quinta-feira, março 31

Assim começa o livro...

Chamemos o nosso homem, o herói da história, de Amargo. Imaginamos um homem e, para ele, um nome. Ou, ao contrário: imaginamos o nome e, para ele, o homem. Embora isso tudo seja secundário, pois o nosso homem, o herói da história, chama-se, na realidade, Amargo.
O pai dele se chamava assim.
E o avô também.
Por conta disso, Amargo foi registrado como Amargo no cartório: essa é, portanto, a realidade, a que - como cabe à realidade - Amargo hoje em dia não atribui muita importância. Nos últimos tempos - num dos anos derradeiros do milênio que se encerra, digamos, no início da primavera de 1999, num final de manhã ensolarado -, a realidade se tornara, para Amargo, um conceito problemático, e, o que era mais grave, um estado problemático. Um estado em que - segundo os sentimentos mais íntimos de Amargo - a realidade era o que mais faltava. Se de algum modo o obrigavam a usar a palavra, Amargo sempre acrescentava: "a assim chamada realidade". Entretanto, isso era apenas uma frágil compensação, que não o satisfazia.
Amargo, nos últimos tempos, ficava muito à janela e olhava para a rua. A rua oferecia a visão comum e costumeira do cotidiano costumeiro das ruas de Budapeste. Junto da calçada imunda e manchada de lixo, óleo e sujeira de cachorros, havia carros, nos recessos de um metro entre as paredes leprosas, descascadas, das casas, os pedestres comuns e costumeiros perseguiam seus afazeres, e a expressão contrariada dos rostos refletia os pensamentos sombrios. Alguns deles, talvez na pressa, para se desviar da fileira de gansos rastejantes, desciam da calçada, e nisso o coro das buzinas rancorosas dos automóveis derrubava toda esperança irracional depositada no abandono da fila. Nos bancos da praça em frente que ainda conservavam o assento, sentavam-se à toa os desabrigados da redondeza, com os embrulhos, as sacolas, as garrafas plásticas. Acima de uma barba desgrenhada vibrava um gorro vermelho tricotado, e a borla pendente balançava alegre junto da pelugem repugnante. Um homem com o barrete puído de oficial de um exército inexistente vestia um sobretudo pesado de inverno, sem botões, desbotado, preso na cintura por um elegante cinto de seda, de flores coloridas, que lembrava o adereço de um robe de mulher.
Homenagem a Imre Kertész (1929-2016)

quarta-feira, março 30

A criação

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A inevitável segmentação editorial

Há três anos aproximadamente me encontrei no centro de Campinas, no interior de São Paulo, com o amigo não tão próximo, mas com quem sempre tenho ótimos papos quando encontro, Aldo Bocchini Neto, que hoje vive tranquilamente com seu sebo virtual na cidade. Para quem é recém-chegado ao mercado editorial, ele foi o fundador da Livraria da Vila. Nesse papo falamos das mudanças do mercado como um todo, da tendência das livrarias mais tradicionais a se transformarem em redes, das fragilidades do mercado.

Em dado momento perguntei se com toda a experiência adquirida e conhecimento do mercado abriria uma livraria novamente, sem pestanejar respondeu prontamente “uma livraria geral com certeza NÃO”. E completou o raciocínio, “hoje não há mais lugar para uma livraria geral com início heroico, virou briga de cachorro grande, ou começa com muito dinheiro, o que pouca gente tem, e provavelmente quem tem não vai investir numa livraria, ou abre uma livraria segmentada muito boa em acervo e serviços”.

O que ele disse na ocasião a cada dia é mais presente na realidade do mercado editorial. Comentamos também que a Livraria da Vila tenha pegado justamente essa transição, começou o caminho para ser tornar rede quando ainda era possível e já na época com um investimento considerável.

Acredito que esse caminho agora seja sem volta. Criar uma livraria independente hoje passa obrigatoriamente pela segmentação, além de primar pela competência de atendimento.

Óbvio que alguns discordarão de mim, pois há livrarias tradicionais gerais sobrevivendo, mas o que vejo é cada vez mais são notícias de alguma delas dando o último suspiro. Aos poucos e conforme as demandas vão surgindo essas livrarias segmentadas vão se instalando (ou se adaptando), direito, arte, judaicas, comics e por aí vai...

A explicação é muito simples. As redes, pela necessidade de ter “de tudo” (o que em termos reais é impraticável), acabam tendo somente os títulos top de cada segmento ou autor; empiricamente acredito que isso represente somente 20% dos títulos ativos. Já uma livraria segmentada estimo que possa ter 80% das obras disponíveis do segmento que se propõe a atender e com atendimento muito mais qualificado.

Tudo isso favorece enormemente a sobrevivência da livraria, no entanto não exime de ter vários “tentáculos” para atingir o seu público, e a internet é uma ferramenta essencial nessa nova realidade, em especial as redes sociais. Embora o presente possa parecer pouco promissor há caminhos.

De outro lado (sem antagonismos), também os editores passam por uma transformação semelhante já há alguns anos, grandes grupos de origem nacional e estrangeira tem sido responsável por compras e fusões que resultaram em empresas e catálogos potentes que em nome de mil títulos vendáveis empurram quatro mil goela abaixo de muitas livrarias.

Essa concentração diminui sensivelmente a capacidade de negociação do mercado de uma forma geral. A ocupação dos espaços dos pontos de venda inibe -- e em muitos casos quase míngua -- a possibilidade das pequenas editoras colocarem seus produtos nos pontos de venda.

O caso das editoras ainda tem um agravante: como sua produção é pequena em número de títulos e exemplares, todo o processo proporcionalmente é mais caro que de uma grande editora, os salários pesam mais, não conseguem bons preços na compra de papel, custo de logística são proporcionalmente maiores e tem menor fôlego financeiro para suportar a inadimplência entre outros fatores.

A saída mais viável para uma sobrevivência em longo prazo é também a segmentação, trabalhar muito bem um segmento abrangendo subcategorias da área escolhida e oferecendo serviços agregados ao livro, coisas que em grande escala para um grande grupo editorial se tornam inviáveis.

Quero deixar claro que essa reflexão é para apresentar um caminho que parece o mais viável para manter a bibliodiversidade, caminho este que já está sendo trilhado por alguns editores e sendo descoberto por outros. Também os fatores mencionados que caracterizam a situação atual e me motivaram a argumentar a favor desse caminho são os mais evidentes em cada caso e estão longe de esgotar o assunto, que quanto mais debatido mais tende a evoluir se esse for o real interesse das partes interessadas.

