Iren Horrors |
segunda-feira, fevereiro 29
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
Afifa Aleiby |
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
domingo, fevereiro 28
Viver com os livros
O convívio com o livro sempre me ajudou, em todas as circunstâncias; consola-me na velhice e na solidão. suaviza uma ociosidade que poderia ser aborrecida e livra-me das pessoas inoportunas; amortece, enfim, os latejos da dor quando não é demasiado aguda e é mais forte do que qualquer paliativo. Para afastar uma idéia desagradável, nada como recorrer aos livros; apossam-se de mim e fazem-me esquecê-la. Jamais se ressentem por só os procurarmos na falta de prazeres mais reais, mais vivos e naturais, que outorga a companhia dos homens e das mulheres; e sempre mostram a mesma expressãoMichel de Montaigne
A biblioteca
O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática que desvendasse a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2|9|30|93
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia.
Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, num bloco gigante coberto de números, disse: já sei!, e apresentou depois a fórmula de progressão da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo.
Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.
O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto.
O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro.
Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei!
A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro.
Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei!
No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel.
Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática que desvendasse a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2|9|30|93
Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia.
Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, num bloco gigante coberto de números, disse: já sei!, e apresentou depois a fórmula de progressão da série que baseava a organização da biblioteca.
O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo.
Basta!
No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto.
Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.
Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Juarroz"
sábado, fevereiro 27
Amigos dos livros
Li num jornal de Barcelona uma notícia muito bonita, até porque em Portugal já não é fácil encontrar livrarias em que os clientes consigam estabelecer com os livreiros relações de grande proximidade (há-as, evidentemente, mas sobretudo longe dos grandes centros). Xavier Vidal, o proprietário da livraria Nollegiu, aberta há pouco mais de dois anos em Barcelona, conseguiu num domingo de manhã uma verdadeira proeza, quase uma utopia: a de juntar mais de uma centena de clientes que, por amor aos livros, o ajudaram a fazer a mudança para outro local. Não em carros, nem sequer transportando caixotes; mas colocando-se ao longo do caminho que une as duas lojas, a antiga e a nova, numa autêntica cadeia humana, cada um passando ao companheiro do lado o conteúdo inteirinho da livraria! Xavier Vidal reconhece que tem clientes excepcionais, uma vez que até crianças acorreram a ajudar, sem medo do peso de alguns volumes; mas estes clientes consideram que Xavier merece isto e muito mais, porque soube fazer da sua pequena loja um espaço onde os leitores se sentem em casa. De tal forma o estabelecimento soube atrair os vizinhos desde que se instalou que, em pouco mais de dois anos, se tornou demasiado pequeno para tantos interessados e foi preciso avançar cem metros na rua para que ocupasse uma loja maior e pudesse servir melhor a clientela. Um dos transportadores disse à jornalista do El Periódico que não basta aos leitores queixarem-se de que as livrarias estão todas a fechar, é preciso pôr mãos à obra de todas as maneiras e feitios para evitar que isso aconteça. Bem, a imagem diz tudo.
Momentos inefáveis de um acumulador de tralhas
Karl Lagerfeld em sua biblioteca |
Quem sofre da doença da acumulação tem lá seus momentos inefáveis. Basta uma tarde de coragem a revirar uma das muitas caixas, gavetas, pilhas de papeis ou sacolas atulhadas para descobrir o que os anos fizeram acumular, quantas e quais notícias em recortes de jornal, quantas cartas e de quais amigos, quantas fotos e em que companhia, cartões postais, estampas coloridas, folders, mapas, ingressos de exposições, teatro, cinema, bilhetes de trem, extratos bancários, fotocópias, recibos, como se essa montanha de minúsculos vestígios fosse a realização da fábula das pedrinhas deitadas pelo caminho, sinalizando o trajeto de volta para casa, exceto pela diferença fundamental entre vida e fábula, que é ficarem as pedrinhas depois de desaparecida a casa, isso sem contar que a nossa memória dos fatos, por mais profunda e precisa, nunca chega à altura das provas acumuladas, que mesmo havendo registros de data, hora e lugar, será sempre impossível remontar às emoções de cada circunstância. E ainda há as nossas próprias cartas, que às vezes nos voltam pelas mãos diligentes e invisíveis de seus destinatários mortos, como se agora expedidas a outros de nós mesmos, e aí está um dos momentos inefáveis do acumulador de tralhas. E quando a onda de souvenirs e papéis carcomidos se levanta, frustrando todas as tentativas de inventário, o que se acumulam são convites a mínimos lutos, um deixar que afinal se desmaterializem as pontas soltas de histórias já perdidas, afinidades caducadas, paixões tornadas cinzas, num ato radical de higiene e redenção que abra espaço a novas acumulações. Da gigantesca pilha de destroços, hão-de salvar-se, talvez numa só gaveta, umas poucas relíquias que ainda fazem estremecer um coração, e este será o pontinho túmido e fogoso de concentração da matéria que, um dia, lá na frente, explodirá numa nova reviravolta dos tempos como no álbum de um íntimo Big Bang.
sexta-feira, fevereiro 26
Assim começa o livro...
Você teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilômetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas. A maior parte das estradas deixadas pelos romanos já teria àquela altura se fragmentado ou ficado coberta de vegeta- ção, muitas delas desaparecendo em meio ao mato. Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. As pessoas que moravam ali perto — e pode-se imaginar o grau de desespero que as teria levado a se estabelecer num lugar tão soturno — teriam razão de sobra para temer essas criaturas, cuja respiração ofegante se fazia ouvir muito antes de seus corpos deformados emergirem da neblina. Mas esses monstros não causavam espanto. As pessoas da época os teriam encarado como perigos cotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que 10 a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças.
De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando — talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios —, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas em sua direção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades.
Numa dessas áreas na beira de um extenso pântano, à sombra de algumas colinas de contornos irregulares, vivia um casal de idosos, Axl e Beatrice. Talvez não fossem exatamente esses os nomes, mas, para facilitar, é assim que vamos nos referir a eles. Eu diria que esse casal levava uma vida isolada, mas naquele tempo poucos viviam “isolados” em qualquer dos sentidos que entendemos hoje. Para se manter aquecidos e ter proteção, os aldeões moravam em tocas, muitas delas escavadas bem lá no fundo da encosta da colina, que se ligavam umas às outras por passagens subterrâneas e corredores cobertos. O nosso casal de velhinhos morava num desses conjuntos labirínticos de tocas, ou abrigos — “edifício” seria uma palavra digna demais para descrever aquilo —, com cerca de sessenta outros aldeões. Se saísse desse abrigo e caminhasse por vinte minutos ao redor da colina, você chegaria à comunidade vizinha, que lhe pareceria idêntica à primeira. Mas, para os próprios habitantes, haveria muitos detalhes para distinguir um abrigo do outro, dos quais eles sentiriam orgulho ou vergonha.
Pequenas contadoras de histórias para cães em abrigo
Um abrigo para cães em Missouri, nos EUA, está usando o apoio de crianças para acalmar animais muito assustados, em geral vítimas de maus tratos, e prepara-los para adoção.
Após passarem por um treinamento de dez horas, meninos e meninas de seis a 15 anos leem suas histórias favoritas em frente aos compartimentos onde estão os cães. Eles ficam separados apenas por um vidro, evitando um contato físico que poderia ser estressante para animais ainda traumatizados. Assista a um vídeo gravado no local.
Segundo a diretora do Shelter Buddies Reading Program, da Missouri Humane Society, Jo Klepacki, além da companhia, a presença das crianças também serve para acalmar os animais, que em geral se aproximam aos poucos, recebem petiscos e acabam perdendo o medo do contato com humanos. O resultado é essencial para que eles possam ser colocados à disposição para adoção e se adaptem aos seus novos donos e lares.
Klepacki diz ainda que, além de ajudar os cães, o programa faz com que as crianças melhorem sua leitura e desenvolvam mais empatia pelos animais.
(Fonte: G1)
quinta-feira, fevereiro 25
A primeira cartilha
Há coisas que a gente não esquece: a primeira namorada, a primeira professora, a primeira cartilha. Minha introdução às letras foi feita através de um livrinho chamado Queres ler? (assim mesmo, com ponto de interrogação). Era um clássico, embora clássico, embora tivesse alguns problemas, em primeiro lugar, tratava-se de um livro uruguaio, traduzido (o que era, e é um vexame, cartilhas, pelo menos, deveriam ser nacionais). Em segundo lugar, era uma obra aberta e indiscreta, trazia introduções pormenorizadas sobre a maneira pela qual os professores deveriam usar o livro com os alunos. Quer dizer: era, também, para os professores, uma cartilha, o que, se não chegava a solapar a imagem dos mestres, pelo menos os colocava em relativo pé de igualdade com os alunos (pé de igualdade, não; menos. Pé de página, e em letras bem pequenas). Isto talvez fosse benéfico, porque um estímulo tínhamos para aprender a ler: ansiávamos pra descobrir os segredos dos mestres.
Em terceiro lugar – mais isto era grave –, a cartilha começa com a palavra uva. Com a palavra só, não havia uma ilustração mostrando um grande, suculento, lascivo cacho de uvas (estrangeiras, naturalmente). Era um suplicio olhar aquelas uvas (aliás, à época, uva designava, e não por acaso, uma dona boa). Principalmente para os alunos mais pobres cujo único contato com o fruto da videira era exatamente através daquela figura.
Bem, mas não é isto o que importa. O que importa é que aquele era o nosso primeiro livro, o livro que carregávamos com orgulho em nossa pasta. E o que importa, também é que esse livro, o livro que mais esqueceríamos, tinha um nome provocadoramente amável: ele não ordenava, ele perguntava; ele não só perguntava, ele convidava. E não sei de que outra maneira se possa introduzir uma criança à leitura, se não através de um sedutor convite. Porque ler é que um ato da vontade. Diante da TV se pode ficar passivo, absorvendo imagem e sons. A TV não indaga, ela se impõe. E pode se impor por causa da força de uma tecnologia que é absolutamente totalitária: do universo eletrônico no qual vivemos ninguém escapa.
