Johannes Vermeer (1668)
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Aos nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Mota Lima, nossos vizinhos, muito inferior, construído de maneira diversa. Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, frequentavam escola decente e possuíam máquinas que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barro, falava pouco.
Na minha escola de ponta de rua, alguns desgraçadinhos cochilavam em bancos estreitos e sem encosto, que às vezes se raspavam e lavavam. Nesses dias nós nos sentávamos na madeira molhada. A professora tinha mãe e filha. A mãe, caduca, fazia renda, batendo os bilros, com a almofada entre as pernas. A filha, mulata sarará enjoada e enxerida, nos ensinava as lições, mas ensinava de tal forma que percebemos nela tanta ignorância como em nós. Perto da mesa havia uma esteira, onde as mulheres se agachavam, cortavam panos e cosiam.
D. Agnelina rezingava com a filha por questões de namoro e, em caso de necessidade, administrava-lhe corretivos. Uma vez discutiram a respeito da palavra auréola, que surgiu na minha seleta. A moça acertou, mas D. Agnelina, debruando um vestido, julgou auréola equivalente a debrum, estirou o beiço e, depois de hesitar, misturando baixinho auréola com ourela recomendou-me que, para evitar dúvidas, dissesse aureóla.
O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler.
Ora, uma noite, depois do café, meu pai me mandou buscar um livro que deixara na cabeceira da cama. Novidade: meu velho nunca se dirigia a mim. E eu, engolido o café, beijava-lhe a mão, porque isto era praxe, mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no quarto, peguei com repugnância o antipático objeto e voltei à sala de jantar. Aí recebi ordem para me sentar e abrir o volume. Obedeci engulhando, com a vaga esperança de que uma visita me interrompesse. Ninguém nos visitou naquela noite extraordinária.
Meu pai determinou que eu principiasse a leitura. Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas, alcancei o fim da página, sem ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha, continuei a arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada cheia de buracos.
Com certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo, perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia. Explicou-me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com filhos andava numa floresta, em noite de inverno, perseguido por lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um lenhador. Era ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo.
Alinhavei o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da prosa confusa, aventurando-me às vezes a inquirir. E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito.
Recolhi-me preocupado: os fugitivos, os lobos e o lenhador agitaram-me o sono. Dormi com eles, acordei com eles. As horas voaram. Alheio à escola, aos brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos moleques, vivi com essas criaturas de sonho, incompletas e misteriosas.
À noite meu pai me pediu novamente o volume, e a cena da véspera se reproduziu: leitura emperrada, mal-entendidos, explicações.
Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente, mas o velho estava sombrio e silencioso.
E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me com um gesto, carrancudo. Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A princípio foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a certeza de que as horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar.
Findas, porém, as manifestações secretas de mágoa, refleti, achei que o mal tinha remédio e expliquei o negócio a Emília, minha excelente prima. O rosto sereno, largos olhos pretos, um ar de seriedade — linda moça. A irmã, brincalhona e rabugenta, ora pelos pés, ora pela cabeça, ria como doida e logo explodia em acessos de cólera. Mas Emília não era deste mundo. Só se zangou comigo uma vez, no dia em que, tuberculosa, me viu beber água no copo dela. Um anjo.
Confessei, pois, a Emília o meu desgosto e propus-lhe que me dirigisse a leitura. Esforcei-me por interessá-la contando-lhe a escuridão na mata, os lobos, os meninos apavorados, a conversa em casa do lenhador, o aparecimento de uma sujeita que se chamava Águeda.
Passado algum tempo, essa Águeda me serviu muito. Eusébio doido pegou o volume na loja, entrou a declamá-lo e, topando o nome da personagem, pronunciou Aguéda. Isto me deu satisfação: apesar de maduro, Eusébio doido era mais atrasado que eu.
Quando falei a Emília, porém, ignorava que houvesse pessoas tão rudes quanto Eusébio e admitia facilmente as aureólas da professora. Em conformidade com a opinião de minha mãe, considerava-me uma besta. Assim, era necessário que a priminha lesse comigo o romance e me auxiliasse na decifração dele.
Emília respondeu com uma pergunta que me espantou. Por que não me arriscava a tentar a leitura sozinho?
Longamente lhe expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se juntavam. Se eu fosse como os outros, bem; mas era bruto em demasia, todos me achavam bruto em demasia.
Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há no céu. Não no céu onde moram Deus Nosso Senhor e a Virgem Maria. Esse ninguém tinha visto. Mas o outro, o que fica por baixo, o do Sol, da Lua e das estrelas, os astrônomos conheciam perfeitamente. Ora, se eles enxergavam coisas tão distantes, porque não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras?
Matutei na lembrança de Emília. Eu, os astrônomos, que doidice! Ler as coisas do céu, quem havia de supor?
E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam a inteligência espessa. Vagarosamente.
Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com histórias tristes, em que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes.
Graciliano Ramos, in "Infância"
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