Carlos Ferreira 

terça-feira, março 29

Aproveite a onda

kundst:

Virginia Mori (It. 1981)
From: Hotel Miramare (2015)
Virginia Mori

As pegadas de Dorothy Parker em Nova Iorque

Quis o azar que a escritora mais nova-iorquina da literatura, Dorothy Parker, nascesse em uma cidadezinha costeira de Nova Jersey e suas cinzas repousassem 74 anos mais tarde em Baltimore. Sua mãe deu à luz prematuramente na casa de férias: foi a única vez, como Parker costumava dizer, que em sua vida chegou a um encontro antes da hora.

De qualquer forma, como cabe a uma nova-iorquina legítima, no Dia do Trabalho, primeira segunda-feira de setembro, quando tinha apenas um mês de vida, já estava incorporada à cidade que contribuiu para definir através de sua obra e de seus próprios passos.

São esses passos que me dispus a seguir em uma manhã de novembro. Reuni em uma caderneta todos os endereços em que Parker viveu desde aquele setembro de 1893 até sua morte em 1967, e saí disposta a conhecer o espaço por onde se moveu essa mulher que se tornou o paradigma da cronista mundana e cosmopolita. Meu primeiro espanto foi como era inacreditavelmente pequeno o mundo de Parker até os 30 anos. Infância e juventude se deram em diversas ruas de um só bairro, o Upper West Side, uma área em expansão na Manhattan do começo do século XX onde se instalou a classe média com mais recursos. O pai de Dorothy, Jacob Rothschild, era um comerciante judeu proprietário de uma pequena fábrica de roupas masculinas; refratário às sujeições da ortodoxia judaica, se casou primeiro com uma mulher protestante, a mãe de Dorothy, e ao ficar viúvo casou-se novamente com uma professora católica que agoniou a pequena órfã instruindo-a com insistência nas palavras de Jesus.

Foi, sem dúvida, o repúdio à madrasta beata e à escola católica onde estudou que vacinou Dottie para sempre contra toda fé. A escola de freiras na qual sabia ser diferente – apesar de seu pai a matricular como se fosse católica, seu físico denunciava sua origem – é hoje um colégio judaico. Estou na porta, vendo saírem as garotas nessa aprazível manhã de novembro, após percorrer os diversos domicílios nos quais viveu a família Rothschild. Demorei pouco mais de uma hora nesse caprichoso ziguezague que me levou de uma rua a outra do rio Hudson ao Central Park, os dois pulmões urbanos que balizaram a vida da escritora: quando criança, os percorria diariamente passeando com os cachorros que seu pai lhe comprou para suavizar as deficiências emocionais da orfandade; quando jovem, com outros cães, às vezes encontrados na rua, que foi incorporando a sua vida boêmia. Nessa época só foi ao sul da ilha quando ao lado de seu pai realizou uma ronda natalina pelo Lower East Side para distribuir, de casa em casa, dinheiro às costureiras que trabalhavam para ele.

Muitos dos edifícios no quais viveu a pequena Dorothy continuam de pé, mas somente um deles, na rua 72, onde morou aos cinco anos, lembra que aquele foi seu bairro com uma placa comemorativa. Da mesma forma que ela se mostrava reticente em falar do passado ("Todos esses escritores que escrevem sobre a infância! Meu Deus, se eu falasse da minha você não se sentaria comigo no mesmo quarto”), o bairro no qual viveu metade de sua vida parece tê-la apagado de seu catálogo de celebridades, e se existem esquinas dedicadas a Humphrey Bogart, Bashevis Singer e Miles Davis, ninguém parece ter considerado que essas foram as ruas que forjaram a personalidade da escritora. É possível que ela mesma tenha contribuído a esse desapego ao apagar de sua literatura todo o rastro do passado e situando poemas e contos no mais puro presente no qual transcorriam suas crônicas e suas críticas teatrais.

Trinta ruas ao sul de Manhattan bastaram à jovem Dorothy para dar um salto de um mundo a outro. As que separam seu bairro de Midtown e a conduziram às portas do hotel Algonquin, no qual, já é história conhecida, ao lado de críticos teatrais, cronistas, desenhistas e atores presidiu a mesa redonda que preparou generosamente o hotel para que a aristocracia intelectual nova-iorquina andasse de braços dados com ela, o grupo que adquiriu notoriedade por ser incorruptível, praticar o sarcasmo sem contemplações e ostentar a resposta aguda e a maledicência. O infeliz casamento com o corretor da Bolsa Edwin Parker foi sua estreia em uma vida rica em desenganos amorosos, mas pelo menos lhe deu um sobrenome artístico ao qual seria fiel por toda sua vida. O senhor Parker, alcoólatra e viciado em morfina, teve muito a ver com a ligação da jovem escritora com a bebida, que acabou em dependência e que a envelheceu antes do tempo, causando várias tentativas de suicídio.

Dorothy Parker e seu marido, Alan Campbell, escreveram juntos roteiros para os estúdios de Hollywood na década dos anos trinta.
Dorothy e o marido Alan Campbell, quando escreviam
roteiros para o cinema nos anos 1930
É bem possível que a lei seca também tenha contribuído a essa condição, que encheu o coração da cidade de speakeasies, bares clandestinos onde ia-se beber, prolongar a noite e matar a solidão. Os próprios integrantes do grupo artístico ao redor de Dorothy Parker atribuíam o sucesso de sua inseparável amizade na década de vinte a uma doentia necessidade de não estarem sozinhos e enfrentarem as bebedeiras juntos. A escritora costumava levar seu cachorro Robinson, que suportava as longas noitadas debaixo das mesas dos bares. Quando voltavam derrotados ao apartamento, Dorothy dividia com o cãozinho um sonífero e os dois dormiam até tarde. Apesar de alguns dos bares da área ainda conservarem em sua carta drinques em memória da ilustre bebedora, Parker foi uma consumidora de whisky, que administrava em pequenas doses ao longo de um dia que dava por encerrado quase ao amanhecer. Ainda restam provas da existência daqueles antros clandestinos, alguns deles reconvertidos hoje em bares nostálgicos de uma velha Nova York que através dos textos de Dorothy Parker parece o cenário perfeito para a aventura promissora e para o desenlace fatal.

