Judith Chamizo |
domingo, janeiro 31
Vasculhando biblioteca
Yelena Bryksenkova |
Saul Bellow Henderson, O rei da chuva
O homem ao lado
O carro seguia o seu caminho, célere, correndo macio sobre o asfalto da praia de Botafogo. O homem olhou o mar, a claridade feriu‑lhe a vista. Desviou‑a. Acendeu um cigarro e deixou‑o esquecido no canto dos lábios, de raro em raro puxando uma tragada.
Ajudar o homem que chorava, perguntar‑lhe por quê, distraí‑lo. Pensei em puxar conversa e senti‑me um intruso. Demonstrando saber que ele chorava, talvez o fizesse parar. Mas como agir, se ele parecia ignorar a todos, não ver ninguém? Ajudar era difícil, distraí‑lo também. Quanto a perguntar‑lhe por que chorava, não me pareceu justo. Ou, pelo menos, não me pareceu honesto. Um homem como aquele, que mantinha tanta dignidade, mesmo chorando, devia ser um homem duro, cujas lágrimas são guardadas para o inevitável, para a saturação do sofrimento, como um derradeiro esforço para amenizar a amargura.
Lembrei‑me da pergunta que uma pessoa curiosa fez há muito tempo. Queria saber se eu já havia chorado alguma vez. Respondi‑lhe que sim, que todo mundo chora, e ela quis saber porquê. Tentando satisfazer a sua curiosidade, descobri que é mais fácil a gente explicar por que chora quando não está chorando.
— Um homem que não chora tem mil razões para chorar — respondi.
O amigo perdido para nunca mais; o que poderia ter sido e que não foi; saudades; mulher, quando merece e, às vezes, até sem merecer; há quem chore por solidariedade.
O homem ao meu lado acende outro cigarro, dá uma longa tragada e joga‑o pela janela. Passa a mão no queixo, ajeita os cabelos. Já não chora mais, embora seu rosto másculo revele ainda um sentimento de dor.
Em frente à casa de flores, faz sinal para o ônibus parar. É também o lugar onde devo desembarcar e — mais por curiosidade do que por coincidência — seguimos os dois quase lado a lado. Na calçada, faz meia‑volta, caminha uma quadra para trás, e entra na mesma casa de flores por onde passáramos há pouco.
Disfarçadamente entro também e finjo‑me interessado num buquê de crisântemos que está na vitrina. Sem dar pela minha presença, dirige‑se ao florista e pede qualquer coisa que não consegui perceber o que era. O florista aponta‑lhe um grande vaso cheio de rosas e ele, ao vê‑las, quase sorri. Depois escreve umas palavras num cartão, entrega‑o ao florista, quando este lhe pergunta se não estará lá para ver a coroa. O homem balança a cabeça devagar e, antes de sair, diz:
— Eu já chorei bastante…
E acrescenta:
— … felizmente!
Sérgio Porto (Manchete, 25/09/1954 )
sábado, janeiro 30
A repulsa do Poder pelo homem de letras
Salvador Dali ( Foto Charles Hewitt) |
A repulsa dos poderes constituídos pelo homem de letras e pelo homem de pensamento (pois tanto a expressão racionalista do filósofo e do sociólogo como a apreensão intuitiva do real a que procede o ficcionista surgem como ameaça aos sistemas de imposição de ideias ou de coerciva persuasão), esse afastamento do intelectual inconformista, transformado assim, com raras excepções (que nalguns casos já beiram o limite da assimilação) em outsider, representa uma destruição de valores culturais, que se traduz não poucas vezes em atraso de gerações.
Evidentemente, tal relegamento do escritor para zonas de sombra acicata-o por vezes, levando-o a produções vertebradas, que são autênticos gritos da inteligência rebelde e onde não raro se derrama o melhor da capacidade imaginativa, tensa e exasperada, de períodos em que se obscurece a comunicação normal entre os homens e em que a acção do livro, reduzida embora em extensão, ganha uma acutilante qualidade crítica e concentra a dignidade de minorias advertidas culturalmente e firmes no seu espírito de resistência. Mas o saldo não deixa de ser negativo quando se considera não já tudo aquilo que o escritor suporta e sofre, mas - e sobretudo - o muito que a camada dos leitores perde pela falta de convívio efectivo com aqueles que são não, é claro, os meus mentores, mas os que injectam na massa ideias novas, que divisam, na zona penumbrosa em que o futuro se vai pouco a pouco libertando da hora viva, os moventes sinais de amanhã.
Urbano Tavares Rodrigues
Infância
A Nilma Lacerda, que, ao falar da importância do mediador na alfabetização, tomou poeticamente como exemplo Graciliano Ramos
Em “Infância”, como não poderia deixar de ser, Graciliano Ramos conta como foi sua vida de menino, o que se deu na passagem do século XIX para o XX. Não só pelas mudanças tecnológicas e da organização social observadas entre aquele período e o atual — e mesmo entre aquele e a década de 1960, quando fui criança —, o livro nos leva a uma infância muito diferente da que conhecemos hoje. Graciliano nasceu e cresceu no Nordeste, região que já era sofrida ou ainda mais sofrida do que agora. Seca, pobreza, injustiça, pouco acesso a quase tudo — livros então — faziam parte do dia a dia do garoto que viria a ser um de nossos maiores escritores.
Graciliano devota particular atenção a sua luta para se alfabetizar. A gente talvez seja inclinada a achar que seus pendores (de futuro escritor) tornariam fácil a tarefa de dominar o beabá, mas, ó, doce ilusão, o que se vê em seu relato é um sofrimento só. Escolas precárias (um explicador, no mais das vezes, que se encarregava de ensinar em casa, juntando uns dois ou três meninos) e/ou uma pedagogia improvisada por algum parente. No caso de Graciliano, o pai tentou, e o “pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre”. Esse desastre é apontado do seguinte modo: “Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me.” Como esse menino ferido em sua autoestima deu a volta na frustração e virou quem virou não está nas páginas do livro, o que está lá é um olhar que se depara com as velhas dificuldades e sobre elas reflete, sem deixar de rir de tudo.
Logo depois de o pai desistir das aulas, Graciliano não se fez de rogado e pediu a ajuda de uma irmã. Chega-lhe então à mão o seguinte texto: “A preguiça é a chave da pobreza — Quem não ouve conselhos raras vezes acerta — Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” E o menino fica intrigado: quem seria Terteão? Quem? A irmã não sabia, nunca ouvira falar dele. Graciliano, seco, ri de si, e eu rio dele, mas, sejamos sinceros: como é duro aprender, em particular o português, língua estruturada em gramática tão árida.
Graciliano ilustra outras “alfabetizações” pelas quais passou ao longo da infância. Uma delas foi a de aprender o que, afinal, é o homem. E aprender o que é o homem é conviver com fronteiras muito tênues, pois ninguém é uma coisa só. Falo isso do alto de meus mais de cinquenta anos, quando já vi demais, mas um menino aprender, melhor, viver as contradições inerentes ao ser humano é duro e muitas vezes nem é notado. Graciliano notou e notou muito bem.
