Findo o período letivo, minha mãe arrumava as parcas roupas numa bolsa de viagem de napa e me colocava no ônibus da Viação Marotti, um Mercedes-Benz do final da década de 1950, recomendando que o motorista, o próprio Marotti, baixinho e sempre mal-humorado, me apeasse na praça São Sebastião, onde certamente haveria alguém à espera. Aos solavancos atravessávamos as montanhas percorrendo a estrada esburacada de terra, rezando para que as chuvas, que nos espiavam por detrás das nuvens carregadas, não desabassem, senão quedávamos atolados pelo caminho.
E lá íamos envoltos na poeirama, a todo momento estacando no meio do nada para a subida ou descida de passageiros arrastando mercadorias acondicionadas em sacos de aniagem. As cidades se sucediam: Dona Eusébia, onde meu pai havia sido criado como agregado dos Nalon, donos de viveiros de mudas de laranja e limão; Astolfo Dutra, o rosto e as mãos lambuzadas de picolé; Sobral Pinto, fedor que emanava da fábrica de adubos; Diamante, tão pequena mas possuidora de uma estação de trem; e, após duas horas de sol e calor, Rodeiro.
O ônibus contornava a praça, estacionando ao lado da igreja de São Sebastião. Marotti me desembarcava e entregava a um dos irmãos da minha mãe, Antônio ou Pedro. Após pedir a bênção, cruzávamos a praça, eu fascinado com os saguis que habitavam as árvores raquíticas, até alcançarmos a charrete estacionada em frente ao bar do Pivatto. Antes de rumarmos para a roça, passávamos na padaria do seu Mazzini para nos abastecer de caçarola, um pudim de queijo que, junto à piada, espécie de panqueca doce que substituía o pão pela manhã, dimensiona a vastidão do tempo que se foi.
Na Fazenda do Paiol os dias transcorriam mergulhados em irreal felicidade. O cheiro de manga abraçava-nos, meninos e meninas trepados nos troncos grossos, o sumo da fruta melando as mãos, a boca, o rosto, escorrendo pelo pescoço, coalhando de nódoas as roupas. Mangas que iriam se transformar em um líquido pastoso amarelo-avermelhado, depois de horas e horas de revezamento entre tias e primas, colheres de pau remexendo enormes tachos de cobre assentados sobre o fogão improvisado no terreiro, à sombra de uma figueira.
Uma madrugada eu despertava, o coração sobressaltado, com o berro agônico do porco. Longo dia, o da matança. Coagulado, o sangue viraria chouriço. A gordura armazenaria parte da carne em latas de conserva – quanto mais tempo permanecesse imersa na banha, mais saborosa se tornava. Outra parte seria pendurada em defumadores sobre o fogão de lenha e outra ainda seria usada para fazer linguiça. A pele rendia torresmos; os ossos alimentavam os cachorros. Ao final, tudo seria distribuído equitativamente entre os parentes – e ainda alguém lembraria de reservar porções para vizinhos distantes e pobres, que mal conhecíamos.
Ao entrar em Rodeiro nos espalhávamos por entre a italianada que acorria dos confins das montanhas, gente que muitas vezes só se dirigia à cidade naquela ocasião. A praça São Sebastião enxameava e aproveitávamos para colocar as novidades em dia. Negócios eram tratados, namoros começavam, antipatias se consolidavam. Ao aproximar a meia-noite, todos nos encaminhávamos à igreja para participar da Missa do Galo. O padre Jaime, um holandês beberrão e sistemático, que falava uma língua incompreensível, adiava o encerramento da cerimônia enfadonha, para desespero dos fiéis.
Não havia luzinhas chinesas. Não havia árvores de Natal. Não havia Papai Noel. Não havia ceia. Não havia troca de presentes. Não havia espírito natalino. Havia, na volta para a roça, apenas a baça claridade da lua banhando a estrada, miríade de estrelas latejando na escuridão infinita e o ruído dos nossos passos calados, intimidados pela beleza do universo. Se eu pudesse reivindicar um presente de Natal seria esse meu pedido: ter de novo aquela inocência, aquela ingenuidade, aquela paz que habita a verdade das coisas simples e que vamos desperdiçando ao longo da vida.
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