Daniela Volpari |
quinta-feira, junho 30
É pau, é pedra, é o fim do caminho. Ou romances e contos nem sempre acabam quando terminam
Se os editores sabem, por vezes, dizer se um livro é bom por sua abertura, é interessante também mencionar que um dos grandes desafios de um profissional da área é avaliar se um texto termina bem. Ressalto que a dificuldade é maior na ficção do que nos ensaios, devido ao grau de subjetividade que cerca as obras literárias. É mais fácil saber se uma obra de não ficção cobriu todos os aspectos do assunto central de um livro. Num romance ou coletânea de contos, essa avaliação é sempre um pouco mais nebulosa.
Sabemos que um romance pode começar sem grande impacto e crescer ao longo de suas páginas, mas o mesmo não deve ocorrer com o seu final. E é curioso como essa é a grande dificuldade de muitos escritores, principalmente os menos experientes, que por vezes procuram se livrar do livro antes do tempo.
A tarefa de escrever um romance é exaustiva. Exige do escritor uma convivência profunda consigo mesmo, com seus fantasmas, traumas e recalques. Eles com certeza aparecerão na tela ou na página branca. Todo esse esforço mental de criação, somado à angústia de ver muitas vezes o tempo passar sem nada de produtivo ocorrer, dão à escrita um componente psicológico extenuante. Assim, o desgaste de um dia de trabalho aparentemente vazio pode não parecer, mas é enorme. É bastante comum sentirmos que um dia produtivo de trabalho resulta em menos cansaço do que o contrário. Além disso, principalmente as civilizações ocidentais têm dificuldade de lidar com longos momentos de solidão, e é basicamente deles de que é feito o dia a dia do escritor.
A grande maioria dos autores atesta que depois das horas diárias tentando se transportar para a pele de seus personagens — vivendo tantas outras vidas nas quais certamente as deles próprios se projetam —, sentem-se exauridos, como se tivessem exercido um trabalho descomunal.
Cada escritor tem seu método. Alguns batem nas teclas ou rabiscam, deixando em primeira instância o fluxo de consciência livre. Já outros querem ver, mesmo no rascunho, apenas o texto limpo. Esse é o caso de Chico Buarque. Como ele, esse tipo de escritor passa horas até conseguir escrever uma linha sequer, mas ao vê-la projetada na página branca em sua frente sabe que ela já está próxima da versão final. E dessa maneira exaurem-se, até por guardar, por tanto tempo, frases e mais frases incompletas dentro de si. Lembremo-nos da sensação de um pensamento ou angústia que nos persegue por dias a fio e entenderemos o sentimento que assola esse tipo de autor.
Se não me engano, foi Hemingway quem disse que “escrever é cortar e cortar”, sendo ele um exemplo típico dos que escreviam livremente, para depois buscar a expressão perfeita. Para os que gostam mais dos seus contos do que dos romances, aí pode estar a explicação. O “Papa”, como era chamado, apreciava e sabia cortar, o que, como veremos, é um dom absolutamente fundamental para um bom contista.
De qualquer forma, há no movimento literário, como em toda a arte, a busca de uma expressão perfeita, com a peculiaridade de que a maturação do trabalho do escritor é muito lenta. Como já vimos em outros posts, o livro começa muitas vezes bem antes do escritor iniciar propriamente sua escrita. Saramago passava meses planejando um livro sem pôr no papel uma só linha. Dá para imaginar o que sofrem as companheiras ou companheiros dos escritores nesses momentos em que a vida exterior deve ser tão menos absorvente do que o romance que se encontra em gestação.
Contribui para essa sensação de esgotamento o fato de a intuição contar muito pouco para um escritor. Se ela não for sucedida por um enorme tempo de desenvolvimento e por um mergulho profundo na alma humana, o retrato que resulta dos personagens será ralo. Uma frase próxima da perfeição não se encontra de cara, na primeira tentativa. Se isso não ocorre nem mesmo no caso de um relatório técnico, o que dizer na esfera afetiva de nossa vida? Se na vida real a mesma coisa pode ser dita de tantas formas, imaginemos o quanto a dificuldade aumenta se formos dar voz a um personagem criado do zero, um ser que não tem instintos próprios ou reações espontâneas, que depende da nossa psique para pensar e agir?
Por isso, a maior parte dos jovens escritores e editores já ouviu de seu primeiro publisher o chavão (aliás absolutamente correto) que diz que a escrita é feita de 95% de transpiração e de apenas 5% inspiração. Caio Graco me disse isso inúmeras vezes. Eu repito até hoje.
Se entendermos a natureza do tempo e do empenho necessários para a escrita de um romance, ficará mais fácil compreender a tendência a se livrar dele antes da hora. Um editor tarimbado consegue pressentir quando isso vai acontecer, antes mesmo de terminar o texto. Particularmente, depois de anos e anos de leitura, acho que consigo sentir o cansaço do escritor antes do ponto final. Perdi certamente a conta das vezes que sugeri mudanças nas últimas páginas de livros de ficção. O escritor deixa sinais de esgotamento pelo caminho, antes do fecho completo da obra, com passagens menos acabadas, que tendem a desembocar num final precipitado, como se ele tivesse chegado a um ponto em que seja difícil conviver tão obcecadamente com suas criaturas, alter egos, fantasmas ou projeções.
Durante o processo de escrita, é natural que os personagens tomem um espaço cada vez maior na vida do autor. É aí então que o amor pelos personagens transforma-se inúmeras vezes em ódio. Apesar de ser natural e necessário que personagens ganhem tamanha importância na vida de um ficcionista, a tendência é que este sinta que devota às suas criaturas um amor não correspondido.
Assim, são mais raros os casos de romances que passam do ponto, do que aqueles que acabam antes do momento em que deveriam se encerrar.
É nessa questão, a da forma e do tempo certo de acabar uma ficção, que se encontra, na minha opinião, a grande diferença entre os contos e os romances. Os primeiros precisam acabar antes do esperado; um bom conto dificilmente sobrevive se a sua história chegar ao fim. Quando isso ocorre, é possível que ele vire uma fábula e perca parte da sua força.
As generalizações em literatura são perigosas, mas na maioria dos casos o grande conto é o que termina inconcluso, que oferece quase que plenamente o final ao leitor. Nesse sentido, se toda ficção abre uma parceria entre o autor e o leitor, nos contos essa parceria se realiza com plenitude no que não foi dito. O contista entrega menos, tem a brevidade como desafio. Não consegue ter o leitor como parceiro tão completo, até por falta de espaço. Mas no final, sim, o escritor resolve abrir a porta e convida seu parceiro(a) a terminar a história consigo, ou a deixa aberta para sempre, sendo a dúvida a principal herança que entrega ao leitor.
Alguns escritores, como Rubem Fonseca, consideram que escrever contos é muito mais difícil do que dedicar-se a narrativas de longa extensão. Não sei se concordo. Cada gênero oferece dificuldades próprias. O conto exige um esforço supremo de condensação e procura a perfeição na falta. O romance almeja algum tipo de abrangência ou carrega a plenitude como parte de sua ambição. Dessa maneira, o editor de contos talvez acabe se ocupando mais dos textos que acabam depois do que deviam. O editor de romance, ao contrário, esbarra mais com casos em que o escritor tenta se livrar logo do texto, com o qual, como vimos, não conseguem mais conviver.
Nos romances o leitor se depara com aberturas a cada página, são como pequenas janelas abertas em todo o transcorrer da obra, em vez de uma grande porta final, como nos contos, com o infinito ainda a percorrer. No romance o infinito é oferecido ao leitor inúmeras vezes durante o percurso.
Dizemos que um romance não está redondo ou bem amarrado quando queremos mostrar, principalmente, que ele acabou cedo demais, mas também que o escritor não ofereceu algum tipo de completude para o leitor. Com isso não quero afirmar, de forma alguma, que muitos grandes romances não tenham sido bem-sucedidos terminando em aberto, ou que o escritor não deve deixar aberturas no final. Nos romances com tantas janelas abertas pelo caminho, o leitor tende a se irritar, com razão, se o final denotar pressa. Afinal, o romance foi confeccionado com prazo largo, assim como foi alongado o tempo de convivência entre autor e leitor que a narrativa propiciou.
Da mesma maneira como me referi no meu post anterior à abertura de Anna Kariênina — que poderia ser invertida e permanecer válida mesmo assim —, tudo o que eu disse a respeito de contos e romances talvez não faça sentido para o leitor deste blog, que pode preferir os romances inacabados e contos perfeitamente redondos, de aspecto mais fabular. Entenda, leitor, que essas são apenas impressões que recolhi ao longo da vida, e que deixo aqui, sem um grande final.
Sabemos que um romance pode começar sem grande impacto e crescer ao longo de suas páginas, mas o mesmo não deve ocorrer com o seu final. E é curioso como essa é a grande dificuldade de muitos escritores, principalmente os menos experientes, que por vezes procuram se livrar do livro antes do tempo.
A tarefa de escrever um romance é exaustiva. Exige do escritor uma convivência profunda consigo mesmo, com seus fantasmas, traumas e recalques. Eles com certeza aparecerão na tela ou na página branca. Todo esse esforço mental de criação, somado à angústia de ver muitas vezes o tempo passar sem nada de produtivo ocorrer, dão à escrita um componente psicológico extenuante. Assim, o desgaste de um dia de trabalho aparentemente vazio pode não parecer, mas é enorme. É bastante comum sentirmos que um dia produtivo de trabalho resulta em menos cansaço do que o contrário. Além disso, principalmente as civilizações ocidentais têm dificuldade de lidar com longos momentos de solidão, e é basicamente deles de que é feito o dia a dia do escritor.
A grande maioria dos autores atesta que depois das horas diárias tentando se transportar para a pele de seus personagens — vivendo tantas outras vidas nas quais certamente as deles próprios se projetam —, sentem-se exauridos, como se tivessem exercido um trabalho descomunal.