Ler, não Ler exige esforço, No mundo da leitura só se entra pagando ingresso. Decodificar as letras transformá-las em imagens é uma arte, como é uma arte tocar um instrumento musical. Mas que entram no mundo da leitura, aqueles que a eles são bem conduzidos, estes encontram nos livros um lar, uma pátria, o território dos sonhos e da emoções.
Queres ler? – pergunto a meu filho, e espero que a resposta dele seja afirmativa. Para que ele possa provar a uva da qual é feito o doce vinho da fantasia arrebatadora.
Moacyr Scliar
Minibibliotecas em pontos de ônibus em Piracaia
Minibibliotecas construídas em 'casinhas de madeira' e instaladas em pontos de ônibus em Piracaia (SP) têm tornado a espera pelos coletivos mais agradável e divertida em Piracaia, no interior de São Paulo. Atualmente, seis pontos de ônibus da cidade e a rodoviária, com uma sala de leitura, contam com o projeto 'Piracaia na Leitura'.
O projeto existe desde junho de 2014 e pretende estimular a leitura entre os moradores da cidade. Nos locais, os passageiros do transporte coletivo da cidade escolhem os livros enquanto esperam o ônibus e podem até levar as obras para casa. O empréstimo é gratuito e por tempo ilimitado.
A ideia das minibibliotecas foi do psicólogo Marco Maida e da socióloga Amanda Leal. Quando o casal mudou para a cidade, eles perceberam que os pontos de ônibus eram amplos e poderiam abrigar as minibibliotecas. Ambos são apaixonados pelo universo da leitura e viram na iniciativa uma oportunidade de compartilhar o gosto pelos livros com a população.
Para colocar em prática o modelo, eles levaram a ideia à prefeitura da cidade, que apoiou o projeto.
Além disso, para montar o acervo das bibliotecas, Marco e Amanda contaram com a ajuda de amigos para arrecadar os livros. Desde o início do projeto, foram arrecadados mais de 15 mil livros - de crônicas e poesias a livros de receita. Além dos sete espaços em funcionamento, outros dois estão em fase de acabamento.
(Fonte:G1)
O projeto existe desde junho de 2014 e pretende estimular a leitura entre os moradores da cidade. Nos locais, os passageiros do transporte coletivo da cidade escolhem os livros enquanto esperam o ônibus e podem até levar as obras para casa. O empréstimo é gratuito e por tempo ilimitado.
A ideia das minibibliotecas foi do psicólogo Marco Maida e da socióloga Amanda Leal. Quando o casal mudou para a cidade, eles perceberam que os pontos de ônibus eram amplos e poderiam abrigar as minibibliotecas. Ambos são apaixonados pelo universo da leitura e viram na iniciativa uma oportunidade de compartilhar o gosto pelos livros com a população.
Para colocar em prática o modelo, eles levaram a ideia à prefeitura da cidade, que apoiou o projeto.
Além disso, para montar o acervo das bibliotecas, Marco e Amanda contaram com a ajuda de amigos para arrecadar os livros. Desde o início do projeto, foram arrecadados mais de 15 mil livros - de crônicas e poesias a livros de receita. Além dos sete espaços em funcionamento, outros dois estão em fase de acabamento.
(Fonte:G1)
quarta-feira, fevereiro 24
A viagem do elefante
O sacolejar nauseante não cessa, embala a todos estrada afora: os quietos, os falantes, os tristes, os alegres e os enjoados, como eu. Entre chegadas e partidas, subidas e descidas, as histórias secretas que as bagagens ocultam, as frustrações e alegrias que as etiquetas rotulam. Seguimos alheios, dispersos em nós mesmos, observando a paisagem que muda a cada meia dúzia de segundos. Num banco, lá atrás, uma mulher atende o celular que toca insistentemente, deveria estar na bolsa, escondido em algum compartimento de difícil acesso. Mulheres gostam de bolsas com repartições que, de tantas, se tornam secretas para elas mesmas. A voz feminina informa que chegará no horário, conta trivialidades, ri, pergunta sobre outras pessoas, se cala enquanto ouve, depois se despede. O silêncio coadjuvante do barulho do motor volta. As ultrapassagens que o motorista faz me parecem erradas, é muita responsabilidade transportar pessoas que dormem, comem, leem ou falam ao celular enquanto aguardam o momento de chegar a seus destinos.
Encostado em meu corpo, A viagem do elefante, de José Saramago, viaja junto. A garota na poltrona do lado oposto do corredor, pergunta à mãe quando terá a parada “para comer”. “Você acabou de comer, menina.” “Comi salgadinho, mãe, salgadinho não sustenta.” A mãe a olha pensativa, jeito de quem ficou sem resposta para tanta razão. Uma garota bonita e esperta, que fazia palavras cruzadas em voz alta, sem nenhuma dificuldade, enquanto a mãe a observava, satisfeita. Sabia que ganhara mais do que teria desejado.
Saramago conta a história de Salomão, um paquiderme, verdadeiro herói, que faz uma viagem aventureira por Portugal, Espanha e Itália, enfrentando todo tipo de intempéries e perigos para ser entregue ao novo dono. Ele pertencia a dom João III que, certa noite, em conversa com a mulher Catarina, resolveu dá-lo de presente de casamento ao arquiduque austríaco Maximiliano II e à sua recém-esposa, filha do imperador Carlos V.
Chegamos, informa o motorista. Tropeço, erro o primeiro degrau da escada, bato a cabeça na porta e, na confusão com bolsas e sacolas, finalmente desço do ônibus. Um banho, depois de horas entre odores não desejados, é bálsamo. Às 23h10min tomo consciência de que A viagem do elefante foi esquecido no ônibus. Um susto, um desalento, uma sensação de perda, uma saudade, não lembrava em que página o marcador com ímã ficou, mas era na parte em que o elefante havia chegado ao seu destino, recebido com honrarias, aplaudido pelo povo nas ruas. Desejei que o livro tivesse a mesma sorte, que quem o encontrasse gostasse de ler e entendesse que eu queria saber o final da história.
Ele passou a noite no banco do ônibus, ninguém o pegou. No outro dia o motorista o trouxe, o marcador também estava lá. Viajou até Concórdia, Santa Catarina, e voltou. Dizem que elefante dá sorte.
Elyandria Silva
Etiqueta em noite de autógrafos
J. Frederick, Collier’s Magazine |
Caso compre o livro, espere na fila pelo autógrafo, como os demais. Não importa sua intimidade com o autor.
Não compre livros para ‘apenas’ dez amigos que não puderam comparecer e nem peça para que sejam autografados. Use o bom senso.
Estar arrumado é uma atitude de respeito e consideração; respeite os trajes pedidos em convites.
Não fique muito tempo no coquetel após o autógrafo. Vá embora e respeite o provável cansaço do autor.Fábio Arruda, "Sempre, às vezes, nunca – etiqueta e comportamento"
Número de livrarias independentes continua crescendo nos EUA
O US Census Bureau, uma espécie de IBGE nos EUA, reportou crescimento de 2,5% no faturamento das livrarias em 2015. Isso significa que, no ano passado, as receitas de livrarias atingiram US$ 11,17 bilhões versus US$ 10,9 bi de 2014. Agora, a American Bookstore Association (ABA) disse que, em 2015, foram abertas 60 novas livrarias independentes no País. O fenômeno reforça a tendência iniciada em 2014, quando a associação registrou o nascimento de 59 livrarias.
Os dados do US Census Bureau apontam ainda para um crescimento da participação dos livros impressos e um decréscimo nos livros digitais. Os números vão na mesma toada dos apresentgados pela Association of American Publishers (AAP). De acordo com a AAP, as vendas de e-books caíram 11,1% nos três primeiros trimestres de 2015. Ainda de acordo com o relatório da AAP, o segmento de maior queda nas vendas foi o de criaças e jovens adultos, que apresentaram queda de 44,8% nos e-books. Nesse mesmo período, as vendas de livros impressos, no entanto, cresceu 13,3%.
(Fonte: Publishnews)
terça-feira, fevereiro 23
As mãos dos pretos
Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.
O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
“Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!”.
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falamos disso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou menos isto:
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.
O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
“Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!”.
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falamos disso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou menos isto:
“Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos”.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
Luis Bernardo Honwana, "Nós Matámos o Cão Tinhoso"
Presidente da ANL fecha a própria livraria
Afonso Martin, da Associação Nacional de Livrarias,presidente convocou eleições gerais depois da desistência de dois dos seus diretores.Martin permanece no cargo até março para saldar responsabilidades e prestar contas do convênio com a Prefeitura de São Paulo que deu a quase 80 mil funcionários da Rede Municipal de Ensino um vale-livro no valor de R$ 50 para ser usado nas livrarias associadas à ANL.
Mas há outro motivo para Afonso abrir mão do cargo. É que, depois de 50 anos e três gerações (a livraria foi fundada pelo tio-avô em 1965), Afonso decidiu fechar a sua livraria, a Sampa Books (antiga Supercap), localizada na Zona Oeste da capital paulista. As atividades devem se encerrar na última semana de fevereiro.
“Toda livraria que fecha tem suas razões particulares: pode ser o aumento do aluguel ou problemas de fluxo de caixa, mas é ignorância achar que são problemas isolados. Temos um problema sistêmico e não casos isolados e é ignorância também achar que esse movimento é novo. Há mais de 30 anos vemos isso. Vivemos uma situação de completo abandono”, disse ao PublishNews. “Livrarias estão deixando de existir. Eu sou a última de mais de uma dezena de livrarias de rua na Lapa [bairro da Zona Oeste de São Paulo]. O acesso do cidadão ao livro está ficando cada vez mais escasso”, completou.