O melhor exemplo de sua acuidade está no capítulo “Fernando”, que começa assim: “É uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso.” A partir daí, Graciliano conta que, antes de ter contato com Fernando, já conhecia a sua fama e “se fosse tão mau como afirmavam, não existia patife igual”. Aparentado com coronéis, verdadeiros donos do mundo, Fernando fazia e acontecia, sem que nenhuma de suas atitudes violentas fosse punida, haja vista que a justiça não funcionava ali ou, por outra, a justiça se confundia com a vontade dos latifundiários e seus apaniguados. Graciliano cresceu temendo esse pau-mandado dos poderosos até presenciar uma cena no comércio que seu pai mantinha. Os empregados tiravam mercadorias de caixas de madeiras e, distraidamente, deixaram uma tábua com pregos solta no chão. Fernando, que matava o tempo na loja, se levantou, pegou um martelo e entortou os pregos, mostrando-se preocupado com a possibilidade de uma criança ferir-se com eles. As certezas de Graciliano ruíram, e o escritor termina o capítulo assim: “Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças.”
A lição aprendida por Graciliano, feito os devidos ajustes, está nos faltando na atual conjuntura, período no qual achamos que o outro é esse Fernando, até mesmo aquele histórico Nero, um monstro incurável.
Alexandre Brandão
sexta-feira, janeiro 29
Leitura às escuras
Outro dia, vagando entre as estantes de uma livraria, me deparei com vários livros do escritor Dostoiévski em nova tradução. Boa desculpa para ler e reler o mestre dos subterrâneos e do humor triste. Perguntei ao livreiro se O adolescente havia sido traduzido também. Ele achava que não, mas prometeu se informar e me dizer depois. Voltei para casa me lembrando do meu primeiro encontro com o mago russo. Foi assim: eu tinha 16 ou 17 anos e era sócia da biblioteca municipal do meu bairro. Toda semana ou de 15 em 15 dias lá estava eu em busca de um novo livro. Gosto muito de lembrar dessa época, quando a minha relação com a literatura era simplesmente de fome. Eu não queria ler autor tal ou literatura do país tal ou da época tal. Meu Deus, eu só queria ler. E cada livro, cada autor que eu conhecia era uma descoberta alegre e sofrida. Um fincar de estaca num novo mundo, uma imensa terra à vista a percorrer.
Na biblioteca municipal dos meus 16 ou 17 anos, eu transitava entre as estantes, sempre meio aflita e insatisfeita com a vida. Todo o futuro já me parecia pouco, tão pouco, para a imensidão de livros que existe nesse mundo para a gente ler. Então, percorrendo as fileiras repletas de livros e poeira, fui vendo as lombadas aqui e ali até que me deparei com uma com o título O adolescente. Apenas isso. Apenas isso, e eu tinha 16 ou 17 anos. Não conhecia o autor. Um nome esquisito, difícil à beça de falar. Peguei e levei para casa o livro de mais de 300 páginas acreditando que, pelo título, a história poderia ter quem sabe alguma coisa a ver comigo. Ingenuamente, comecei a ler. E talvez tenha sido ali entre aquelas páginas que uma parte de minha ingenuidade se foi. A narrativa, na primeira pessoa, é sobre um filho ilegítimo, criado entre estranhos. A sensação maior do personagem é que tudo em sua vida não lhe pertence, inclusive o seu nome. Lembro que simplesmente não conseguia parar de ler, acordava e dormia com o livro velho e empoeirado da biblioteca ao meu lado. No final, retardava a leitura para a última página demorar. Voltava para passagens preferidas, já com saudade. Em nenhum momento pensei: quem é esse tal de Dostoiévski? Será um autor consagrado, desconhecido, experiente, iniciante? Eu estava apaixonada pela história, pelo jeito da escrita, não pelo autor. Pelo nome, já sabia que o escritor era de terras distantes, no entanto, apesar de a história do protagonista não ter nenhuma semelhança com a minha, nada do que ele escrevia, com exceção dos nomes dos personagens e de lugares, era estranho para mim.
Devolvi o livro no balcão da biblioteca triste de não poder deixá-lo em casa. Fiquei perdida sem saber qual seria o próximo que eu iria ler. O que eu poderia ler, depois daquilo? A bibliotecária deve ter percebido minha expressão perdida e perguntou se eu queria alguma ajuda. Mostrei o livro que eu devolvia, e ela me perguntou se eu tinha gostado. Fiquei assim muda sem saber o que dizer. Gostar não era bem a palavra, ou o verbo. Gostar a gente gosta de uma fruta, de um suco, de um garoto na escola. Eu tinha… amado? me apaixonado? Não sei. O livro me deixara transtornada, comovida, deslumbrada, doída. Foi uma brutal experiência estética, sei hoje, talvez. Mas na época só sabia que tinha me perturbado, desnorteado. E talvez, mesmo hoje, saber apenas isso seja realmente o bastante.
Eu e a bibliotecária acabamos nos entendendo. De um modo que não sei dizer qual foi, ela percebeu que eu havia “gostado” e então fez as devidas apresentações. Por sua boca fiquei sabendo que Dostoiévski era um grande escritor russo, do final do século 19. A bibliotecária fez questão de dizer: reconhecido no mundo todo, consagrado e visto como um gigante da literatura mundial. À medida que a ouvia, algo em mim me alertava, não sabia bem o quê. Instintivamente, abracei o livro, como se estivesse prestes a perdê-lo. Um estranho sentimento de invasão me dominava. Pensava em Arkadi Makarovitch, o protagonista de O adolescente, em Versilov e Katerina, os outros personagens, enquanto ela falava da fama e da importância de Fiodor Dostoiévski na literatura russa e universal. Hoje sei que uma batalha implacável iniciava em minha mente e sentimentos: eu lutava para não deixar o livro que eu havia amado ser sobrepujado pelo renome do seu autor. Resistia, pensando nas passagens preferidas, nas frases e imagens que haviam me impactado, no sofrimento e na esperança de Arcadi, na paixão de Versilov e Katerina. Eu mal sabia que essa é uma batalha antiga, e, de antemão, eterna. Atravessa décadas e séculos, ganha roupagens e trejeitos diferenciados, mas está sempre lá, levando tantas pessoas a escolherem, lerem e preferirem, não o livro, mas o escritor.
Quase por um instinto de defesa, perguntei à bibliotecária sobre os outros livros de Dostoiévski. Eu a acompanhei angustiada até uma estante, onde ela me apontou O idiota, Crime e castigo, Os Irmãos Karamazov, Os demônios, O jogador e tantos outros. Levei O idiota para casa, sem saber que carregava um romance que seria inesquecível para mim. No caminho, repetia o nome do autor, na intenção, vejo hoje, talvez de desmistificá-lo. Não queria a sua presença, quando eu abrisse as páginas de seu livro. Queria os personagens, queria o enredo, queria as emoções profundas que o mago russo sabia expressar tão bem, sim, com tanta magnitude, mas era a obra, não o autor, que eu desejava encontrar quando começasse a leitura. “Um grande escritor”, havia dito a bibliotecária, “muito profundo”, ela continuou, “renomado mundialmente”, sem perceber que impunha uma distância entre mim e o mago russo que eu não havia sentido até então. O meu encontro com Dostoiévski havia sido às escuras, por isso, talvez, nos tateamos e nos conhecemos verdadeiramente. E foi dessa forma, íntima, que ele havia se tornado grande para mim.