Cada escritor tem seu método. Alguns batem nas teclas ou rabiscam, deixando em primeira instância o fluxo de consciência livre. Já outros querem ver, mesmo no rascunho, apenas o texto limpo. Esse é o caso de Chico Buarque. Como ele, esse tipo de escritor passa horas até conseguir escrever uma linha sequer, mas ao vê-la projetada na página branca em sua frente sabe que ela já está próxima da versão final. E dessa maneira exaurem-se, até por guardar, por tanto tempo, frases e mais frases incompletas dentro de si. Lembremo-nos da sensação de um pensamento ou angústia que nos persegue por dias a fio e entenderemos o sentimento que assola esse tipo de autor.
Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes |
Para os escritores que, ao contrário, deixam jorrar o fluxo de pensamento na tela, o cansaço pode parecer até menos sensível, uma vez que as páginas cheias denotam o fim de um dia aparentemente produtivo. Mas, no momento de revisar o texto, o desgaste acaba crescendo em progressão geométrica.
Se não me engano, foi Hemingway quem disse que “escrever é cortar e cortar”, sendo ele um exemplo típico dos que escreviam livremente, para depois buscar a expressão perfeita. Para os que gostam mais dos seus contos do que dos romances, aí pode estar a explicação. O “Papa”, como era chamado, apreciava e sabia cortar, o que, como veremos, é um dom absolutamente fundamental para um bom contista.
De qualquer forma, há no movimento literário, como em toda a arte, a busca de uma expressão perfeita, com a peculiaridade de que a maturação do trabalho do escritor é muito lenta. Como já vimos em outros posts, o livro começa muitas vezes bem antes do escritor iniciar propriamente sua escrita. Saramago passava meses planejando um livro sem pôr no papel uma só linha. Dá para imaginar o que sofrem as companheiras ou companheiros dos escritores nesses momentos em que a vida exterior deve ser tão menos absorvente do que o romance que se encontra em gestação.
Contribui para essa sensação de esgotamento o fato de a intuição contar muito pouco para um escritor. Se ela não for sucedida por um enorme tempo de desenvolvimento e por um mergulho profundo na alma humana, o retrato que resulta dos personagens será ralo. Uma frase próxima da perfeição não se encontra de cara, na primeira tentativa. Se isso não ocorre nem mesmo no caso de um relatório técnico, o que dizer na esfera afetiva de nossa vida? Se na vida real a mesma coisa pode ser dita de tantas formas, imaginemos o quanto a dificuldade aumenta se formos dar voz a um personagem criado do zero, um ser que não tem instintos próprios ou reações espontâneas, que depende da nossa psique para pensar e agir?
Por isso, a maior parte dos jovens escritores e editores já ouviu de seu primeiro publisher o chavão (aliás absolutamente correto) que diz que a escrita é feita de 95% de transpiração e de apenas 5% inspiração. Caio Graco me disse isso inúmeras vezes. Eu repito até hoje.
Se entendermos a natureza do tempo e do empenho necessários para a escrita de um romance, ficará mais fácil compreender a tendência a se livrar dele antes da hora. Um editor tarimbado consegue pressentir quando isso vai acontecer, antes mesmo de terminar o texto. Particularmente, depois de anos e anos de leitura, acho que consigo sentir o cansaço do escritor antes do ponto final. Perdi certamente a conta das vezes que sugeri mudanças nas últimas páginas de livros de ficção. O escritor deixa sinais de esgotamento pelo caminho, antes do fecho completo da obra, com passagens menos acabadas, que tendem a desembocar num final precipitado, como se ele tivesse chegado a um ponto em que seja difícil conviver tão obcecadamente com suas criaturas, alter egos, fantasmas ou projeções.
Durante o processo de escrita, é natural que os personagens tomem um espaço cada vez maior na vida do autor. É aí então que o amor pelos personagens transforma-se inúmeras vezes em ódio. Apesar de ser natural e necessário que personagens ganhem tamanha importância na vida de um ficcionista, a tendência é que este sinta que devota às suas criaturas um amor não correspondido.
Assim, são mais raros os casos de romances que passam do ponto, do que aqueles que acabam antes do momento em que deveriam se encerrar.
É nessa questão, a da forma e do tempo certo de acabar uma ficção, que se encontra, na minha opinião, a grande diferença entre os contos e os romances. Os primeiros precisam acabar antes do esperado; um bom conto dificilmente sobrevive se a sua história chegar ao fim. Quando isso ocorre, é possível que ele vire uma fábula e perca parte da sua força.
As generalizações em literatura são perigosas, mas na maioria dos casos o grande conto é o que termina inconcluso, que oferece quase que plenamente o final ao leitor. Nesse sentido, se toda ficção abre uma parceria entre o autor e o leitor, nos contos essa parceria se realiza com plenitude no que não foi dito. O contista entrega menos, tem a brevidade como desafio. Não consegue ter o leitor como parceiro tão completo, até por falta de espaço. Mas no final, sim, o escritor resolve abrir a porta e convida seu parceiro(a) a terminar a história consigo, ou a deixa aberta para sempre, sendo a dúvida a principal herança que entrega ao leitor.
Alguns escritores, como Rubem Fonseca, consideram que escrever contos é muito mais difícil do que dedicar-se a narrativas de longa extensão. Não sei se concordo. Cada gênero oferece dificuldades próprias. O conto exige um esforço supremo de condensação e procura a perfeição na falta. O romance almeja algum tipo de abrangência ou carrega a plenitude como parte de sua ambição. Dessa maneira, o editor de contos talvez acabe se ocupando mais dos textos que acabam depois do que deviam. O editor de romance, ao contrário, esbarra mais com casos em que o escritor tenta se livrar logo do texto, com o qual, como vimos, não conseguem mais conviver.
Nos romances o leitor se depara com aberturas a cada página, são como pequenas janelas abertas em todo o transcorrer da obra, em vez de uma grande porta final, como nos contos, com o infinito ainda a percorrer. No romance o infinito é oferecido ao leitor inúmeras vezes durante o percurso.
Dizemos que um romance não está redondo ou bem amarrado quando queremos mostrar, principalmente, que ele acabou cedo demais, mas também que o escritor não ofereceu algum tipo de completude para o leitor. Com isso não quero afirmar, de forma alguma, que muitos grandes romances não tenham sido bem-sucedidos terminando em aberto, ou que o escritor não deve deixar aberturas no final. Nos romances com tantas janelas abertas pelo caminho, o leitor tende a se irritar, com razão, se o final denotar pressa. Afinal, o romance foi confeccionado com prazo largo, assim como foi alongado o tempo de convivência entre autor e leitor que a narrativa propiciou.
Da mesma maneira como me referi no meu post anterior à abertura de Anna Kariênina — que poderia ser invertida e permanecer válida mesmo assim —, tudo o que eu disse a respeito de contos e romances talvez não faça sentido para o leitor deste blog, que pode preferir os romances inacabados e contos perfeitamente redondos, de aspecto mais fabular. Entenda, leitor, que essas são apenas impressões que recolhi ao longo da vida, e que deixo aqui, sem um grande final.
Biblioteca de 16 mil livros para 9 habitantes
O único ser vivo que se movimenta na pequena aldeia de Quintanalara, na Espanha, por volta do meio-dia, é um porco preto. Pertence ao alcaide da povoação. O mesmo alcaide que teve a ideia de fazer uma biblioteca.
"Andou um ano inteiro às voltas e conseguiu. Fez pedidos pela internet. Só estava a pensar em 10 mil livros mas agora já são 16 mil". Estes livros todos acomodados numa casa onde no passado foi o sítio onde se ferravam os animais. Quem o diz é Montsé Gonzalez, uma das 9 pessoas da aldeia que também ajudou a recolher tantos livros.
"Muitos nos diziam que tinham duzentos e que os fossemos buscar. Em casas particulares, de heranças, de Navarra também deram alguns, de outros lados mas tivemos que os ir buscar a todos, foi muito trabalho". Um trabalho compensado com uma inauguração com pompa e circunstância vai há pouco mais de uma semana. Depois de tudo isso, o alcaide foi de férias para um merecido descanso.
Na biblioteca encontrámos Célia Navarra. Nasceu e cresceu na pequena aldeia. Está orgulhosa de tudo. Trabalha em Burgos mas sempre que pode vai ali dar "uma mãozinha". Primeiro têm que se registar os livros e depois é que se pode levar. Neste momento estou a tomar notas dos livros que faltam registar para depois serem alugados", diz.
A excêntrica biblioteca está sempre aberta e qualquer um pode ir buscar ou levar um livro, acrescenta Célia Navarro. "Sim, claro! Pode levar um livro que goste ou que precise. Isto vai estar aberto todo o dia, à disposição de quem passe ou de quem venha de propósito".
E por aqui, nesta pequena nova terra aculturada por estes 16 mil títulos a única coisa que querem dizer aos políticos, em tempo de campanha, é de que "estão fartos deles".
"Andou um ano inteiro às voltas e conseguiu. Fez pedidos pela internet. Só estava a pensar em 10 mil livros mas agora já são 16 mil". Estes livros todos acomodados numa casa onde no passado foi o sítio onde se ferravam os animais. Quem o diz é Montsé Gonzalez, uma das 9 pessoas da aldeia que também ajudou a recolher tantos livros.
"Muitos nos diziam que tinham duzentos e que os fossemos buscar. Em casas particulares, de heranças, de Navarra também deram alguns, de outros lados mas tivemos que os ir buscar a todos, foi muito trabalho". Um trabalho compensado com uma inauguração com pompa e circunstância vai há pouco mais de uma semana. Depois de tudo isso, o alcaide foi de férias para um merecido descanso.
Na biblioteca encontrámos Célia Navarra. Nasceu e cresceu na pequena aldeia. Está orgulhosa de tudo. Trabalha em Burgos mas sempre que pode vai ali dar "uma mãozinha". Primeiro têm que se registar os livros e depois é que se pode levar. Neste momento estou a tomar notas dos livros que faltam registar para depois serem alugados", diz.
A excêntrica biblioteca está sempre aberta e qualquer um pode ir buscar ou levar um livro, acrescenta Célia Navarro. "Sim, claro! Pode levar um livro que goste ou que precise. Isto vai estar aberto todo o dia, à disposição de quem passe ou de quem venha de propósito".
