quinta-feira, dezembro 31

Teoria da amizade

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Kaoru Yamada
Recebi um livro ruim de um amigo bom. Li trechos e logo o desânimo me prostrou. Não poderia elogiar o livro e não queria perder o amigo. Rapidamente, escrevi um bilhete: Obrigado pelo teu livro, que começarei a ler ainda hoje. É claro que comecei a ler. E nunca terminei. Os amigos da gente não deveriam escrever livros. Seria mais fácil para o crítico não ter amigos escritores. Os livros deveriam ser escritos apenas por nossos inimigos. Se estes publicarem um livro ruim, estarão dando motivo para o crítico extravasar sua maldade e suas frustrações. Então poderíamos provar que ele realmente não presta e, num artigo contundente, destacar nossa superioridade. Se o livro do inimigo for bom, mais fácil ainda. É uma chance de provar da humildade e elogiar a obra com gordos e sibilantes adjetivos. Nosso anjo da guarda ficaria feliz e sairíamos do episódio como uma pessoa extremamente compreensiva, sem rancores. Diriam: vejam só, ele que foi difamado por x, tendo sido o alvo de inúmeras maledicências, vejam só que nobre caráter o dele - reconheceu a grandeza de seu detrator, definiu a estatura de seu pior desafeto.

Mas não. Quem me mandou um livro péssimo foi um amigo. Um amigo de infância. Desses que já não se fazem mais depois de uma certa idade. Um amigo que desejou as mesmas mulheres que um dia desejamos. Que frequentou os mesmos bares suspeitos. Que gastou conosco, em palestras descontraídas, horas infindáveis. É este maldito amigo que escreveu o livro que está sobre nossa mesa, fitando-nos com um olhar de cachorro ferido, de criança rejeitada. A capa ridícula que só perde para o conteúdo. A impressão é de péssima qualidade. E, mesmo assim, o livro provavelmente tenha custado caro. O amigo, que acabou se perdendo em trabalhos desgastantes, é pobre e deve ter passado por dificuldades para pagar a gráfica. A mulher dele, cada vez mais neurótica, com certeza brigou feio com o idiota, É isso que você é, um idiota, perdendo tempo com estas ilusões. Assim deve ter falado a mulher, enquanto olhava para as pernas com varizes, pensando que o dinheiro despendido poderia ter sido usado para uma pequena cirurgia plástica que a livraria das horríveis veias azuis, fruto da gravidez que ela não desejara, mas que acabara aceitando devido às insistências do marido. 

Fui sempre uma tola.

É isso que o livro me diz. Este livro que custou tanto. Não penso apenas no dinheiro. Mas no tempo. Dez longos anos tentando escrever alguma coisa decente e o resultado é um romancinho colegial, que qualquer adolescente poderia ter escrito. A tiragem deve ter sido pequena. Ele vai deixar nas livrarias do centro. Na Ghighnone, provavelmente os vendedores colocarão na mais remota prateleira. E como o livro não traz nada escrito na lombada, vai se perder no meio de outros títulos irrelevantes e empoeirados. No Chain, ele ficará atrás do balcão do guarda-volume, numa prateleira que é mais um depósito. Depois de algum tempo, será devolvido. E por azar, o amigo vai descobrir: deixara dez exemplares e na hora de recebê-los de volta, encontra onze. Um jornalista, que recebera o livro de presente, freguês assíduo da livraria, trocara-o, junto com um volume de poesia que a editora lhe mandara, por um livro do Paulo Coelho.

Ainda bem que o amigo nunca vai descobrir que serviu de complemento para uma troca, e justo envolvendo o Paulo Coelho. Deus é mesmo perverso. Para uns escritores ruins, tudo. Para outros, nada.

Mas ele tinha o amigo que era crítico. E crítico razoavelmente respeitado. E a opinião da crítica era muito melhor do que o sucesso de vendas. Vender livro era para os carreiristas. E ele sabia-se um clérigo. Escrevia por necessidade de expressão. Não suportaria passar a vida sem deixar uma mensagem para uns poucos. Ele tinha o crítico. Na verdade, pensando bem, ele escrevera este livro única e exclusivamente para o crítico. Eram dele todas as belezas contidas nestas páginas. O romance, uma espécie de educação sentimental, retomava fatos da infância comum. O crítico era o leitor ideal. Não precisava de mais ninguém. Ele tinha o crítico. Meu Deus, estava feliz, mesmo tendo de levar para casa os onze exemplares que o gerente da livraria lhe devolvera, alegando que não havia espaço para volumes consignados. Estava mais do que feliz, a qualquer momento sairia um longo artigo do crítico sobre sua obra. Só agora se lembrara de que não havia mandado nenhuma foto para o jornal. E queria um artigo com foto e tudo. Sem nem se lembrar do fato de não ter encontrado o seu livro nas prateleiras da Ghighnone - se fosse menos tímido teria perguntado para a vendedora se os livros já tinham sido vendidos - sem nem se lembrar disso, correu até um estúdio fotográfico. Depois ficou esperando pelo centro da cidade até às cinco horas, quando o retrato ficou pronto. Colocou-o num envelope e o deixou na portaria do jornal, endereçado ao editor.

É o livro deste amigo que estou levando para doar à biblioteca pública, depois de ter tido o cuidado de arrancar a página de rosto, com a calorosa dedicatória em que falava de infância e amizade - duas palavras que doem.

