sábado, dezembro 5

Outros tons de cinza

Era sexta-feira, e eu e o mundo estávamos entre uma tragédia e outra. Uns dias antes, em Mariana, uma das barragens com rejeitos da extração de minério havia rompido e jogado nos povoados vizinhos da cidade histórica — os mais atingidos foram Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo — uma quantidade de lama que soterrou tudo, dando cabo à vida de muitas pessoas. Mas isso era só o começo, apesar de a Samarco, dona da mineradora, afirmar, em suas primeiras declarações, que a única questão era o volume de lama derramado. Em não havendo toxicidade no lodaçal, prosseguiu a empresa, as consequências do desastre estavam limitadas àquele ali e agora. Não se eximiam de responsabilidade, mas afiançavam que a lama era do bem.


Aos homens, mulheres e crianças atolados no primeiro golpe somaram-se animais, vegetação, água. A lama, feito monstro de filme B, entrou pelos riachos, mergulhou no Rio Doce, passou por hidrelétrica, foi comer o mar (atualizemos Caymmi: é doce comer o mar). Enquanto cumpria seu caminho, as notícias passaram a dar conta de que não era só lama, restos tóxicos iam agarrados a ela. Um rio morto, como se tem dito que está o Rio Doce (que, aliás, já não andava bem do leito), acarreta mortes hoje, amanhã, depois. No Facebook, nos dias que se seguiram à avalanche, escrevi o seguinte: “Chamem um dactiloscopista, essa lama tem digitais (esquecidas nas mortes somadas aos dedos).” Fala de quem não se deixava e não se deixa convencer pelo discurso da empresa.

A outra tragédia viria ainda naquela sexta, o ataque à França. Mais de cem mortos. O país, na mira de radicais não é de hoje, além de tomar medidas de exceção emergenciais, tratou de entrar de arma e cuia na guerra, bombardeando, no dia seguinte, as regiões da Síria dominadas pelo Estado Islâmico. As mortes a serem contadas, nesse caso, não são apenas as desses dias, haja vista que tudo teve início muito antes, num caldo que vem sendo temperado por interesse econômico, fé obscurantista, corrupção e pelo simples prazer de exercer o poder ou a força do poder.

Mas era sexta-feira, e eu e o mundo ainda estávamos entre uma tragédia e outra. Eu corria da praia de Botafogo até a do Flamengo, no parque do Aterro — corria com um fone no ouvido, usufruindo da música, que me distrai do cansaço. Não estou muito certo do que ouvia, mas, depois da corrida, ao parar em uma lanchonete para beber água de coco, coloquei para tocar uma antologia do Paulinho da Viola. E ele foi cantando sambas daquele jeito tão próprio até chegar ao gaúcho Lupicínio Rodrigues. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar esse amor, meu senhor/nos braços de um outro qualquer.”

Ali, entre não saber o que aconteceria pouco depois em Paris e remoer sobre a destruição que a lama gerada pela negligência causara, continuaria e continuará a causar, Paulinho da Viola me jogou no colo do drama miúdo. O abandonado, no samba de Lupicínio, chega a dizer que não sabe se mesmo os de nervos de aço não reagiriam ao passar por aquilo que ele passou. Diz ainda que, quando revê seu amor perdido, é tomado por um desejo de morte ou de dor. Alguns iluminados seguram as pontas e fazem um samba, no entanto, um número expressivo de homens, sob pressão, costumam matar. Matam a mulher, matam o estranho, matam. No dia anterior ao que descrevo, um dos 100 mil habitantes da minha cidade natal desceu de uma moto, entrou numa padaria, atirou e matou o dono.

Lupicínio fez música a partir de sua fúria masculina, retratando um homem que, hoje, não deveria mais existir, mas que insiste em existir. Um deles quer ser prefeito da cidade do Rio de Janeiro.

Ao pensar em um adjetivo para encerrar esta crônica, quase escolho um da alçada do best-seller ao qual o título dela remete, mas não, seria grosseiro e gratuito. Assim, digo a vocês, amigos, estamos (somos?) podres — e a ponto de explodir.

Alexandre Brandão

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