Afonso bate na tecla da dificuldade de varejistas independentes na lida com editoras. Vendas diretas em escolas de livros didáticos, por exemplo, é um grande mal, na opinião do presidente da ANL. “Há 30 anos, o discurso das editoras é que elas precisam sobreviver e por isso fazem as vendas diretas. Isso parece papo de traficante. O que não percebem é que, com isso, está deixando o mercado pouco saudável”, desabafou.
“Quando se fala de livros, há uma ignorância generalizada que faz muito mal ao país. É muito comum ouvir pessoas ligadas ao livro defender que o livro é caro e que é preciso fazer um programa para fazer o livro custando muito pouco ou de graça. Muita gente transita entre dois lados: ou é o neoliberal, que prega a livre concorrência, mas adora fechar contratos com o governo, ou é o outro oposto que é ‘vamos dar livros de graça’, como se o simples fato de ter o livro ao lado garantiria a conquista da cidadania. Hoje o Brasil é um dos maiores compradores de livros do mundo e essa política que está em vigência há mais de dez anos se mostrou pouco eficiente. Basta observar que só 38% dos universitários formados são capazes de compreender um texto.”
(Fonte: Publishnews)
Mas há outro motivo para Afonso abrir mão do cargo. É que, depois de 50 anos e três gerações (a livraria foi fundada pelo tio-avô em 1965), Afonso decidiu fechar a sua livraria, a Sampa Books (antiga Supercap), localizada na Zona Oeste da capital paulista. As atividades devem se encerrar na última semana de fevereiro.
Afonso bate na tecla da dificuldade de varejistas independentes na lida com editoras. Vendas diretas em escolas de livros didáticos, por exemplo, é um grande mal, na opinião do presidente da ANL. “Há 30 anos, o discurso das editoras é que elas precisam sobreviver e por isso fazem as vendas diretas. Isso parece papo de traficante. O que não percebem é que, com isso, está deixando o mercado pouco saudável”, desabafou.
“Quando se fala de livros, há uma ignorância generalizada que faz muito mal ao país. É muito comum ouvir pessoas ligadas ao livro defender que o livro é caro e que é preciso fazer um programa para fazer o livro custando muito pouco ou de graça. Muita gente transita entre dois lados: ou é o neoliberal, que prega a livre concorrência, mas adora fechar contratos com o governo, ou é o outro oposto que é ‘vamos dar livros de graça’, como se o simples fato de ter o livro ao lado garantiria a conquista da cidadania. Hoje o Brasil é um dos maiores compradores de livros do mundo e essa política que está em vigência há mais de dez anos se mostrou pouco eficiente. Basta observar que só 38% dos universitários formados são capazes de compreender um texto.”
(Fonte: Publishnews)
segunda-feira, fevereiro 22
Escrever bem é dedicação
As facilidades da modernidade, como a rapidez na digitação e revisão em computadores, criaram a esparrela de que para ser um escritor de sucesso não é preciso, necessariamente, ser um bom leitor e nem se dedicar muito ao ofício.
Vejamos, por exemplo, Os miseráveis, de Victor Hugo. Um livro de linguagem direta, mas de uma proposta estrutural ousada a narrar sua história do início do século XIX. Na edição recente da Cosac Naify, tamanho quase bolso, são dois calhamaços de folhas, num total de mais de três mil páginas divididas em dois livros, que são vendidos dentro de uma caixinha.
Como ler tudo isso e ainda deter-se em pontos curiosos e de impressionante beleza literária? Para não falar na questão puramente histórica que a obra, como representante de seu tempo, trata com muita atenção? Como, depois da leitura, retornar a contrapelo e extrair o sumo que Victor Hugo nos proporciona?
Dostoiévski, um dos maiores clássicos da literatura mundial, assim como outros, se embasbacou com Os miseráveis, e a obra até hoje não saiu das televisões e seus modernos seriados. Logo, ler Os miseráveis é um exercício, sobretudo, de carinho e dedicação, de envolvimento com a grandiosidade do humano traduzido em arte.
Chega, então, o que nos traz a este artigo: o que o autor que se propõe a escrever e publicar – mesmo que uma simples compilação de dados e endereços comentada, ou até um livro com meia dúzia de páginas e uma frase em cada – deveria fazer? Sentar-se ao computador e em poucos dias, talvez horas, tirar um livro pronto? Depois sair a bradar que precisa ser lido e que ninguém o lê porque são todos analfabetos e desprezam a boa literatura?
Ernest Hemingway, Moacyr Scliar, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros, eram também jornalistas, e escreviam para jornais respirando as redações e máquinas de datilografia, porém estes grandes viviam e usufruíam diariamente da escrita e se viam obrigados ao estudo e envolvimento crescente com sua matéria de arte: a palavra.
Pois, se essa foi a fórmula do século passado para termos bons escritores, qual a melhor fórmula para hoje? As redações de jornais e revistas, infelizmente, não precisam mais de escritores, não dos bons. E as atividades modernas nos exigem cada vez mais intelectualmente, inclusive de forma remota.
Se quiseres ser escritor, para além do autor, deves, principalmente, ser um grande leitor que não somente possa ler muito, mas possa também discernir com clareza o que lê. E para tudo, não há caminho outro do que a dedicação extrema que ao fim torna-se paixão e quase obsessão, pois a consciência de que sempre pode ser melhor perseguirá o verdadeiro escritor até o último de seus dias. E isso é muito bom.
Paulo Tedesco
Vejamos, por exemplo, Os miseráveis, de Victor Hugo. Um livro de linguagem direta, mas de uma proposta estrutural ousada a narrar sua história do início do século XIX. Na edição recente da Cosac Naify, tamanho quase bolso, são dois calhamaços de folhas, num total de mais de três mil páginas divididas em dois livros, que são vendidos dentro de uma caixinha.
Como ler tudo isso e ainda deter-se em pontos curiosos e de impressionante beleza literária? Para não falar na questão puramente histórica que a obra, como representante de seu tempo, trata com muita atenção? Como, depois da leitura, retornar a contrapelo e extrair o sumo que Victor Hugo nos proporciona?
Dostoiévski, um dos maiores clássicos da literatura mundial, assim como outros, se embasbacou com Os miseráveis, e a obra até hoje não saiu das televisões e seus modernos seriados. Logo, ler Os miseráveis é um exercício, sobretudo, de carinho e dedicação, de envolvimento com a grandiosidade do humano traduzido em arte.
Chega, então, o que nos traz a este artigo: o que o autor que se propõe a escrever e publicar – mesmo que uma simples compilação de dados e endereços comentada, ou até um livro com meia dúzia de páginas e uma frase em cada – deveria fazer? Sentar-se ao computador e em poucos dias, talvez horas, tirar um livro pronto? Depois sair a bradar que precisa ser lido e que ninguém o lê porque são todos analfabetos e desprezam a boa literatura?
Ernest Hemingway, Moacyr Scliar, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros, eram também jornalistas, e escreviam para jornais respirando as redações e máquinas de datilografia, porém estes grandes viviam e usufruíam diariamente da escrita e se viam obrigados ao estudo e envolvimento crescente com sua matéria de arte: a palavra.
Pois, se essa foi a fórmula do século passado para termos bons escritores, qual a melhor fórmula para hoje? As redações de jornais e revistas, infelizmente, não precisam mais de escritores, não dos bons. E as atividades modernas nos exigem cada vez mais intelectualmente, inclusive de forma remota.
Se quiseres ser escritor, para além do autor, deves, principalmente, ser um grande leitor que não somente possa ler muito, mas possa também discernir com clareza o que lê. E para tudo, não há caminho outro do que a dedicação extrema que ao fim torna-se paixão e quase obsessão, pois a consciência de que sempre pode ser melhor perseguirá o verdadeiro escritor até o último de seus dias. E isso é muito bom.
Paulo Tedesco
Chuva alaga dois andares da Biblioteca Nacional
Foto publicada na página do Facebook da Associação dos Servidores da Biblioteca Nacional (ASBN) |
— O prédio passa por obras, e a chuva forte acabou atingindo o teto que está em fase final de recuperação. Por enquanto, sabemos que houve danos em alguns computadores do quinto andar. Como desligamos a energia do prédio, depois do incidente, não sabemos se houve mais equipamentos eletrônicos danificados. O importante é que o acervo não foi atingido — diz Ângela.
No momento da chuva não havia mais visitantes no prédio. Uma equipe de reparo e manutenção foi chamada às pressas para tentar controlar a situação ainda durante à noite. De acordo com informações da direção, funcionários secaram todo o prédio e, no sábado, mesmo com mais uma chuva forte, não houve nenhum incidente. Hoje, haverá uma avaliação das condições do edifício, e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) será notificado sobre o que ocorreu. O local estará aberto ao público, e as atividades vão ocorrer normalmente.
Na página do Facebook da Associação dos Servidores da Biblioteca Nacional (ASBN), há fotos e vídeos que captaram o momento em que a chuva atingiu o interior do prédio. Uma das mensagens postadas revela que, desde 2012, integrantes do grupo vinham alertando sobre diversas ocorrências, tanto na parte interna, quanto externa do prédio. Além de vazamentos, há elevadores precários, sistema elétrico inadequado e equipamentos de ar condicionado obsoletos. A reportagem tentou contato com a presidente da ASBN, Luciana Muniz, mas ela não retornou as ligações.
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domingo, fevereiro 21
Livrarias em tempos modernos
Quando eu quero comprar uma roupa, o vendedor de roupas entende de tudo. Quando eu quero comprar um carro, o vendedor de carros também entende de tudo. Mas quando eu quero comprar um livro, o vendedor de livros nunca entende do produto que ele tem que vender.