Antes de entregar ao funcionário, leio aleatoriamente um parágrafo só para me certificar de que estou fazendo a coisa certa. Mas a consciência lateja. Me sinto cruel. O fato de o livro ser ruim não me livra de minha maldade inata, de minha ingratidão.

Somente quando me encontro totalmente liberto de sua presença incômoda, volto à rotina. Leio outros livros, escrevo artigos, assisto a bons filmes. E toda vez que vou à banca comprar o jornal em que tenho a coluna, faço-o com a mesma emoção de meu amigo. Coração disparado, olhos embaçados, abro avidamente o jornal para ver se foi desta vez que tratei do livro ruim. Mas não foi.

Não escreverei nada. Nem uma notícia. Quero esquecer o livro. Mas para isso teria que esquecer o amigo que, um mês e meio depois, me telefona, deixando na secretária eletrônica o convite para um jantar na casa dele. Minha secretária liga, avisando que terei uma viagem para fazer e que, assim que estiver livre, marcarei nova data.

Decorrido mais um mês, recebo um novo pacote. Abro e encontro outro exemplar. Nenhuma dedicatória. Apenas o livro com sua cara de mendigo. Dias depois, imprudente, atendo o telefone. É ele. Parece estar meio bêbado. Tímido e correto, não faria isso em outra circunstância. Ouço um programa de auditório do outro lado da linha, enquanto ele reclama que o seu casamento está uma droga. A mulher não tem interesse nenhum por literatura. Veja, não chegou a ler o primeiro capítulo de meu livro. Encabulado, tento mudar o rumo da conversa. Mas as lamentações continuam. Fala de seu filho que morreu e de como o livro o salvou de uma crise de depressão. Você sabe o que é isso, hein? Você sabe o que é perder um filho? Não tenho palavras. E ele ainda recorda os planos que tinha para o menino. Queria para ele uma infância bonita como a nossa, com amizades verdadeiras. Não consigo segurar uma tosse seca. E ele, do outro lado, insiste em nossos laços de amizade. Diz que encontrou fulano na rua, aquele que sempre traía a gente por inveja. Pergunta se eu me lembro dele. Digo que sim. E o amigo pragueja, afirmando depois, falsamente alegre: O desgraçado está rico, é um advogado de sucesso. E eu aqui passando os meus apuros. Você sabe que tive de fechar a loja? Eu só consigo resmungar algo que parece significar: que pena. Mas ele levanta a bola, É isso aí, ainda bem que tenho os amigos.

A conversa termina e eu busco na pilha de livros aquele que espera um elogio meu. Ligo o computador. A tela vazia me olha. Digito: Fulano de Tal escreveu um livro inquietante. Isso era verdade, pelo menos para mim o livro era inquietante. Eu não estava mentindo. Poderia continuar o artigo que seria apenas um resumo do livro, sem afirmar nada. Mas são estas concessões, visíveis para qualquer espírito mais arguto, que fazem com que o crítico perca a credibilidade. Apaguei a frase. No dia seguinte doei o livro para a biblioteca da escola do bairro.

Depois de uma semana, todos os dias chegava mais um volume do livro pelo correio. Eu abria o pacote, último gesto de respeito, e o colocava diretamente no lixo. O amigo tinha resolvido o problema do encalhe. Se eu era o leitor ideal, nada mais lógico do que ser o destinatário de toda a tiragem do romance. Não sei quantas dezenas de volumes recebi. Algumas vezes, tentava ler um ou outro parágrafo. Mas não era possível continuar.

Os meus artigos começaram a ficar estúpidos, perdi o brilho

das reflexões, a graça das frases que sempre compensaram minhas limitações intelectuais. Estava me destruindo. Toda vez que abria um livro para ler era como se estivesse lendo aquele que me perseguia. Logo a capa parecia idêntica. 

Quando consultava alguma coisa na estante, tinha a impressão de que todos os meus livros eram iguais àquele. E isso me desesperava. Tornei-me amargo com os outros autores. Achei defeitos na obra de Cony, qualquer um faria sucesso tendo atrás de si uma grande editora e toda a mídia subserviente. Vi em Rubem Fonseca o virtuosismo informativo de quem tinha tempo de sobra para vasculhar livros sem significação. Comecei a fuzilar todo jovem talento. Eles não tinham passado por nenhuma situação parecida com a minha, eu que sou filho de analfabetos, leitor de biblioteca pública, agricultor frustrado, eu que não pude contar com a ajuda de ninguém para estudar.

Então percebi que, inconscientemente, estava querendo mostrar ao amigo que sou justo, que sou severo com todos, com os grandes e com os bem sucedidos. Neste dia, escrevi um feroz artigo contra o romance que me perseguia. Chamei-o de piegas, monótono, equivocado na linguagem e na estrutura. Decretei, por fim, a morte definitiva do autor. Nunca passaria de um escrevinhador de final de semana.

Assim que mandei, sem nem revisar, o artigo para o jornal, me esqueci completamente de tudo. Passei a trabalhar com grande entusiasmo, até o dia em que o texto saiu, ilustrado com a foto que ele mandara ao editor. E ele sorria de uma maneira espontânea, confiante. Sorria como no tempo em que éramos crianças.

Miguel Sanches Neto (Gazeta do Povo, 08/12/1997)

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