A cronista exercia seu reinado ao redor da rua 44 Oeste na qual está o hotel Algonquin: a redação da Vanity Fair não estava longe, e a da The New Yorker, no edifício em frente, onde hoje uma placa lembra o nascimento da revista: os nomes dos contistas que contribuíram para o prestígio da publicação estão gravados em bronze, mas quem redigiu a legenda assombrosamente se esqueceu da mulher que desde o primeiro momento escreveu deliciosos relatos cômicos em suas páginas.

Livros e sonhos, tudo a ver

bookporn:


The Journey (1987) by Quint Buchholz
Quint Buchholz

Todos os livros vêm dos sonhos, e todos os sonhos vêm dos livros
Maxence Fermine

Romance fora dos padrões

Uma história envolvendo amor e paixão, suas semelhanças e diferenças, encontros, desencontros e reencontro. Este é uma das muitas definições de “O negro crepúsculo”, segundo livro de Eduardo Lamas, o que pode ser conferido em qualquer dispositivo digital (smartphones, tablets e computadores pessoais).

O enredo começa com uma dolorosa desilusão amorosa de c.j. marques (“assim mesmo com minúsculas, igual ao poeta e.e. cummings”), um taxista formado em publicidade, mas que sonha ser escritor. Ele busca uma relação incendiária, porém, só encontra fogo de palha. E reflete, nas muitas viagens em seu táxi ou de sua mente questionadora e imaginativa, sobre o mundo em que vive, a cidade, a sociedade, os homens no geral e as mulheres, em particular.

O autor, que além de escritor, é jornalista e empresário dos ramos cultural e de Comunicação, acredita que, embora diga que “O negro crepúsculo” seja um romance, o livro tenha outras características marcantes. Uma delas é a presença de poesias na abertura de quase todos os capítulos - as exceções são o “Prelúdio”, o capítulo “I” e o epílogo. “A narrativa é em primeira pessoa, mas creio que muitas vezes o leitor se perguntará quem está relatando e comentando os acontecimentos com o personagem principal, a cidade e a sociedade em que ele vive, o mundo, as mulheres que passam pela vida dele. Espero que o leitor também se veja em alguns momentos como o “eu” narrador”, afirma Eduardo Lamas.


domingo, março 27

Sono de Páscoa

La lectura arropa mis sueños (autor desconocido)

Sustentabilidade: da árvore ao livro

Perdem cada vez mais força e credibilidade as campanhas, que se utilizam até mesmo da transmissão de simples e-mails, contra o hábito de imprimir e que procuram associar a produção de livros, cadernos, jornais, revistas, embalagens e outros produtos gráficos ao corte indevido de árvores. Tais informações sensibilizam cada vez menos pessoas, à medida que se disseminam informações corretas e verdadeiras sobre a questão.

Em alguns países, o manejo de florestas nativas para a produção de celulose e papel é absolutamente sustentável. No Brasil, é melhor ainda, pois 100% desses insumos têm como origem as florestas plantadas, principalmente de eucalipto e pinus. Ou seja, cultivadas em áreas degradadas por outras atividades e, depois, colhidas para uso industrial. Em seguida, nova floresta é plantada, perpetuando o ciclo do plantio e colheita. O manejo também é sustentável, mantido pelas certificações que garantem a redução dos impactos ambientais e promove o desenvolvimento socioeconômico. Ademais, na fase de crescimento, as árvores sequestram grande quantidade de carbono, retirando da atmosfera gases que causam o efeito estufa.

Essa atividade de cultivo, fundamental para a cadeia produtiva da comunicação impressa, tem total congruência com a comemoração do Dia Internacional das Florestas (21 de março), que integra o calendário oficial da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). A data, que marca o início da primavera no Hemisfério Norte, objetiva salientar globalmente a importância das florestas para a manutenção da vida na Terra e a necessidade imediata de preservá-las.

A mensagem também apresenta total correlação com a campanha mundial Two Sides, que chegou ao Brasil em 2014, para difundir a sustentabilidade econômica, social e ambiental da cadeia produtiva do papel e da indústria gráfica. A iniciativa surgiu na Inglaterra e hoje está presente em 13 países europeus, nos Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Austrália e Brasil. Aqui, o movimento conta com 42 entidades signatárias, que congregam cerca de 80 mil empresas, geradoras de 615 mil empregos diretos e faturamento anual de US$ 40 bilhões.

A cadeia produtiva do papel e da comunicação impressa é uma das mais sustentáveis econômica, social e ambientalmente. No Brasil, emprega milhões de trabalhadores, sendo mais de 200 mil somente nas cerca de 20 mil gráficas. O cultivo de florestas, dentre outros valores agregados, preserva florestas nativas, protege a biodiversidade, o solo e as nascentes, restaura áreas degradadas, é fonte de energia renovável e contribui para a mitigação das mudanças climáticas.

Se dependesse unicamente da produção gráfica e do fabrico de celulose e papel, não se cortaria uma árvore nativa sequer no Brasil, onde, assim como na América Latina como um todo, ainda é necessário conter o desmatamento, provocado, dentre outras causas, pelo contrabando de madeira, grilagem de terras, lavouras clandestinas e desrespeito às reservas indígenas. Entre 2010 e 2015, a despeito de muitos avanços, as perdas florestais na região ainda foram de 2,18 milhões de hectares.

É isso que o Brasil precisa combater, ao invés de perder tempo acusando livros, jornais, revistas, cadernos e embalagens de vilania ambiental. Os impressos são sustentáveis e, enquanto mídias da informação e do conhecimento, sua disseminação é fundamental para formar novas gerações mais conscientes sobre a necessidade premente de preservar o meio ambiente e todo o patrimônio vegetal de nosso país.

Fabio Arruda Mortara

sábado, março 26

Páscoa

Love all of the books in this bookplate. S:

Há que sentir essa sede

artisticmoods:

Ana de Lima

Qué leerá?
Ana de Lima
A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede
Carlos Drummond de Andrade

Ex-aluno devolve livro depois de 49 anos

O americano James Phillips, ex-aluno da Universidade de Dayton (Ohio, Estados Unidos), finalmente devolveu um livro que havia emprestado há 49 anos da biblioteca da instituição.

O caso foi divulgado pela própria universidade, que usou o Twitter, na última segunda-feira (21), para informar a devolução. "Melhor (49 anos) atrasado do que nunca! Ex-universitário devolve livro emprestado em 1967", escreveram na rede social.

