moliére, antes pelo que nos mostram do homem do tempo de Shakespeare e Moliére, ou antes pelo que nos mostram do homem de sempre?
Diz Rodrigues Miguéis: "Uma literatura que não responde às interrogações da sua época - pelo menos - está condenada ao esquecimento." Ora aquele importante pelo menos ao mesmo tempo salva e embrulha tudo nesta frase dúbia. Tal como está expresso, o pensamento de Rodrigues Miguéis é o seguinte: uma literatura, para viver, deve responder às interrogações que o homem se põe. Em primeiro lugar (parece) às eternas interrogações do homem de sempre; pois em não respondendo a estas, deverá responder, pelo menos, às da sua época.
José Régio (1901 - 1969)
quarta-feira, setembro 23
O céu e o sebo
O autor na livraria Elizart, no Centro do Rio |
Quando morrer, não quero ir para o céu. Quero ir para um sebo. Já escrevi isto algumas vezes e é o que sempre escrevo quando, em visita a algum sebo, o livreiro me pede que deixe uma mensagem para seus clientes. Nesse caso, em vez de generalizar, cito logo o nome do sebo. E não é demagogia. Nunca entrei em um sebo em que, com tempo para explorá-lo, não achasse algo interessante. Isso inclui os livros humildemente expostos nas calçadas sobre uma folha de jornal.
Numa calçada da Cinelândia, há 20 anos, encontrei o “Poesias Reunidas O. Andrade”, de 1945, com dedicatória de Oswald para Vinicius de Moraes datada de 1946. Fico imaginando o trajeto de um livro, da mesa do autor que o autografa, até, 50 anos depois, um pedaço de chão em outra cidade, e o que lhe aconteceu no entrementes. O “Poesias” de Oswald nunca chegou a Vinicius, já morando em Los Angeles em 1946. Preço do livro no chão: R$ 1.
Metade dos livros que juntei pela vida deve ter vindo dos sebos. Não por serem mais baratos, mas por serem velhos, mesmo. Gosto de livros antigos porque são bonitos –e antigos. A ideia de que pertenceram a alguém antes de mim e que, talvez por morte dessa pessoa, estejam de novo à venda, me faz pensar que estou lhes concedendo uma sobrevida.
Para mim, livro “antigo” é qualquer um de 1960 para trás. Por aí se vê que não sou um colecionador sério, dos que disputam Bíblias de Gutenberg. Uma de minhas maiores emoções foi achar num sebo os cinco volumes da coleção de Charlie Chan, dos anos 50, pela querida Vecchi.
Até hoje, quando uma dúvida me assalta sobre se vale a pena continuar escrevendo, vou à estante, pego alguns dos livros de Charlie Chan, com aquelas capas cheias de vermelhos e amarelos –”Atrás da Cortina”, “O Papagaio Chinês”, “O Camelo Preto”–, e concluo que vale, sim.
Universitários dos EUA preferem livros impressos
Uma pesquisa organizada pela Direct Textbook – ferramenta de comparação de preços de livros – revelou que sete em cada 10 universitários de instituições norte-americanas preferem livros impressos a ebooks.
Percentualmente, 72% dos estudantes disseram preferir livros didáticos impressos, 27% mencionaram preferir ebooks e 2% afirmaram não ter preferência.
(Fonte: Ebooknews)
terça-feira, setembro 22
Jose Rosero |
Literatura para mim não é mercado. É a minha festa, é onde eu me realizoAriano Suassuna
Como se cria uma editora
Jaime Pinsky tinha 7 anos quando assistiu a uma cena de horror. De família de judeus vindos da Europa às vésperas da guerra e instalados em Sorocaba (SP), viu quando a cavalaria do Exército avançou em direção a manifestantes de uma greve. Ao menino assustadíssimo, um tio explicou: é um "pogrom". A palavra, que escutava em casa nos relatos sobre os ataques antissemitas do pré-nazismo, o fez compreender a questão que o acompanharia em sua trajetória como professor, editor e autor. "Perseguição é horrível para todos os que a sofrem", diz na sala que ocupa em sua editora, a Contexto. Ele está à frente de um catálogo de 500 títulos predominantemente de história, jornalismo, geografia, educação e língua portuguesa. Contratado pela Unicamp, onde ficou até se aposentar, logo acumularia um posto que mudou seu percurso: o de diretor-executivo da editora que então ajudava a montar com oito professores. "Ninguém entendia nada de editora. No meio da ignorância, acharam que eu era o que mais sabia." Pinsky vendeu um terreno e começou as atividades dentro da casa onde vivia, na praça Panamericana. A direção ficava no escritório. A revisão, em uma sala dos fundos. Na sala de visitas, a composição. A garagem servia de recepção e secretaria. O depósito se distribuía pela sala de jantar. De início, a nova editora concentrou-se em paradidáticos de história, geografia, língua portuguesa e literatura infanto-juvenil.
