quinta-feira, junho 23

O paraíso e outros infernos

soprando cinzas:
Jorge Luis Borges morreu em Genebra, na Suíça, a 14 de junho de 1986. Já lá vão, portanto 30 anos. A efeméride tem servido para repetir frases batidas, do tipo, o escritor morreu, mas a obra é eterna. Disparate, claro. A eternidade já não é o que era, acho mesmo que não tem futuro. A triste verdade é que também os livros morrem. Morrem até mesmo antes de desaparecerem fisicamente: morrem quando deixam de ser lidos. Isso acontece, regra geral, poucas décadas após o desaparecimento dos respectivos autores. Sem sair do território lusófono basta pensar no português Fernando Namora (falecido em 1989) ou em José Mauro de Vasconcelos (falecido em 1984), cujos títulos, que conheceram imenso sucesso enquanto os respectivos autores eram vivos, estão hoje quase esquecidos.


Borges, felizmente, continua a ter leitores no mundo todo. As vendas, contudo, diminuíram. São raros os jovens — falo de jovens leitores, de grandes leitores — que conhecem a obra de Borges. Creio que Julio Cortázar, apenas para citar um outro escritor argentino, é hoje bastante mais popular no Brasil, entre os jovens, do que Borges. Consigo entender os motivos. Cortázar apresenta um lado lúdico explícito, de menino em férias, ao passo que Borges, embora nos tenha deixado páginas divertidíssimas, pode parecer, a um jovem leitor desprevenido, excessivamente formal e até mesmo um tanto maçador. Deve-se entrar na obra de Borges através da porta principal “Ficções”, e só depois ir descobrindo os restantes volumes de contos, o ensaio e a poesia (a poesia de Borges não é obrigatória).

Jorge Luis Borges gostava de se definir como um homem conservador. Gostava sobretudo de se parecer com um — todavia, assim que começava a pensar desabrochava nele um anarquista. É certo que, politicamente, defendeu causas e personalidades de extrema direita. Consta que a Academia Sueca se recusou a dar-lhe o Nobel na sequência da infeliz visita que Borges fez ao Chile, em 1976, durante a qual elogiou o ditador Augusto Pinochet. Ao longo da vida produziu também uma série de afirmações racistas, das quais nunca se mostrou arrependido. Ao mesmo tempo, contudo, desenvolveu uma filosofia singular, que nada tinha de conservadora. Sobre o Deus da Bíblia, por exemplo, reuniu uma fulgurante coleção de blasfêmias, entre contos e observações dispersas. Cito de memória: “Crer num Deus único parece-me uma miséria. Havendo tantos deuses, crer num só é um excesso de economia”.

Enquanto troçava dos escritores e artistas do seu tempo, que tanto se esforçavam em espantar a burguesia (“o burguês de tanto ser espantado está curado do assombro” — dizia) divertia-se a chocar quem quer que dele se aproximasse. Os seus comentários sobre Israel ainda hoje provocariam abalos sísmicos se fossem proferidos por um escritor vivo de idêntica estatura: “Estive duas vezes em Israel e, infelizmente, notei que são quase hitlerianos. A diferença é que eles não insistem na ideia de raça germânica mas na do povo judaico. A ideia do povo escolhido da Alemanha nazi não é outra coisa que a do povo escolhido dos hebreus, que Hitler tirou da Bíblia”.

Ou sobre o Corão: “O Corão é muito inferior às ‘Mil e uma noites’. Alá não estava tão inspirado quanto Sherazade”.

Borges não tinha medo de pensar. E porque não tinha medo de pensar não era nem de direita nem de esquerda, era alguém que inquietava. Hoje em dia, infelizmente, há por aí muitos escritores com medo de pensar — com medo do que os outros possam pensar sobre o seu pensamento — e por isso há tanta repetição de ideias. Tanta falta de ideias.

Há muitos anos escrevi um conto sobre Borges, a partir de uma frase muito conhecida do escritor: “Imagino o Paraíso como um lugar onde se dialoga. Como uma biblioteca”.

No meu conto, o escritor fecha os olhos em Genebra e desperta entre bananeiras. Algures perto dele uma mulher nua levita. Borges, que não nutria o menor afeto por paisagens tropicais, e nem tão pouco por belas mulheres levitantes, convence-se que despertou no Inferno. Ocorre-lhe depois que talvez Deus o tenha confundido com García Márquez e aquele seja o paraíso do colombiano. Então alegra-se: sendo certo que o paraíso de Márquez era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de ser certamente o inferno do outro. Não há Paraíso, afinal, que não seja também Inferno. O que para uns é maravilhoso, para outros afigura-se um perpétuo tédio ou um prolongado horror.

Espero sinceramente que Borges tenha despertado numa imensa biblioteca. Nessa biblioteca estarão os livros todos, escritos e por escrever. Estarão também os meus. Gosto de pensar que um dia Borges lerá aquele pequeno conto — e que a leitura dele o fará sorrir.
José Eduardo Agualusa

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