Ao devolver "History of the Crusades" (História das Cruzadas), o primeiro livro que pegou na biblioteca em seu primeiro ano, James entregou também um bilhete para explicar o atraso épico e livrou da multa por atraso acumulada em US$ 350 - o equivalente a R$ 1.268.

"Por favor, aceitem minhas desculpas pela ausência de 'História das Cruzadas'. Eu, aparentemente, saí quando eu era calouro e de alguma forma ele ficou perdido todos esses anos", diz a mensagem escrita à mão.

Segundo a própria instituição, James deixou a faculdade inesperadamente porque teve de se juntar à Marinha dos Estados Unidos para servir na Guerra do Vietnã.

Ele nem teve tempo de recolher seus pertences do dormitório da universidade. Por isso, essa tarefa ficou a cargo de uma pessoa desconhecida, que recolheu todos os itens e enviou para a casa do pai de James. Assim, durante muitos anos, a "História das Cruzadas" permaneceu esquecido durante todos esses anos, até a morte dos pais de James, quando os objetos foram entregues ao irmão mais novo do ex-universitário, que percebeu o exemplar e decidiu enviá-lo para ele.

sexta-feira, março 25

Postura de feriadão

 Kamilė Krasauskaitė

O castelo de Kafka

- Kafka?! Não me diga que você é Franz Kafka, o agrimensor contratado?!

Kafka ergueu os olhos diante da porta do Castelo: era o conde Westwest em pessoa que lhe estendia carinhosamente a mão enorme para tirá-lo do gelo em que as pernas mirradas do visitante se atolavam:

- Suba aqui, rapaz! Você vai acabar pegando uma tuberculose nesse frio! - Gritou em torno, indignado: - Mas por que esses estúpidos que me rodeiam não me avisaram que você chegou? Onde você passou a noite?

- Eu... eu tentei e...

O conde arrastou-o para uma sala aconchegante e quente; mal Kafka sentou-se na poltrona confortável e o próprio conde lhe estendia uma xícara de café. Kafka fechou os olhos, feliz, sentindo o aroma.

- Beba, menino. - E não cansava de olhar para o escritor: - Que alegria tê-lo aqui, Franz Kafka! - Gritou para o corredor: - Klamm! Klamm!

Imediatamente o funcionário apareceu.

- Klamm, reserve o apartamento do terceiro andar para o senhor Kafka. Você ficará encarregado de atendê-lo em tudo que ele pedir. - Sentado em frente ao escritor, tocou nos seus joelhos magros: - Franz, aqui você poderá escrever o que quiser. Fique o tempo que precisar. Quer trazer a família para viver com você? Há espaço de sobra no Castelo. O que acha?

Kafka alegrou-se - e sussurrou:

- Conde, estou apaixonado pela Frieda. Posso... - e o gesto indicava algum sonho futuro ainda sem forma.

- Mas é claro! - Ergueu as mãos, sorridente: - Você é livre, Franz. Tudo que eu quero é deixá-lo confortável para escrever. Esse é o seu mundo.

- Obrigado. Eu... - emocionado, Franz Kafka gaguejava: aquilo iria durar apenas alguns segundos e ele não queria perder nenhum deles: - Mas conde... e o meu trabalho de agrimensor?

O conde deu uma gargalhada saborosa:

- Esqueça! Minhas terras não precisam de agrimensor. O que precisam é de Franz Kafka para terem alguma medida! - A mão sincera tocava-lhe o ombro ossudo: - Você nos dá essa felicidade?
Cristovão Tezza

Patrulha eletrônica

Aprenda a ler mais livros por ano

salantami:



Leon Viorescu
Leon Viorescu 
Ler muitos livros ao longo do ano é uma atividade difícil, principalmente pela quantidade de tarefas que precisam ser realizadas ao longo do dia. No entanto, existem algumas dicas que podem fazer com que a produtividade pessoal aumente e, consequentemente, a quantidade de livros lidos. 

1 – Pare de ler em momentos interessantes

Por melhor que esteja a leitura, uma boa dica para que você continue empolgado é parar em boas partes do livro. Não pare de ler somente quando o texto não estiver prendendo sua atenção, porque isso dificulta que você continue aproveitando a obra.

2 – Leia pela manhã

A melhor forma de aproveitar a leitura é realizando-a pela manhã. Por estar com a mente mais livre, você tende a absorver melhor os conteúdos apresentados, além de conseguir ler mais rapidamente, porque partes do cérebro funcionam melhor no início do dia.

3 – Acostume-se a ler

Os primeiros dias que você dedicar à leitura podem ser difíceis. No entanto, à medida que você tornar essa atividade um hábito, seu cérebro irá se acostumar e ler será algo fácil e prazeroso. Por mais que o começo possa ser complicado, aposte em fazer com que a leitura seja uma parte essencial do seu dia a dia.

4 – Leia visando recompensas pessoais

Alguns livros farão com que você se divirta e sinta-se bem, enquanto outros serão mais complicados, principalmente se forem voltados para o universo acadêmico. Independentemente do tipo de livro que está lendo, é importante que você tenha em mente a importância da leitura de ambos. Quando estiver difícil, estabeleça metas pessoais e, à medida que você cumpri-las, dê recompensas para si mesmo.
Universia Brasil

quarta-feira, março 23

O bem e o mal

silenceforthesoul:

Samuel Melton Fisher


Os leitores extraem dos livros, consoante o seu carácter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno
Friedrich Nietzsche

Na biblioteca de Alice

En la biblioteca de Alicia en el País de las Maravillas (ilustración de Anthony Browne)
Anthony Browne

Um sonho de simplicidade

Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providencias a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?

Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.

silenceforthesoul:

Arthur Hughes (1832 -1915) - The Compleat Angler, 1884
Arthur Hughes (1832 -1915) 
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.

Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.

Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?

Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.

Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.

Rubem Braga

domingo, março 20

Manhã no parque

Leyendo en el parque: es primavera (ilustración de Mina Braun)
Mina Braun

O prodígio da literatura e mais alguns

Que um homem consiga destruir-se com o álcool, o jogo e as mulheres é compreensível. Que atinja o mesmo com a prosaica literatura é uma façanha.

***

Aos poetas deveria ser dado como prêmio, na hora da morte, não estrebucharem, não estertorarem, não babarem, e terem no rosto uma expressão como a de um recém-nascido a quem a mãe indica um ponto no céu e lhe diz sol.