Adeus a Big Mama
A grande agente literária Carmen Balcells morreu ontem em Barcelona aos 85 anos. Conhecida como Big Mama por uma história de Gabriel García Márquez, Balcells era muito mais do que um agente literário para autores. Não era apenas a pessoa que negociou contratos com as editoras, traduções e prêmios literários, mas foi confidente e conselheira, que estava sempre lá. Em alguns casos, chegou a adiantar dinheiro para que eles pudessem escrever em paz.
A lista de autores de Balcells é simplesmente avassaladora: Pablo Neruda, Vicente Aleixandre, Camilo José Cela, Rafael Alberti, Gonzalo Torrente Ballester, Miguel Delibes, Vazquez Montalban, Ana Maria Matute, Jaime Gil de Viedma, Juan Goytisolo, Juan Marse Jaime Gil de Biedma, Eduardo Mendoza, Javier Cercas e Rosa Montero. E latinos como Carlos Fuentes, Julio Cortazar, Alfredo Bryce Echenique e Isabel Allende. Em sua agência passaram várias gerações de escritores em espan hol, e mesmo em português. Sem o seu trabalho é difícil entender a literatura espanhola no século XX, pois Balcells também vai ficar na história como uma grande promotora do crescimento na literatura latino-americana.
Mario Vargas Llosa e Carmen Balcells, desenho de Fernando Vicente |
A agência Carmen Balcells foi fundada em 1956, em pleno regime de Francisco Franco, justamente no momento em que uma nova geração de escritores de língua espanhola iria subir ao palco em ambos os lados do Atlântico. Desde Manuel Vazquez Montalban de Garcia Marquez, um dos muitos prêmios Nobel como parte do seu catálogo de Balcells, ela sabia como combinar o enorme talento literário com sucesso enorme de vendas, uma combinação que fez dela uma das figuras mais poderosas no mundo literário espanhol, mesmo depois de se aposentar.
A lista de autores de Balcells é simplesmente avassaladora: Pablo Neruda, Vicente Aleixandre, Camilo José Cela, Rafael Alberti, Gonzalo Torrente Ballester, Miguel Delibes, Vazquez Montalban, Ana Maria Matute, Jaime Gil de Viedma, Juan Goytisolo, Juan Marse Jaime Gil de Biedma, Eduardo Mendoza, Javier Cercas e Rosa Montero. E latinos como Carlos Fuentes, Julio Cortazar, Alfredo Bryce Echenique e Isabel Allende. Em sua agência passaram várias gerações de escritores em espan hol, e mesmo em português. Sem o seu trabalho é difícil entender a literatura espanhola no século XX, pois Balcells também vai ficar na história como uma grande promotora do crescimento na literatura latino-americana.
Carmen queridíssima, até logo
A notícia me atingiu como um raio; há três dias eu estava despachando, almoçando, jantando com ela e a todo momento eu tinha o sinistro pressentimento de que seria a última vez que a veria. Estava sempre muito lúcida, cheia de projetos, realistas e delirantes. Como se fosse viver para sempre. Mas seu físico realmente estava em ruínas e era impossível não se perguntar quanto tempo essa ruína física continuaria segurando essa maravilhosa cabeça e essa energia indomável.
Carmen Balcells revolucionou a vida cultural espanhola ao mudar drasticamente as relações entre as editoras e os autores de nossa língua. Graças a ela, os escritores de língua espanhola começaram a assinar contratos dignos e a ver seus direitos respeitados. Por outro lado, ela incentivou e até mesmo obrigou as editoras da Espanha e da América Latina a se tornar modernas e ambiciosas, a operar no amplo âmbito de toda a língua e a sacudir a visão pequena e provinciana que tinham.
Além disso, foi muito mais do que uma agente ou representante dos autores que tiveram o privilégio de estar com ela. Cuidou de nós, nos mimou, nos repreendeu, puxou nossas orelhas e nos encheu de compreensão e de carinho em tudo o que fazíamos, não só naquilo que escrevíamos. Era inteligente, era audaz, era generosa até a loucura, era boa, e sua partida deixa em todos os que a conheceram e a amaram um vazio que nunca ninguém poderá preencher. Carmen queridíssima, até logo.