Entrei numa livraria para pesquisar uns preços. Perguntei por A náusea, de Sartre. O rapaz consultou o sistema - coisa que eles adoram fazer - e encontrou uma cópia em uma prateleira lá no canto. Me disse o preço, eu li a contracapa e as orelhas. Ele perguntou se eu estudava Letras, eu respondi Jornalismo. Me indaguei o por quê da pergunta, se talvez estudantes de Letras têm desconto ou se são os únicos a lerem Sartre. Mas resolvi não esticar a conversa e segui para uma segunda livraria.
Lá, perguntei para outro rapaz pelo mesmo livro. Ele também foi consultar o sistema:
- Tem H?
Eu franzi a testa:
- Como assim?
Estiquei os olhos para ler o que ele estava digitando no computador que não "A náusea" e "Sartre". Estava escrito "Anáusea".
- Não, é "a" espaço "náusea" - informei, acabando com seu neologismo do absurdo.
Ele se corrigiu, murmurou Jean-Paul Sartre em um falso sotaque francês e me disse "só por encomenda". Suspirei e fui embora pensando que vendedores de livros têm muito a aprender com vendedores de carros ou roupas.
Eu não quero uma aula sobre Existencialismo francês quando eu consultar preços numa livraria, mas eu gostaria muito de ser orientado e informado sobre a obra, onde ela se encaixa no assunto, que outros títulos poderiam me ajudar na pesquisa. Eu gostaria que os vendedores de livros dialogassem comigo, assim como faz a mocinha da loja de roupas. As livrarias são formadas não por livreiros, mas por meros funcionários que consultam o sistema e buscam o livro na prateleira: operários de uma indústria em que pensar não é necessário e conhecer o produto que vende não é importante.
Isso me lembra o filme Tempos modernos, de Charles Chaplin. O sujeito se resigna a ser um mero apertador de porcas e parafusos e não tem idéia do resultado final que sua fábrica produz, até ser literalmente engolido por uma das máquinas. O mercado das livrarias não exige de seus vendedores entendimento do assunto ou predileção pela literatura. Para trabalhar numa livraria basta saber acessar o sistema e buscar o livro na prateleira, sem criar vínculo com o cliente e sem estimulá-lo a leituras semelhantes. O conhecimento é um subproduto que se compra no escuro, ao contrário de roupas e automóveis.
O mercado das "lojas de livros" seria mais esperto se percebesse que cliente bem orientado e bem atendido sempre volta e compra mais. As livrarias não passam de espaços bem iluminados, cheios de livros nas prateleiras, com vendedores desinteressados e computadores com acesso ao sistema. E isso é muito pior nas já comuns megastores, onde os vendedores foram trocados por terminais on-line em que você mesmo acessa o tal sistema numa tela sensível ao toque, sob um deslumbre tecnológico que não sacia carência alguma. Revolucionário mesmo é o livreiro que conhece os livros que vende, conversa com o cliente e participa de sua ânsia por conhecimento. Afinal, conhecimento não é sistema, é diálogo; não é máquina, é homem.
Mas tudo bem, não é o fim do mundo. Para mim, o mundo acaba mesmo toda vez que eu vou numa livraria e admiro a prateleira dos mais vendidos. Ali está, diante de mim, o retrato da falência do indivíduo, uma fatia da ansiedade do Homem contemporâneo e um testemunho do desespero existencial que nos faz baratas tontas num mundo de ofertas coloridas e respostas ilusórias. Curiosamente, dessas respostas os vendedores de livros sabem me informar.
Acho que o buraco é mais embaixo, mesmo.
Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado — esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar desse prédio, ficavam a redação e a oficina d'O Globo. Ali, Callado começou a sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo Machado, antes de passar ao "Correio da Manhã" e de ir para a Inglaterra trabalhar na BBC durante a guerra.
A referência à Freitas Bastos presumo que esteja ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d'O Globo. por onde passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de Callado, Ênio lançou a 1ª edição de "Quarup". Como autor, também eu passei pela Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.
Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros. Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de idéias e de fuxicos.
Não sei se há uma história das livrarias do Rio. Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras. Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.
A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência, leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos. Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930, instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo. Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em particular para Argentina, Chile e México.
Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno, todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência, com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que cair com o dinheiro, mesmo a prestação.
Quando submarinos nazistas afundaram navios brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia sagrado, que é o livro.
Vitor Diel (Texto extraído da revista "Diálogo médico", exemplar nº 1, 1989)
Entrei numa livraria para pesquisar uns preços. Perguntei por A náusea, de Sartre. O rapaz consultou o sistema - coisa que eles adoram fazer - e encontrou uma cópia em uma prateleira lá no canto. Me disse o preço, eu li a contracapa e as orelhas. Ele perguntou se eu estudava Letras, eu respondi Jornalismo. Me indaguei o por quê da pergunta, se talvez estudantes de Letras têm desconto ou se são os únicos a lerem Sartre. Mas resolvi não esticar a conversa e segui para uma segunda livraria.
Lá, perguntei para outro rapaz pelo mesmo livro. Ele também foi consultar o sistema:
- Tem H?
Eu franzi a testa:
- Como assim?
Estiquei os olhos para ler o que ele estava digitando no computador que não "A náusea" e "Sartre". Estava escrito "Anáusea".
- Não, é "a" espaço "náusea" - informei, acabando com seu neologismo do absurdo.
Ele se corrigiu, murmurou Jean-Paul Sartre em um falso sotaque francês e me disse "só por encomenda". Suspirei e fui embora pensando que vendedores de livros têm muito a aprender com vendedores de carros ou roupas.
Eu não quero uma aula sobre Existencialismo francês quando eu consultar preços numa livraria, mas eu gostaria muito de ser orientado e informado sobre a obra, onde ela se encaixa no assunto, que outros títulos poderiam me ajudar na pesquisa. Eu gostaria que os vendedores de livros dialogassem comigo, assim como faz a mocinha da loja de roupas. As livrarias são formadas não por livreiros, mas por meros funcionários que consultam o sistema e buscam o livro na prateleira: operários de uma indústria em que pensar não é necessário e conhecer o produto que vende não é importante.
Isso me lembra o filme Tempos modernos, de Charles Chaplin. O sujeito se resigna a ser um mero apertador de porcas e parafusos e não tem idéia do resultado final que sua fábrica produz, até ser literalmente engolido por uma das máquinas. O mercado das livrarias não exige de seus vendedores entendimento do assunto ou predileção pela literatura. Para trabalhar numa livraria basta saber acessar o sistema e buscar o livro na prateleira, sem criar vínculo com o cliente e sem estimulá-lo a leituras semelhantes. O conhecimento é um subproduto que se compra no escuro, ao contrário de roupas e automóveis.
O mercado das "lojas de livros" seria mais esperto se percebesse que cliente bem orientado e bem atendido sempre volta e compra mais. As livrarias não passam de espaços bem iluminados, cheios de livros nas prateleiras, com vendedores desinteressados e computadores com acesso ao sistema. E isso é muito pior nas já comuns megastores, onde os vendedores foram trocados por terminais on-line em que você mesmo acessa o tal sistema numa tela sensível ao toque, sob um deslumbre tecnológico que não sacia carência alguma. Revolucionário mesmo é o livreiro que conhece os livros que vende, conversa com o cliente e participa de sua ânsia por conhecimento. Afinal, conhecimento não é sistema, é diálogo; não é máquina, é homem.
Mas tudo bem, não é o fim do mundo. Para mim, o mundo acaba mesmo toda vez que eu vou numa livraria e admiro a prateleira dos mais vendidos. Ali está, diante de mim, o retrato da falência do indivíduo, uma fatia da ansiedade do Homem contemporâneo e um testemunho do desespero existencial que nos faz baratas tontas num mundo de ofertas coloridas e respostas ilusórias. Curiosamente, dessas respostas os vendedores de livros sabem me informar.
Acho que o buraco é mais embaixo, mesmo.
Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado — esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar desse prédio, ficavam a redação e a oficina d'O Globo. Ali, Callado começou a sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo Machado, antes de passar ao "Correio da Manhã" e de ir para a Inglaterra trabalhar na BBC durante a guerra.
A referência à Freitas Bastos presumo que esteja ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d'O Globo. por onde passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de Callado, Ênio lançou a 1ª edição de "Quarup". Como autor, também eu passei pela Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.
Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros. Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de idéias e de fuxicos.
Não sei se há uma história das livrarias do Rio. Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras. Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.
A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência, leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos. Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930, instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo. Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em particular para Argentina, Chile e México.
Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno, todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência, com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que cair com o dinheiro, mesmo a prestação.
Quando submarinos nazistas afundaram navios brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia sagrado, que é o livro.
Vitor Diel (Texto extraído da revista "Diálogo médico", exemplar nº 1, 1989)
Bibliotecas paulistanas sofrem queda de público e tentam se reinventar
Mais paulistanos vão hoje às bibliotecas da cidade que em 1990 e o número de empréstimos de livros dobrou de lá para cá (de 507 mil para cerca de 1 milhão em 2015).
A elevação é consequência do aumento no número de unidades, com a ajuda da multiplicação dos CEUs (Centro Educacional Unificado), na década passada, e da digitalização de registros, que traz informações mais precisas sobre os empréstimos.
Nesse período, os espaços também ganharam acervos de quadrinhos, filmes e outros conteúdos, como jogos de tabuleiro e videogames de última geração.
Mas essas iniciativas ainda não foram suficientes para compensar o declínio da biblioteca como espaço de pesquisa escolar. Diante do desafio da era digital, esses espaços vêm perdendo visitantes desde que atingiram o pico de frequentadores, de 2,6 milhões no ano de 2004.
Para mudar essa realidade, as bibliotecas da cidade investem em novas estratégias para estancar as perdas e transformar sua missão. "Essa mudança é boa, pois agora a biblioteca pública pode se dedicar a outros públicos e ser um espaço de descoberta da leitura", diz Waltemir Nalles, coordenador do Sistema Municipal de Bibliotecas.