***
bibliolectors:

Una lectora muy pop (ilustración de Giordano Poloni)
Giordano Poloni
Sempre que o amor atingisse o auge, o coração deveria explodir e esparramar pelo céu mil duzentos e cinquenta balões coloridos, se não mais.

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Se souber falar do amor, o poeta nunca ficará sem trabalho.

***

Já era muito tarde quando descobri que o amor não é um negócio para amadores.

***

A vida é uma questão de sorte; a morte, uma questão de tempo.

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Dedicar a vida à literatura é um modo tão eficaz de morrer quanto qualquer outro.

***

Venho comprovando que a velhice é mesmo um estado de espírito – o mais desagradável de todos – e que piora dia a dia.

***

Que ainda se morra por amor é uma prova de que à morte pouco importam as modernidades.

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No sonho ele a vê mastigando vagarosamente um colar de pérolas e anseia para que ela o olhe e lhe diga: o próximo é você.

***

Há noites em que ela usa o mindinho. Fecha os olhos e imagina que uma passarinha escolhe nela fios para o ninho e que, depois de colhê-los, começa a bicar educadamente os grãos de milho esparramados na sua coxa.

***

Na mão dela, quando ao chegar a beijou, ele sentiu cheiro de maresia. Presunçoso, imaginou que ela lhe tivesse prestado uma homenagem enquanto o esperava no sofá.

***

Na noite em que sonhou com ela, acordou com a boca seca de sede e a frustração de o sonho haver terminado antes que ela tirasse o sutiã.

***

Ter vivido tanto foi o mais longo dos meus descuidos.

***

Estratagema é o tipo de recurso que usaríamos numa conquista amorosa, se não soasse tão pernóstico.

***

Gostaria de tê-la visto nua ao menos uma vez. Tem certeza de que acharia perfeito seu corpo, assim como achou dócil sua alma cruel.

***

Quando for escolher um sofá, não se esqueça de levar o gato.

Raul Drewnick

sábado, março 19

eAutor e o leitor

Desempacotando minha biblioteca

Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revista-los. Nada disso vocês têm que temer. Ao contrário, devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia após uma escuridão de dois anos justamente, a fim de, desde o início, compartilhar comigo um pouco da disposição de espírito – certamente não elegíaca , mas, antes, tensa – que estes livros despertam no autêntico colecionar. Pois quem lhes fala é um deles, e, no fundo está falando de si. (...)

Tenho a intenção de dar uma idéia sobre o relacionamento de um colecionador com os seus pertences, uma idéia sobre a arte de colecionar mais do que sobre a coleção em si. É inteiramente arbitrário que eu faço isso baseando-me na observação das diversas maneiras de adquirir livros. Este processo ou qualquer outro é apenas um dique contra a maré de água viva de recordações que chega rolando na direção de todo colecionador ocupado com o que é seu. De fato, toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar com o das lembranças. (...)
Walter Benjamin (1892-1940)

Escalada

Escalando los libros (ilustración de Emiliano Ponzi)
Emiliano Ponzi

Balanço

hitku:

- Fernand Léger
Fernand Léger
Por que hei de agradar o rude sofrimento e mais rude torná-lo, na desesperança? Por que proclamar a tristeza inútil diante das coisas que secretamente e melhor compreendo? Não falarei do desamparo que finamente aperta os dedos na garganta. Não citarei o sentimento peculiar aos que têm propensão para o desengano e, mais do que nunca, ao crepúsculo, sentem-se traídos e ultrajados sem motivo. Não mais me referirei a estados de alma que nada contêm além de um vazio cinzento e interminável, um abismo de sombra e de abstrato, onde a tristeza rumina o seu cadáver.

Todos os gestos seriam inúteis. Nada salva e tudo nos perde e atraiçoa. O temor sustenta minhas interrogações e de repente me sinto só, perdidamente só e anterior a todos, como se ninguém mais houvesse. Tudo desaparece na refração das águas da memória. Vejo as imagens deformadas, mas que persistem, fantasmas íntimos. Rio e já não entendo; choro e me dilacero lentamente no tempo em que tudo está pesadamente mergulhado. Não grito porque o hábito se forma e o pudor defende. Conheço e entendo. Algumas vezes adivinho, mas não devasso. O que sabe deve calar-se para não ferir. Se digo, as palavras nada significam senão 0 prazer de proferi-las e achá-las bem achAdas, não para que exprimam, mas simples jogo colorido que diverte. Não proporei normas, nem direi o que abomino. Deu-nos Deus a palavra para melhor silenciar. No inarticulado, me descubro um homem, com um nome, certos hábitos, fisionomia, alguns cacoetes e muitas possibilidades. Mas sobretudo vivendo por conta própria. Foi um ato irresponsável confiar-me a mim mesmo. Meu destino gira nos meus dedos. Não me pertenço e nem me encontro. O tormento da lembrança, como cãibra, paralisa os gestos e sobrepõe ao que é o que já foi. Calculadamente percorro o caminho da fatalidade, onde os abismos espreitam e aguardam a imagem quebrada, e cem vezes traída.
Otto Lara Resende

sexta-feira, março 18

Biblioteca flutuante


Livros à vista! Uma biblioteca flutuante embarcou na Califórnia.

Os livros podem transportá-lo para terras distantes e refúgios ensolarados — que pode ser apenas o que os leitores precisam nos dias frios. Mas seu material de leitura não precisa estar fixado em uma ilha para despertar o desejo por aventura.

Na semana entre 11 e 14 de fevereiro, uma biblioteca flutuante embarcou no estado da Califórnia, Estados Unidos, permitindo aos visitantes escolher volumes de livros de suas prateleiras à prova d’água. A iniciativa foi concebida pela ONG Machine Project, projetada pela arquiteta Molly Reicher e montada pelo artista Bob Dornberger.

“Você pode ler a melhor seleção de livros de arte transportados em jangada que o alto mar tem para oferecer”, descreve a Machine Project em seu site. “Traga seus óculos de leitura, uma bebida, canções de marinheiro e um marcador — a biblioteca chegou à cidade!”.

Café da manhã

Simone Balvi ( França, 1938)
Simone Balvi 

Assim começa o livro...