Claudia Lage
Stanford Kay |
Devolvi o livro no balcão da biblioteca triste de não poder deixá-lo em casa. Fiquei perdida sem saber qual seria o próximo que eu iria ler. O que eu poderia ler, depois daquilo? A bibliotecária deve ter percebido minha expressão perdida e perguntou se eu queria alguma ajuda. Mostrei o livro que eu devolvia, e ela me perguntou se eu tinha gostado. Fiquei assim muda sem saber o que dizer. Gostar não era bem a palavra, ou o verbo. Gostar a gente gosta de uma fruta, de um suco, de um garoto na escola. Eu tinha… amado? me apaixonado? Não sei. O livro me deixara transtornada, comovida, deslumbrada, doída. Foi uma brutal experiência estética, sei hoje, talvez. Mas na época só sabia que tinha me perturbado, desnorteado. E talvez, mesmo hoje, saber apenas isso seja realmente o bastante.
Eu e a bibliotecária acabamos nos entendendo. De um modo que não sei dizer qual foi, ela percebeu que eu havia “gostado” e então fez as devidas apresentações. Por sua boca fiquei sabendo que Dostoiévski era um grande escritor russo, do final do século 19. A bibliotecária fez questão de dizer: reconhecido no mundo todo, consagrado e visto como um gigante da literatura mundial. À medida que a ouvia, algo em mim me alertava, não sabia bem o quê. Instintivamente, abracei o livro, como se estivesse prestes a perdê-lo. Um estranho sentimento de invasão me dominava. Pensava em Arkadi Makarovitch, o protagonista de O adolescente, em Versilov e Katerina, os outros personagens, enquanto ela falava da fama e da importância de Fiodor Dostoiévski na literatura russa e universal. Hoje sei que uma batalha implacável iniciava em minha mente e sentimentos: eu lutava para não deixar o livro que eu havia amado ser sobrepujado pelo renome do seu autor. Resistia, pensando nas passagens preferidas, nas frases e imagens que haviam me impactado, no sofrimento e na esperança de Arcadi, na paixão de Versilov e Katerina. Eu mal sabia que essa é uma batalha antiga, e, de antemão, eterna. Atravessa décadas e séculos, ganha roupagens e trejeitos diferenciados, mas está sempre lá, levando tantas pessoas a escolherem, lerem e preferirem, não o livro, mas o escritor.
Quase por um instinto de defesa, perguntei à bibliotecária sobre os outros livros de Dostoiévski. Eu a acompanhei angustiada até uma estante, onde ela me apontou O idiota, Crime e castigo, Os Irmãos Karamazov, Os demônios, O jogador e tantos outros. Levei O idiota para casa, sem saber que carregava um romance que seria inesquecível para mim. No caminho, repetia o nome do autor, na intenção, vejo hoje, talvez de desmistificá-lo. Não queria a sua presença, quando eu abrisse as páginas de seu livro. Queria os personagens, queria o enredo, queria as emoções profundas que o mago russo sabia expressar tão bem, sim, com tanta magnitude, mas era a obra, não o autor, que eu desejava encontrar quando começasse a leitura. “Um grande escritor”, havia dito a bibliotecária, “muito profundo”, ela continuou, “renomado mundialmente”, sem perceber que impunha uma distância entre mim e o mago russo que eu não havia sentido até então. O meu encontro com Dostoiévski havia sido às escuras, por isso, talvez, nos tateamos e nos conhecemos verdadeiramente. E foi dessa forma, íntima, que ele havia se tornado grande para mim.
Claudia Lage
O que temos de mais humano
C. McChesney |
A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (...) Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe "já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito", procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, é uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano
José Luís Peixoto
quinta-feira, janeiro 28
Receita infalível
Quem bate e depois sopra não comete agressão? Quem machuca, quase mata e depois cura não comete crime? Essas perguntas andam me incomodando. Explico o motivo. Estive em Buenos Aires, e os argentinos me deram de presente a pior gripe da vida. Febre, dor, desânimo, sensação de fim do mundo, tudo junto. Pior que dengue ou zika. Parece que fortificaram o vírus antes de o inocularem em meu corpo.
Acontece que, quando contraio essas gripes deprimentes, meu remédio infalível vem da Argentina. Ele se chama Jorge Luis Borges. Assim que retomo o grande autor portenho, meu espírito se fortalece, o corpo se revigora, viajo na poderosa imaginação e cultura de Borges, embarco em seus labirintos e espelhos, quando dou por mim já não me lembro de doença, de vírus, estou em estado de graça.
Nesta semana, rendido à gripe, folheei as Obras Completas de Borges, mergulhei nas Ficções, na História Universal da Infâmia, no Aleph, nas Inquisições. Horas depois, o milagre. Recuperei o ânimo, encantado uma vez mais com o Bruxo. Minha cabeça voltou a funcionar, o mal-estar cedeu.
Em agradecimento, voltei mentalmente a Buenos Aires, à rua Tucumán, entre Esmeralda e Suipacha, onde Borges nasceu em 1899. Depois entrei no centenário Café Tortoni para curtir o rococó e as discussões intelectuais.
Numa de suas mesas, me encontrei certa vez com Borges, encontro imaginário ocorrido na verdade com um sósia e velho amigo dele. Me lembro de que foi lá no Tortoni que comecei a espirrar e a sentir calafrios. Teria eu respirado alguns vírus antigos, muito resistentes, deixados lá dentro, décadas atrás, pelo próprio Borges? Pois é. Fica a dúvida. Bate e sopra. Quase mata e depois salva. Como resolver o dilema?
Importa é que o remédio funcionou. Sempre funciona. Por que você não o experimenta na próxima gripe ou mesmo sem ela? Não tem contra-indicação e não lhe provocará questões éticas sobre culpa, doença e crime. Aqui entre nós: por conta dos efeitos literários benfazejos de Borges, eu até já perdoei os argentinos pelos vírus que me legaram. Perdoo de antemão. Sempre. Uma cabeça em deleite vale muito mais que um corpo com alguns bilhões de vírus a mais.
Nesta semana, rendido à gripe, folheei as Obras Completas de Borges, mergulhei nas Ficções, na História Universal da Infâmia, no Aleph, nas Inquisições. Horas depois, o milagre. Recuperei o ânimo, encantado uma vez mais com o Bruxo. Minha cabeça voltou a funcionar, o mal-estar cedeu.
Em agradecimento, voltei mentalmente a Buenos Aires, à rua Tucumán, entre Esmeralda e Suipacha, onde Borges nasceu em 1899. Depois entrei no centenário Café Tortoni para curtir o rococó e as discussões intelectuais.