E por aqui, nesta pequena nova terra aculturada por estes 16 mil títulos a única coisa que querem dizer aos políticos, em tempo de campanha, é de que "estão fartos deles".
quarta-feira, junho 29
Na onda das minipraças
Assinado pelo coletivo formado pelos escritórios Zoom, H2C, SuperLimão, Contain It e IMV, o projeto da Rua Mateus Grou, em São Paulo, envolveu os moradores da região, que elegeram a troca de livros como prática essencial para o lugar
A lâmpada incandescente morreu
Quem vai aquecer as noites de friaca? Quem embalava a leitura com sua luz amarelecida vai nos deixar. Os tempos ordenam que sejamos mais econômicos também nos gastos de iluminação. Talvez, quem sabe, para gastarmos mais com caros livros só possíveis de ler sob luzes fluorescentes ou de LED. As noites de leitura serão devidamente econômicas e iluminadas pela frieza da modernidade.
Com o passar dos anos, nestes tempos moderníssimos, bate esta nostalgia de luz e sombras. A lâmpada que nos iluminava uma pequena área para ler e esquentava os abajures (ainda existirão?). O resto do espaço ia se desfazendo em sombras até a escuridão. O breu tão perto era o reino da imaginação ainda mais quando os olhos percorriam histórias de suspense. No escuro, passavam personagens e cenários em preto&branco como também nos cinemas ainda era tudo p&b.
Agora a companheira lâmpada será compulsoriamente aposentada para acabar também com essa ambientação para a leitura à meia luz, expressão que também se vai longe com tanta claridade técnica e tanta escuridão ainda nas gentes.
É preciso urgentemente guardar uma lâmpada incandescente, ou duas, ou três, sabe-se lá quantas, para que nossas leituras não se percam insossas sem ambiente amarelecido. Cuidar bem dessas remanescentes para que possam ainda durar até quando nós duremos para que não se apague também esse claro e escuro em que convivemos mesmos que tudo seja friamente iluminado.
Com o passar dos anos, nestes tempos moderníssimos, bate esta nostalgia de luz e sombras. A lâmpada que nos iluminava uma pequena área para ler e esquentava os abajures (ainda existirão?). O resto do espaço ia se desfazendo em sombras até a escuridão. O breu tão perto era o reino da imaginação ainda mais quando os olhos percorriam histórias de suspense. No escuro, passavam personagens e cenários em preto&branco como também nos cinemas ainda era tudo p&b.
Gretchen Deahl |
Quantas leituras ambientadas sob as velhas incandescentes? As noites de leitura ganhavam clima adequado sob aquela luz como nos filmes.
Agora a companheira lâmpada será compulsoriamente aposentada para acabar também com essa ambientação para a leitura à meia luz, expressão que também se vai longe com tanta claridade técnica e tanta escuridão ainda nas gentes.
É preciso urgentemente guardar uma lâmpada incandescente, ou duas, ou três, sabe-se lá quantas, para que nossas leituras não se percam insossas sem ambiente amarelecido. Cuidar bem dessas remanescentes para que possam ainda durar até quando nós duremos para que não se apague também esse claro e escuro em que convivemos mesmos que tudo seja friamente iluminado.
terça-feira, junho 28
Quatro características dos amantes de livros
Pessoas que não estão acostumadas com a leitura podem não entender o valor que cada um dos livros tem. Entendem que, por trás das obras, há um crescimento para o leitor, por meio da aprendizagem de novos assuntos.
2 – Leem como hobbie
Principalmente durante o período escolar, muitos estudantes leem por causa de provas ou exigências dos professores. No entanto, aqueles que verdadeiramente se identificam com a leitura, acrescentam a prática no dia a dia. É comum encontrar uma pessoa que goste livros lendo durante o final de semana, por exemplo.
3 – Passam a escrever melhor
Ler bastante faz com que o leitor tenha mais familiaridade com a língua materna e, consequentemente, passam a escrever melhor. O contato frequente com os livros pode fazer com que o estudante entenda melhor as estruturas do português e consiga criar um estilo próprio no momento da escrita.
4 – Dificilmente têm um livro favorito
Por terem o hábito de ler muito, estão sempre entrando em contato com novas obras, dificultando escolher apenas uma como a melhor de todas. Geralmente, por lerem gêneros diferentes, torna-se difícil comparar um livro com o outro.
2 – Leem como hobbie
Principalmente durante o período escolar, muitos estudantes leem por causa de provas ou exigências dos professores. No entanto, aqueles que verdadeiramente se identificam com a leitura, acrescentam a prática no dia a dia. É comum encontrar uma pessoa que goste livros lendo durante o final de semana, por exemplo.
3 – Passam a escrever melhor
Ler bastante faz com que o leitor tenha mais familiaridade com a língua materna e, consequentemente, passam a escrever melhor. O contato frequente com os livros pode fazer com que o estudante entenda melhor as estruturas do português e consiga criar um estilo próprio no momento da escrita.
4 – Dificilmente têm um livro favorito
Por terem o hábito de ler muito, estão sempre entrando em contato com novas obras, dificultando escolher apenas uma como a melhor de todas. Geralmente, por lerem gêneros diferentes, torna-se difícil comparar um livro com o outro.
Receita para leitor
Tem que frequentar livrarias, bibliotecas, feiras de livro, seminários, congressos e bate-papo em cafés. Brigar por um livro raro, conseguir emprestado aquele exemplar magnífico, juntar dinheiro para comprar o livro que não vê a hora de ler. Ouvir com carinho e cuidado qualquer definição de literaturaStela Maris Rezende, "esses livros dentro da gente"
Um eBook de fracasso
O atual modelo de livro digital foi originalmente proposto pela Amazon para alimentar seu Kindle, e num segundo momento foi adotado pela Apple para seus Ipads e Iphones. Somente depois é que foi adaptado por diferentes empresas para diferentes operações comerciais, gerando essa diversidade mundial de distribuidores e vendedores desse modelo de livro digital, mais conhecido por e-book, e que tem o formato e-pub como ponto de partida em seus arquivos digitais.
Até aí, imagino, muitos deverão estar de acordo, porém essa curtíssima história do e-book permite também um outro olhar sobre o significado desse modelo de leitura de conteúdo digital.
O fato é que esse formato nada mais do que transfere, se não de todo, boa parte da tarefa editorial e livreira para as mãos de poucos, e na maioria conglomerados estrangeiros, agentes de negócios. Ou seja, excetuando a criação editorial (o que não ocorre na autopublicação da Amazon, que entrega o serviço para o word da Microsoft) e a literária, todo o resto passa para as mãos de outras empresas que não aquelas que geraram o produto,
E por isso, sobretudo por isso, é que o modelo atual não sairá jamais do seu patamar de vendas. Não há como. Desde a fabricação de seu mais indicado suporte físico para leitura e arquivamento, no caso do Kindle e assemelhados, até a forma de recolhimento e gerenciamento das vendas, terminam por alijar boa parcela da uma indústria milenar, que embora tenha sido afetada pelas mudanças tecnológias, ainda não foi comprovada sua superação ou obsolescência.
É de se acreditar em novos formatos, como o tal “streaming” ou clube digital de leitura, a exemplo da Elefante Letrado e Nuvem de Livros, que por si são mais seguros e nitidamente mais eficazes em trazer o livro digitalizado para o leitor. Nesses, não há a possibilidade de se comprar algo e se perder porque seu aparelho quebrou ou um “bug” arrebentou com os arquivos de livros adquiridos.
Que me perdoem os mais afoitos, mas o modelo de e-book é um fracasso, e não passa de uma versão requentada para dizer que o livro poderia sair mais barato porque dispensava o custo de papel e o frete, além de impostos. O que é uma besteira das grandes. O passar dos anos mostrou claramente: as editoras, os autores e até os editores, ao verem os preços dos livros em formato e-book não ficarem muito distantes do papel, aperceberam-se do engodo que era o tal e-book.
Um outro raciocínio que pesa nesse precipício, é que os livros deixaram de ser atrativos para o mercado financeiro global. O estranho mercado editorial e livreiro sempre dado a consignações, devoluções, vendas independentes, bibliotecas e até revendas de usados e seminovos (nossos queridos e estimados sebos), mostraram aos investidores que um livro jamais seria como os celulares, televisores, máquinas de café e até o tal leitor digital (sic).
E aí está, muito possivelmente, o principal problema do modelo de e-book existente e que ainda provocará muita conversa em torno de sua inutilidade e desserviço à cultura. Sua invenção, em verdade, não foi necessariamente para democratizar a leitura, foi antes para atiçar os barões da especulação acionária, a exemplo do pré-histórico CD, que gerou fortunas e pouco tempo depois afundou a indústria da música que até hoje não se recuperou totalmente.
A boa nova é que os amantes do livro não caíram no engodo do descartável, e o leitor, o principal alvo disso tudo, não se deixou levar pelo afã midiático e tecnológico. Prova maior é a estagnação das vendas de e-books e o fato de que os principais defensores do fim do livro hoje assumem: o tal e-book é nada mais do que uma opção à leitura diante do livro em papel, e jamais o substituirá.
Paulo Tedesco
Até aí, imagino, muitos deverão estar de acordo, porém essa curtíssima história do e-book permite também um outro olhar sobre o significado desse modelo de leitura de conteúdo digital.
E por isso, sobretudo por isso, é que o modelo atual não sairá jamais do seu patamar de vendas. Não há como. Desde a fabricação de seu mais indicado suporte físico para leitura e arquivamento, no caso do Kindle e assemelhados, até a forma de recolhimento e gerenciamento das vendas, terminam por alijar boa parcela da uma indústria milenar, que embora tenha sido afetada pelas mudanças tecnológias, ainda não foi comprovada sua superação ou obsolescência.
É de se acreditar em novos formatos, como o tal “streaming” ou clube digital de leitura, a exemplo da Elefante Letrado e Nuvem de Livros, que por si são mais seguros e nitidamente mais eficazes em trazer o livro digitalizado para o leitor. Nesses, não há a possibilidade de se comprar algo e se perder porque seu aparelho quebrou ou um “bug” arrebentou com os arquivos de livros adquiridos.
Que me perdoem os mais afoitos, mas o modelo de e-book é um fracasso, e não passa de uma versão requentada para dizer que o livro poderia sair mais barato porque dispensava o custo de papel e o frete, além de impostos. O que é uma besteira das grandes. O passar dos anos mostrou claramente: as editoras, os autores e até os editores, ao verem os preços dos livros em formato e-book não ficarem muito distantes do papel, aperceberam-se do engodo que era o tal e-book.