O principal plano para atrair mais visitantes é apostar em eventos, como oficinas, pequenos shows, peças de teatro e encontros com autores. "As bibliotecas precisam ser pensadas como espaços multifuncionais e não como estantes de livros", afirma Francisco Aguiar, professor de biblioteconomia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
A elevação é consequência do aumento no número de unidades, com a ajuda da multiplicação dos CEUs (Centro Educacional Unificado), na década passada, e da digitalização de registros, que traz informações mais precisas sobre os empréstimos.
Nesse período, os espaços também ganharam acervos de quadrinhos, filmes e outros conteúdos, como jogos de tabuleiro e videogames de última geração.
Para mudar essa realidade, as bibliotecas da cidade investem em novas estratégias para estancar as perdas e transformar sua missão. "Essa mudança é boa, pois agora a biblioteca pública pode se dedicar a outros públicos e ser um espaço de descoberta da leitura", diz Waltemir Nalles, coordenador do Sistema Municipal de Bibliotecas.
O principal plano para atrair mais visitantes é apostar em eventos, como oficinas, pequenos shows, peças de teatro e encontros com autores. "As bibliotecas precisam ser pensadas como espaços multifuncionais e não como estantes de livros", afirma Francisco Aguiar, professor de biblioteconomia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Umberto Eco: lucidez, suor, ideias e uísque
Umberto Eco era uma inteligência imparável, um homem imponente. Sua memória parecia sempre uma máquina nova, seu discurso era ao mesmo tempo apocalíptico, risonho e integrado; não deixava que a melancolia que persegue todo semiótico rompesse a velocidade do pensamento, e ria do mundo enquanto explicava sua podridão. Foi assim com seu último livro, Número Zero, uma sátira simultaneamente redonda e pontiaguda sobre o ofício do jornalismo nos tempos da Internet. Ele não escrevia para divertir, e sim para se divertir, e nunca deixou de inventar fórmulas para desmentir a solenidade dos poderosos, em seu país e em qualquer lugar, e dos lugares-comuns, que ele abominava.
Nesse livro, Número Zero, incorporou algumas das suas colunas, que chamava de bustine [alusão às cartelas de fósforos, usadas frequentemente para anotações rápidas], para construir um afresco insolente, porém real, dos perigos que o jornalismo enfrenta ao relatar a realidade. O jornalista pode ser corrupto sem sabê-lo ou sabendo, e pode ser extremamente farsante e ignorante, pode ser usado pelo poder e também usá-lo, e as novas tecnologias das quais dispõe não necessariamente irão melhorar sua relação com as velhas bases sobre as quais o ofício se sustenta. O resultado dessa mescla de imaginação e colunas incluiu Mussolini e Berlusconi numa espécie de afresco divertido e inquietante, que nós, os jornalistas, não lemos com vergonha alheia, e sim com a vergonha própria de estar perante uma análise e um aviso do abismo que nos inquieta.
Foi no lançamento desse livro, no ano passado, que vi Umberto Eco pela última vez, na sua casa de Milão; em anos anteriores já havíamos nos visto ali, certa vez experimentando, para o fotógrafo Jordi Socias, um [chapéu] Borsalino, e rindo e bebendo uísque e comendo espaguete em seu restaurante favorito, o Quattro Mori, ao lado da sua casa espaçosa, cheia de livros bem ordenados, sentados diante de uma mesa para seis na qual estávamos três; mas as mãos de Eco, o que ele revelava, sua presença, então aparentemente asmática, seus olhos atentos e vivazes, que penetravam no que você ia lhe dizendo, dominavam tudo; precisava, como os grandes homens imperiais, de meia mesa só para ele; às vezes anotava as respostas que você dava às suas perguntas, mexia as mãos para frente como se se apoderasse delas, e quando não anotava tirava seu lenço grande e branco para limpar o suor abundante que marcava sua testa espaçosa. Nesse momento, há alguns anos, falávamos da Europa, do seu futuro, dos Erasmus [programa europeu de intercâmbio educacional], da cultura sobressaltada de um continente que estava se isolando apesar de acreditar que se abriria, e ele havia inventado uma fórmula para continuar bebendo uísque: provavelmente o médico havia lhe aconselhado a tomar menos uísque, ou a só tomar uísque se quisesse consumir álcool. E essa receita foi suficiente para que continuasse bebendo uísque, num copo curto, sem gelo, como se acompanhasse o espaguete com algum remédio.
Isso faz alguns anos. Desta vez, no inverno [europeu] de 2015, Umberto Eco já bebia menos, ria menos, estava mergulhado no ensimesmamento dos que possivelmente pensam em uma obra nova, ou em alguma melancolia não resolvida. Desta vez também fomos ao Quattro Mori; e vieram conosco sua tradutora espanhola, sua aluna Helena Lozano, que trabalhou com ele e compartilhou do seu riso e seu ensinamento até o esgotamento, sua ajudante Manuela Melato e o marido dela, o pintor mexicano Fernando Leal. Não era raro que nos almoços, desde sempre, Umberto Eco se ausentasse de vez em quando, apesar de sentado à mesa, como se as luzes da semiótica e as outras luzes com as quais olhava a vida o levassem por caminhos interiores, por meandros que considerava complexos ou intrincados. Então se calava e nós continuávamos falando, sobre gatos, principalmente, pois Leal havia descoberto associações insólitas entre os bichanos e sua arte. Eco de vez em quando retornava à cátedra da mesa e apontava, corrigia, indicava elementos com os quais completava as metáforas do artista. E depois se calava outra vez, atento a tudo, mas distante de tudo nesses instantes.
Em julho do ano passado um piadista agourento sei lá de onde anunciou na Internet, como se perpetrasse uma vingança, que Umberto Eco havia morrido. Quem me alertou da notícia, que era afinal rematadamente falsa, foi Milena Busquets, que desde menina se criou perto da presença de Eco; sua mãe, Esther Tusquets, foi a editora espanhola, a grande amiga do semiótico italiano; de modo que compartilhamos os primeiros minutos dessa incerteza como se se tratasse da notícia impossível da morte de um familiar muito próximo; de fato, Umberto Eco é, desde Apocalípticos e Integrados, quando nossa geração estava na universidade, até este Número Zero, um filósofo da nossa própria idade ou natureza, um homem deste tempo que sempre foi lucidamente contemporâneo, raivosamente útil para afiar o olhar distraído que aconselha um dos seus mais conspícuos amigos espanhóis, Juan Cueto, ou para destruir os lugares-comuns da má inteligência. Era uma luz que levava nosso olhar aonde quisesse. Outro de seus seguidores mais fiéis, o espanhol Jorge Lozano, o atraiu muitas vezes para a vida e a realidade espanholas, de modo que Eco era tão europeu, tão mundial e tão espanhol que, quando você o via ou o procurava, ele sempre tinha algo a dizer sobre o que acontecia na Espanha, porque sempre teve algo a dizer sobre o que acontecia em qualquer lugar.
Era uma mente poderosa; quando publicou O Pêndulo de Foucault, que não teve a relevância popular insólita alcançada por seu mais genial divertimento, O Nome da Rosa, decidiu ir descansar ao lado de Cuomo, rodeado de silêncio e de ginastas ricos; mas ele seguia sua rotina, seu uísque, seu suor pausado, sua vida intelectual saníssima dedicada à destruição sistemática (e semiótica) dos lugares-comuns. Para isso, como o espanhol Fernando Savater, como o já citado Cueto, como Jorge Luis Borges, utilizava apólogos ou perguntas, e depois ria quando você ficava sem palavras, tentando buscar internamente o significado das palavras que ele colocava para que você caísse nos poços abertos por sua inteligência. Depois repousava, olhava para você como se estivesse indo embora, e continuava lá, com sua mão atrás do assento, atirado nas poltronas como se estivesse respirando os pensamentos de um ensimesmado risonho.
Naquele momento em que nos deram a notícia falsa da sua morte, acreditei que essa falsidade conjuraria qualquer susto semelhante no futuro. Mas agora morreu, morreu Umberto Eco e senti que o ouvia rir sozinho quando ficava ensimesmado no Quattro Mori. Um sábio que sabia todas as coisas, simulando que as ignorava para continuar estudando.
Nesse livro, Número Zero, incorporou algumas das suas colunas, que chamava de bustine [alusão às cartelas de fósforos, usadas frequentemente para anotações rápidas], para construir um afresco insolente, porém real, dos perigos que o jornalismo enfrenta ao relatar a realidade. O jornalista pode ser corrupto sem sabê-lo ou sabendo, e pode ser extremamente farsante e ignorante, pode ser usado pelo poder e também usá-lo, e as novas tecnologias das quais dispõe não necessariamente irão melhorar sua relação com as velhas bases sobre as quais o ofício se sustenta. O resultado dessa mescla de imaginação e colunas incluiu Mussolini e Berlusconi numa espécie de afresco divertido e inquietante, que nós, os jornalistas, não lemos com vergonha alheia, e sim com a vergonha própria de estar perante uma análise e um aviso do abismo que nos inquieta.
Foi no lançamento desse livro, no ano passado, que vi Umberto Eco pela última vez, na sua casa de Milão; em anos anteriores já havíamos nos visto ali, certa vez experimentando, para o fotógrafo Jordi Socias, um [chapéu] Borsalino, e rindo e bebendo uísque e comendo espaguete em seu restaurante favorito, o Quattro Mori, ao lado da sua casa espaçosa, cheia de livros bem ordenados, sentados diante de uma mesa para seis na qual estávamos três; mas as mãos de Eco, o que ele revelava, sua presença, então aparentemente asmática, seus olhos atentos e vivazes, que penetravam no que você ia lhe dizendo, dominavam tudo; precisava, como os grandes homens imperiais, de meia mesa só para ele; às vezes anotava as respostas que você dava às suas perguntas, mexia as mãos para frente como se se apoderasse delas, e quando não anotava tirava seu lenço grande e branco para limpar o suor abundante que marcava sua testa espaçosa. Nesse momento, há alguns anos, falávamos da Europa, do seu futuro, dos Erasmus [programa europeu de intercâmbio educacional], da cultura sobressaltada de um continente que estava se isolando apesar de acreditar que se abriria, e ele havia inventado uma fórmula para continuar bebendo uísque: provavelmente o médico havia lhe aconselhado a tomar menos uísque, ou a só tomar uísque se quisesse consumir álcool. E essa receita foi suficiente para que continuasse bebendo uísque, num copo curto, sem gelo, como se acompanhasse o espaguete com algum remédio.
