A escritora que me derrotou (é o que afirmam os jornais) tem 45 anos mas não aparenta mais de 30. Quando nos apresentaram, na British Library — a Biblioteca Nacional do Reino Unido, uma das maiores do mundo —, Han Kang estendeu-me uma pequena mão assustada. Avancei o rosto para a beijar, num gesto um tanto desastrado, e ela recuou dois minúsculos passos; depois cedeu e sorriu, um sorriso gentil, fazendo com que eu me sentisse enorme, e rústico. No palco, leu em coreano o trecho do livro com o qual ganhou o Man Booker International Prize, “A vegetariana”, publicado no Brasil, em 2013, pela Editora Devir, com tradução de Yun Jung Im a partir do original.
Fechei os olhos enquanto a ouvia ler. A voz de Han era como um rumor de águas deslizando entre musgo e cascalho. Embora eu não compreendesse nada, da mesma forma que não compreendo o idioma da água correndo entre musgo e cascalho, era possível sentir na voz dela um delicado, mas sombrio, fluir de sentimentos. Na conversa que se seguiu, com a jornalista Razia Iqbal, da BBC, Han Kang confessou-se perplexa por se achar ali, falando sobre um livro que escreveu há mais de dez anos. Explicou que na Coreia o romance não alcançara grande sucesso na época do lançamento. “Por quê?” — quis saber Razia. “Talvez por ser tão bizarro. Talvez seja demasiado bizarro para um país como o meu.”
Razia concordou. “A vegetariana” é um romance estranho, disse, mas comovente e muitíssimo corajoso. Depois fez a pergunta inevitável, quase sempre a mais incómoda para qualquer escritor: “De onde veio este livro?”
Han Kang suspirou suavemente. Explicou que o romance começara por ser um conto sobre uma mulher que se transformava numa árvore. “Realismo mágico” — acrescentou, e eu sorri. Acho um tanto irónico a forma como o chamado realismo mágico, tão desprezado hoje em dia entre os escritores latino-americanos, renasceu e vem alastrando pela Ásia. Basta pensar em Murakami. Por outro lado, lembrei-me de Mia Couto, que tem, ao longo dos seus muitos títulos, uma coleção de pessoas que se transformam em árvores — ou que nascem de árvores.
“A vegetariana”, contudo, vai muito além dessa trama simples. O romance, dividido em três partes, senão mesmo em três novelas autónomas, é uma reflexão, por vezes, violenta sobre o papel da mulher numa sociedade conservadora, fechada e que não oferece muito espaço para a diferença. Por isso Razia falou em coragem.
Assim que Han Kang abandonou o palco tive a certeza de que o livro ganharia o prémio (o anúncio ocorreria nessa mesma noite). Mais tarde, passei por uma livraria e comprei um exemplar. A tradutora inglesa, Debora Smith, tem apenas 25 anos. É uma moça bonita, quase tão tímida quanto Han Kang. Decidiu estudar coreano porque lhe pareceu um idioma ao mesmo tempo remoto e relevante. “A vegetariana” foi o primeiro romance que traduziu.
Poucas horas mais tarde, no grande salão do Victoria and Albert Museum, Hang Kang e Debora Smith subiram ao palco para receber o Man Booker International Prize. Enquanto o público se levantava e aplaudia — os homens trajando severo terno preto e laço (inclusive eu), e as senhoras exibindo cintilantes vestidos compridos —, Debora sentou-se numa cadeira e chorou.
Os ingleses não são muito inclinados a chorar em público. Suponho que os coreanos sejam ainda menos. Quanto a mim, tive de fazer um enorme esforço para não chorar junto com ela. Imaginei a mesma cerimónia numa qualquer cidade brasileira. Tenho a certeza de que o público inteiro teria caído no choro. Finalmente, Debora sossegou e, aproximando-se do microfone, disse que, ao contrário do que se possa pensar, os tradutores selecionados para a fase final do prémio não haviam passado os últimos dias pensando na melhor forma de assassinar os restantes concorrentes. “Somos uma família” — assegurou. Sei que sim. Comprovei a sincera alegria do meu próprio tradutor, Daniel Hahn, no momento em que o presidente do júri anunciou o vencedor. Pensei nas palavras de Debora, dias depois, quando um jornalista me perguntou se eu não ficara um pouco desapontado. Disse-lhe apenas que não. Não consegui explicar-lhe que, como os tradutores, também nós, escritores, somos uma espécie de grande família. Tão importante quanto isso: somos leitores. Um prémio, em especial um prémio como o Booker International, serve também para dar a conhecer novos autores. Quando descubro um livro que me agrada, um escritor com o qual me identifico, o que sinto é uma alegria imensa, como ganhar um amigo que me acompanhará o resto da vida.
Como ganhar asas, mas sem o terror da queda.
José Eduardo Agualusa
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