segunda-feira, dezembro 2

Leitura espacial

 


O dicionário

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.

– Em mim, bradou ele, poderia ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indemnizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; - nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato numa razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos de pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súbditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, sendo por uma oftalmia a que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano de reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um de seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, - comparação que o lisonjeou muito, - o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais sumptuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenava com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.

Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com que fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiando em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.

Concorreram ao certame. Que foi anónimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos: era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.

Não venceu ainda assim, porque o poeta amado leu à pressa o que pode, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas deram singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, a terceira vitória do poeta amado.

Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:

- Nós, Alfa e ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa ideia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.

Barnardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findo os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.

- Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por decreto, e tudo está feito.

Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pelas novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: 'Bom dia, como passou?' - 'Pflerrgpxx, rouph, aa?' A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa.

Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros, e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.

Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:

O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimitáveis,
Não se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.

Machado de Assis, "Páginas recolhidas"

Quando a gritaria ganha, a liberdade perde

Em diferentes momentos da história, a queima de livros foi usada para censurar e oprimir. Nos Estados Unidos, nos anos de 1940 e 1950, em vários locais propôs-se a destruição dos que eram considerados “subversivos” ou “corruptores da moral” por grupos de cidadãos e autoridades locais públicas. A Associação Americana de Bibliotecas e o Conselho Americano de Editores de Livros chegaram em 1953 a implorar que fosse respeitada “a liberdade de ler”, como conta a revista Time num artigo já com alguns anos onde se lembra, entre outros infames episódios, o que se passou em 1933: dezenas de milhares de livros queimados em Berlim e noutros locais pelos nazis em nome da “purificação” da cultura alemã.

Quando hoje, num contexto radicalmente diferente — Estados de direito, democracias consolidadas, liberdade de expressão consagrada constitucionalmente, proibição de qualquer discriminação com base na nacionalidade, origem étnica ou expressão de género —, vemos pessoas de megafone em riste a invadir apresentações de livros em centros culturais e bibliotecas, constatamos que há quem não aceite “a liberdade de ler”. E de pensar. E de ser. De ser outro que não eles.


Há grupos extremistas, como o Habeas Corpus, com uma agenda clara: impedir eventos que, nas suas palavras, promovam a “cooptação de crianças e jovens para a homossexualidade pelo movimento terrorista LGBTQIA+”.

Os seus elementos conseguem destruir sessões pensadas para serem de debate livre — mas que terminam silenciadas pela gritaria. Chegam a anunciar previamente o boicote. E mesmo assim, por vezes, são os autores e os leitores que acabam, em nome da sua própria segurança, por ter de sair da sala.

Nas redes sociais destes grupos destila-se ódio contra quem escreve (uma das escritoras recebeu imagens do seu livro a arder, as fogueiras persistem). E contra ativistas, políticos e quem trabalha em jornais. Telefones de jornalistas são partilhados em grupos públicos para que sejam abalroados por insultos estejam onde estiverem, na sua casa ou na redacção. Quem o faz deseja que também eles tenham de sair da sala.

Estas pessoas não acreditam só que não deve haver “liberdade de ler”. Acreditam que não deve haver liberdade. Ponto.

Nos muitos episódios que protagonizaram, sempre que a apresentação de um livro não chegou ao fim, saíram vitoriosos.

Quem legisla, quem garante a segurança, quem investiga as queixas tem de tomar medidas. Não pode continuar a passar esta sensação de passividade.

A liberdade deve ganhar sempre.

A seca

Sobreveio a seca de 1898. Só se vendo. Como que o céu se conflagrara e pegara fogo no sertão funesto.


Os raios de sol pareciam labaredas soltas ateando a combustão total. Um painel infernal. Um incêndio estranho que ardia de cima para baixo. Nuvens vermelhas como chamas que voassem. Uma ironia de ouro sobre azul.

O sol que era para dar o beijo de fecundidade dava um beijo da morte longo, cáustico, como um cautério monstruoso.

A poeira levantava e parecia ouro em pó.

Os ocasos congestos entravam pelas trevas em nódoas sanguíneas. Sobras fervidas. Como um cinzeiro em brasas. Noites tostadas.

Um derrame de luz exaltava que parecia o sol fulminante derretido nos seus ardores.

Ventava. Não era o vento pontual da boca da noite todo sujo de pó como uma criança traquina. Era um sopro do inferno que, alteando-se, parecia querer rasgar as nuvens para acender a fogueira.

A flor desfalecia.

Durante um ano a fio, uma gota d’água que fosse não refrescara a queimadura dos campos.

Depois, não se via um pássaro: só voavam muito alto as folhas secas.

Bem. Um passarinho estava sob a última folha da umburana, como debaixo de um guarda-sol. Caiu a folha e o passarinho abriu o bico e também caiu, com as asas abertas.

O panasco pulverizava-se; girava com a poeira chamejante.

Até onde dava a vista se achatava a paisagem cinérea. A desolação da mesma cor.

A capoeira esquelética levantava os garranchos, como dedos crispados. E dançava, à força, nessa tragédia, como o bochorno fogoso.

A caatinga formava um aranhol.

Como era feia a natureza resseca na sua nudez de pau e pedra!

Os rebanhos aflitos prostravam-se no chão esbraseado.
José Américo de Almeida, "A bagaceira"

A partir da leitura...

Somos sub-educados, atrasados e analfabetos; e neste particular confesso que não faço grande distinção entre a ignorância do meu concidadão que não sabe absolutamente ler nada, e a ignorância do que apenas aprendeu a ler o que se destina a crianças e inteligências medíocres. Deveríamos estar à altura dos grandes da Antiguidade, mas em parte por saber primacialmente quão grandes eles foram. Somos uma raça de homens-passarinhos; nos nossos voos intelectuais mal nos alçamos um pouco acima das colunas do jornal.


Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exatamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.

Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.

As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade.
Henry David Thoreau, "Walden"