Isso faz alguns anos. Desta vez, no inverno [europeu] de 2015, Umberto Eco já bebia menos, ria menos, estava mergulhado no ensimesmamento dos que possivelmente pensam em uma obra nova, ou em alguma melancolia não resolvida. Desta vez também fomos ao Quattro Mori; e vieram conosco sua tradutora espanhola, sua aluna Helena Lozano, que trabalhou com ele e compartilhou do seu riso e seu ensinamento até o esgotamento, sua ajudante Manuela Melato e o marido dela, o pintor mexicano Fernando Leal. Não era raro que nos almoços, desde sempre, Umberto Eco se ausentasse de vez em quando, apesar de sentado à mesa, como se as luzes da semiótica e as outras luzes com as quais olhava a vida o levassem por caminhos interiores, por meandros que considerava complexos ou intrincados. Então se calava e nós continuávamos falando, sobre gatos, principalmente, pois Leal havia descoberto associações insólitas entre os bichanos e sua arte. Eco de vez em quando retornava à cátedra da mesa e apontava, corrigia, indicava elementos com os quais completava as metáforas do artista. E depois se calava outra vez, atento a tudo, mas distante de tudo nesses instantes.
Em julho do ano passado um piadista agourento sei lá de onde anunciou na Internet, como se perpetrasse uma vingança, que Umberto Eco havia morrido. Quem me alertou da notícia, que era afinal rematadamente falsa, foi Milena Busquets, que desde menina se criou perto da presença de Eco; sua mãe, Esther Tusquets, foi a editora espanhola, a grande amiga do semiótico italiano; de modo que compartilhamos os primeiros minutos dessa incerteza como se se tratasse da notícia impossível da morte de um familiar muito próximo; de fato, Umberto Eco é, desde Apocalípticos e Integrados, quando nossa geração estava na universidade, até este Número Zero, um filósofo da nossa própria idade ou natureza, um homem deste tempo que sempre foi lucidamente contemporâneo, raivosamente útil para afiar o olhar distraído que aconselha um dos seus mais conspícuos amigos espanhóis, Juan Cueto, ou para destruir os lugares-comuns da má inteligência. Era uma luz que levava nosso olhar aonde quisesse. Outro de seus seguidores mais fiéis, o espanhol Jorge Lozano, o atraiu muitas vezes para a vida e a realidade espanholas, de modo que Eco era tão europeu, tão mundial e tão espanhol que, quando você o via ou o procurava, ele sempre tinha algo a dizer sobre o que acontecia na Espanha, porque sempre teve algo a dizer sobre o que acontecia em qualquer lugar.
Era uma mente poderosa; quando publicou O Pêndulo de Foucault, que não teve a relevância popular insólita alcançada por seu mais genial divertimento, O Nome da Rosa, decidiu ir descansar ao lado de Cuomo, rodeado de silêncio e de ginastas ricos; mas ele seguia sua rotina, seu uísque, seu suor pausado, sua vida intelectual saníssima dedicada à destruição sistemática (e semiótica) dos lugares-comuns. Para isso, como o espanhol Fernando Savater, como o já citado Cueto, como Jorge Luis Borges, utilizava apólogos ou perguntas, e depois ria quando você ficava sem palavras, tentando buscar internamente o significado das palavras que ele colocava para que você caísse nos poços abertos por sua inteligência. Depois repousava, olhava para você como se estivesse indo embora, e continuava lá, com sua mão atrás do assento, atirado nas poltronas como se estivesse respirando os pensamentos de um ensimesmado risonho.
Naquele momento em que nos deram a notícia falsa da sua morte, acreditei que essa falsidade conjuraria qualquer susto semelhante no futuro. Mas agora morreu, morreu Umberto Eco e senti que o ouvia rir sozinho quando ficava ensimesmado no Quattro Mori. Um sábio que sabia todas as coisas, simulando que as ignorava para continuar estudando.
sábado, fevereiro 20
92% dos universitários preferem o impresso
Se você é um leitor voraz, com certeza deve conhecer o prazer sem igual que é segurar um livro de papel em suas mãos e se deixar levar pela história impressa nele.
Você não está sozinho nisso. Uma recente pesquisa da American University, em Washington DC, Estados Unidos, mostra que mesmo hoje, com a possibilidade de leitura em várias plataformas digitais, como smartphones e tablets, e a forte presença dessa tecnologia na vida dos jovens, o livro de papel segue firme e forte entre os estudantes universitários, no que se refere a preferência.
Naomi Baron, professora de linguística da universidade, descobriu que 92% dos universitários preferem os livros impressos aos digitais para leituras sérias.
A pesquisa é parte do novo livro de Baron, Words Onscreen: the Fate of Reading in a Digital World ("Palavras na tela: o destino da leitura no mundo digital"). Ela e sua equipe entrevistaram 300 estudantes de países como EUA, Japão, Alemanha e Eslováquia.
Segundo a professora, a atividade da leitura no papel tem componentes singulares, como o "físico, tátil e cinestético". (Cinestesia é o sentido que nos diz quando partes do corpo se movem.)
"Nos dados eslovacos, quando eu perguntei o que 'você' mais gosta nas cópias impressas, um em cada dez falaram sobre o cheiro dos livros", disse Baron, em entrevista à New Republic.
Outra característica apontada pelos estudantes foi a sensação de realização ao concluir um livro e vê-lo na estante.
Mas por que a geração digital ainda prefere o livro de papel?
"Há dois grandes problemas", disse a professora, na mesma entrevista. "O primeiro é que eles dizem se distrair [facilmente], se afastar para outras coisas. O segundo tem a ver com o cansaço nos olhos, dores de cabeça e desconforto físico."
Você não está sozinho nisso. Uma recente pesquisa da American University, em Washington DC, Estados Unidos, mostra que mesmo hoje, com a possibilidade de leitura em várias plataformas digitais, como smartphones e tablets, e a forte presença dessa tecnologia na vida dos jovens, o livro de papel segue firme e forte entre os estudantes universitários, no que se refere a preferência.
A pesquisa é parte do novo livro de Baron, Words Onscreen: the Fate of Reading in a Digital World ("Palavras na tela: o destino da leitura no mundo digital"). Ela e sua equipe entrevistaram 300 estudantes de países como EUA, Japão, Alemanha e Eslováquia.
Segundo a professora, a atividade da leitura no papel tem componentes singulares, como o "físico, tátil e cinestético". (Cinestesia é o sentido que nos diz quando partes do corpo se movem.)
"Nos dados eslovacos, quando eu perguntei o que 'você' mais gosta nas cópias impressas, um em cada dez falaram sobre o cheiro dos livros", disse Baron, em entrevista à New Republic.
Outra característica apontada pelos estudantes foi a sensação de realização ao concluir um livro e vê-lo na estante.
Mas por que a geração digital ainda prefere o livro de papel?
"Há dois grandes problemas", disse a professora, na mesma entrevista. "O primeiro é que eles dizem se distrair [facilmente], se afastar para outras coisas. O segundo tem a ver com o cansaço nos olhos, dores de cabeça e desconforto físico."
"Um argumento que os estudantes deram a favor da mídia eletrônica é a preservação do meio ambiente. Mas essa é uma coisa difícil de se medir bem. Se você lê 400 livros no tempo de vida útil do seu kindle, ele foi eficiente à energia? Provavelmente", explicou.
"Mas há a questão de energia e reciclagem. Onde esses dispositivos são reciclados? Quem faz a reciclagem? Que tipo de equipamento de proteção eles têm? E sobre toda madeira que usamos para [fazer] o papel – nós sempre tivemos maneiras criativas de usar lascas de madeira ou outras coisas para fazer papel."
O digital, entretanto, não foram jogados para escanteio. As novas plataformas são as preferidas para leituras de forte aspecto visual ou notícias.
"Mas há a questão de energia e reciclagem. Onde esses dispositivos são reciclados? Quem faz a reciclagem? Que tipo de equipamento de proteção eles têm? E sobre toda madeira que usamos para [fazer] o papel – nós sempre tivemos maneiras criativas de usar lascas de madeira ou outras coisas para fazer papel."
O digital, entretanto, não foram jogados para escanteio. As novas plataformas são as preferidas para leituras de forte aspecto visual ou notícias.
Memória
Umberto Eco (1932-2016) |
*Vivemos para os livros
*Os livros não foram feitos para serem acreditados mas para que os questionemos. Quando lemos um livro, devemos perguntar a nós próprios não o que diz mas o que significa
*Tenho cerca de 50 mil livros. Quando a minha secretaria disse que ia catalogá-los disse-lhe para não o fazer, os meus interesses mudam constantemente
*Para sobreviver é preciso contar histórias
Os tipos móveis de Gutenberg
No grande universo dos livros, um dos campos pelo qual sempre fui fascinado é o da sua fabricação. Sou da época em que se compunha com linotipo, recebia-se as provas feitas com tira-prova e depois das correções o livro ia para as impressoras e depois para o acabamento. Atravessei a época dos fotolitos (ainda com composição a quente), pela composição com uma espécie de máquina de datilografia aperfeiçoada da IBM, que produzia textos justificados e já com uma boa variedade de tipos (as “bolinhas” eram trocadas). Esse material ia para uma mesa de paste-up e depois era fotolitado. Hoje todo mundo usa editoração eletrônica e o resultado é enviado por e-mail e já vai direto para a impressora, pelo sistema computer-to-plate.