Numa de suas mesas, me encontrei certa vez com Borges, encontro imaginário ocorrido na verdade com um sósia e velho amigo dele. Me lembro de que foi lá no Tortoni que comecei a espirrar e a sentir calafrios. Teria eu respirado alguns vírus antigos, muito resistentes, deixados lá dentro, décadas atrás, pelo próprio Borges? Pois é. Fica a dúvida. Bate e sopra. Quase mata e depois salva. Como resolver o dilema?
Importa é que o remédio funcionou. Sempre funciona. Por que você não o experimenta na próxima gripe ou mesmo sem ela? Não tem contra-indicação e não lhe provocará questões éticas sobre culpa, doença e crime. Aqui entre nós: por conta dos efeitos literários benfazejos de Borges, eu até já perdoei os argentinos pelos vírus que me legaram. Perdoo de antemão. Sempre. Uma cabeça em deleite vale muito mais que um corpo com alguns bilhões de vírus a mais.
Quando os livros foram à guerra
Durante a Segunda Guerra Mundial, nos EUA, foi estabelecido um comitê de editores e um serviço especial do Departamento de Guerra e da Marinha, a Armed Services Editions (ASEs), para escolher, editar e enviar livros aos mais de dez milhões de soldados norte-americanos no front da guerra entre 1942 e 1945.
Ao final da guerra, os livros contribuíram para formar um público leitor. Jovens e adultos que não tinham o hábito da leitura, muitos que jamais haviam pensado em ler um romance, descobriram a leitura e os livros e passaram a ler e a contar com os livros em seu cotidiano, disseminando o hábito para a família e o entorno.
Em relação aos autores, que recebiam cartas dos leitores no front, carregadas de emoção, as edições de centenas de milhares de exemplares criaram diversos best-sellers e autores consagrados. Para os editores, mostrou de forma precisa que edições econômicas e acessíveis a um vasto público eram um ótimo negócio e, com isso, as edições de guerra contribuíram para fortalecer um mercado em massa de livros baratos nos EUA no pós-guerra. Outras coleções, além das Pocket Books, se popularizaram.
O ASEs foi formado por um grupo de editores que decidia o que publicar e vendia os livros ao governo norte-americano por um preço de custo de cerca de 1/5 do preço de um livro paperback tipo Penguin. Entre as editoras representadas estavam a Random House, W.W. Norton, Doubleday, além do editor da Publishers Weekly.
A seleção de livros atendia ao objetivo de oferecer livros os mais variados, de literatura à história, de esporte a dicionários, de livros de administração a manuais técnicos. Entre os primeiros livros selecionados e distribuídos, havia autores como Charles Dickens, John Steinbeck, Antoine de Sant-Exupéry, Howard Fast, Graham Greene, Herman Melville, Voltaire, Mark Twain, Jack London e Joseph Conrad.
Esta campanha do governo e editores tinha ainda um objetivo claro de disseminar ideais identificados à causa dos Aliados, a democracia, o liberalismo, pelos quais se lutava, em oposição ao totalitarismo nazista. Desde a queima de livros de autores democratas, de esquerda e judeus, no ano de ascensão do nazismo ao poder, em 1933, os nazistas destruíram (já durante a guerra) de forma deliberada bibliotecas e livros na Europa. Era preciso, portanto, se opor à barbárie em uma verdadeira guerra de livros.
A ação da agência procurava mostrar, portanto, que era uma guerra de valores e visões de mundo antagônicas e também difundir estas ideais dos EUA e dos Aliados aos próprios soldados. Ao final da conflito, também houve uma maciça distribuição de livros, com traduções, às tropas aliadas.
O livro conta ainda outras histórias, como a da grande campanha de doação de livros em 1942 pela National Defense Book Campaign (NDBC), depois Victory Book Campaign (VBC), que pretendia arrecadar dez milhões de exemplares doados espontaneamente e efetivou uma ampla campanha pública, com postos de doação e remessa aos soldados, além das discussões sobre escolha de títulos, tentativas de censura e as questões industriais ligadas a estas edições.
A Armed Services Editions funcionou até 1947. No final da guerra, o governo dos EUA criou um programa em massa para subsidiar formação educacional e profissional para os soldados que voltavam da guerra e tinham que iniciar uma vida civil. Para a autora, o contato com os livros da ASEs contribuiu para consolidar a ponte rumo à reconstrução do país e da vida pessoal de cada ex-combatente. Segundo ela, ao voltar para casa, muitos haviam lido Platão, Shakespeare, Dickens, livros de história, de negócios, matemática, ciência, jornalismo e direito (com, inclusive, uma seleção de títulos voltada para profissões).
Os egressos da guerra entenderam que valia a pena devotar tempo e energia à leitura e ao estudo. Afinal, escreve Manning, se eles liam dentro de uma trincheira em meio a bombardeiros, certamente teriam disponibilidade de ler para a formação educacional e profissional no pós-guerra e se engajariam em estudos formais.
When books came to war, para além de um fascinante capítulo de história cultural e social da guerra, mostra o valor central que os livros e a leitura podem ter em uma sociedade, mesmo em uma situação extrema de guerra e na reconstrução civil posterior. Manning estima que 123 milhões (cento e vinte e três milhões!) de exemplares foram impressos pela ASEs, além de 18 milhões via doação, todos enviados aos soldados. Mais, portanto, do que o estimados 100 milhões de livros destruídos deliberadamente pelo nazismo.
Roney Cytrynowicz
Foram editados nada menos que 1.322 diferentes títulos no total, a uma média de cerca de 30 diferentes obras por mês com tiragens, cada um, de pelo menos 65 mil exemplares. Eram livros impressos em um formato que cabia no bolso do uniforme militar, o que permitia aos soldados carregar as obras e ler inclusive em situações extremas, como dentro de trincheiras ou durante o descanso dos combates. Os livros chegaram até as mais distantes e isoladas ilhas do Pacífico, onde foram travadas batalhas com dezenas de milhares de mortos entre EUA e Japão. Também fizeram companhia aos soldados no Dia D, o desembarque na Normandia.
Soldado americano lendo uma edição da Armed Services Edition de 'A tree grows in Brooklyn' |
Estes livros não apenas foram a principal, muitas vezes, única forma de lazer ou distração de mais de 10 milhões de soldados norte-americanos, da Europa ao Pacífico, como passaram a ser imensamente apreciados pelos soldados. Em When books went to War - The stories that helped us win World War II, (Mariner Books), Molly Guptill Manning conta um sem número de histórias comoventes envolvendo livros e soldados, desde relatos de obras que fizeram companhia aos combates em períodos de extrema angústia e solidão, livros que contribuíram para o ânimo da recuperação de feridos em hospitais, livros encontrados dentro dos bolsos do uniforme de soldados mortos em combate. Histórias de guerra, livros e leituras.
Ao final da guerra, os livros contribuíram para formar um público leitor. Jovens e adultos que não tinham o hábito da leitura, muitos que jamais haviam pensado em ler um romance, descobriram a leitura e os livros e passaram a ler e a contar com os livros em seu cotidiano, disseminando o hábito para a família e o entorno.