Um outro raciocínio que pesa nesse precipício, é que os livros deixaram de ser atrativos para o mercado financeiro global. O estranho mercado editorial e livreiro sempre dado a consignações, devoluções, vendas independentes, bibliotecas e até revendas de usados e seminovos (nossos queridos e estimados sebos), mostraram aos investidores que um livro jamais seria como os celulares, televisores, máquinas de café e até o tal leitor digital (sic).
E aí está, muito possivelmente, o principal problema do modelo de e-book existente e que ainda provocará muita conversa em torno de sua inutilidade e desserviço à cultura. Sua invenção, em verdade, não foi necessariamente para democratizar a leitura, foi antes para atiçar os barões da especulação acionária, a exemplo do pré-histórico CD, que gerou fortunas e pouco tempo depois afundou a indústria da música que até hoje não se recuperou totalmente.
A boa nova é que os amantes do livro não caíram no engodo do descartável, e o leitor, o principal alvo disso tudo, não se deixou levar pelo afã midiático e tecnológico. Prova maior é a estagnação das vendas de e-books e o fato de que os principais defensores do fim do livro hoje assumem: o tal e-book é nada mais do que uma opção à leitura diante do livro em papel, e jamais o substituirá.
Paulo Tedesco
segunda-feira, junho 27
Somos imigrante de nós
A leitura faz imigrantes de todos nós. Ele nos leva longe de casa, mas o mais importante, encontra casas para nós em todos os lugares
Jean Rhys
Livro é questão de saúde pública
Livros divertem, instruem, transmitem sabedoria, levam-nos através do tempo, do espaço e do sonho, guardam memórias, apuram o senso estético. Livros trazem outro benefício, pouco divulgado, de suma importância. São questão de saúde pública. Isso mesmo. Saúde pública.
Cientistas em todo o mundo comprovaram que quem lê muito, sobretudo ficção (romances, contos, novelas, poesia), isto é, quem exercita bastante a imaginação, tende a ter menos a doença de Alzheimer. Em outras palavras, a leitura ajuda a evitar que a gente fique gagá. Parece que, igual a outros órgãos, quanto mais se ativam os miolos, melhor eles agem e reagem. Posto de outra maneira, livro é musculação para o cérebro: deixa os neurônios saradaços. Você pode comprovar em sua família. Provavelmente seus avós e bisavós que liam muito chegaram à velhice bem lúcidos. Velhice e lucidez todo mundo quer. As alternativas não são nada agradáveis.
Os benefícios do livro não param por aí. A leitura atua em regiões do cérebro, situadas no meio e na parte de trás da cabeça, ligadas à imaginação e à visão, enquanto os filmes e a televisão agem apenas na parte posterior, vinculada ao córtex visual. É como se a leitura criasse um filme em nossa mente e nós, ao mesmo tempo em que criamos o filme, também assistíssemos à sua exibição. No futebol, seria como bater o escanteio e correr para cabecear no gol.
Cientistas em todo o mundo comprovaram que quem lê muito, sobretudo ficção (romances, contos, novelas, poesia), isto é, quem exercita bastante a imaginação, tende a ter menos a doença de Alzheimer. Em outras palavras, a leitura ajuda a evitar que a gente fique gagá. Parece que, igual a outros órgãos, quanto mais se ativam os miolos, melhor eles agem e reagem. Posto de outra maneira, livro é musculação para o cérebro: deixa os neurônios saradaços. Você pode comprovar em sua família. Provavelmente seus avós e bisavós que liam muito chegaram à velhice bem lúcidos. Velhice e lucidez todo mundo quer. As alternativas não são nada agradáveis.
É assim que a leitura funciona. Excita nossa cabeça, deixa-nos saudáveis por mais tempo. Isso explica, ainda, porque a leitura exige um pouquinho mais de esforço. Mas o resultado compensa. Compensa não apenas na diversão, no entretenimento, no conhecimento adquirido. Na saúde também. Saúde pública.
domingo, junho 26
O leitor é um escritor
Decerto, ler não dói .
Deborah Dewit |
A arte da vida nas histórias
Gosto de ouvir histórias e de ler histórias.
Sempre gostei de ouvir e de ler histórias.
Muitas vezes gosto ainda mais de tocar, sentir o sabor e até mesmo o perfume de histórias reencontradas em objetos antigos e lances de dados perdidos em meus armários, estantes, gavetas, com amigos que revejo após longo tempo sem convivência, quando então memória e vida se condensam e despertam mais uma página do romance que escrevemos pelo prosseguir da existência.
Ouço, leio, cheiro, seguro e me alimento de histórias.
Interrogo histórias.
José Arrabal
A paixão da leitura
Nesta época tardia da história do mundo, encontram-se livros por toda parte da casa – no quarto das crianças, na sala de estar, na sala de jantar, na cozinha. E, em algumas casas, eles aumentaram tanto que têm que ser acomodados num aposento exclusivo. Romances, poemas, histórias, memórias, livros caros em couro, livros baratos em brochura – detemo-nos diante deles e, num assombro passageiro, perguntamos: que prazer extraímos ou que proveito tiramos ao percorrer com os olhos essas inumeráveis linhas em letra de imprensa? Ler é uma arte muito complexa – é o que nos revelará até mesmo o exame mais apressado de nossas sensações como leitores. E nossas obrigações como leitores são muitas e variadas. Mas talvez se possa dizer que nossa primeira obrigação para com um livro é que devemos lê-lo pela primeira vez como se o tivéssemos escrevendo.
Para começar, devemos nos sentar no banco dos réus e não na poltrona do juiz. Devemos, nesse ato de criação, não importa se bom ou ruim, ser cúmplices do escritor. Pois cada um desses livros, não importando o gênero ou a qualidade, representa um esforço para criar algo. E nossa primeira obrigação como leitores é tentar entender o que o escritor está fazendo, desde a primeira palavra com que compõe a primeira frase até a última com que termina o livro. Não devemos impor-lhe nosso plano, não devemos tentar fazer com que sua vontade se conforme à nossa. Devemos deixar que Defoe seja Defoe e que Jane Austen seja Jane Austen tão livremente quanto deixamos que o tigre tenha seu pelo e a tartaruga sua carapaça. E isso é muito difícil. Pois uma das qualidades da grandeza consiste em deixar que o céu e a terra e a natureza se conformem à visão que lhes é própria. Os grandes escritores exigem, assim, que façamos frequentes e heroicos esforços para lê-los corretamente. Eles nos vergam, eles nos quebram. Ir de Defoe a Jane Austen, de Hardy a Peacock, de Trollope a Meredith, de Richardson a Rudyard Kipling é ser torcido e distorcido, é ser jogado violentamente para um lado e para o outro. E isso vale também para os escritores menores.
Cada um deles é singular; cada um tem uma visão, uma experiência, uma característica própria que pode entrar em conflito com a nossa, mas que devemos permitir que se expresse plenamente se quisermos fazer-lhe justiça. E os escritores que mais têm para nos oferecer são, muitas vezes, os que mais violentam os nossos preconceitos, particularmente se são nossos contemporâneos, de maneira que precisamos de toda a imaginação e compreensão se quisermos tirar o máximo proveito daquilo que eles podem nos oferecer. Mas ler, como sugerimos, é um ato complexo. Não consiste simplesmente em estar em sintonia e compreender. Consiste, também, em criticar e em julgar. O leitor deve deixar o banco dos réus e se acomodar na poltrona do juiz. Deve deixar de ser amigo; deve se tornar juiz. E este segundo processo, que podemos chamar de processo pós-leitura, pois é, frequentemente, realizado sem termos o livro à nossa frente, proporciona um prazer ainda mais sólido do que o obtido quando estamos virando as páginas.
Durante a leitura, novas impressões estão sempre anulando ou completando as velhas. Deleite, raiva, enfado, riso se alternam, enquanto lemos sem parar. O julgamento fica em suspenso, pois não podemos saber o que está por vir. Mas agora o livro acabou. Tomou uma forma definitiva. E o livro como um todo é diferente do livro há pouco absorvido em variadas e diferentes partes. Ele tem uma forma, ele tem um ser. E essa forma, esse ser, pode ser retido na mente e comparado com a forma de outros livros e se lhe pode atribuir o seu próprio tamanho e insignificância em comparação com os deles. Mas se esse processo de julgar e decidir está cheio de prazer, está também cheio de dificuldades.
Não se pode esperar muita ajuda do exterior. Críticos e resenhas críticas abundam, mas ler as opiniões de outra mente não ajuda muito quando a nossa ainda está fervendo de um livro que acabamos de ler. É só depois que formamos nossa opinião que as opiniões dos outros se mostram mais esclarecedoras. É quando podemos defender nosso próprio julgamento que obtemos o máximo do julgamento dos grandes críticos – os Johnson, os Dryden e os Arnold. Para que possamos tomar nossa decisão, a melhor forma de ajudarmos a nós mesmos é, primeiro, compreender tão completa e exatamente quanto possível a impressão que o livro deixou e, depois, comparar essa impressão com as impressões que formulamos no passado. Elas estão ali, penduradas no armário da mente – as formas dos livros que já lemos, como roupas que tiramos e penduramos à espera da estação adequada.
Assim, se acabamos de ler pela primeira vez, digamos, Clarissa Harlowe, nós o pegamos e deixamos que se mostre contra a forma que continua em nossa mente desde que lemos Ana Karenina. Colocamos os dois lado a lado e, imediatamente, as silhuetas dos dois livros aparecem recortadas uma contra a outra tal como o canto de uma casa (para mudar de figura) aparece recortado contra a plenitude da lua cheia. Contrastamos as características salientes de Richardson com as de Tolstói. Contrastamos a sua obliquidade e verbosidade com a brevidade e a falta de rodeios de Tolstói.