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia. Sangue, porém, houve-o, e não pouco. Desvairados, confusos, aflitos, dominando a custo as náuseas, os bombeiros extraíam da amálgama dos destroços míseros corpos humanos que, de acordo com a lógica matemática das colisões, deveriam estar mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos ferimentos e dos traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim eram transportados aos hospitais, ao som das dilacerantes sereias das ambulâncias. Nenhuma dessas pessoas morreria no caminho e todas iriam desmentir os mais pessimistas prognósticos médicos, Esse pobre diabo não tem remédio possível, nem valia a pena perder tempo a operá-lo, dizia o cirurgião à enfermeira enquanto esta lhe ajustava a máscara à cara. Realmente, talvez não houvesse salvação para o coitado no dia anterior, mas o que estava claro é que a vítima se recusava a morrer neste. E o que acontecia aqui, acontecia em todo o país. Até à meia-noite em ponto do último dia do ano ainda houve gente que aceitou morrer no mais fiel acatamento às regras, quer as que se reportavam ao fundo da questão, isto é, acabar-se a vida, quer as que atinham às múltiplas modalidades de que ele, o referido fundo da questão, com maior ou menor pompa e solenidade, usa revestir-se quando chega o momento fatal. Um caso sobre todos interessante, obviamente por se tratar de quem se tratava, foi o da idosíssima e veneranda rainha-mãe. Às vinte e três horas e cinquenta e nove minutos daquele dia trinta e um de dezembro ninguém seria tão ingénuo que apostasse um pau de fósforo queimado pela vida da real senhora. Perdida qualquer esperança, rendidos os médicos à implacável evidência, a família real, hierarquicamente disposta ao redor do leito, esperava com resignação o derradeiro suspiro da matriarca, talvez umas palavrinhas, uma última sentença edificante com vista à formação moral dos amados príncipes seus netos, talvez uma bela e arredondada frase dirigida à sempre ingrata retentiva dos súbditos vindouros. E depois, como se o tempo tivesse parado, não aconteceu nada. A rainha-mãe nem melhorou nem piorou, ficou ali como suspensa, baloiçando o frágil corpo à borda da vida, ameaçando a cada instante cair para o outro lado, mas atada a este por um ténue fio que a morte, só podia ser ela, não se sabe por que estranho capricho, continuava a segurar. Já tínhamos passado ao dia seguinte, e nele, como se informou logo no princípio deste relato, ninguém iria morrer.

quarta-feira, março 16

Arrumação da biblioteca

O bardo imortal

- Oh, sim - disse o Dr. Phineas Welch - posso trazer de volta o espírito dos mortos ilustres.

Estava um pouco ébrio, ou talvez não o dissesse. Era naturalmente aceitável embriagar-se um pouco na festa anual do Natal. Scott Robertson, o jovem instrutor de inglês da escola, ajustou os óculos no nariz e olhou à direita e esquerda para ver se tinham sido ouvidos por outras pessoas.
- Francamente, Dr. Welch.
- Falo sério. E não apenas os espíritos. Trago também os corpos de volta.
- Eu não diria que fosse possível - retorquiu Robertson, empertigado.
- E por que não? É uma simples questão de transferência temporal.
- Refere-se à viagem no tempo? Mas isso é... bem, é bem invulgar.
- Não é, se você souber como.
- Bem, como, Dr. Welch?
- Acha que vou lhe contar? - perguntou o físico em tom grave.Olhou vagamente ao redor procurando outra bebida e não encontrou bebida alguma. Disse, então:
- Eu já trouxe um bom número de volta. Arquimedes, Newton, Galileu. Pobres sujeitos.

- Eles gostaram daqui? Seria de crer que ficassem encantados com a nossa ciência moderna - disse Robertson, a quem a conversa começara a agradar.
- Oh, ficaram. Principalmente o Arquimedes. Pensei que ele ia enlouquecer de alegria, de inicio, depois de lhe ter explicado um pouco da coisa em algum grego que eu havia escovado, mas não...não...
- O que houve?
- Uma questão de cultura diferente. Eles não se acostumaram, ao nosso modo de viver. Ficaram muitíssimo solitários e assustados. Tive de mandá-los de volta.
- Uma pena.
- Pois é. Grandes espíritos, mas não tinham mentes flexíveis.Não eram universais. Por isso tentei Shakespeare.
- O quê? - berrou Robertson. Aquilo estava chegando mais perto, agora.
- Não grite, rapaz - disse Welch. - É falta de educação.
- O senhor disse que trouxe Shakespeare de volta?
- Trouxe, sim. Precisava de alguém com espírito universal, alguém que conhecesse as pessoas o bastante para poder viver com elas a séculos de distância de sua própria época. Shakespeare era esse homem. E apanhei a assinatura dele. Como lembrança, sabe?
- Está com ela? - indagou Robertson, os olhos a se esbugalharem.
- Bem aqui - e Welch vasculhava um bolso do capote, logo outro.
- Ah, aqui está.
Um pequeno pedaço de cartolina foi passado ao instrutor. A um lado achava-se escrito: "L. Klein & Sons, Ferragens por Atacado". No outro lado, em escrita garatujada, via-se "William Shakespeare".Uma desconfiança tresloucada apoderou-se de Robertson.
- Qual era o aspecto dele?
- Diferente das imagens que se apresentam por aí. Calvo e com bigode muito feio. Falava em sotaque forte. Está claro que fiz o possível para agradá-lo com nossa época. Contei-lhe que tínhamos a melhor das opiniões sobre suas peças e ainda as representávamos. Na verdade disse que em minha opinião eram as maiores obras da literatura na língua inglesa, talvez em qualquer idioma.
- Ótimo. Ótimo - concordou Robertson, quase incapaz de respirar.
- Eu disse que as pessoas haviam escrito livros e mais livros de comentários sobre as peças dele.
Ele quis ver um desses livros, naturalmente, e fui apanhá-lo na biblioteca.
- E depois?
- Oh, ele ficou encantado. Está claro que encontrou dificuldades com as expressões atuais e as referências a acontecimentos a partir de 1600, mas eu o ajudei. Pobre camarada. Não creio que tenha contado com tal tratamento. Não parava de dizer: "Que Deus tenha misericórdia! O que não arrancam das palavras em cinco séculos? Dá para arrancar, acredito, uma torrente de um pano molhado".
- Ele não diria uma coisa dessas.
- E por que não? Escreveu as peças tão depressa quanto pôde. Disse que tinha de fazê-lo, por causa dos prazos de entrega. Escreveu Hamlet em menos de seis meses. A trama era antiga, ele apenas lhe deu polimento.
- É tudo que fazem com o espelho de telescópio. Basta dar polimento - disse o instrutor de inglês, cheio de indignação. O físico não lhe deu atenção. Descobriu um copo cheio e intacto no bar, a alguns palmos de distância, e deslizou em sua direção.
- Eu disse ao bardo imortal que até dávamos cursos superiores sobre Shakespeare.
- Eu dou um,...
- Sei disso. Matriculei-o em seu curso noturno de extensão. Nunca vi homem tão aflito quanto o pobre Bill, por descobrir o que a posteridade pensava a seu respeito. Ele estudou como o diabo.
- O senhor matriculou William Shakespeare em meu curso? - murmurou Robertson.
Mesmo com fantasia alcoólica tal pensamento lhe causava estarrecimento. E era mesmo uma fantasia alcoólica? Começava a lembrar-se de um homem calvo, com o modo curioso de falar...
- Não sob o nome dele, está claro - explicou o Dr. Welch.
- Não importa o que ele passou. Foi um erro, só isso. Um grande erro. Pobre camarada.
Estava em posse do coquetel e sacudiu a cabeça para o copo.
- Por que foi um erro? O que lhe aconteceu?
- Tive de mandá-lo de volta a 1600 - trovejou Welch, agora indignado, por sua vez. - Até que ponto você acha que um homem agüenta a humilhação?
- E de que humilhação está falando? O Dr. Welch virou a bebida do copo.
- Ora, seu pobre imbecil, você o reprovou.
Isaac Asimov