Em relação aos autores, que recebiam cartas dos leitores no front, carregadas de emoção, as edições de centenas de milhares de exemplares criaram diversos best-sellers e autores consagrados. Para os editores, mostrou de forma precisa que edições econômicas e acessíveis a um vasto público eram um ótimo negócio e, com isso, as edições de guerra contribuíram para fortalecer um mercado em massa de livros baratos nos EUA no pós-guerra. Outras coleções, além das Pocket Books, se popularizaram.
O ASEs foi formado por um grupo de editores que decidia o que publicar e vendia os livros ao governo norte-americano por um preço de custo de cerca de 1/5 do preço de um livro paperback tipo Penguin. Entre as editoras representadas estavam a Random House, W.W. Norton, Doubleday, além do editor da Publishers Weekly.
A seleção de livros atendia ao objetivo de oferecer livros os mais variados, de literatura à história, de esporte a dicionários, de livros de administração a manuais técnicos. Entre os primeiros livros selecionados e distribuídos, havia autores como Charles Dickens, John Steinbeck, Antoine de Sant-Exupéry, Howard Fast, Graham Greene, Herman Melville, Voltaire, Mark Twain, Jack London e Joseph Conrad.
Esta campanha do governo e editores tinha ainda um objetivo claro de disseminar ideais identificados à causa dos Aliados, a democracia, o liberalismo, pelos quais se lutava, em oposição ao totalitarismo nazista. Desde a queima de livros de autores democratas, de esquerda e judeus, no ano de ascensão do nazismo ao poder, em 1933, os nazistas destruíram (já durante a guerra) de forma deliberada bibliotecas e livros na Europa. Era preciso, portanto, se opor à barbárie em uma verdadeira guerra de livros.
A ação da agência procurava mostrar, portanto, que era uma guerra de valores e visões de mundo antagônicas e também difundir estas ideais dos EUA e dos Aliados aos próprios soldados. Ao final da conflito, também houve uma maciça distribuição de livros, com traduções, às tropas aliadas.
O livro conta ainda outras histórias, como a da grande campanha de doação de livros em 1942 pela National Defense Book Campaign (NDBC), depois Victory Book Campaign (VBC), que pretendia arrecadar dez milhões de exemplares doados espontaneamente e efetivou uma ampla campanha pública, com postos de doação e remessa aos soldados, além das discussões sobre escolha de títulos, tentativas de censura e as questões industriais ligadas a estas edições.
A Armed Services Editions funcionou até 1947. No final da guerra, o governo dos EUA criou um programa em massa para subsidiar formação educacional e profissional para os soldados que voltavam da guerra e tinham que iniciar uma vida civil. Para a autora, o contato com os livros da ASEs contribuiu para consolidar a ponte rumo à reconstrução do país e da vida pessoal de cada ex-combatente. Segundo ela, ao voltar para casa, muitos haviam lido Platão, Shakespeare, Dickens, livros de história, de negócios, matemática, ciência, jornalismo e direito (com, inclusive, uma seleção de títulos voltada para profissões).
Os egressos da guerra entenderam que valia a pena devotar tempo e energia à leitura e ao estudo. Afinal, escreve Manning, se eles liam dentro de uma trincheira em meio a bombardeiros, certamente teriam disponibilidade de ler para a formação educacional e profissional no pós-guerra e se engajariam em estudos formais.
When books came to war, para além de um fascinante capítulo de história cultural e social da guerra, mostra o valor central que os livros e a leitura podem ter em uma sociedade, mesmo em uma situação extrema de guerra e na reconstrução civil posterior. Manning estima que 123 milhões (cento e vinte e três milhões!) de exemplares foram impressos pela ASEs, além de 18 milhões via doação, todos enviados aos soldados. Mais, portanto, do que o estimados 100 milhões de livros destruídos deliberadamente pelo nazismo.
Roney Cytrynowicz
quarta-feira, janeiro 27
Mar nos livros
Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadrinhos do ar livre, são melhores quando ficam por acabar. Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de Inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Criou-se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais a esqueci...
Morrer e outros fatos
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Quando o viu pendurado, seu cachorro pensou que fosse só uma brincadeira nova e começou a puxá-lo alegremente pela perna.
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Pensar que certa manhã ele chamou de meu sol essa mulher que ontem escancarou rispidamente a porta e lhe ordenou: “Sai!” Pensar que ela não se comoveu com as lágrimas dele e o empurrou: “Sai!” Pensar que, ao ser assim enxotado para a rua sob um convicto meio-dia, ele pôde fazer mais uma vez a comparação e, embora inutilmente, dizer à mulher, que já batia a porta: “Meu sol!”
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Se um poeta oferecer mais que a beleza, talvez convenha acreditar. Alguns poetas já conseguiram.
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Nunca se sabe direito se o acento circunflexo está pousando ou se acabou de levantar voo.
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A vida vai mudando nossas opiniões. Algumas obrigações, como a de morrer, acabam se tornando hipóteses aceitáveis – e até agradáveis.
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Os gatos só não assumem o poder porque não nos acham suficientemente dignos de ser seus súditos.
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Que a vida seja uma referência para a arte, não uma diretriz.
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O escritor pôs uma interrogação no fim da frase. Depois, pensou melhor e colocou a segunda, e a terceira. As três se olharam, intrigadas. A mais experiente delas comentou: “Acho que estamos num texto de filosofia.”
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Ele a chamava de minha vida – e morreu achando-se inepto na arte de fazer elogios.
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Geralmente, os chamados exemplos de vida nos provocam mais bocejos do que a vontade de segui-los.
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A glória literária é uma cortesã que te nega hoje o que te recusará amanhã.
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Morrer por amor é algo que se deve fazer logo, imediatamente, enquanto ele merece ser chamado por esse nome.
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Palavras como beleza, quando requisitadas por um poeta, deveriam vir trazidas por um passarinho de alta hierarquia, como um beija-flor.
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Chutado pela namorada, passou a dizer horrores sobre ela. Que afogava gatos, por exemplo, em água fervente.
Raul Drewnick
segunda-feira, janeiro 25
Estimulo à leitura?
Como é que se estimula a leitura na escola brasileira? Se aterrorizando o pobre do menino com a ideia de ter que responder perguntas horrorosas depois de ler o livro. Em vez de se fluir, se perpetuar uma leitura agradável, se incute o medo da leitura nos estudantes.(...) Eu já vi várias vezes, não foram poucas, livros meus adotados para o vestibular cujas perguntas sobre o livro eu não acerto nenhuma. Verdade.João Ubaldo Ribeiro
Assim começa o livro...
Gustav Aschenbach—ou von Aschenbach, como figurava seu nome nos registros oficiais desde o dia em que fez cinquenta anos—acabava de dar um longo passeio. Numa tarde primaveril daquele ano de 19…, que por muitos meses mostrou ao continente europeu um cenho tão carregado, o escritor saíra sozinho do seu apartamento na Prinzregentenstrasse, em Munique. Sentindo os nervos irritados pelo árduo e delicado trabalho das horas matinais, e que justamente a essa época requeria o máximo de prudência, ponderação, perseverança e meticulosidade, não conseguira deter, nem sequer depois do almoço, a ininterrupta vibração do mecanismo produtor que lhe agitava o espírito, aquele motus animi continuus, o qual, de acordo com Cícero, é a essência da facúndia. Não conciliara o sono restaurador, de que muito necessitava ao menos uma vez por dia em face do constante decréscimo de suas forças. Assim se explica que, após ter tomado o chá, abandonasse o recinto fechado, na esperança de que o ar livre e o movimento pudessem restaurá-lo, proporcionando-lhe uma tarde amena.