Mas antes dos livros, ainda adolescente, trabalhei em jornal, em Manaus, que ainda usava composição a quente (linotipo, monotipo e clichês) e impressão em máquinas planas. Uma coisa! Uma vez vi uma página mal amarrada estourar e espalhar colunas de linotipo e blocos de clichês para todo lado, com risco de ferir um gráfico. Aliás, essa exigência técnica de produzir uma página completamente “amarrada” da tipografia perdeu-se na etapa seguinte do paste-up, e o que se viu de colunas tortas e fotos mal ajustadas... Só a editoração eletrônica recuperou a beleza de uma página bem montada.
Cada uma dessas etapas vividas só aumentava minha admiração pelo sujeito que inventou o básico: a impressão com tipos móveis. Sim, o famoso Johann Gutenberg.
Nunca fui a Mainz, sua cidade e sede de um museu e de um centro de estudos sobre tipografia, embora a cidade esteja bem perto de Frankfurt, tantas vezes visitada nas feiras. Mas sempre vou ao estande do Museu na feira, brinco de impressor e há muito tenho minha cópia tipográfica de uma página da famosa Bíblia de 42 linhas.
Recentemente li uma das poucas biografias sérias de Gutenberg existentes em tradução. Os trabalhos sobre a descoberta e vida dele são quase todos em alemão. É Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr. Achar o livro foi difícil. Encomendei através da Amazon mas o livro nunca chegou. Achei em um sebo por aqui e consegui comprar e ler.
É certamente um livro fascinante, com uma sólida abordagem do contexto da vida do inventor. Mainz estava feudalmente submetida a um Bispo Eleitor do Sacro Império Alemão, personagem político de primeira grandeza. Mas a cidade vivia às turras com os bispos, principalmente no período de vida de Gutenberg, quando o crescimento da burguesia já era evidente e entrava em choque com aquelas instituições feudais.
Capa do livro Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr | © Reprodução
Capa do livro Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr | © Reprodução
A família de Gutenberg (as explicações sobre os sobrenomes na época são deliciosas) fazia parte da nobreza, e em vários momentos, por conta das disputas, teve que se exilar para a cidade-sede do bispado, Eltville (onde também estão alguns dos principais vinhedos do Reno). Essa origem social perpassa muitos aspectos da vida de Gutenberg, inclusive a disputa com o sócio Fust, episódio muito importante no desenvolvimento da imprensa.
Não se conhece a data exata de seu nascimento (entre 1400 e 1403). Estudou em Efurt e sabe-se que se aperfeiçoou em ourivesaria e em técnicas de estampagem, que seriam fundamentais para o desenvolvimento da tipografia.
Alguns detalhes que ressaltei da biografia.
- A primeira versão dos tipos móveis de Gutenberg não foi feita em Mainz, e sim em Estrasburgo. O aperfeiçoamento final é que foi em Mainz, onde ele imprimiu a famosa Bíblia, conhecida como B-42 (o B se refere à forma do tipo, e o 42 se refere ao número de linhas em cada página).
- O processo de “invenção” da tipografia foi extremamente complicado. Gutenberg foi o primeiro – e aí está a raiz de tudo – a conceber um processo viável e simples de fundição de tipos. As tentativas anteriores de impressão incluíam tipos de madeira, cerâmica e a impressão em blocos de madeira, como xilogravuras, com os textos desenhados. O tipo móvel é a primeira e a mais fundamental das descobertas de Gutenberg. Ele inventou uma espécie de portador dos moldes que permitiu a fabricação rápida dos tipos de impressão a partir de uma patriz (escultura das letras em punções com instrumentos de ourives). Essas punções eram aplicadas em uma barra de cobre, criando as matrizes. Como o golpe deformava a matriz, era necessário retificá-las (outra habilidade de ourives) e daí se tinha uma matriz final. Essa, usando o tal fundidor de tipos, gerava os caracteres necessários para a impressão. Só para a impressão da B-42, Gutenberg fundiu cerca de dois milhões de tipos, de 290 formatos. Esse processo necessariamente tinha que ter muita precisão, para que os tipos pudessem se alinhar e se ajustar entre si. Para isso, também se fundiram ligaduras (combinações de letras, como o Æ), sinais de pontuação, etc.
- A impressora foi construída a partir de modelos de prensas de vinho, com adaptações importantes: uma bandeja deslizante para se colocar a composição. Essa bandeja tinha que deslizar de modo bem preciso, para que a mancha ficasse sempre no mesmo lugar, e depois para que impressões de cores não perdessem o registro. A impressão propriamente dita se dava quando uma prancha de madeira descia por uma alavanca manejada pelo impressor e “carimbava” o papel colocado (também ajustado) sobre a composição.
- Finalmente, Gutenberg teve que desenvolver uma tinta que não borrasse e permitisse a impressão com clareza. A tinta usada por Gutenberg era feita a partir da fuligem de candeeiros, verniz, albume e urina humana como prováveis aditivos. A qualidade da tinta de Gutenberg até hoje impressiona quem vê um exemplar da B-42 (foto).
- O primeiro impresso atribuído a Gutenberg, em Estrasburgo, é um trecho intitulado Fragmento do Weltgerich. Mas os primeiros livros, já impressos em Mainz (com tipos fabricados em Estrasburgo) foram os chamados Donatus. Eram simplesmente livros didáticos, um manual escolar de latim.
Gutenberg regressa a Mainz por volta de 1448, e estabelece a oficina na casa de sua família, a Gurtenberghof. Lá imprimiu várias tiragens do Donatus, mas o local e as condições eram insuficientes para desenvolver seu grande projeto, a impressão da Bíblia.
Leia mais o artigo de Felipe Lindoso
Mas antes dos livros, ainda adolescente, trabalhei em jornal, em Manaus, que ainda usava composição a quente (linotipo, monotipo e clichês) e impressão em máquinas planas. Uma coisa! Uma vez vi uma página mal amarrada estourar e espalhar colunas de linotipo e blocos de clichês para todo lado, com risco de ferir um gráfico. Aliás, essa exigência técnica de produzir uma página completamente “amarrada” da tipografia perdeu-se na etapa seguinte do paste-up, e o que se viu de colunas tortas e fotos mal ajustadas... Só a editoração eletrônica recuperou a beleza de uma página bem montada.
Cada uma dessas etapas vividas só aumentava minha admiração pelo sujeito que inventou o básico: a impressão com tipos móveis. Sim, o famoso Johann Gutenberg.
Nunca fui a Mainz, sua cidade e sede de um museu e de um centro de estudos sobre tipografia, embora a cidade esteja bem perto de Frankfurt, tantas vezes visitada nas feiras. Mas sempre vou ao estande do Museu na feira, brinco de impressor e há muito tenho minha cópia tipográfica de uma página da famosa Bíblia de 42 linhas.
Recentemente li uma das poucas biografias sérias de Gutenberg existentes em tradução. Os trabalhos sobre a descoberta e vida dele são quase todos em alemão. É Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr. Achar o livro foi difícil. Encomendei através da Amazon mas o livro nunca chegou. Achei em um sebo por aqui e consegui comprar e ler.
É certamente um livro fascinante, com uma sólida abordagem do contexto da vida do inventor. Mainz estava feudalmente submetida a um Bispo Eleitor do Sacro Império Alemão, personagem político de primeira grandeza. Mas a cidade vivia às turras com os bispos, principalmente no período de vida de Gutenberg, quando o crescimento da burguesia já era evidente e entrava em choque com aquelas instituições feudais.
Capa do livro Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr | © Reprodução
Capa do livro Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr | © Reprodução
A família de Gutenberg (as explicações sobre os sobrenomes na época são deliciosas) fazia parte da nobreza, e em vários momentos, por conta das disputas, teve que se exilar para a cidade-sede do bispado, Eltville (onde também estão alguns dos principais vinhedos do Reno). Essa origem social perpassa muitos aspectos da vida de Gutenberg, inclusive a disputa com o sócio Fust, episódio muito importante no desenvolvimento da imprensa.
Não se conhece a data exata de seu nascimento (entre 1400 e 1403). Estudou em Efurt e sabe-se que se aperfeiçoou em ourivesaria e em técnicas de estampagem, que seriam fundamentais para o desenvolvimento da tipografia.
Alguns detalhes que ressaltei da biografia.
- A primeira versão dos tipos móveis de Gutenberg não foi feita em Mainz, e sim em Estrasburgo. O aperfeiçoamento final é que foi em Mainz, onde ele imprimiu a famosa Bíblia, conhecida como B-42 (o B se refere à forma do tipo, e o 42 se refere ao número de linhas em cada página).
- O processo de “invenção” da tipografia foi extremamente complicado. Gutenberg foi o primeiro – e aí está a raiz de tudo – a conceber um processo viável e simples de fundição de tipos. As tentativas anteriores de impressão incluíam tipos de madeira, cerâmica e a impressão em blocos de madeira, como xilogravuras, com os textos desenhados. O tipo móvel é a primeira e a mais fundamental das descobertas de Gutenberg. Ele inventou uma espécie de portador dos moldes que permitiu a fabricação rápida dos tipos de impressão a partir de uma patriz (escultura das letras em punções com instrumentos de ourives). Essas punções eram aplicadas em uma barra de cobre, criando as matrizes. Como o golpe deformava a matriz, era necessário retificá-las (outra habilidade de ourives) e daí se tinha uma matriz final. Essa, usando o tal fundidor de tipos, gerava os caracteres necessários para a impressão. Só para a impressão da B-42, Gutenberg fundiu cerca de dois milhões de tipos, de 290 formatos. Esse processo necessariamente tinha que ter muita precisão, para que os tipos pudessem se alinhar e se ajustar entre si. Para isso, também se fundiram ligaduras (combinações de letras, como o Æ), sinais de pontuação, etc.