Leitura no jardim

simena:

ArthurRackham
Arthur Rackham

Fim


Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas

desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.
Carlos Drummond de Andrade
Alexander Selkirk (1676 – 1721) marinheiro escocês 

inspirador do personagem de Daniel Defoe

terça-feira, março 15

Na tumba do rosa-cruz

danskjavlarna:

“The tomb of the Rosicrucian.”  From Auriol, or, the Elixir of Life by William Harrison Ainsworth, 1875.
Ilustração de "Auriol, o elixir da vida", de William Harrison Ainsworth, 1875

Do 'Diário'

Todos os escritores (artistas) são infelizes - leio de vez em quando, não sei onde. Mas afirmá-lo o próprio não será petulância? um modo de se dizer merecedor de compaixão? um modo de 'denegar' a sua grandeza? ou a convicção dela? Das muitas injúrias com que me vão medalhando, há duas que me intrigam - a de que sou um "vaidosão" e a de que sou um "invejoso". Porque se me revejo em comprazimento e subsequente vaidade, como posso ser invejoso? E se sou invejoso, como é que posso ser vaidosão? As duas coisas é que não. É portanto favor escolherem. (...) Retornemos à primeira frase - todos os escritores são infelizes. Porque é verdade. Mas se eu disser que sou infeliz é dizer-me com direito a queixar-me, como se não houvesse mais infelizes sobre a Terra e a supor implícita a afirmação de que sou «escritor». De modo que o melhor é não dizer nada ou sequer pensá-lo. Ou pensar que sou realmente infeliz e deixar de fora do pensamento qualquer outra conversa. Ou admitir que todo o artista é um desgraçado que se cumpre em encantamento nessa desgraça. Ou que se é feliz nos raros instantes em que se levanta por sobre a infelicidade que lhe coube. Mas não insisto porque corro o risco de me sair tudo ao contrário. E porque se não há-de ser simplesmente vaidoso do que se quer fazer, não tendo por isso inveja a ninguém que não queira fazer o mesmo, sentir-se todavia arrasado de sofrimento porque se não foi capaz, como é fácil verificá-lo ao rever-se o que se fez? Todo o artista é infeliz. Dando-lhe as voltas que se quiser, acaba talvez por estar certo
Vergílio Ferreira

sábado, março 12

Convivência pacífica na leitura

Hasta los gatos comparten cuentos con los ratones!!! (ilustración de Richard Scarry)

Manoel de Barros reeditado com documentos inéditos

Manoel de Barros gostava de dizer que escrevia em “idioleto manoelês archaico”. No ano em que o poeta mato-grossense completaria seu centenário, esse idioma particular reaparece nas novas edições de sua obra completa, que começam a chegar às livrarias pela Alfaguara. Morto em 2014, o autor que cantou as coisas da natureza fixou o Pantanal no mapa da poesia brasileira. Mais que isso, construiu uma poética em torno das miudezas do mundo, de tudo aquilo que é descartado e marginalizado pela sociedade. Costumava se definir como “um fazedor de inutensílios”.

Os dois volumes que abrem a reedição flagram momentos distintos da construção do “manoelês” ao longo de sete décadas de carreira. “Poemas concebidos sem pecado / Face imóvel” reúne seus dois primeiros títulos, lançados em 1937 e 1942, respectivamente. “Arranjos para assobio”, de 1982, marca a consolidação do estilo que o consagraria a partir daquela década. Todos os livros incluem itens do baú de Manoel, muitos deles inéditos, como fotografias antigas, correspondências e manuscritos de poemas, selecionados pela filha do escritor, Martha Barros.

Manuscrito do poema "Enseada de Botafogo",
publicado no livro "Face imóvel" (1942)

Em meio a esse material estão cartas de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade recebidas pelo poeta mato-grossense nos anos 1940. Publicadas em livro pela primeira vez, elas mostram que o iniciante buscou diálogo com os nomes consagrados da época, enviando-lhes exemplares de “Face imóvel”. Mário responde com um elogio cortês à “real intensidade” da poesia de Manoel. Em reação mais elaborada, Drummond se impressiona com o “humanismo e pungente lirismo” dos versos, nos quais enxerga um autor com “o sentimento da relação secreta entre as coisas”.

— Meu pai era um funcionário da poesia, se dedicava em tempo integral a ela. Deixou uma obra linda, rica e profunda. Ele se achava um homem comum, e era. Sua alma inquieta, amorosa, simples e ao mesmo tempo complexa fez dele um pensador das coisas pequenas e sem importância, algo tão necessário neste mundo poluído e cheio de desperdícios — diz Martha.