Perguntamo-nos por que cada escritor escolheu um ângulo tão diferente de abordagem. Comparamos a emoção que sentimos em diferentes crises de seus livros. Especulamos sobre as diferenças entre o século dezoito na Inglaterra e o século dezenove na Rússia – mas as questões que se insinuam assim que juntamos os livros não têm fim. Assim, por etapas, fazendo perguntas e respondendo-as, descobrimos que decidimos que o livro que acabamos de ler é deste tipo ou do outro, que tem este ou aquele nível de mérito, toma o seu lugar neste ou naquele ponto na literatura como um todo.
E se somos bons leitores julgamos, assim, não apenas os clássicos e as obras-primas dos mortos, mas prestamos aos escritores vivos o cumprimento de compará-los como devem ser comparados: com o padrão dos grandes livros do passado. Assim, pois, quando os moralistas nos perguntam o que ganhamos quando nossos olhos percorrem essa pilha de páginas impressas, podemos responder que estamos fazendo nossa parte como leitores no processo de colocar obras-primas no mundo. Estamos fazendo nossa parte na tarefa criativa – estamos estimulando, encorajando, rejeitando, mostrando nossa aprovação ou desaprovação; e estamos, assim, testando e incentivando o escritor. Esta é uma das razões para se ler livros – estamos ajudando a trazer livros bons ao mundo e a tornar os ruins impossíveis.
Mas essa não é a real razão. A real razão continua inescrutável – a leitura nos dá prazer. É um prazer complexo e um prazer difícil; varia de época para época e de livro para livro. Mas ele é suficiente. Na verdade, o prazer é tão grande que não se pode ter dúvidas de que sem ele o mundo seria um lugar muito diferente e muito inferior ao que é. Ler mudou, muda e continuará mudando o mundo. Quando o dia do juízo final chegar e todos os segredos forem revelados, não devemos ficar surpresos ao saber que a razão pela qual evoluímos do macaco ao homem, e deixamos nossas cavernas e depusemos nossos arcos e flechas e sentamos ao redor do fogo e conversamos e demos aos pobres e ajudamos os doentes, a razão pela qual construímos, partindo da aridez do deserto e dos emaranhados da floresta, abrigos e sociedades, é simplesmente esta: nós desenvolvemos a paixão da leitura.
Virginia Woolf
sábado, junho 25
A arte entre Cervantes e Shakespeare
Admiro a arte, todo tipo de arte, da escultura à pintura, da música à dança. Frequentei espetáculos, exposições e museus em diversos países. Escrevi dois romances que acompanham os movimentos de composições, uma de Bach, outra de Albinoni. Em outro romance, contei como é gostoso comer um quadro de Pollock.
No entanto, somos seres feitos de palavras. A palavra moldou nosso cérebro, literalmente. Ela lubrifica nossos neurônios, com ela nos comunicamos a maior parte do tempo, sobretudo através dela transmitimos nossa experiência, nossa história, nossos acertos e erros. A palavra criou-nos, e a literatura é a quintessência da palavra. Somos, em suma, fruto da literatura. Disseram, inclusive, que Shakespeare inventou o humano, feito digno dos grandes heróis míticos. O Velho Bardo desacorrentou Prometeu.
Preocupa-me a importância cada vez menor que temos dado à literatura no Brasil. Ficamos menores, cada vez mais pobres intelectualmente, mais tacanhos. Cada vez mais, cultuamos a mediocridade. A cultura da mediocridade leva à mediocridade da cultura.
Sim, claro, existem investimentos do Estado em livros, há campanhas de leitura, porém são atividades pontuais, efêmeras. No Brasil de hoje, a cultura não dura. O país se guia pela mídia e pelos grandes mecenas, e a mídia e os grandes mecenas relegaram a literatura a plano secundário, como se pudéssemos prescindir das palavras, como se computadores e televisão vivessem sem palavras, como se ideias surgissem sem palavras, como se o futuro brotasse sem palavras, como se a reflexão sobre o ser humano acontecesse sem a literatura. Até os jornais e revistas atiram nos próprios pés quando diminuem o espaço dado aos livros, ajudando a cassar o gosto pela leitura.
Diego Velázquez talvez tenha sido o mais genial pintor espanhol. Passo horas a admirar sua obra-prima, o quadro As Meninas, cuja beleza, humor e complexidade me encantam. No entanto, um contemporâneo dele, Miguel de Cervantes, escreveu Dom Quixote. Há quatrocentos anos, quem nos diz mais a respeito de seu tempo, de nós mesmos, de nossa dimensão, de nossa transitoriedade e permanência, de nossa fantasia, de nossa humanidade? Quem? Velázquez ou Cervantes?
No entanto, somos seres feitos de palavras. A palavra moldou nosso cérebro, literalmente. Ela lubrifica nossos neurônios, com ela nos comunicamos a maior parte do tempo, sobretudo através dela transmitimos nossa experiência, nossa história, nossos acertos e erros. A palavra criou-nos, e a literatura é a quintessência da palavra. Somos, em suma, fruto da literatura. Disseram, inclusive, que Shakespeare inventou o humano, feito digno dos grandes heróis míticos. O Velho Bardo desacorrentou Prometeu.
Sim, claro, existem investimentos do Estado em livros, há campanhas de leitura, porém são atividades pontuais, efêmeras. No Brasil de hoje, a cultura não dura. O país se guia pela mídia e pelos grandes mecenas, e a mídia e os grandes mecenas relegaram a literatura a plano secundário, como se pudéssemos prescindir das palavras, como se computadores e televisão vivessem sem palavras, como se ideias surgissem sem palavras, como se o futuro brotasse sem palavras, como se a reflexão sobre o ser humano acontecesse sem a literatura. Até os jornais e revistas atiram nos próprios pés quando diminuem o espaço dado aos livros, ajudando a cassar o gosto pela leitura.
Diego Velázquez talvez tenha sido o mais genial pintor espanhol. Passo horas a admirar sua obra-prima, o quadro As Meninas, cuja beleza, humor e complexidade me encantam. No entanto, um contemporâneo dele, Miguel de Cervantes, escreveu Dom Quixote. Há quatrocentos anos, quem nos diz mais a respeito de seu tempo, de nós mesmos, de nossa dimensão, de nossa transitoriedade e permanência, de nossa fantasia, de nossa humanidade? Quem? Velázquez ou Cervantes?
Ler e beber
Maria do Rosário Pedreira
sexta-feira, junho 24
Lição de borboleta
Acontece é que sempre torna a evadir-se, sem nenhuma coordenação motora, no vacilante trajeto dos bêbados, descaindo, levantando-se, contundindo-se nos muros. Flor não sabe voar como os pássaros sabem. Por isso são desajeitadas as borboletas, o vôo em ziguezague, os zigues às vezes mais compridos do que os zagues e às vezes os zagues mais compridos do que os zigues. Se não, não tinha graça. Borboleta voando, reta, certa, como os pássaros. Para mim não teria a menor beleza. A beleza está no aprendizado impossível: de chegarem a voar como os passarinhos. Veja: eu teria até medo se as crianças também, ao invés de aprenderem a andar, saíssem andando firmemente como as pessoas grandes quando não são muito velhinhas ou não tomam vinhos. O menino levantando-se do berço e sem vacilar andando em linha firme na direção do banheiro para fazer seu pipi. Não, o bom é o cair, é o levantar, é o aprender por si mesmo. Olha, olha aquela borboleta azul, a flor movendo-se no ar que começa a encher-se de sol. Será uma begônia, uma petúnia, um crisântemo? Se você prestar atenção, verá que em suas asas, ou em suas pétalas, ainda persiste o orvalho de ainda há pouco.Haroldo Maranhão
Minhas livrarias
O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de livrarias mortas por todos os lados, um cemitério de livros que jamais serão lidos, de palavras que para sempre assim jazerão, algumas estranhas, outras peremptoriamente compridas, mas lindas, todas agora esquecidas sem qualquer olho que lhes bata em cima, sem qualquer língua que as jogue de novo no meio da rua.
Em mais uma pá de cal atirada pela falta de sensibilidade geral que à raça carioca grassa, a cidade sem letras sepulta a Leonardo da Vinci na caverna onde já estava moribunda, nas catacumbas insalubres do Marquês do Herval. O prédio virou cenário preto e branco da penúria municipal. Ali não se consegue vender nem livro para colorir. Os ratos de livraria sumiram.
Uma vez, ali no subsolo, nos tempos idos de 1970, eu folheava as páginas do “Women are beautiful”, um livro com a espetacular coleção de fotos de Garry Winogrand, e na necessidade urgente de compartilhar aquelas imagens, uma saraivada de mulheres flagradas de um jeito requintadamente desorganizado pelas ruas de Nova York, eu olhei para o lado. Lá estava Drummond, a quem eu conhecia de vista. Mostrei-lhe uma das fotos, sem dizer palavra, e ele reagiu da mesma maneira, apenas com um sorrisinho discreto, uma maneira de dizer que havia gostado, sim, tudo bem, meu jovem, mas que gostava mesmo era de entrar numa livraria e ali permanecer em paz.
Isso foi no tempo do silêncio, das carruagens dos vice-reis estacionadas no Cais Pharoux, no século das livrarias sem café e sem seção de papelaria vendendo Moleskine, esses truques cada vez mais necessários à sobrevivência da espécie. A Da Vinci, na crença antiga de que um país se faz apenas com homens e livros, desconsiderou as artimanhas. Morreu na contramão das tendências, atrapalhando ainda mais o tráfego na Rio Branco, esfaqueada pela casmurrice de não vender autoajuda, de não vender lápis de cor para recolorir Monet — e todas as demais maldições comerciais que agora lhe servem de lápide no grande cemitério carioca de brochuras, capas duras, pockets, primeiras edições autografadas, encadernações em couro e lombadas bordadas a ouro.
Descanse em paz no limbo da falta de memória e do afeto gentil, onde já estão a José Olympio, a Kosmos, a Muro, a Brasileira, a Francisco Alves, a 7 Letras, os sebos da Tiradentes e todo um tipo de vida que não existe mais. Se é bom, se é ruim, se não é melhor uma biblioteca inteira dentro do Kindle, por favor, pergunte ao João — mas o programa da Rádio Jornal do Brasil, na voz-trovão do Majestade, também acabou. Dê um Google. Durma-se com o aparente inevitável dessas coisas.