Mal começara o mês de maio. Depois de algumas semanas frias e úmidas, aparecera um veranico falaz. O Englischer Garten, escassamente frondoso, estava abafado como se já fosse agosto. As proximidades da cidade pululavam de veículos e transeuntes. Perto do Aumeister, para onde o haviam conduzido veredas cada vez mais solitárias, Aschenbach ficara durante algum tempo a contemplar o animado ambiente do jardim do restaurante, ao lado do qual estacionavam vários landaus e fiacres. Ao pôr do sol, afastara-se do local, a fim de regressar pelo lado de fora do parque, através dos campos abertos. No entanto sentia-se cansado, e como na direção de Föhring se avistassem prenúncios de temporal, estacou junto ao Cemitério Norte para aguardar o bonde que o levasse diretamente ao centro.
Casualmente não havia ninguém, nem na parada nem nos arredores. No asfalto da Ungererstrasse, cujos trilhos vazios e brilhantes se estendiam até o bairro de Schwabing e também na estrada de Föhring, não se via carro algum. Nada se mexia atrás das cercas das marmorarias, onde cruzes, placas e monumentos sepulcrais se ofereciam aos compradores, formando um segundo campo-santo, por ora desabitado. A capela mortuária, de estilo bizantino, erguia-se, silenciosa, ao arrebol do dia que findava. Sua frontaria enfeitada de cruzes gregas e pinturas hieráticas de cores claras ostentava, além disso, inscrições simetricamente distribuídas, que apresentavam em letras douradas uma seleção de versículos bíblicos relacionados com a vida do além, tais como “Eles entrarão na casa de Deus” ou “Oxalá os ilumine a luz eterna!”. Durante alguns minutos de espera, o escritor passou austeramente o tempo com a leitura dessas frases, permitindo que o seu espírito se entregasse àquele misticismo translúcido. Mas, ao se arrancar de seus devaneios, deparou subitamente, no pórtico, logo acima dos dois animais apocalípticos que vigiavam a escadaria, com um homem cuja aparência invulgar deu rumos completamente diversos aos seus pensamentos.
domingo, janeiro 24
Casa dos livros espalhados
Os livros, em geral, ficavam espalhados pela nossa casa. Como sou um pouco mais velho que meu segundo irmão — temos seis anos de diferença —, fui o primeiro a sair do quarto comum. Minha casa tinha dois andares, toda a família dormia em cima e eu, embaixo. Esse meu quarto era também um lugar onde meu pai armazenava livros. Ali, lembro de algumas coleções muito interessantes, de mitologia, e essa proximidade talvez tenha influenciado meu gosto, ou as próprias características da minha escrita. Em minha casa, só não havia livros na sala de visitas. A gente tinha uma garagem fechada, onde cabia pelo menos um carro. Mas nessa garagem, por exemplo, sempre houve livros. Nunca teve carro lá dentro. A gente deixava o carro na rua, e, na garagem, os livros. Então, a convivência com a leitura, para mim, foi tão natural quanto jogar bola na rua. Já minha mãe gostava de livros policiais, de Agatha Christie, que eu também lia. Então, eu sempre li. Não era nem um hábito, era um prazer
Receita infalível
Quem bate e depois sopra não comete agressão? Quem machuca, quase mata e depois cura não comete crime? Essas perguntas andam me incomodando. Explico o motivo. Estive em Buenos Aires, e os argentinos me deram de presente a pior gripe da vida. Febre, dor, desânimo, sensação de fim do mundo, tudo junto. Pior que dengue ou zika. Parece que fortificaram o vírus antes de o inocularem em meu corpo.
Acontece que, quando contraio essas gripes deprimentes, meu remédio infalível vem da Argentina. Ele se chama Jorge Luis Borges. Assim que retomo o grande autor portenho, meu espírito se fortalece, o corpo se revigora, viajo na poderosa imaginação e cultura de Borges, embarco em seus labirintos e espelhos, quando dou por mim já não me lembro de doença, de vírus, estou em estado de graça.
Nesta semana, rendido à gripe, folheei as Obras Completas de Borges, mergulhei nas Ficções, na HistóriaUniversal da Infâmia, no Aleph, nas Inquisições. Horas depois, o milagre. Recuperei o ânimo, encantado uma vez mais com o Bruxo. Minha cabeça voltou a funcionar, o mal-estar cedeu.
Em agradecimento, voltei mentalmente a Buenos Aires, à rua Tucumán, entre Esmeralda e Suipacha, onde Borges nasceu em 1899. Depois entrei no centenário Café Tortoni para curtir o rococó e as discussões intelectuais.
Numa de suas mesas, me encontrei certa vez com Borges, encontro imaginário ocorrido na verdade com um sósia e velho amigo dele. Me lembro de que foi lá no Tortoni que comecei a espirrar e a sentir calafrios. Teria eu respirado alguns vírus antigos, muito resistentes, deixados lá dentro, décadas atrás, pelo próprio Borges? Pois é. Fica a dúvida. Bate e sopra. Quase mata e depois salva. Como resolver o dilema?
Importa é que o remédio funcionou. Sempre funciona. Por que você não o experimenta na próxima gripe ou mesmo sem ela? Não tem contra-indicação e não lhe provocará questões éticas sobre culpa, doença e crime. Aqui entre nós: por conta dos efeitos literários benfazejos de Borges, eu até já perdoei os argentinos pelos vírus que me legaram. Perdoo de antemão. Sempre. Uma cabeça em deleite vale muito mais que um corpo com alguns bilhões de vírus a mais.
Luís Giffoni
Assim começa o livro...
Nunca vi nada assim: dois disquinhos de vidro presos na frente dos olhos dele com aros de arame. Ele é cego? Dava para entender se quisesse esconder olhos cegos. Mas ele não é cego. Os discos são escuros, parecem opacos do lado de fora, mas dá para enxergar através deles. Ele me conta que são uma invenção nova. "Protegem os olhos contra o brilho do sol", diz. "O senhor ia achar bom aqui no deserto. Evitam que fiquemos apertando os olhos o tempo todo. Dá menos dor de cabeça. Olhe." Toca de leve os cantos dos olhos. "Sem rugas." Recoloca os óculos. É verdade. Ele tem a pele de um jovem. "Na minha terra todo mundo usa isto."