- A impressora foi construída a partir de modelos de prensas de vinho, com adaptações importantes: uma bandeja deslizante para se colocar a composição. Essa bandeja tinha que deslizar de modo bem preciso, para que a mancha ficasse sempre no mesmo lugar, e depois para que impressões de cores não perdessem o registro. A impressão propriamente dita se dava quando uma prancha de madeira descia por uma alavanca manejada pelo impressor e “carimbava” o papel colocado (também ajustado) sobre a composição.
- Finalmente, Gutenberg teve que desenvolver uma tinta que não borrasse e permitisse a impressão com clareza. A tinta usada por Gutenberg era feita a partir da fuligem de candeeiros, verniz, albume e urina humana como prováveis aditivos. A qualidade da tinta de Gutenberg até hoje impressiona quem vê um exemplar da B-42 (foto).
- O primeiro impresso atribuído a Gutenberg, em Estrasburgo, é um trecho intitulado Fragmento do Weltgerich. Mas os primeiros livros, já impressos em Mainz (com tipos fabricados em Estrasburgo) foram os chamados Donatus. Eram simplesmente livros didáticos, um manual escolar de latim.
Gutenberg regressa a Mainz por volta de 1448, e estabelece a oficina na casa de sua família, a Gurtenberghof. Lá imprimiu várias tiragens do Donatus, mas o local e as condições eram insuficientes para desenvolver seu grande projeto, a impressão da Bíblia.
Leia mais o artigo de Felipe Lindoso
sexta-feira, fevereiro 19
Drummond, João Brandão e a política
Por mais que se evidencie o ceticismo político de Carlos Drummond de Andrade, não se pode jamais dizer que o assunto não lhe interessava enormemente. Mas ao abordá-lo, em suas crônicas, o escritor não o faz da forma combativa que talvez se esperasse de quem esteve sujeito aos rigores do regime militar. Nem por isso a crítica deixa de se fazer presente, por vezes de maneira tão sutil que é difícil identificar uma corrente ideológica a que se filie. E não é de se espantar que, simplesmente insinuando suas posições, Drummond tenha conseguido resultados literários mais relevantes do que se externasse abertamente o seu pensamento. “Caminhos de João Brandão” (Companhia das Letras, 2016) é uma reunião de crônicas escritas nos anos 60 e que permite vislumbrar o comportamento do escritor diante das agitações políticas daquela época.
São especialmente notáveis os textos com aparição de João Brandão, curioso personagem criado por Drummond e tido como um alter ego. É com ele que o cronista irá percorrer o cenário político do país, sentir suas dores cívicas e enfrentar absurdos que não devem muito a Kafka. João Brandão não se surpreende com o que acontece no país, pois sabe que tudo pode acontecer, e geralmente acontece, com exceção de duas ou três coisas. Mas mesmo o absurdo nacional é demais para as suas forças. Ele não é, afinal de contas, um herói, mas um qualquer, um não-iluminado, um não-portador de missão. É um homem com isenção de ânimo, único brasileiro a não querer ensinar o presidente a governar. Ao colocar este homem no poder do país, Drummond revela aspectos não apenas do início do regime militar, mas da própria alma do país, um lugar onde até a ausência de conflitos poderia se tornar um problema e trazer consigo o caos.
Trata-se de um cronista com visão acurada do noticiário e da realidade do seu tempo, capaz de fazer com perfeição aquilo que teóricos mais apaixonados do jornalismo atribuem como missão do gênero, ou seja, aprofundar a notícia. Não lhe interessa a aridez dos acontecimentos políticos, mas a poesia que os rodeia. A política é trazida ao cotidiano comum e, em meio a cenas e diálogos imaginados, o cronista é capaz de revelar tendências nos costumes do país. Ali estão também algumas de suas aflições diante do progresso e alguns conflitos geracionais que marcariam a temática do seu livro seguinte. A própria mistura com a poesia, embora menor, já acontece no livro. No seu estilo sóbrio e com humour característico, Drummond evoca tudo o que é de interesse humano – tudo o que, por vezes, a política se esforça em destruir.
Henrique Fendrich
País de heróis sem leitura
Articulistas sempre estão em busca de algum tema, e às vezes, procurando por um, acabam se deparando com outro. Repetidamente, até as descobertas cientificas, acontecem deste jeito. Este aqui nasceu assim: pensava em escrever sobre um tema e o desenrolar dele me levou a fazer novas perguntas, e acabei descobrindo outras coisas que estavam fora do escopo original. E, a despeito de atuar no mercado editorial por tanto tempo, elas ainda me pegaram de surpresa. Talvez façam o mesmo com você.
O tema que abordo hoje é a falta de uma cultura da leitura. Para isso, escolho para a reflexão a forma como tem-se criado “campanhas para a promoção da leitura”.
As poucas vezes que surgem essas campanhas de incentivo à leitura, seja no rádio, revistas ou na TV, quase sempre acontece uma variação sobre o mesmo tema. Primeiramente escolhem um influenciador. São chamados para capitaneá-la alguém do meio artístico num destes grupos:
a)Um artista consagrado de TV ou de teatro;
b)Um autor de livros que circula nos principais cadernos de cultura;
c)Um apresentador de TV de programa cultural/jornalístico.
Pense você em três personagens que pode ter visto encampando estas campanhas nos itens a, b e c.
1, 2, 3...
Antes de pedir uma reflexão, deixe-me lembrar sobre qual era a proposta: promover o hábito de leitura para quem não o tem. E daí, pergunto: estes personagens podem ser um exemplo a ser seguido pelo público-alvo? Será que são o melhor elo de comunicação com o público que NÃO lê. (Porque é uma campanha de incentivo à leitura, não para reafirmar o valor da literatura para quem já lê, certo?)
Provavelmente você chegará a conclusão de que, por mais credibilidade que tal personalidade tenha, ela não se comunica com, por exemplo, crianças de escola pública de periferia.
Quem seria então um bom influenciador?
Quando é preciso fazer uma escolha de representante para estrelar uma grande campanha de um produto são feitos estudos meticulosos, caríssimas pesquisas de opinião com o público-alvo. Isso não o teremos, afinal, trata-se de livro, veículo continuamente desprestigiado neste país e que não vai trazer retorno financeiro direto a empresas e raros foram os governos a tentar tratar a educação com alguma seriedade. Então, vou arriscar um palpite que me parece óbvio: o caminho seria partir para os heróis desse público hoje: cantores populares, jogadores de futebol, jovens ídolos.
Vimos tentando por décadas usar um ator consagrado de teatro e levá-lo para convencer as pessoas que não leem e nem vão ao teatro de que a leitura é um caminho de ascensão social, de dignidade, respeito. É uma tentativa cheia de boas intenções, mas carregada equívocos e talvez muito idealizado. Ora, se buscamos incentivar quem não lê por que se oferece o modelo clássico? Porque não oferecer o novo?
Imagine trocar um Paulo Autran ou Serginho Groisman por Neymar? Ou Cid Moreira por Anitta ou McGuinê? Vejo daqui uma torcida de nariz, mas continue.
Se estamos tentando “pescar” quem não lê, quem traria melhor repercussão? Não se aborreça ainda. Se você está lendo este artigo é porque não precisa de incentivo novo para ler.
O tema que abordo hoje é a falta de uma cultura da leitura. Para isso, escolho para a reflexão a forma como tem-se criado “campanhas para a promoção da leitura”.
As poucas vezes que surgem essas campanhas de incentivo à leitura, seja no rádio, revistas ou na TV, quase sempre acontece uma variação sobre o mesmo tema. Primeiramente escolhem um influenciador. São chamados para capitaneá-la alguém do meio artístico num destes grupos:
a)Um artista consagrado de TV ou de teatro;
b)Um autor de livros que circula nos principais cadernos de cultura;
c)Um apresentador de TV de programa cultural/jornalístico.
Pense você em três personagens que pode ter visto encampando estas campanhas nos itens a, b e c.
1, 2, 3...
Antes de pedir uma reflexão, deixe-me lembrar sobre qual era a proposta: promover o hábito de leitura para quem não o tem. E daí, pergunto: estes personagens podem ser um exemplo a ser seguido pelo público-alvo? Será que são o melhor elo de comunicação com o público que NÃO lê. (Porque é uma campanha de incentivo à leitura, não para reafirmar o valor da literatura para quem já lê, certo?)
Provavelmente você chegará a conclusão de que, por mais credibilidade que tal personalidade tenha, ela não se comunica com, por exemplo, crianças de escola pública de periferia.
Quem seria então um bom influenciador?
Quando é preciso fazer uma escolha de representante para estrelar uma grande campanha de um produto são feitos estudos meticulosos, caríssimas pesquisas de opinião com o público-alvo. Isso não o teremos, afinal, trata-se de livro, veículo continuamente desprestigiado neste país e que não vai trazer retorno financeiro direto a empresas e raros foram os governos a tentar tratar a educação com alguma seriedade. Então, vou arriscar um palpite que me parece óbvio: o caminho seria partir para os heróis desse público hoje: cantores populares, jogadores de futebol, jovens ídolos.
Vimos tentando por décadas usar um ator consagrado de teatro e levá-lo para convencer as pessoas que não leem e nem vão ao teatro de que a leitura é um caminho de ascensão social, de dignidade, respeito. É uma tentativa cheia de boas intenções, mas carregada equívocos e talvez muito idealizado. Ora, se buscamos incentivar quem não lê por que se oferece o modelo clássico? Porque não oferecer o novo?
Imagine trocar um Paulo Autran ou Serginho Groisman por Neymar? Ou Cid Moreira por Anitta ou McGuinê? Vejo daqui uma torcida de nariz, mas continue.
Se estamos tentando “pescar” quem não lê, quem traria melhor repercussão? Não se aborreça ainda. Se você está lendo este artigo é porque não precisa de incentivo novo para ler.
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