Para começar, devemos nos sentar no banco dos réus e não na poltrona do juiz. Devemos, nesse ato de criação, não importa se bom ou ruim, ser cúmplices do escritor. Pois cada um desses livros, não importando o gênero ou a qualidade, representa um esforço para criar algo. E nossa primeira obrigação como leitores é tentar entender o que o escritor está fazendo, desde a primeira palavra com que compõe a primeira frase até a última com que termina o livro. Não devemos impor-lhe nosso plano, não devemos tentar fazer com que sua vontade se conforme à nossa. Devemos deixar que Defoe seja Defoe e que Jane Austen seja Jane Austen tão livremente quanto deixamos que o tigre tenha seu pelo e a tartaruga sua carapaça. E isso é muito difícil. Pois uma das qualidades da grandeza consiste em deixar que o céu e a terra e a natureza se conformem à visão que lhes é própria. Os grandes escritores exigem, assim, que façamos frequentes e heroicos esforços para lê-los corretamente. Eles nos vergam, eles nos quebram. Ir de Defoe a Jane Austen, de Hardy a Peacock, de Trollope a Meredith, de Richardson a Rudyard Kipling é ser torcido e distorcido, é ser jogado violentamente para um lado e para o outro. E isso vale também para os escritores menores.
Cada um deles é singular; cada um tem uma visão, uma experiência, uma característica própria que pode entrar em conflito com a nossa, mas que devemos permitir que se expresse plenamente se quisermos fazer-lhe justiça. E os escritores que mais têm para nos oferecer são, muitas vezes, os que mais violentam os nossos preconceitos, particularmente se são nossos contemporâneos, de maneira que precisamos de toda a imaginação e compreensão se quisermos tirar o máximo proveito daquilo que eles podem nos oferecer. Mas ler, como sugerimos, é um ato complexo. Não consiste simplesmente em estar em sintonia e compreender. Consiste, também, em criticar e em julgar. O leitor deve deixar o banco dos réus e se acomodar na poltrona do juiz. Deve deixar de ser amigo; deve se tornar juiz. E este segundo processo, que podemos chamar de processo pós-leitura, pois é, frequentemente, realizado sem termos o livro à nossa frente, proporciona um prazer ainda mais sólido do que o obtido quando estamos virando as páginas.
Durante a leitura, novas impressões estão sempre anulando ou completando as velhas. Deleite, raiva, enfado, riso se alternam, enquanto lemos sem parar. O julgamento fica em suspenso, pois não podemos saber o que está por vir. Mas agora o livro acabou. Tomou uma forma definitiva. E o livro como um todo é diferente do livro há pouco absorvido em variadas e diferentes partes. Ele tem uma forma, ele tem um ser. E essa forma, esse ser, pode ser retido na mente e comparado com a forma de outros livros e se lhe pode atribuir o seu próprio tamanho e insignificância em comparação com os deles. Mas se esse processo de julgar e decidir está cheio de prazer, está também cheio de dificuldades.
Não se pode esperar muita ajuda do exterior. Críticos e resenhas críticas abundam, mas ler as opiniões de outra mente não ajuda muito quando a nossa ainda está fervendo de um livro que acabamos de ler. É só depois que formamos nossa opinião que as opiniões dos outros se mostram mais esclarecedoras. É quando podemos defender nosso próprio julgamento que obtemos o máximo do julgamento dos grandes críticos – os Johnson, os Dryden e os Arnold. Para que possamos tomar nossa decisão, a melhor forma de ajudarmos a nós mesmos é, primeiro, compreender tão completa e exatamente quanto possível a impressão que o livro deixou e, depois, comparar essa impressão com as impressões que formulamos no passado. Elas estão ali, penduradas no armário da mente – as formas dos livros que já lemos, como roupas que tiramos e penduramos à espera da estação adequada.
Assim, se acabamos de ler pela primeira vez, digamos, Clarissa Harlowe, nós o pegamos e deixamos que se mostre contra a forma que continua em nossa mente desde que lemos Ana Karenina. Colocamos os dois lado a lado e, imediatamente, as silhuetas dos dois livros aparecem recortadas uma contra a outra tal como o canto de uma casa (para mudar de figura) aparece recortado contra a plenitude da lua cheia. Contrastamos as características salientes de Richardson com as de Tolstói. Contrastamos a sua obliquidade e verbosidade com a brevidade e a falta de rodeios de Tolstói.
Perguntamo-nos por que cada escritor escolheu um ângulo tão diferente de abordagem. Comparamos a emoção que sentimos em diferentes crises de seus livros. Especulamos sobre as diferenças entre o século dezoito na Inglaterra e o século dezenove na Rússia – mas as questões que se insinuam assim que juntamos os livros não têm fim. Assim, por etapas, fazendo perguntas e respondendo-as, descobrimos que decidimos que o livro que acabamos de ler é deste tipo ou do outro, que tem este ou aquele nível de mérito, toma o seu lugar neste ou naquele ponto na literatura como um todo.
E se somos bons leitores julgamos, assim, não apenas os clássicos e as obras-primas dos mortos, mas prestamos aos escritores vivos o cumprimento de compará-los como devem ser comparados: com o padrão dos grandes livros do passado. Assim, pois, quando os moralistas nos perguntam o que ganhamos quando nossos olhos percorrem essa pilha de páginas impressas, podemos responder que estamos fazendo nossa parte como leitores no processo de colocar obras-primas no mundo. Estamos fazendo nossa parte na tarefa criativa – estamos estimulando, encorajando, rejeitando, mostrando nossa aprovação ou desaprovação; e estamos, assim, testando e incentivando o escritor. Esta é uma das razões para se ler livros – estamos ajudando a trazer livros bons ao mundo e a tornar os ruins impossíveis.
Mas essa não é a real razão. A real razão continua inescrutável – a leitura nos dá prazer. É um prazer complexo e um prazer difícil; varia de época para época e de livro para livro. Mas ele é suficiente. Na verdade, o prazer é tão grande que não se pode ter dúvidas de que sem ele o mundo seria um lugar muito diferente e muito inferior ao que é. Ler mudou, muda e continuará mudando o mundo. Quando o dia do juízo final chegar e todos os segredos forem revelados, não devemos ficar surpresos ao saber que a razão pela qual evoluímos do macaco ao homem, e deixamos nossas cavernas e depusemos nossos arcos e flechas e sentamos ao redor do fogo e conversamos e demos aos pobres e ajudamos os doentes, a razão pela qual construímos, partindo da aridez do deserto e dos emaranhados da floresta, abrigos e sociedades, é simplesmente esta: nós desenvolvemos a paixão da leitura.
Virginia Woolf
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