Estamos sentados na melhor sala da hospedaria com uma garrafa entre nós e uma tigela de nozes. Não comentamos a razão para ele estar aqui. Ele serve aos poderes de emergência, isso basta. Em vez disso, falamos de caçadas. Ele me conta do último grande giro que deu, quando foram mortos milhares de veados, porcos, ursos, tantos que uma montanha de carcaças teve de ser abandonada a apodrecer ("O que foi uma pena"). Conto dos grandes bandos de gansos e patos que pousam no lago todo ano em suas migrações e dos métodos nativos de capturá-los. Sugiro levá-lo pescar uma noite num barco nativo. "É uma experiência que ninguém pode perder", digo; "o pescador leva tochas acesas e toca tambores em cima da água para atrair os peixes para as redes que colocou." Ele concorda balançando a cabeça. Conta da visita que fez a outro ponto da fronteira, onde as pessoas comem certas cobras como especialidades, e de um imenso antílope que matou.
Desloca-se tateando em meio à mobília estranha, mas não remove os óculos escuros. Retira-se cedo. Está aquartelado aqui na hospedaria porque é a melhor acomodação que a cidade oferece. Fiz os funcionários entenderem que se trata de uma visita importante. "O coronel Joll é da Terceira Divisão", disse-lhes. "A Terceira Divisão é a mais importante da Guarda Civil hoje em dia." Pelo menos é isso que ouvimos nos rumores que nos chegam atrasados da capital. O proprietário faz um gesto de concordância, as camareiras baixam a cabeça. "Ele tem de ficar bem impressionado conosco."
Levo meu colchonete para a plataforma, onde a brisa da noite alivia um pouco o calor. Nos tetos planos da cidade, dá para perceber ao luar outros vultos adormecidos. Debaixo das nogueiras da praça ainda escuto o murmúrio de conversas. No escuro, um cachimbo brilha como um vagalume, esmorece, brilha de novo. O verão está rodando devagar para o fim. Os pomares gemem sob sua carga. Não vou à capital desde que era moço.
Acordo antes do amanhecer, passo na ponta dos pés pelos soldados adormecidos, que estão se mexendo e suspirando, sonhando com mães e namoradas, desço a escada. No céu, milhares de estrelas olham para nós. Na verdade aqui estamos no teto do mundo. Acordar à noite, ao ar livre, é deslumbrante.
O sentinela no portão está sentado de pernas cruzadas e dorme profundamente, aninhando o mosquete. O quartinho do porteiro está fechado, sua carroça parada fora. Eu passo.
Desloca-se tateando em meio à mobília estranha, mas não remove os óculos escuros. Retira-se cedo. Está aquartelado aqui na hospedaria porque é a melhor acomodação que a cidade oferece. Fiz os funcionários entenderem que se trata de uma visita importante. "O coronel Joll é da Terceira Divisão", disse-lhes. "A Terceira Divisão é a mais importante da Guarda Civil hoje em dia." Pelo menos é isso que ouvimos nos rumores que nos chegam atrasados da capital. O proprietário faz um gesto de concordância, as camareiras baixam a cabeça. "Ele tem de ficar bem impressionado conosco."
Levo meu colchonete para a plataforma, onde a brisa da noite alivia um pouco o calor. Nos tetos planos da cidade, dá para perceber ao luar outros vultos adormecidos. Debaixo das nogueiras da praça ainda escuto o murmúrio de conversas. No escuro, um cachimbo brilha como um vagalume, esmorece, brilha de novo. O verão está rodando devagar para o fim. Os pomares gemem sob sua carga. Não vou à capital desde que era moço.
Acordo antes do amanhecer, passo na ponta dos pés pelos soldados adormecidos, que estão se mexendo e suspirando, sonhando com mães e namoradas, desço a escada. No céu, milhares de estrelas olham para nós. Na verdade aqui estamos no teto do mundo. Acordar à noite, ao ar livre, é deslumbrante.
O sentinela no portão está sentado de pernas cruzadas e dorme profundamente, aninhando o mosquete. O quartinho do porteiro está fechado, sua carroça parada fora. Eu passo.
sábado, janeiro 23
Vista cansada
Jimmy Liao |
Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Otto Lara Resende (Folha de S. Paulo, 23 de fevereiro de 1992)
Assim começa o livro...
Na segunda metade dos anos 60, viajei com freqüência da Inglaterra à Bélgica, em parte por motivo de estudos, em parte por outras razões que a mim mesmo não me ficaram inteiramente claras, às vezes apenas por um dia ou dois, às vezes por várias semanas. Em uma dessas excursões belgas, que, assim me parecia, sempre me levavam a terras muito distantes, cheguei, em um esplendoroso dia de início de verão, a Antuérpia, cidade que até então eu só conhecia de nome. Já na chegada, enquanto o trem avançava lentamente sobre o viaduto com seus curiosos torreões pontiagudos de ambos os lados e entrava no pátio escuro da estação, fui tomado por uma sensação de mal-estar que não me abandonou mais durante todo o tempo daquela minha visita à Bélgica. Lembro ainda os passos incertos com que caminhei de cima para baixo no centro da cidade, ao longo da Jerusalem- straat, da Nachtegaalstraat, da Pelikaanstraat, da Paradijsstraat, da Immerseelstraat e de muitas outras ruas e vielas, até que finalmente, atormentado por dores de cabeça e maus pensamentos, busquei refúgio no zoológico situado na Astridplein, logo ao ladoda estação central. Lá, até que me sentisse um pouco melhor, sentei-me em um banco à meia-sombra, junto a um viveiro de pássaros no qual esvoaçavam inúmeros tentilhões e pintassilgos de plumagem colorida. Ao cair da noite, caminhei pelo parque e acabei enfim por dar ainda uma olhada no Nocturama, aberto havia apenas alguns meses. Levou algum tempo até que meus olhos se acostumassem à penumbra artificial e eu pudesse distinguir os diversos animais que levavam suas vidas sombrias atrás do vidro, à luz de uma lua pálida. Não me lembro mais ao certo quais animais vi então no Nocturama de Antuérpia. Provavelmente morcegos e gerbos do Egito ou do deserto de Góbi, espécimes nativos de porcos-espinhos, bufos e corujas, gambás australianos, martas, arganazes e lêmures, que lá pulavam de um galho a outro, disparavam de lá para cá no solo de areia amarelo-cinzento ou desapareciam em uma touceira de bambu. Presente à memória só me restou mesmo o mão-pelada, que eu observei longamente enquanto ele, sentado com expressão séria ao lado de um riacho, lavava sem descanso o mesmo pedaço demaçã, como se esperasse, mediante tal operação já muito além de todo o escrúpulo razoável, fugir do mundo ilusório no qual fora parar, por assim dizer, à sua revelia. De resto, dos animais mantidos no Nocturama só me ficou na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio da pura intuição e do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca. Aliás, passou-me então pela cabeça, creio, esta pergunta: se a luz elétrica era acesa para os habitantes do Nocturama quando a noite de verdade caía e o zoológico era fechado ao público, para que quando o dia raiasse sobre aquele seu universo em miniatura, de ponta-cabeça, eles pudessem adormecer com certo grau de tranqüilidade. No curso dos anos, as imagens do interior do Nocturama confundiram-se com aquelas que guardei da chamada Salle des pas perdus na Centraal Station de Antuérpia. Se tento hoje imaginar essa sala de espera, vejo imediatamente o Nocturama, e se penso no Nocturama então me vem à cabeça a sala de espera, provavelmente porque, naquela tarde, quando saí do zoológico fui direto à estação, ou melhor, permaneci antes algum tempo na praça defronte dela, o olhar erguido para a fachada daquele edifício extravagante que de manhã, ao chegar, eu mal havia notado. Agora, porém, eu percebia o quanto o edifício erguido sob o patrocínio de Leopoldo II excedia a sua pura função utilitária, e me admirei com o garoto negro inteiramente coberto de azinhavre, que, faz agora um século, está lá no alto com o seu dromedário sobre uma torre de sacada à esquerda da fachada da estação, um monumento à fauna e aos nativos africanos, sozinho contra o céu flamengo. Quando entrei no átrio da Centraal Station, com sua cúpula abobadada de sessenta metros de altura, o meu primeiro pensamento, suscitado talvez pela visita ao jardim zoológico e pela imagem do dromedário, foi que ali, naquele vestíbulo magnífico, embora então bastante decadente, devia ter havido jaulas para leões e leopardos embutidas nos nichos de mármore e aquários para tubarões, polvos e crocodilos, assim como, inversamente, em alguns jardins zoológicos é possível viajar com um trenzinho aos recantos mais afastados da Terra.