Mario Vargas Llosa
segunda-feira, setembro 21
Cântico das árvores
Quem planta uma árvore enriquece
A terra, mãe piedosa e boa:
E a terra aos homens agradece,
A mãe os filhos abençoa.
A árvore, alçando o colo, cheio
De seiva forte e de esplendor
Deixa cair do verde seio,
A flor e o fruto, a sombra e o amor.
Crescei, crescei na grande festa
Da luz, de aroma e da bondade,
Árvores, glória da floresta!
Árvores vida da cidade!
Crescei, crescei sobre os caminhos,
Árvores belas, maternais,
Dando morada aos passarinhos,
Dando alimento aos animais!
Outros verão os vossos pomos:
Se hoje sois fracas e crianças,
Nós, esperanças também somos
Plantamos outras esperanças!
Para o futuro trabalhamos:
Pois, no porvir, novos irmãos,
Hão de cantar sob estes ramos,
E bendizer as nossas mãos!
A terra, mãe piedosa e boa:
E a terra aos homens agradece,
A mãe os filhos abençoa.
A árvore, alçando o colo, cheio
De seiva forte e de esplendor
Deixa cair do verde seio,
A flor e o fruto, a sombra e o amor.
Crescei, crescei na grande festa
Da luz, de aroma e da bondade,
Árvores, glória da floresta!
Árvores vida da cidade!
Crescei, crescei sobre os caminhos,
Árvores belas, maternais,
Dando morada aos passarinhos,
Dando alimento aos animais!
Outros verão os vossos pomos:
Se hoje sois fracas e crianças,
Nós, esperanças também somos
Plantamos outras esperanças!
Para o futuro trabalhamos:
Pois, no porvir, novos irmãos,
Hão de cantar sob estes ramos,
E bendizer as nossas mãos!
Olavo Bilac
Assim começa o livro...
O ateliê estava inundado pela fragrância opulenta das rosas, e quando a brisa suave de verão soprava em meio às árvores do jardim, penetrava pela porta aberta o aroma denso do lilás, ou o perfume mais delicado do espinheiro de floração cor-de-rosa. Da extremidade do divã de alforjes persas em que estava deitado, fumando, como era seu costume, inúmeros cigarros, Lord Henry Wotton apreendia apenas um vislumbre as flores coloridas e doces como mel do laburno, cujas ramagens trêmulas mal pareciam suportar o peso de uma beleza flamejante como aquela; e vez ou outra as sombras fantásticas de aves em voo adejavam por trás das longas cortinas de seda tussa estendidas diante
da imensa janela, produzindo uma espécie de efeito japonês fugaz, fazendo com que ele pensasse nos pálidos pintores de rosto de jade de Tóquio, que, por meio de uma arte necessariamente imóvel, buscam transmitir a sensação de rapidez e movimento. O murmúrio obstinado das abelhas que abriam caminho pela grama alta não aparada, ou que circulavam com insistência monótona em torno dos chifres poeirentos dourados da madressilva espalhada, parecia tornar a imobilidade mais opressiva.
O ruído surdo de Londres era como uma nota de bordão de um órgão distante.
No centro da sala, preso a um cavalete armado, havia um retrato de um jovem de beleza extraordinária, e diante dele, a uma pequena distância, estava o próprio artista, Basil Hallward, cujo súbito desaparecimento havia alguns anos tinha causado, à época, uma grande comoção popular e originara muitas conjecturas estranhas.
da imensa janela, produzindo uma espécie de efeito japonês fugaz, fazendo com que ele pensasse nos pálidos pintores de rosto de jade de Tóquio, que, por meio de uma arte necessariamente imóvel, buscam transmitir a sensação de rapidez e movimento. O murmúrio obstinado das abelhas que abriam caminho pela grama alta não aparada, ou que circulavam com insistência monótona em torno dos chifres poeirentos dourados da madressilva espalhada, parecia tornar a imobilidade mais opressiva.
O ruído surdo de Londres era como uma nota de bordão de um órgão distante.
No centro da sala, preso a um cavalete armado, havia um retrato de um jovem de beleza extraordinária, e diante dele, a uma pequena distância, estava o próprio artista, Basil Hallward, cujo súbito desaparecimento havia alguns anos tinha causado, à época, uma grande comoção popular e originara muitas conjecturas estranhas.
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