Foram-se o pé de jambo, o Caporal Amarelinho, o guarda-noturno, a anágua engomada, o verbo escorreito, o hímen complacente e agora, uma depois da outra, lá se estão indo as lojas de tijolos que vendiam livros de papel. As lágrimas pelo seu desaparecimento são cada vez mais discretas. No início do ano, sem qualquer linha nos jornais, fechou na Rua Miguel Couto a livraria Padrão. Se não fosse um velhinho que saía do sassarico na porta da Colombo e, colegamente, veio me informar, ninguém mais teria notado o desaparecimento deste outro canapé com groselha da civilização local.
Eram livrarias sem marketing, sem programação visual. O livreiro Rui Campos, da vitoriosa Travessa, lembra de ter passado dez anos seguidos pela vitrine da “Glem”, na Senador Dantas, e nesse tempo todo estar sempre lá o exemplar taciturno, jamais comprado, a cada dia mais empoeirado, de “O testículo humano”. Na Rua México, na Galáxia, o amor de Lucien Zahar por seus livros era enorme. Ele não só cobria as bancadas com uma capa de plástico como, ao avesso das livrarias de hoje, cheias de poltronas acolhedoras, espanava quem ficasse muito tempo mexendo nos livros.
O livreiro era um personagem da cidade. Papa-léguas vendia livros no chão dos pilotis da PUC. Na Rua São José, Carlos Ribeiro conversava na porta do seu sebo com Guimarães Rosa. Em Ipanema, Graça e Chico Neiva comandavam a Dazibao com bom humor. Nas redações dos jornais, Ademar França vendia pilhas de edições em papel bíblia com a obra completa em três volumes de Machado de Assis.
O livro era o iPhone que se usava para conversar com outras pessoas.
No mesmo período em que o colunista José Castello, do caderno Prosa, estava sendo surpreendido roubando um Julio Cortazar na Da Vinci, eu, literariamente mais conservador, afanava o que pudesse de Scott Fitzgerald das estantes da Civilização Brasileira, na Sete de Setembro. Escondia um exemplar embaixo da fralda da camisa e, como não havia câmera de segurança nem portas vigilantes, eu ia saindo da livraria discretamente, assim como quem não quer nada, o chapéu de lado, tamanco arrastando — mas o coração aos pulos. O risco valia a pena. Hoje, os ratos são os da Fifa. Ninguém mais quer roubar livros.
Joaquim Ferreira dos Santos
Em mais uma pá de cal atirada pela falta de sensibilidade geral que à raça carioca grassa, a cidade sem letras sepulta a Leonardo da Vinci na caverna onde já estava moribunda, nas catacumbas insalubres do Marquês do Herval. O prédio virou cenário preto e branco da penúria municipal. Ali não se consegue vender nem livro para colorir. Os ratos de livraria sumiram.
Carlos Drummond de Andrade na extinta Leonardo Da Vinci |
As obras do VLT cercaram a área, os camelôs tomaram a calçada, os assaltantes bateram a carteira de quem ainda a tinha e o resto ficou por conta do anúncio de que a próxima atração cultural é o livro de unir os pontinhos. Parece que no mundo todo tem sido assim. Ano passado foi a Rizzoli, em Nova York. Agora chegou a vez da Da Vinci, nas fraldas do Morro do Castelo. É a ordem da nova civilização digital: fechem as portas desse perfume antiquado e abafem o mau cheiro dos cupins.
Uma vez, ali no subsolo, nos tempos idos de 1970, eu folheava as páginas do “Women are beautiful”, um livro com a espetacular coleção de fotos de Garry Winogrand, e na necessidade urgente de compartilhar aquelas imagens, uma saraivada de mulheres flagradas de um jeito requintadamente desorganizado pelas ruas de Nova York, eu olhei para o lado. Lá estava Drummond, a quem eu conhecia de vista. Mostrei-lhe uma das fotos, sem dizer palavra, e ele reagiu da mesma maneira, apenas com um sorrisinho discreto, uma maneira de dizer que havia gostado, sim, tudo bem, meu jovem, mas que gostava mesmo era de entrar numa livraria e ali permanecer em paz.
Isso foi no tempo do silêncio, das carruagens dos vice-reis estacionadas no Cais Pharoux, no século das livrarias sem café e sem seção de papelaria vendendo Moleskine, esses truques cada vez mais necessários à sobrevivência da espécie. A Da Vinci, na crença antiga de que um país se faz apenas com homens e livros, desconsiderou as artimanhas. Morreu na contramão das tendências, atrapalhando ainda mais o tráfego na Rio Branco, esfaqueada pela casmurrice de não vender autoajuda, de não vender lápis de cor para recolorir Monet — e todas as demais maldições comerciais que agora lhe servem de lápide no grande cemitério carioca de brochuras, capas duras, pockets, primeiras edições autografadas, encadernações em couro e lombadas bordadas a ouro.
Descanse em paz no limbo da falta de memória e do afeto gentil, onde já estão a José Olympio, a Kosmos, a Muro, a Brasileira, a Francisco Alves, a 7 Letras, os sebos da Tiradentes e todo um tipo de vida que não existe mais. Se é bom, se é ruim, se não é melhor uma biblioteca inteira dentro do Kindle, por favor, pergunte ao João — mas o programa da Rádio Jornal do Brasil, na voz-trovão do Majestade, também acabou. Dê um Google. Durma-se com o aparente inevitável dessas coisas.
Foram-se o pé de jambo, o Caporal Amarelinho, o guarda-noturno, a anágua engomada, o verbo escorreito, o hímen complacente e agora, uma depois da outra, lá se estão indo as lojas de tijolos que vendiam livros de papel. As lágrimas pelo seu desaparecimento são cada vez mais discretas. No início do ano, sem qualquer linha nos jornais, fechou na Rua Miguel Couto a livraria Padrão. Se não fosse um velhinho que saía do sassarico na porta da Colombo e, colegamente, veio me informar, ninguém mais teria notado o desaparecimento deste outro canapé com groselha da civilização local.
Eram livrarias sem marketing, sem programação visual. O livreiro Rui Campos, da vitoriosa Travessa, lembra de ter passado dez anos seguidos pela vitrine da “Glem”, na Senador Dantas, e nesse tempo todo estar sempre lá o exemplar taciturno, jamais comprado, a cada dia mais empoeirado, de “O testículo humano”. Na Rua México, na Galáxia, o amor de Lucien Zahar por seus livros era enorme. Ele não só cobria as bancadas com uma capa de plástico como, ao avesso das livrarias de hoje, cheias de poltronas acolhedoras, espanava quem ficasse muito tempo mexendo nos livros.
O livreiro era um personagem da cidade. Papa-léguas vendia livros no chão dos pilotis da PUC. Na Rua São José, Carlos Ribeiro conversava na porta do seu sebo com Guimarães Rosa. Em Ipanema, Graça e Chico Neiva comandavam a Dazibao com bom humor. Nas redações dos jornais, Ademar França vendia pilhas de edições em papel bíblia com a obra completa em três volumes de Machado de Assis.
O livro era o iPhone que se usava para conversar com outras pessoas.
No mesmo período em que o colunista José Castello, do caderno Prosa, estava sendo surpreendido roubando um Julio Cortazar na Da Vinci, eu, literariamente mais conservador, afanava o que pudesse de Scott Fitzgerald das estantes da Civilização Brasileira, na Sete de Setembro. Escondia um exemplar embaixo da fralda da camisa e, como não havia câmera de segurança nem portas vigilantes, eu ia saindo da livraria discretamente, assim como quem não quer nada, o chapéu de lado, tamanco arrastando — mas o coração aos pulos. O risco valia a pena. Hoje, os ratos são os da Fifa. Ninguém mais quer roubar livros.
Joaquim Ferreira dos Santos
quinta-feira, junho 23
Livros e amigos, poucos, mas bons
O paraíso e outros infernos
Jorge Luis Borges morreu em Genebra, na Suíça, a 14 de junho de 1986. Já lá vão, portanto 30 anos. A efeméride tem servido para repetir frases batidas, do tipo, o escritor morreu, mas a obra é eterna. Disparate, claro. A eternidade já não é o que era, acho mesmo que não tem futuro. A triste verdade é que também os livros morrem. Morrem até mesmo antes de desaparecerem fisicamente: morrem quando deixam de ser lidos. Isso acontece, regra geral, poucas décadas após o desaparecimento dos respectivos autores. Sem sair do território lusófono basta pensar no português Fernando Namora (falecido em 1989) ou em José Mauro de Vasconcelos (falecido em 1984), cujos títulos, que conheceram imenso sucesso enquanto os respectivos autores eram vivos, estão hoje quase esquecidos.
Borges, felizmente, continua a ter leitores no mundo todo. As vendas, contudo, diminuíram. São raros os jovens — falo de jovens leitores, de grandes leitores — que conhecem a obra de Borges. Creio que Julio Cortázar, apenas para citar um outro escritor argentino, é hoje bastante mais popular no Brasil, entre os jovens, do que Borges. Consigo entender os motivos. Cortázar apresenta um lado lúdico explícito, de menino em férias, ao passo que Borges, embora nos tenha deixado páginas divertidíssimas, pode parecer, a um jovem leitor desprevenido, excessivamente formal e até mesmo um tanto maçador. Deve-se entrar na obra de Borges através da porta principal “Ficções”, e só depois ir descobrindo os restantes volumes de contos, o ensaio e a poesia (a poesia de Borges não é obrigatória).
Jorge Luis Borges gostava de se definir como um homem conservador. Gostava sobretudo de se parecer com um — todavia, assim que começava a pensar desabrochava nele um anarquista. É certo que, politicamente, defendeu causas e personalidades de extrema direita. Consta que a Academia Sueca se recusou a dar-lhe o Nobel na sequência da infeliz visita que Borges fez ao Chile, em 1976, durante a qual elogiou o ditador Augusto Pinochet. Ao longo da vida produziu também uma série de afirmações racistas, das quais nunca se mostrou arrependido. Ao mesmo tempo, contudo, desenvolveu uma filosofia singular, que nada tinha de conservadora. Sobre o Deus da Bíblia, por exemplo, reuniu uma fulgurante coleção de blasfêmias, entre contos e observações dispersas. Cito de memória: “Crer num Deus único parece-me uma miséria. Havendo tantos deuses, crer num só é um excesso de economia”.