sexta-feira, janeiro 22
Leitura na juventude
O afogado mais bonito do mundo
SOU ANTROPÓFAGO. DEVORO livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro, deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue. É o caso do conto "O Afogado Mais Bonito do Mundo", de Gabriel García Márquez. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto.
É sobre uma vila de pescadores perdida em nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto. Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E, naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do mar.
Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: "Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto...".
Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher... "Fico pensando em como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?" E elas sorriram e olharam umas para as outras. De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?".
Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.
A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.
Rubem Alves
quinta-feira, janeiro 21
O início como leitor
Vivian Hansen |
Minha casa era uma casa muito cheia de livros. Nessa ocasião (na infância), nós morávamos em casarões. A casa tinha livros em todos os aposentos, até na cozinha, no banheiro. As paredes eram forradas de livros e meu pai sempre foi um homem muito cioso da minha formação. Então, eu leio desde os seis anos de idade. Eu lia de tudo. Lá em casa, havia todos os tipos de livros. Meu pai era jurista, professor de história e político. Era um homem de interesses muito variados. Então, minha casa era uma biblioteca muito variada. Meu pai tinha um problema. Eu era o filho mais velho e ele achava que eu — sem saber ler aos seis anos — era uma vergonha para a família. Ele não suportava ter um filho analfabeto com seis anos de idade e me levou para aprender. Quando fui aprender a ler, numa escolinha da vizinhança em Aracaju, uma escolinha informal, pobre, cheguei lá e já conhecia mais ou menos as letras. A bolinha e a barriguinha é o B, a escadinha é o H, essas coisas. Acho que aprendi a silabar em um dia, no mesmo dia. Eu tinha curiosidade, não tinha TV, não tinha nada naquela época, só rádio. O primeiro livro que peguei para ler foi por causa das gravuras do Gustave Dore: Dom Quixote, traduzido por Viscondes de Castilho e Azevedo. Até adulto tem dificuldade de ler aquilo. Mas peguei para ler por causa das gravuras. Com seis anos, li o Hamlet, sem entender nada do que estava lendo. Li tudo, tudo, lia os pedaços. A minha formação como leitor não teve uma estrutura. Li muito Monteiro Lobato. Meu pai comprou uma coleção e eu li, eu adorava.
João Ubaldo Ribeiro
Leitura é paixão
Alice Kolb |
O processo de leitura é mais ou menos parecido com o da paixão. O primeiro livro que nos escancara a imaginação é como um primeiro amor. A gente vai procurar repetir aquela sensação pelo resto da vidaJoca Reiners Terron
Contos de fadas têm origem pré-histórica
Lidia Tomashevskaya |
Contos de fadas como A Bela e a Fera podem ter milhares de anos, segundo pesquisadores de universidades em Durham, na Inglaterra, e em Lisboa, em Portugal.
Empregando técnicas mais comuns a biólogos, os acadêmicos investigaram as ligações entre diferentes histórias pelo mundo e descobriram que algumas possuem raízes pré-históricas.
Alguns contos, segundo a investigação, são mais velhos do que os registros literários mais antigos – um deles remonta à Idade do Bronze (iniciada por volta do ano 3000 a.C.).
Em geral, acreditava-se que essas histórias datassem dos séculos 16 e 17.
No século 19, os irmãos Grimm – Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) – acreditavam que muitos dos contos de fadas que eles ajudaram a popularizar tivessem raízes em uma história cultural compartilhada que remonta ao nascimento das línguas indo-europeias.
Pensadores depois mudaram essa concepção, ao dizer que algumas histórias eram bem mais recentes, tendo sido transmitidas pela tradição oral após serem criadas nos séculos 16 e 17.
O antropólogo Jamie Tehrani, da Universidade de Durham, que trabalhou com a pesquisadora de folclore Sara Graça da Silva, da universidade Nova de Lisboa, disse ter reunido evidências que mostram que os irmãos Grimm estavam certos.
"Algumas dessas histórias são muitos mais antigas do que os primeiros registros literários, e até mais do que a mitologia clássica – algumas versões dessas histórias aparecem em textos gregos e latinos, mas nossas descobertas sugerem que são bem mais antigas do que isso."
O estudo, publicado na revista científica Royal Society Open Science, utilizou análise filogenética, desenvolvida pela biologia para investigar relações entre espécies.
Também analisou uma árvore de línguas indo-europeias para rastrear a origem de contos compartilhados por diferentes culturas, para verificar até onde poderiam ser identificados no passado.
Segundo Tehrani, o conto João e o Pé de Feijão (Jack and the Beanstalk, em inglês) foi classificado em um grupo de histórias nomeado como "O menino que roubou o tesouro do ogro", e teve a origem identificada no período da divisão leste-oeste das línguas da família indo-europeia, há mais de 5 mil anos.
A análise também mostrou que A Bela e a Fera e O Anão Saltador têm cerca de 4 mil anos de idade.
E a origem de uma história de folclore chamada O Ferreiro e o Diabo (The Smith And The Devil, em inglês), sobre um ferreiro que vende a alma em um pacto para ganhar superpoderes, foi estimada em 6 mil anos, na Idade do Bronze.
"É notável que essas histórias tenham sobrevivido sem ter sido escritas. Elas têm sido contadas antes de o inglês, francês ou italiano existirem, e provavelmente eram narradas em uma língua indo-europeia extinta", disse Tehrani.
(Fonte:BBC)
quarta-feira, janeiro 20
Livros viram móveis
O designer Jim Rosenau apresentou sua segunda exposição de Furniture Collection com peças de decoração, enfeites para casa, prateleiras e mesas de café feitos de pequenos e grandes livros velhos e madeira recuperada. As ideias originais do mobiliário são a reflexão e a interpretação artística do desejo de proteger as florestas e salvar o meio ambiente.
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