sexta-feira, dezembro 11

O cinema, segundo Vinicius de Moraes

A Companhia das Letras está lançando uma nova edição de “O cinema de meus olhos“, livro de crônicas e artigos sobre cinema de Vinicius de Moraes. A obra, lançada originalmente na década de 90, reúne textos por vezes líricos, por vezes críticos. Vinicius amava o cinema e passou a conviver mais assiduamente com o mundo dos filmes no final da década de 40, quando serviu no consulado geral do Brasil em Los Angeles e pôde conviver com estrelas como Orson Welles e Carmen Miranda. Essa edição, organizada pelo crítico Carlos Augusto Calil, traz textos não incluídos na versão original.

Abstenção de Cinema

Ando cumprindo mal meus deveres de cronista. Não está certo, não, Vinicius de Moraes. O público te paga para escrever, e você, em vez, fica a andar de bicicleta com o Rubem Braga pelas praias do Leblon ou a roer a sua solidão nos bares de Copacabana, ingerindo chopes, além de tudo uma coisa que não pode fazer bem à sua colite. Você vai num mau caminho, meu rapaz. Você devia era entrar no cinema e ir ver Shirley Temple - mas como dói! Anteontem, passando em frente ao Rian, você teve mentalmente o seguinte comentário diante do cartaz: Casei-me com um nazista. "Quem mandou...". Nada disso está certo. Você é um rapaz de responsabilidade, com dois filhos, uma bela carreira na sua frente, talvez até com mais um ou dois livros a escrever. Você devia acordar mais cedo, olhar a aurora nascer, encher os pulmões da salsa brisa atlântica, fazer uma hora de ginástica, tomar um banho frio e escrever um poema sobre a eugenia. Mas, não. Há uma semana você não vai ao cinema. Olhe que você com essa sua abstenção pode ter feito mal a algum fiel leitor seu - esse desconhecido… - que, por incauto, e sem a sua rija orientação cinematográfica, se deixasse seduzir pela burrice dos cartazes, e... mais uma alma no inferno do cinema... 
 O médico em você se rebela contra essas surtidas dos monstros, Vinicius de Moraes. Ouve a voz que te conclama ao sereno e imparcial cumprimento do dever. Fecha os olhos, vai ao cinema. Ingere Shirley Temple e outras adolescências geniais como ingerias o teu óleo de rícino na infância, ministrado pela mão mussoliniana de tua tia. O público assim o quer. Deixa de hipocondrias. Sê cronista. Vence a sedução da máquina e o canto de sereia de Rubem Braga. Atira-te à confecção de pequenas jóias de bom gosto cinematográfico, pipocando em conceitos do mais alto interesse artístico, e larga essa mania de querer andar sem mãos e quem sabe - ó sonho! - de costas para a frente, na bicicleta. Ainda domingo passado pagaste quarenta cruzeiros ao garagista. Estás louco, rapaz, com o quilo de carne a três cruzeiros e sessenta centavos? 
 Não está certo, não, Vinicius de Moraes. É preciso comer cenouras, tomar pelo menos meio litro de leite por dia - e não uma bagaceirazinha ou outra, está ouvindo? -, ir ao cinema e depois meditar uma boa crônica ante um chá com waffle and mapple numa das cadeiras da Americana, entre senhoras abastadas - e não chope, está ouvindo?, que é uma coisa que encharca o estômago e não nutre nada... 
(Mas, afinal de contas, esse negócio de cevada é ou não é batata?)
A Manhã , 21 de Fevereiro de 1943
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