Theo Szczepanski |
Na urna de alabastro não há cinzas. Apenas papéis mastigados pela traça. Gorda, saciada, pandulho estufado, ao devorar o olho direito da triste caricatura de Adriana Calcanhoto — bisonha tentativa de tornar-me ilustrador. Desenhos e jornais velhos boiam na poeira da caixa plástica no chão da casa. Aos poucos, recolho vestígios, carrego lembranças. Preparo a casa e o futuro para o fim. Há algum tempo, as paredes de madeira estão sendo destruídas pelos cupins. Os farelos no assoalho denunciam a sanha carnívora das pestes. Os cupins em silêncio devoram a casa; o câncer ruidoso, a garganta de minha mãe.
Presa fácil, acuada entre as sombras de um passado recente, esmago a traça com o indicador esquerdo. A mancha acinzentada escorre pelo nariz de Calcanhoto. Luma de Oliveira rebola a bunda amparada por coxas de aço na capa do jornal moribundo: 31 de janeiro de 2002. O carnaval se aproxima. Os passos anseiam a perfeição. Não lembro se a Luma já havia usado a coleira do Eike. Minha memória é péssima para fatos importantes.
A aranha de patas compridas acaricia os seios inflados de Luma. Esmago-a com delicadeza. O corpo tentacular transforma-se em reduzido emaranhado marrom. Com um guardanapo apago a traça do mapa e envolvo a aranha. Sou um assassino cuidadoso. Deixo tudo sobre a mesa da cozinha e volto à caixa plástica. Parece-me verde. Mas duvido da minha lucidez cromática. Todo daltônico é um mentiroso de si mesmo. Antes de reiniciar minha expedição, certifico-me de que não há outros invasores. Somente palavras nos jornais velhos. E a agenda.
Sei que não é minha. Nunca tive agendas. Agora, tenho uma. A vida piora à medida que uma agenda torna-se imprescindível. É simples, destas que as empresas destinam aos clientes. Na capa, a primeira ironia: OK Recursos Humanos. Ao abri-la, o espanto. É a agenda que minha irmã usava quando morreu: 31 de janeiro de 2002. Tinha 27 anos. Logo, faria 28. A morte não deixou.
O clipe enferrujado sustenta Santo Expedito — o santo das causas urgentes — e a carteirinha de consultas à dentista, cujo sobrenome me soa estranho: Mattana. Nos dados pessoais da agenda leio um endereço devastado pelos cupins, um número telefônico que desapareceu, uma empresa que vende seguros de vida (as ironias me acompanham o tempo todo), um RG que não identifica mais ninguém, e um CPF que não recolhe mais impostos. O grupo sanguíneo A não pertence a sangue algum. Enfim, informações inúteis, quinquilharias ficcionais. Noto que minha irmã tinha uma caligrafia irregular, as letras (sempre de fôrma) não mantêm o mesmo tamanho. Enfeita o i com um pingo ou uma bolinha. Não há muita lógica. Pela agenda da dentista, ela teria nova consulta em 1º de fevereiro. Neste dia, ela foi enterrada. Não sei se a dentista compareceu ao cemitério. Acho que não.
Vasculho uma intimidade que deixou de existir. Uma exumação sem consentimento. Não consigo parar de folhear a agenda que teve apenas um mês de vida. Noto que a maioria das anotações se refere a contas a pagar. Tudo muito organizado. No dia 7 de janeiro, pagou a loja Renner (R$ 28,00), o namorado (R$ 39,00), a cunhada (R$ 50,00), o psicólogo do filho (R$ 20,00), a C&A (R$ 33,51) e o telefone (R$ 42,00). Portanto, morreu com R$ 212,51 a menos na conta bancária no HSBC. Encontro o cartão no meio da agenda. É válido até setembro de 2002. Nunca venceu.
Presos às páginas, alguns papéis me causam certa angústia. Quem os deixou ali? Eu? Meus pais? Impossível descobrir quem alimenta os fantasmas. O Unibanco informa que “sua conta corrente da agência 0612 de número 727376-8 foi encerrada em 14/06/2002”. Uma preocupação a menos. A Caixa Econômica avisa que o saldo do FGTS é R$ 1.528,45. A Pernambucanas cobra um débito e solicita “por favor, procure uma de nossas filiais para liquidá-lo”. A palavra liquidá-lo sugere alguma piada. Em uma fatura, comprovo que o débito com a Pernambucanas é de R$ 34,54. A C&A reclama uma parcela em atraso de R$ 28,93. Em outro comunicado, a Serasa garante que minha irmã fora incluída no cadastro dos maus pagadores. A Pernambucanas não perdoou os R$ 34,54. Noto que ela comprava muito a prazo. Talvez procure as lojas para quitar as dívidas. Afinal, o comércio de vestuário não tem culpa pela morte alheia. Será que no caixão minha irmã usava uma das roupas compradas na C&A ou Pernambucanas? Defunto inadimplente.
Aos poucos, a agenda vai ficando em branco. A última anotação é de 25 de janeiro. De 26 a 31 nada consta. Apenas páginas vazias. A palavra é a coisa mais leve e no entanto carrega tudo. Para os meses seguintes há somente uma anotação sobre o primeiro dia de aula da filha. 18 de fevereiro: “início das aulas da Letícia. Creche Adolfo B. Menezes”. Não lembro quem levou minha sobrinha de cinco anos à escola. Na última página da agenda, logo após os telefones, a Oração a Santo Expedito ganha a letra irregular da minha irmã: “Meu Santo Expedito das causas justas e urgentes, socorrei-me nesta hora de aflição e desespero, intercedei por mim junto ao Nosso Senhor Jesus Cristo [...] Ajudai-me a superar estas horas difíceis, protegei-me de todos que possam me prejudicar, protegei a minha família, atendei ao meu pedido com urgência. Devolvei-me a paz e a tranquilidade. Serei grata pelo resto da minha vida…”.
Quando minha filha chega à cozinha, assusta-se: “Papai, tem uma aranha em cima da mesa”. Apenas respondo: “Não se preocupe. Está morta”.
Rogério Pereira
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