Enquanto troçava dos escritores e artistas do seu tempo, que tanto se esforçavam em espantar a burguesia (“o burguês de tanto ser espantado está curado do assombro” — dizia) divertia-se a chocar quem quer que dele se aproximasse. Os seus comentários sobre Israel ainda hoje provocariam abalos sísmicos se fossem proferidos por um escritor vivo de idêntica estatura: “Estive duas vezes em Israel e, infelizmente, notei que são quase hitlerianos. A diferença é que eles não insistem na ideia de raça germânica mas na do povo judaico. A ideia do povo escolhido da Alemanha nazi não é outra coisa que a do povo escolhido dos hebreus, que Hitler tirou da Bíblia”.
Ou sobre o Corão: “O Corão é muito inferior às ‘Mil e uma noites’. Alá não estava tão inspirado quanto Sherazade”.
Borges não tinha medo de pensar. E porque não tinha medo de pensar não era nem de direita nem de esquerda, era alguém que inquietava. Hoje em dia, infelizmente, há por aí muitos escritores com medo de pensar — com medo do que os outros possam pensar sobre o seu pensamento — e por isso há tanta repetição de ideias. Tanta falta de ideias.
Há muitos anos escrevi um conto sobre Borges, a partir de uma frase muito conhecida do escritor: “Imagino o Paraíso como um lugar onde se dialoga. Como uma biblioteca”.
No meu conto, o escritor fecha os olhos em Genebra e desperta entre bananeiras. Algures perto dele uma mulher nua levita. Borges, que não nutria o menor afeto por paisagens tropicais, e nem tão pouco por belas mulheres levitantes, convence-se que despertou no Inferno. Ocorre-lhe depois que talvez Deus o tenha confundido com García Márquez e aquele seja o paraíso do colombiano. Então alegra-se: sendo certo que o paraíso de Márquez era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de ser certamente o inferno do outro. Não há Paraíso, afinal, que não seja também Inferno. O que para uns é maravilhoso, para outros afigura-se um perpétuo tédio ou um prolongado horror.
Espero sinceramente que Borges tenha despertado numa imensa biblioteca. Nessa biblioteca estarão os livros todos, escritos e por escrever. Estarão também os meus. Gosto de pensar que um dia Borges lerá aquele pequeno conto — e que a leitura dele o fará sorrir.
José Eduardo Agualusa
quarta-feira, junho 22
Grande aventura
Amédée de La Patellière |
A maior aventura de um ser humano é viajar,
E a maior viagem que alguém pode empreender
É para dentro de si mesmo.
E o modo mais emocionante de realizá-la é ler um livro,
Pois um livro revela que a vida é o maior de todos os livros,
Mas é pouco útil para quem não souber ler nas entrelinhas
E descobrir o que as palavras não disseram...
Augusto Cury
Ler é bom para acalmar a raiva e a ansiedde
Receitar um ansiolítico ainda não é o mesmo que receitar um livro, mas só porque o último não exige um papel com a assinatura do médico. De resto, é em tudo igual. A ideia arrancou este mês – Abril -, e parte da campanha Reading Well for Young People (ler bem para gente jovem), em Inglaterra.
The Perks of Being a Wallflower (As Vantagens de Ser Invisível), de Stephen Chbosky, por exemplo, é indicado para a ansiedade. A história é narrada por um rapaz introvertido e segue as suas inquietações enquanto tenta descobrir quem é. "Dá uma perspectiva positiva do mundo dos jovens, das suas ansiedades e problemas de baixa auto-estima", adianta Hicks. Aumentar o conhecimento, desenvolver a empatia e aprender a ser resiliente é o que um livro bem escolhido pode fazer.
As leituras podem ser recomendadas por profissionais de saúde mas também estão disponíveis online (readingagency.org.uk) para os pais ou para qualquer jovem que procure ajuda sozinho. Os livros levantam-se de forma gratuita nas bibliotecas públicas que se associaram à iniciativa.
Este não é um projeto totalmente novo para a Reading Agency, que tem ajudado adultos com doenças mentais e demência. Nos últimos dois anos já terão chegado a meio milhão de pessoas. Num inquérito recente, com uma centena de indivíduos consultados, concluíram que a iniciativa teve bons resultados: 90 por cento admitiu ter achado a leitura proveitosa, enquanto para 75 por cento o livro ajudou a gerir melhor as dificuldades da sua condição. Foram os pacientes com demência quem mais recorreu à iniciativa: as requisições de livros aumentaram 346%.
Membros do Royal College of Psychiatrists, da Mental Health Foundation e da Public Health England ajudaram a criar a lista de 35 títulos que incluem histórias reais, livros de auto-ajuda e outros, de ficção. Isso quer dizer que, agora, médicos de clínica geral, psicólogos ou enfermeiros podem recomendá-los. Servem para complementar outros tratamentos e terapias mas nunca para substituir os anteriores, lembra a The Reading Agency (agência da leitura). A iniciativa é da organização solidária que acredita que é possível viver melhor através das histórias. “A missão é inspirar as pessoas a lerem mais, encorajá-las a partilharem o seu gosto pela leitura e a celebrarem a diferença que faz nas nossas vidas”, explica Debbie Hicks, diretora criativa.
Auguste Baud-Bovy, 1848-1899 |
Na Grã-Bretanha, um em cada 10 jovens tem um problema mental diagnosticado e há cada vez mais adolescentes deprimidos, lembra a organização. Por isso, as sugestões de leituras são indicadas para problemas específicos como o bullying, a ansiedade ou o stress, o comportamento obsessivo-compulsivo e distúrbios como o autismo e outros desequilíbrios alimentares ou de imagem e auto-estima.
The Perks of Being a Wallflower (As Vantagens de Ser Invisível), de Stephen Chbosky, por exemplo, é indicado para a ansiedade. A história é narrada por um rapaz introvertido e segue as suas inquietações enquanto tenta descobrir quem é. "Dá uma perspectiva positiva do mundo dos jovens, das suas ansiedades e problemas de baixa auto-estima", adianta Hicks. Aumentar o conhecimento, desenvolver a empatia e aprender a ser resiliente é o que um livro bem escolhido pode fazer.
As leituras podem ser recomendadas por profissionais de saúde mas também estão disponíveis online (readingagency.org.uk) para os pais ou para qualquer jovem que procure ajuda sozinho. Os livros levantam-se de forma gratuita nas bibliotecas públicas que se associaram à iniciativa.
Este não é um projeto totalmente novo para a Reading Agency, que tem ajudado adultos com doenças mentais e demência. Nos últimos dois anos já terão chegado a meio milhão de pessoas. Num inquérito recente, com uma centena de indivíduos consultados, concluíram que a iniciativa teve bons resultados: 90 por cento admitiu ter achado a leitura proveitosa, enquanto para 75 por cento o livro ajudou a gerir melhor as dificuldades da sua condição. Foram os pacientes com demência quem mais recorreu à iniciativa: as requisições de livros aumentaram 346%.
Descoberta do mundo com as palavrs
Serge Carrere |
Era abril de 1953. Não sei quando eu nasci exatamente, mas neste dia eu nasci para as letras, ao descobrir que todas as palavras que eu desconhecia estavam sepultadas num livro grosso, que era como uma pessoa mais velha, muito mais velha do que meu avô, a quem a gente recorria em busca do que não sabia.
E silenciosamente o dicionário revelava o que procurávamos, tirando de cada jazigo daquele imenso cemitério a palavra que deveria viver de novo, nem que fosse por breves momentos. Eram pequenas ressurreições e brilhava em cada uma delas a centelha divina, pois quem, a não ser uma mente superior e generosa, poderia ter o projeto de guardar deste modo o saber para quando dele a gente precisasse?
Deonísio da Silva, "O dia em que um menino descobriu que o mundo era feito de palavras"
terça-feira, junho 21
Um livro
Sveta Dorosheva |
Um livro
É uma caixamágica
Só desurpresas!
Um Livro
parece mudo...
Mas nele a gente
descobre tudo!
Um livro tem asas,
longas e leves...
que de repente,
levam a gente,
longe, longe...
Um livro
é parque de diversões:
cheios de sonhos coloridos,
cheio de doces sortidos,
cheio de luzes e balões...
Um livro...
É uma floresta
com folhas e flores
e bichos e cores,
é mesmo uma festa!
Um navio pirata nomar,
um foguete perdido no ar,
é amigo é companheiro!
Elias José
A primeira gibiteca pública do mundo
A primeira gibiteca pública do mundo foi inaugurada em 1982, em Curitiba, por iniciativa do arquiteto Key Imaguire Jr. — e até hoje nenhum pesquisador internacional conseguiu refutar tal afirmação. Nos Estados Unidos, bibliotecas especializadas em quadrinhos que antecederam a Gibiteca de Curitiba eram orientadas a pesquisadores. Na Europa, todas as experiências similares se instalaram depois.
“O Centre Belge de la Bande Dessinée [de 1989] e a hoje conhecida como Cité Internationale de la Bande Dessinée [de 1984] foram as primeiras entidades europeias a dar um destaque especial às publicações de histórias em quadrinhos”, assinala o livre docente da Universidade de São Paulo (USP) Waldomiro Vergueiro. Para o pesquisador, tanto essas coleções presentes em Bruxelas e no Angoulême quanto suas equivalentes norte-americanas sempre tiveram a finalidade primeira de preservação da memória do meio. Ou seja, um interesse museológico.
O diferencial das gibitecas brasileiras, a começar pela de Curitiba, é o de “serem centros de cultura desenvolvidos em torno das histórias em quadrinhos, enquanto que no exterior elas não foram criadas mirando o leitor comum, mas o especialista, o estudioso e, em última instância, aquele que está envolvido diretamente na produção”, arremata Vergueiro,editor da revista 9ª Arte e do Observatório de Histórias em Quadrinhos da USP.
“A Gibiteca de Curitiba é uma agregadora de linguagens. Reúne contadores de histórias, artistas visuais, jogadores de RPG, fãs de Star Trek, cosplayers, leitores de steampuk”, diz o quadrinista José Aguiar. Pela Gibiteca circulam figuras que se interessam por todas as artes. Aguiar conta que já viu circulando pelo espaço o escritor Luis Fernando Verissimo, o cineasta Sylvio Back e o (sumido) compositor Belchior. Dos quadrinhos, topou recentemente com o britânico David Lloyd que, junto com Alan Moore, criou a HQ V de Vingança.
