quinta-feira, dezembro 5

Clara

A dama de branco voltou-se lentamente. Os seus lábios esboçaram um sorriso tímido e trémulo. Os seus olhos apalpavam o vazio, pupilas brancas como o mármore. Engoli em seco. Era cega.

― Não conheces a minha sobrinha Clara, pois não? ― perguntou Barceló.

Limitei-me a dizer com a cabeça que não, incapaz de despregar os olhos daquela criatura com tez de boneca de porcelana e olhos brancos, os olhos mais tristes que alguma vez vi.

― Na realidade, a especialista em Julián Carax é a Clara, foi por isso que a trouxe ― disse Barceló. ― Mais ainda, pensando bem, acho que com vossa licença me vou retirar para outra sala a fim de inspeccionar este volume enquanto vocês falam das vossas coisas. Acham bem?

Olhei para ela, atónito. O livreiro, pirata até à sepultura e alheio às minhas reservas, limitou-se a dar-me uma palmadinha nas costas e partiu com o meu livro debaixo do braço.

― Impressionaste-o, sabes? ― disse a voz atrás de mim.

Voltei-me para descobrir o sorriso leve da sobrinha do livreiro, tenteando no vazio. Tinha uma voz de cristal, transparente e tão frágil que me pareceu que as suas palavras se quebrariam se a interrompesse a meio da frase.

― O meu tio disse-me que te ofereceu uma boa quantia pelo livro de Carax, mas que tu a recusaste ― acrescentou Clara. ― Conquistaste o seu respeito.

― Qualquer um o diria ― suspirei.

Observei que Clara inclinava a cabeça ao sorrir e que os seus dedos brincavam com um anel que parecia uma grinalda de safiras.

― Que idade tens? ― perguntou.

― Quase onze anos ― respondi. ― E a menina?

Clara riu perante a minha insolente inocência.

― Quase o dobro, mas também não é caso para me tratares por você.

― Parece mais nova ― assinalei, pressentindo que aquilo podia ser uma boa saída para a minha indiscrição.

― Então vou confiar em ti, porque não sei que aspecto tenho retorquiu, sem abandonar o seu sorriso a meia haste. ― Mas, se te pareço mais nova, tanto mais razão para me tratares por tu.

― Como queira, menina Clara.

Observei detidamente as suas mãos abertas como asas sobre o regaço, a cintura frágil a insinuar-se sob as pregas de alpaca, o desenho dos ombros, a extrema palidez da garganta e o desenho dos lábios, que teria querido acariciar com as pontas dos dedos. Nunca até aí tinha tido a oportunidade de examinar uma mulher tão de perto e com tanta precisão sem receio de me encontrar com o seu olhar.

― Para onde é que estás a olhar? ― perguntou Clara, não sem uma certa malícia.

― O seu tio diz que a menina é uma especialista em Julián Carax ― improvisei, com a boca seca.

― O meu tio seria capaz de dizer o que quer que fosse para passar um bocado a sós com um livro que o fascine ― aduziu Clara. ― Mas tu deves perguntar a ti mesmo como alguém que é cego pode ser especialista em livros se não os pode ler.

― Não me tinha ocorrido, para dizer a verdade.

― Para quem tem quase onze anos não mentes mal. Tem cuidado, senão ainda acabas como o meu tio.

Receando meter água pela enésima vez, limitei-me a permanecer sentado em silêncio, contemplando-a aparvalhado.

― Anda, aproxima-te ― disse ela.

― Desculpe?

― Aproxima-te sem medo. Não te vou comer.

Levantei-me da cadeira e aproximei-me até onde Clara estava sentada.
A sobrinha do livreiro levantou a mão direita, procurando-me às apalpadelas.
Sem saber bem como devia proceder, fiz outro tanto e ofereci-lhe a minha mão. Tomou-a na sua mão esquerda, e Clara ofereceu me em silêncio a sua direita. Compreendi instintivamente o que me pedia, e guiei-a até ao meu rosto. O seu tacto era ao mesmo tempo firme e delicado. Os dedos dela percorreram-me as faces e as maçãs do rosto.

Permaneci imóvel, quase sem me atrever a respirar enquanto Clara lia as minhas feições com as mãos. Enquanto o fazia, sorria para si e pude reparar que os seus lábios se semicerravam, como que murmurando em silêncio. Senti o roçar das suas mãos na testa, no cabelo e nas pálpebras. Deteve-se sobre os meus lábios, desenhando-os em silêncio com o indicador e o anular. Os dedos cheiravam a canela. Engoli em seco, notando que a pulsação me disparava à doida e agradecendo à divina providência que não houvesse testemunhas oculares para presenciar o meu rubor, que teria bastado para acender um charuto a um palmo de distância.
Carlos Ruiz Zafón, "A Sombra do Vento" 

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