No entanto, somos seres feitos de palavras. A palavra moldou nosso cérebro, literalmente. Ela lubrifica nossos neurônios, com ela nos comunicamos a maior parte do tempo, sobretudo através dela transmitimos nossa experiência, nossa história, nossos acertos e erros. A palavra criou-nos, e a literatura é a quintessência da palavra. Somos, em suma, fruto da literatura. Disseram, inclusive, que Shakespeare inventou o humano, feito digno dos grandes heróis míticos. O Velho Bardo desacorrentou Prometeu.
Sim, claro, existem investimentos do Estado em livros, há campanhas de leitura, porém são atividades pontuais, efêmeras. No Brasil de hoje, a cultura não dura. O país se guia pela mídia e pelos grandes mecenas, e a mídia e os grandes mecenas relegaram a literatura a plano secundário, como se pudéssemos prescindir das palavras, como se computadores e televisão vivessem sem palavras, como se ideias surgissem sem palavras, como se o futuro brotasse sem palavras, como se a reflexão sobre o ser humano acontecesse sem a literatura. Até os jornais e revistas atiram nos próprios pés quando diminuem o espaço dado aos livros, ajudando a cassar o gosto pela leitura.
Diego Velázquez talvez tenha sido o mais genial pintor espanhol. Passo horas a admirar sua obra-prima, o quadro As Meninas, cuja beleza, humor e complexidade me encantam. No entanto, um contemporâneo dele, Miguel de Cervantes, escreveu Dom Quixote. Há quatrocentos anos, quem nos diz mais a respeito de seu tempo, de nós mesmos, de nossa dimensão, de nossa transitoriedade e permanência, de nossa fantasia, de nossa humanidade? Quem? Velázquez ou Cervantes?
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