“O Centre Belge de la Bande Dessinée [de 1989] e a hoje conhecida como Cité Internationale de la Bande Dessinée [de 1984] foram as primeiras entidades europeias a dar um destaque especial às publicações de histórias em quadrinhos”, assinala o livre docente da Universidade de São Paulo (USP) Waldomiro Vergueiro. Para o pesquisador, tanto essas coleções presentes em Bruxelas e no Angoulême quanto suas equivalentes norte-americanas sempre tiveram a finalidade primeira de preservação da memória do meio. Ou seja, um interesse museológico.
“A Gibiteca de Curitiba é uma agregadora de linguagens. Reúne contadores de histórias, artistas visuais, jogadores de RPG, fãs de Star Trek, cosplayers, leitores de steampuk”, diz o quadrinista José Aguiar. Pela Gibiteca circulam figuras que se interessam por todas as artes. Aguiar conta que já viu circulando pelo espaço o escritor Luis Fernando Verissimo, o cineasta Sylvio Back e o (sumido) compositor Belchior. Dos quadrinhos, topou recentemente com o britânico David Lloyd que, junto com Alan Moore, criou a HQ V de Vingança.
segunda-feira, junho 20
Salvação na floresta
O homem que os precedera na feitoria havia deixado alguns livros, já muito estragados, e eles puseram-se a vasculhar naquele naufrágio de romances; como não tinham nunca lido nada desse gênero, ficaram surpreendidos e acharam a coisa divertida, Seguiram-se, então, durante muitos dias, intermináveis discussões a respeito de enredos e de Personagens. Ali, no centro da África, travaram conhecimento com Richelieu e D'Artagnan, com o Olho do Falcão, e com tio Goriot, e ainda outros figurões. Assim, alguns dos heróis de ficção se tornaram assuntos de conversa como se fossem criaturas de carne e osso; discutiam-lhes as virtudes, desmascaravam-lhes as façanhas; ou lhes vituperam a duplicidade do seu heroísmo. Os relatos de crimes enchiam os dois amigos de indignação, enquanto os episódios ternos ou comoventes quase os faziam chorar. Carlier pigarreava e dizias às vezes: "Que disparate!"Joseph Conrad, "Uma guarda avançada do progresso"
O sucesso do fracasso
Há algum tempo uma conhecida tela de Vincent van Gogh, "Rapaz de quepe", foi vendida por 15 milhões de dólares, Nada a estranhar. Um de seus girassóis estava cotado a 35 milhões. O espanto seria do próprio pintor, se pudesse presenciar um desses leilões. Van Gogh morreu em 1890 sem ter vendido um só quadro na vida. Não tinha dinheiro nem para comprar tinta. Perto de morrer, presenteou seu médico (esteve internado num sanatório) com uma tela que foi usada durante anos para tapar buraco num galinheiro. Um sujeito esperto passou por lá e comprou-a por uma bagatela Ficou rico.
Só muito mais tarde, nos anos 30 do século 20, é que fariam de Van Gogh um dos gigantes da pintura moderna. E Inês era morta havia muito. Pode-se dizer que algo parecido aconteceu com o poeta Fernando Pessoa, que vivia de biscates em escritórios contábeis de Lisboa, quase sem nenhum reconhecimento. Só depois de sepulto nos Jerônimos é que foram ver quem era: um dos maiores do século.
E aí me lembro da frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset: "O homem é ele próprio e sua circunstância". Transcrevo de memória, a forma podendo ser outra. Caso em que o sujeito pode ter todo o talento do mundo mas não ser favorecido pelo contexto. Pode ter nascido em lugar errado, entre pessoas que não o compreendem, ou até mesmo ter nascido antes da época, distante de seus verdadeiros contemporâneos.
Não é raro que, mesmo batendo contra muralhas de incompreensão, alguns desses estóicos mantenham a pose e a perspectiva. Fernando Pessoa parecia saber que escrevia para o futuro. Stendhal, escritor do século 19, achava que seus leitores estavam no século 20 (e tinha razão). Van Gogh pintou implacavelmente 900 telas em menos de 15 anos, o que seria impensável se ele não alimentasse uma rija fé em si mesmo
Os diários pessoais andam fora de moda, mas em Genebra houve um sujeito que no século passado preencheu 16 mil páginas de cadernos com anotações sobre sua tendência ao fracasso.
Aspirava à filosofia e à literatura, mas nunca teve coragem de se atirar para valer na feitura de um livro: contentava-se com notas, vinhetas, pequenos esboços. Invejava seus amigos que tinham mulher e filhos, mas nunca se casou, apesar das três ou quatro admiradoras que o cortejaram a vida toda. Teve sua primeira relação sexual aos 40 anos. Nem mesmo foi um grande professor, e ele era o primeiro a admitir que suas aulas eram tediosas.
"Irresolução, preguiça, inconstância, abatimento, pusilanimidade", escrevia ele aos 34 anos a.respeito de si mesmo. Aos 51: "A indecisão crônica esterilizou todas as minhas faculdades". E aos 60, no ano de sua morte: "Os vaivens da ilusão, as incertezas do desejo, os sobressaltos da esperança dão lugar à resignação tranquila". Em suma, considerava-se um fracasso consumado e parecia ser isso mesmo. Cuidava apenas de morrer sem mágoa. Nem obra, nem filhos, nem reconhecimento público. Conformismo, só isso.
Mas estava enganado. O genebrino Henri-Frédéric Amiel não estava destinado ao esquecimento, como supunha. Mal o sepultaram, seu diário começou a bater asas. Uma daquelas quatro amigas compilou e publicou urna primeira edição. O livro despertou uma enorme simpatia do público. Os milhares de leitores logo saltaram para milhões e hoje o livro está traduzido em todas as línguas cultas. É um clássico.
Ou seja, o repositório dos fracassos de Amiel, seu diário secreto, tornou-se o vetor de seu sucesso. Do ponto de vista histórico, Amiel é um vitorioso, assim como Van Gogh, Pessoa e Stendhal. Aqui no Brasil podemos dizer o mesmo de Lima Barreto e Sousândrade, escritores que não foram reconhecidos em suas épocas. O chato é que, para o artista morto, a vitória póstuma não existe, salvo se ele puder contemplar seus ouropéis de onde estiver (caso esteja) Mas é muito possível que, se assim for, já não dará importância à feira de vaidades armada por marchands, editores e leiloeiros.
Eustáquio Gomes
Só muito mais tarde, nos anos 30 do século 20, é que fariam de Van Gogh um dos gigantes da pintura moderna. E Inês era morta havia muito. Pode-se dizer que algo parecido aconteceu com o poeta Fernando Pessoa, que vivia de biscates em escritórios contábeis de Lisboa, quase sem nenhum reconhecimento. Só depois de sepulto nos Jerônimos é que foram ver quem era: um dos maiores do século.
Autófrago maior do que a obra, Miran |
E aí me lembro da frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset: "O homem é ele próprio e sua circunstância". Transcrevo de memória, a forma podendo ser outra. Caso em que o sujeito pode ter todo o talento do mundo mas não ser favorecido pelo contexto. Pode ter nascido em lugar errado, entre pessoas que não o compreendem, ou até mesmo ter nascido antes da época, distante de seus verdadeiros contemporâneos.
Não é raro que, mesmo batendo contra muralhas de incompreensão, alguns desses estóicos mantenham a pose e a perspectiva. Fernando Pessoa parecia saber que escrevia para o futuro. Stendhal, escritor do século 19, achava que seus leitores estavam no século 20 (e tinha razão). Van Gogh pintou implacavelmente 900 telas em menos de 15 anos, o que seria impensável se ele não alimentasse uma rija fé em si mesmo
Os diários pessoais andam fora de moda, mas em Genebra houve um sujeito que no século passado preencheu 16 mil páginas de cadernos com anotações sobre sua tendência ao fracasso.
Aspirava à filosofia e à literatura, mas nunca teve coragem de se atirar para valer na feitura de um livro: contentava-se com notas, vinhetas, pequenos esboços. Invejava seus amigos que tinham mulher e filhos, mas nunca se casou, apesar das três ou quatro admiradoras que o cortejaram a vida toda. Teve sua primeira relação sexual aos 40 anos. Nem mesmo foi um grande professor, e ele era o primeiro a admitir que suas aulas eram tediosas.
"Irresolução, preguiça, inconstância, abatimento, pusilanimidade", escrevia ele aos 34 anos a.respeito de si mesmo. Aos 51: "A indecisão crônica esterilizou todas as minhas faculdades". E aos 60, no ano de sua morte: "Os vaivens da ilusão, as incertezas do desejo, os sobressaltos da esperança dão lugar à resignação tranquila". Em suma, considerava-se um fracasso consumado e parecia ser isso mesmo. Cuidava apenas de morrer sem mágoa. Nem obra, nem filhos, nem reconhecimento público. Conformismo, só isso.
Mas estava enganado. O genebrino Henri-Frédéric Amiel não estava destinado ao esquecimento, como supunha. Mal o sepultaram, seu diário começou a bater asas. Uma daquelas quatro amigas compilou e publicou urna primeira edição. O livro despertou uma enorme simpatia do público. Os milhares de leitores logo saltaram para milhões e hoje o livro está traduzido em todas as línguas cultas. É um clássico.
Ou seja, o repositório dos fracassos de Amiel, seu diário secreto, tornou-se o vetor de seu sucesso. Do ponto de vista histórico, Amiel é um vitorioso, assim como Van Gogh, Pessoa e Stendhal. Aqui no Brasil podemos dizer o mesmo de Lima Barreto e Sousândrade, escritores que não foram reconhecidos em suas épocas. O chato é que, para o artista morto, a vitória póstuma não existe, salvo se ele puder contemplar seus ouropéis de onde estiver (caso esteja) Mas é muito possível que, se assim for, já não dará importância à feira de vaidades armada por marchands, editores e leiloeiros.
Eustáquio Gomes
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