O pensador das coisas pequenas já se anunciava em “Poemas concebidos sem pecado”, que publicou aos 21 anos. Em versos narrativos, repletos de personagens como Cabeludinho e Nhanhá, evoca memórias da infância no Pantanal. “Face imóvel” é mais marcado pela vivência no Rio, para onde havia se mudado em meados dos anos 1930. A nova edição traz o manuscrito do poema “Enseada de Botafogo”, que registra seu espanto diante do contraste urbano entre “carros vermelhos que levam os donos da vida” e “emigrados subjugados ao infinito”.

Leia mais 

sexta-feira, março 11

Leitura leva a outros mundos

La lectura se recrea en la imaginación: leemos, creamos (ilustración de Berk Öztürk)
 Berk Öztürk

Mala de viagem

Como gostava de ler e ia para uma viagem longa o senhor Juarroz decidiu pôr na mala seis exemplares do mesmo livro 
Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Juarroz"

O dois em um para a cama

Reading in a bed - positions

Dia do Bibliotecário

Era uma vez uma senhora. De coque, óculos, roupas escuras compridas, expressão séria, pedindo, incessantemente, silêncio, com um dedo na frente dos lábios. Shh!

Era a bibliotecária.

Essa personagem ainda existe? Acredito que sim. Xii.

Felizmente, hoje a maioria está bastante diferente. Bibliotecárias e bibliotecários celebram seu dia em 12 de março. Trabalham em bibliotecas, centros de informação e documentação, museus, arquivos, empresas, televisão, ONGs, editoras, centros culturais. Descobriram que seu papel principal não era ser coadjuvante, apenas ordenando livros, fazendo da biblioteca um depósito, nem ser aquela pessoa mal humorada que quer silêncio absoluto. Os bibliotecários são protagonistas no universo da informação. Continuam colaborando na história de todos os profissionais, atuantes ou em formação, para que encontrem a informação necessária, seja no labor seja no lazer. Aliás, bebês e crianças de todas as idades também podem se beneficiar das qualidades, do conhecimento e do trabalho dos bibliotecários.

Aposentados e idosos também. Quem gosta de ler já sabe do que estou falando. Quem não gosta (ainda) pode se (re)descobrir ao encontrar um bom profissional da biblioteconomia e ciência da informação.

Aliás, muitos ainda pensam primeiro na biblioteca de livros impressos. Entretanto, o bibliotecário trabalha com diferentes mídias: os tradicionais livros impressos, periódicos, e-books, bases de dados virtuais, on-line, para diferentes tipos de públicos. Inclusive livros transformados do texto impresso ou braile para voz, livros “falados”, para cegos ou deficientes visuais. Bibliotecários promovem o livro e a leitura, preparam eventos culturais, são palestrantes, oferecem capacitações para estudantes, pesquisadores e interessados, coordenam exposições, escrevem artigos, buscam instruir e dar autonomia aos usuários das bibliotecas, ao mesmo tempo em que objetivam compartilhar com eles as novidades conforme a(s) área(s) de interesse de seu público alvo.

E a biblioteca não é feita só pelo bibliotecário. O que seria dele se não tivesse a parceria tão necessária dos auxiliares (e/ou técnicos, e/ou assistentes)? Enquanto um trata a informação, o outro organiza fisicamente. Todos em busca da melhor forma de atender o leitor e/ou pesquisador. Se existe uma obra disponível, é necessário cuidar dela para que seu leitor a encontre. Se existe um leitor, é necessária dedicação para eficaz e eficientemente atendê-lo. É o que ensinou Ranganathan, matemático, bibliotecário e pai das cinco famosas leis da biblioteconomia.

Outro importante personagem na história das bibliotecas é Dewey, pai da Classificação Decimal mais utilizada nas bibliotecas de todo o mundo.

No Brasil o destaque vai para Manuel Bastos Tigre, considerado o primeiro bibliotecário concursado do Brasil, nasceu em 12 de março, o que motivou a escolha da data comemorativa da profissão.    
Maith Martins de Oliveira  

quinta-feira, março 10

Pesquisadores no dicionário

Revisando el diccionario (ilustración de Alexandre Honore)
 Alexandre Honore

Xixi em Deus

Eu caminhava debaixo de sol forte no meio de Mianmar, país asiático antigamente conhecido como Burma. Na região predominam os animistas, seguidores de uma religião que atribui espíritos e deuses a coisas e animais, como montanhas, rios, árvores, elefantes.


O guia da caminhada, Chauk, era animista. Assim que começamos a subir ao pico mais alto da área, ele parou e se pôs a orar, ajoelhado. Perguntei-lhe o motivo. Ele pedia autorização ao deus da montanha para atravessarmos o solo sagrado. Obtida a permissão, seguimos em frente. De repente, ele me segurou:

– Sentes a presença de deus? Está aqui, ao nosso redor. Até tocou minha pele.

Me esforcei para sentir o toque divino, mas nada. Percebi o sol, o calor, o vento abafado, o cansaço, o suor. Nenhum deus. Decepcionado, Chauk seguiu em frente. Parou-me de novo duas horas depois:

– É verdade mesmo que não sentes a presença de deus?

– Não sinto, Chauk. Desculpe-me.

Então veio o problema. Eu quis fazer xixi. Virei de lado, pronto para me aliviar, o primeiro pingo tinha caído. Chauk entrou em desespero:

– Não, não, aqui não, eu lhe imploro. Seremos castigados. O solo é sagrado.

– Como que eu faço, então?

– Segura.

– Não aguento mais.

– Segura.

– Peça ao deus para me liberar, por favor.

Chauk ajoelhou, ergueu as mãos. Falou com tristeza:

– Sinto muito. Deus não permitiu. Aqui, jamais.

– Então vamos voltar depressa.

Desci correndo. A cada impacto das botas no chão o aperto duplicou. E ainda faltava uma hora para chegar ao banheiro. Não suportei a pressão. Pedi desculpas ao Chauk, pedi desculpas ao deus, pequei. Pequei em cima de umas plantinhas quase sem folhas de tão secas. Salvei-as da morte. O pequeno deus que as habitava devia até me agradecer.

Chauk ficou bravo comigo. Para amenizar, abri uma barra de chocolate, dividi-a com ele, que nunca havia experimentado cacau. Adorou. Dei-lhe minha outra barra. Chocolate lhe fez bem. Ficou falante outra vez. Jogou um pedaço para o deus da montanha e me contou que eu tinha sido perdoado. Ave, chocolate! É uma doce penitência para quem fez xixi em deus.

Luís Giffoni

O arquivo

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.


Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal
Victor Giudice